Ouro Preto em quatro tetos: a evolução da pintura decorativa. In: CAMPOS, Adalgisa Arantes (org) De Vila Rica à Imperial Ouro Preto: aspectos históricos, artísticos e devocionais. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. p. 95-110.

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De Vila Rica à Imperial Ouro Preto: aspectos históricos, artísticos e devocionais

Organização:

Adalgisa Arantes Campos

Sumário

prefácio 7 1 Música na irmandade da padroeira do Ouro Preto: a Novena de Nossa Senhora do Pilar, de Francisco Gomes da Rocha (c.1754-1808) 13 Fábio Henrique Viana 2 A Igreja de Nossa Senhora do Pilar de Vila Rica, Matriz do Bairro Ouro Preto: o mecenato confrarial e a ornamentação dos sacrários 31 Sabrina Mara Sant’Anna 3 A iconografia tridentina na Igreja do Pilar: uma expressão de fé e arte 55 Leandro Gonçalves de Rezende 4 Morrer em majestade nas Minas: artistas, oficiais mecânicos e os aparatos efêmeros das exéquias de D. João V em Vila Rica 73 Jeaneth Xavier de Araújo 5 Ouro Preto em quatro tetos: a evolução da pintura decorativa 95 Mateus Alves Silva 6 Os missais ouro-pretanos: circulação e uso de gravuras europeias na arte mineira 111 Alex Bohrer 7 Os testamentos e a salvação: as atitudes frente à morte na freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto na primeira Metade do século XVIII 131 Denise Aparecida Sousa Duarte 8 Entre a tradição e a modernidade: as práticas obituárias em Ouro Preto, no século XIX 149 Mirian Moura Lott

9 A Ordem Terceira do Carmo e a vivência da morte no século XIX 169 Felipe Augusto Bernadi da Silveira 10 Caridade e abandono de crianças nos registros de batismos de Vila Rica, no século XVIII 189 Renato Franco 11 Povos indígenas e processos de conquista nos sertões da Comarca de Vila Rica 205 Adriano Toledo Paiva

5. Ouro Preto em quatro tetos: a evolução da pintura decorativa Mateus Alves Silva1

A produção artística em Ouro Preto vem confirmar a importância desta antiga vila no cenário artístico das Minas Gerais durante o período de colonização portuguesa até os primeiros anos do Império Brasileiro. Dentre tantas manifestações artísticas, podemos destacar a pintura, devido ao rico acervo conservado no interior dos templos, principalmente os tetos decorados. Pretendemos tratar de quatro tetos distribuídos em três edifícios religiosos distintos, a saber: a capela-mor da Capela de Nossa Senhora do Rosário do Padre Faria; a capela-mor e nave da Igreja de Santa Efigênia e a nave da Igreja de São Francisco de Assis. Tais obras nos permitem compreender o processo de desenvolvimento da técnica de decoração dos tetos a partir do uso da pintura de perspectiva que simulava arquitetura, também conhecida como quadratura, rompendo virtualmente o espaço limitado pela materialidade dos forros. Cabe assinalar que este texto visa considerar a falsa estrutura arquitetônica definida nesses tetos como forma de compreensão do desenvolvimento da técnica da perspectiva. Desse modo, excluímos as análises dos motivos iconográficos dos quadros centrais das pinturas, que dizem respeito às invocações religiosas típicas de cada templo. A estrutura pintada que sustenta os quadros centrais nos permite entrever a tentativa de construção de espaços virtuais com o auxílio da arquitetura e da prática da perspectiva, extremamente difundida em tempos anteriores nos grandes centros europeus. A forma decorativa da perspectiva tem seu desenvolvimento pleno nos séculos XVI e XVII, atestado por uma tratadística correspondente e que visa desenvolver, em aspectos diferenciados, os diversos modos de se construírem espaços ilusórios em perspectiva.2 Dentre estes tratados, um que obteve grande circulação entre os séculos XVIII e XIX foi o Perspectiva Pictorum et Architectorum, do jesuíta Andrea Pozzo (1642-1709).3 A despeito das raras referências de sua 1. Este texto contém alguns excertos da pesquisa sintetizada em Silva (2012). 2. Alguns tratados de arquitetura e perspectiva fundamentais escritos entre os séculos XVI e XVII são: SERLIO, Sebastiano. Tutte le opere d’Architettura e prospettiva... Veneza, 1537. PALLADIO, Andrea, I quattro libri di Architettura... Veneza, 1570. VIGNOLA, Jacopo Barozzi. Due regole della prospettiva pratica. Bologna, 1583. SCAMOZZI, Vincenzo. L’Idea della architettura universale. Veneza, 1615. 3. Publicado em dois volumes distintos porém complementares, em 1693 e 1700, a saber: POZZO,

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existência física nas terras mineiras,4 sua presença é atestada nas mais diversas pinturas elencadas em todo o território, e em diferentes tempos, principalmente pelos elementos que aqui e ali aparecem, relacionando-se como modelos para a pintura.5 Em Ouro Preto essa referência tratadística teve também seu lugar na produção pictórica cujos elementos comuns indicam a circulação da obra no território.

Capela de Nossa Senhora do Rosário do Padre Faria Iniciamos nossa trajetória pela capela-mor do Padre Faria. Neste pequeno templo encontramos uma preciosidade que remonta aos primórdios da produção de pinturas de forros em Minas, definitivamente o primeiro exemplar da antiga Vila Rica. Myriam Oliveira (1978) estabelece, inclusive, que a pintura da capelamor pode ser o primeiro exemplar encontrado nas Minas, uma vez que a já conhecida pintura da matriz de Nossa Senhora de Nazaré, de autoria documentada de Antônio Rodrigues Belo (1755), apresenta uma repintura. Segundo a autora: A excelente pintura do forro da capela-mor do Padre Faria, em Ouro Preto, de que infelizmente se desconhecem datação e autoria, pode ser considerada estilisticamente como a mais antiga pintura de perspectiva conservada na região. [...] Sabendo-se que a capela do Padre Faria foi totalmente reconstruída entre 1740 e 1755, datando inclusivamente desse período o conjunto de retábulos joaninos da capela-mor e arco-cruzeiro, é lícito também nele incluir a pintura do forro, cujo estilo adequa-se perfeitamente ao dos demais elementos da decoração interna do edifício. (Oliveira, 1978:32)

A pintura da capela-mor corresponde a uma trama arquitetônica bastante cerrada, preenchendo todos os espaços do forro tabuado da abóbada de volta completa. Podemos dividir o forro em seções simétricas, nas quais as duas laterais correspondem entre si, enquanto, ao centro, se vê um pequeno quadro com a invocação da Virgem coroada por anjos (Figura 1). Essa forma de composição em caixas também parece ser, ainda que vagamente, uma referência à forma tradicional de decoração de tetos realizada em painéis afixados ao teto, a chamada pintura em caixotões, típica de edifícios mais antigos como a capela de Nossa Senhora do Ó, em Sabará (Ávila, Gontijo e Machado, 1996:156). Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum. Pars Prima. Roma, 1693. POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum. Pars Secunda. Roma, 1700. 4. Referência da obra de Andrea Pozzo aparece no inventário do pintor Caetano Luiz de Miranda: ver Museu do Diamante / Biblioteca Antônio Torres – IPHAN (Cartório do 2º Ofício. Maço 175. Inventário de Caetano Luiz de Miranda); documento que foi inicialmente analisado por Antônio dos Santos e Selma Miranda (2000). Ver também Santiago (2009). 5. Sobre este tratado ver Silva (2012, sobretudo capítulos 1 e 2).

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Figura 1 – Capela de Nossa Senhora do Rosário do Padre Faria (capela-mor).

Foto: Acervo Adalgisa Arantes Campos

Nas duas seções laterais encontram-se balcões com balaustrada saliente e aberturas para o exterior na parte superior, ladeados por dois medalhões lisos. A estrutura dessa arquitetura pintada é definida pelo uso de pilastras e colunas, tal como se sustentassem a seção central, também dividida em três partes: o quadro central e duas pequenas aberturas retangulares nas quais se percebe o céu. A obra sugere uma aproximação muito grande com as pinturas produzidas no litoral brasileiro como a Igreja de São Francisco da Penitência (Rio de Janeiro), de autoria de Caetano da Costa Coelho em 1732, considerada a primeira manifestação das pinturas de perspectiva em território brasileiro. Outra aproximação é com as pinturas realizadas por José Soares de Araújo no arraial do Tijuco (hoje Diamantina) que, mesmo sendo posteriores, elaboram semelhante efeito de perspectiva com uma trama cerrada e com ênfase maior aos elementos arquitetônicos, em detrimento do quadro central, como é o caso da pintura do forro da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Diamantina, executada entre 1766 e 1769. Esta pintura apresenta um semelhante padrão de composição em que a pesada estrutura define uma espécie de corredor lateral com um balcão saliente, enquanto no centro da obra se encontra a pequena imagem da invocação do templo. Tomando por base o tratado de Andrea Pozzo, percebemos a relação direta entre as composições mencionadas e o conteúdo apresentado, o que evidencia as pinturas que preenchem todo o espaço dos tetos. Para se ter um exemplo, a figura 59 do segundo volume do tratado apresenta a construção de um espaço de 97

arquitetura fingida em que todas as dimensões do teto são ocupadas visualmente por elementos, dando espaço para os quadros ali colocados. As dimensões reduzidas da Capela do Padre Faria podem definir uma pintura bastante simplificada em relação às comparações aqui empreendidas, contudo, os elementos presentes nestas pinturas são bastante semelhantes. Destacamos, além do quadro central reduzido em relação à arquitetura pintada, elementos decorativos como as cabeças de anjos pétreos decorando os entablamentos, os medalhões compostos de volutas e conchas, além das já citadas aberturas que, em meio à pesada e cerrada trama arquitetônica, permitem entrever parte do céu. Figura 2 – POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum, vol. II, fig. 59.

Esse esquema compositivo sugere uma primeira fase da pintura que terá pouca projeção no território mineiro. Interessa notar a particularidade da pintura do Padre Faria em relação à produção em Ouro Preto, onde são raras as manifestações da pintura pertencente ao que Myriam Oliveira (2003) definiu como o “ciclo barroco” das pinturas de perspectiva.6 Esta poderia estar muito mais associada à pintura produzida na região próxima ao antigo arraial do Tejuco, como define a historiadora: Na região de Diamantina, que teve evolução artística autônoma, fora dos limites atingidos pela irradiação do rococó desenvolvido na antiga Vila Rica e áreas adjacentes, predominaram até fins do século XVIII os esquemas de composição barrocos, em 6. Segundo Oliveira (2003:327, n. 5), outros exemplos são os forros de Bom Jesus das Flores (Taquaral), antiga igreja Matriz de Catas Altas, capela-mor da matriz de Ouro Branco e a Sé de Mariana.

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virtude da influência exercida pelo pintor português José Soares de Araújo, natural da cidade de Braga, que comandou a pintura local nas três últimas décadas do século. Na de Ouro Preto, ao contrário, são raros os exemplares remanescentes dos tetos pintados nesse estilo, predominando amplamente os de composição rococó, que constituem um dos aspectos mais típicos da decoração interna das igrejas locais. (Oliveira, 2003:274)

Se o esquema de composição barroco não teve grandes exemplares no território, a introdução de elementos próprios do rococó e de uma arquitetura mais sóbria e concisa evidenciam a rápida evolução da pintura. Rapidamente, outras formas começaram a ser desenvolvidas e a pesada trama deu lugar a espaços mais abertos, sugerindo um deslocamento virtual cada vez maior da arquitetura pintada em relação à materialidade dos forros, permitindo diversas inovações pelos artistas.

Igreja de Santa Efigênia Primeiramente apresentamos a capela-mor da Igreja de Santa Efigênia, também conhecida como Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz (Figura 3). Esta pintura apresenta perspectiva centralizada com quatro pilastras acompanhando as arestas da abóbada, formando quatro arcos vazados. Atlantes sustentam grossas pilastras que seguem até o centro da composição, além de pequenos pedestais salientes sobre os quais se encontram vasos de flores. Os arcos formados entre as pilastras são marmoreados e deles pendem guirlandas de rosas. Sob os arcos, na continuidade dos pedestais, sobressaem balcões salientes com balaustrada em que figuram os doutores da igreja. Já de imediato se percebem mudanças com relação à capela-mor do Padre Faria, uma vez que agora já são evidenciados os espaços vazios delimitados pela arquitetura. O teto se abre em outros espaços, não visíveis ao observador, mas que são demarcados pela presença dos balcões salientes, sugerindo uma espécie de varanda em um pavimento superior ao do teto da capela-mor da igreja.

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Figura 3 – Igreja de Santa Efigênia (capela-mor).

Foto: Acervo Adalgisa Arantes Campos

A controvérsia de atribuições à pintura neste templo evoca o ambiente de produção da pintura na região de Ouro Preto. Célio Alves refere-se ao embate entre o pintor João Batista de Figueiredo e seu mestre, Manoel Rabelo de Souza, em um libelo cível que denota uma série de possibilidades para esses pintores. As obras de pintura nos tetos dos forros da capela-mor e nave da igreja do Rosário do Alto da Cruz (Santa Efigênia), em Ouro Preto, são fundamentais para se compreender melhor o surgimento do gosto rococó na pintura em Minas Gerais, bem como a possível contribuição de João Batista de Figueiredo nesse episódio. (Alves, 1999:37)

Segundo o autor, a contratação para a pintura da capela-mor da Igreja de Santa Efigênia foi arrematada pelo mestre dourador Manoel Rabelo de Souza, em época anterior a 1765. Nela, João Batista de Figueiredo já trabalhava como aprendiz, assim como o fizera na capela-mor da Sé de Mariana, arrematada também por seu mestre no ano de 1760, devido ao fato de Manoel Rabelo de Souza ser um dourador e não exatamente um pintor (de acordo com o relato de várias testemunhas do processo). A relação entre as pinturas é bastante evidente, uma vez que ambas são elaboradas nas abóbadas de arestas de pequenas dimensões e apresentam uma perspectiva centralizada, ou seja, em que as linhas do desenho da arquitetura convergem para o ponto central da abóbada. Desse modo, há a possibilidade de abertura de nichos nos quais podem ser inseridas figuras e outros elementos decorativos. No caso da capela-mor de Santa Efigênia, por exemplo,

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estão presentes os doutores da Igreja como personagens a ocupar os balcões definidos pela arquitetura. Ainda relacionando as duas pinturas, Célio Alves destaca que Como uma pintura praticamente se seguiu à outra, fica até fácil compreender porque a composição adotada na igreja de Ouro Preto tem, no geral, a mesma forma circular do partido adotado na Sé de Mariana. Não obstante, essa similitude só é guardada na sua visão global, porque nos detalhes, nas figuras e elementos arquitetônicos, observamos uma certa evolução estilística, uma erudição e uma paleta mais rica. Fato creditado a um maior aprimoramento dos aprendizes? Ou aos oficiais pintores contratados para a obra, diferentes daqueles que atuaram em Mariana? (Alves, 1999:39)

A resposta a estas perguntas, de fato, não exclui a presença de diversos indivíduos na confecção da pintura dos forros, mas sugere que a presença de “várias mãos” na pintura tenha permitido a inserção de novas formas e gostos. E um dos elementos fundamentais evidenciados nesse novo gosto é a introdução da rocaille (aqui ainda bastante tímidas e diminutas), forma derivada da concha e que será um dos dados-chave para a definição das pinturas já relacionadas ao desenvolvimento do rococó. A presença destas rocalhinhas é um fato bem significante, pois indica que, em um período bem curto de tempo – entre o final da pintura da Sé de Mariana e o início daquela do forro do teto do Alto da Cruz – se tenham começado a operar uma mudança de gosto e de concepção das composições picturais. (Alves, 1999:39)

O outro trabalho se dá na concepção da nave, também arrematada por Manoel Rabelo de Souza, no ano de 1768 (Figura 4). Neste se vê claramente a junção de dois modelos distintos, com o desenvolvimento das formas do rococó um pouco mais evidentes. E é essa junção de dois modelos distintos (a saber, uma estrutura tipicamente barroca de composição da quadratura e a introdução do motivo da rocaille) que definiria o momento de transição entre a prática das pinturas de tetos na região de Ouro Preto, conforme definiu Myriam Oliveira: Inserido [o motivo ornamental da rocalha] em composição de nítido espírito barroco, o motivo resulta deslocado e sem vida própria, definindo um momento de transição estilística, no qual temas do vocabulário rococó encontravam-se ainda em processo de assimilação pelos artistas da região. Cinco anos mais tarde essa assimilação já era fato consumado. (Oliveira, 2003:274)

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Figura 4 – Igreja de Santa Efigênia (nave).

Foto: Acervo Adalgisa Arantes Campos

O forro da nave possui uma pintura de grandes corredores paralelos nas laterais com a visão central envolvida por rocalhas. Estes corredores, como tribunas, possuem sete vãos abertos e em cada um dos vãos se encontram figuras de temas religiosos. Estes vãos são delimitados por pilastras que possuem colunas adossadas, quase imperceptíveis. Cada arco é encimado por uma rocalha azul ou vermelha, motivo que irá substituir os anjos presentes na pintura do Padre Faria. O medalhão central é delimitado por rocalhas que se sobrepõem à estrutura arquitetônica, quase destacados da tribuna criada pelos diversos vãos. Não se percebe nenhuma ligação entre ambos, além da sobreposição do medalhão na arquitetura.

Igreja de São Francisco de Assis A Igreja de São Francisco de Assis apresenta na nave a pintura de um mestre que será, de toda a região das Minas e no período aqui compreendido, o mais aclamado: Manoel da Costa Ataíde. Com uma produção vasta e bastante documentada, Ataíde sintetizou em sua obra o grande desenvolvimento adquirido pela pintura no século XVIII, com as contribuições de vários artistas. Por seu turno, Ataíde também foi fundamental na prática da pintura: como se sabe, também foi mestre de ensino, produzindo e instruindo em várias localidades (Campos, 2007:198-199, Doc. 58). A pintura em São Francisco de Assis, realizada entre os 102

anos de 1801 e 1812, é considerada sua obra prima e tem grande similaridade com o que trata Andrea Pozzo em seu supracitado Perspectiva Pictorum et Architectorum. Figura 5 – Igreja de São Francisco de Assis (nave).

Foto: Acervo Adalgisa Arantes Campos.

A trama arquitetônica pintada é composta a partir do entablamento real das paredes da nave. Nela se projetam, longitudinalmente, dois pares de colunas entremeadas por um pequeno arco sustentado por mísulas e um balcão. Próximo ao coro e arco cruzeiro encontram-se dois arcos triunfais assentados também sobre mísulas. Todo esse aparato liga-se ao painel central emoldurado por volutas e concheados. Nos quatro cantos encontram-se balcões com as figuras dos doutores da igreja. As colunas seguem uma padronização, sendo rebatidas e espelhadas em quatro pontos da pintura. Assentam-se sobre mísulas enfeitadas com rostos de onde se projetam pedestais cúbicos salientes. Para cada coluna há uma pilastra posterior, permitindo o suporte, sobre ambas, do entablamento. Os fustes são estriados, os capitéis coríntios, seguidos de entablamento completo e um concheado na parte superior, algo típico das representações de Ataíde. Lateralmente, essas estruturas possuem outra pilastra que sustenta arcos, simulando pequena arcada de dois vãos, sendo um terceiro interrompido, semelhante a uma ruína. No eixo central paralelo à entrada e arco cruzeiro encontram-se balcões salientes ladeados por dois pedestais apoiados em mísulas, sobre as quais se projetam outras duas mísulas alongadas dotadas de entablamento completo, idêntico, excetuando-se 103

os concheados, formando, acima, um arco pleno. Esse arco liga-se também às colunas, fechando a composição. Percebe-se, de imediato, que Ataíde detém o conhecimento das técnicas de reprodução das ordens arquitetônicas no desenho de perspectiva em planos horizontais ou inclinados. Tal conhecimento evoca a verossimilhança das estruturas representadas, bem como a relação entre o real e o irreal pela continuidade da arquitetura presente no templo. Além disso, evoca também outra possibilidade de associação com um dos elementos do tratado de Andrea Pozzo, referente à construção de colunas em perspectiva de planos horizontais (Figura 6). A semelhança entre a gravura apresentada no tratado e a pintura realizada no forro evidencia a possibilidade do artista ter tido contato, senão diretamente com a obra, ao menos com o repertório de imagens que dela se origina. Porém, fica evidente também que o artista não se limitou a uma simples cópia dos modelos apresentados, inserindo características próprias na leitura dos elementos compositivos. Figura 6 – POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum, vol. I, fig 86 e Igreja de São Francisco de Assis (detalhe da coluna)

Próximos ao coro e arco cruzeiro encontram-se dois arcos triunfais (Figura 7). O arco, na pintura mineira, encontra exemplo significativo apenas na obra de Manoel da Costa Ataíde, na nave da igreja em questão. Contudo, sua presença congrega algumas ideias e intervenções que merecem ser analisadas, uma vez que o sentido jubiloso do arco triunfal é retomado em vários modelos da pintura de perspectiva no mundo.

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Figura 7 – POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum, vol. II, fig 20 e 21 e Igreja de São Francisco de Assis (detalhe do Arco Triunfal)

O arco triunfal, que remonta à tradição romana de comemorações de reis e imperadores, se faz presente na arquitetura dos séculos XV a XVII. O sentido do triunfo acompanha a produção da arquitetura efêmera para as festas jubilosas, nas quais trabalhavam artistas e oficiais mecânicos (Gervásio, 2008). Assim, o elemento é no cotidiano, nas imagens da comemoração e da festa, como ocorrera nas manifestações dos setecentos e início dos oitocentos. A festa marcada para a transladação do Santíssimo Sacramento, entre as igrejas de Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora do Pilar, por exemplo, foi descrita detalhadamente no Triunfo Eucarístico.7 De autoria de Simão Ferreira Machado, o texto remonta aos acontecimentos ocorridos entre abril e maio de 1734, descrevendo minuciosamente a participação da comunidade na festa. Para “maior magnificência” do ato foram incluídos elementos arquitetônicos efêmeros cuja estrutura simples, porém bem acabada, dava a sensação de realidade. 7. Machado, Simão Ferreira. Triunfo Eucharistico, exemplar da Christandade Lusitana em publica exaltação da Fé na solemne transladação do Divinissimo Sacramento da Igreja da Senhora do Rosario, para hum novo templo da Senhora do Pilar em Villa Rica, Corte da Capitania das Minas. Lisboa, 1733 (Reprodução fac-similar em Ávila, 2006).

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Estavaõ nas ruas em distancia competente cinco elevados arcos, em cujo artificio ajudou a preciosidade do ornato a arte, e competencia dos artifices: eraõ o mayor empenho da magnificencia; da vista, em vagarosa attençaõ, disvello, e delicia; contencioso triunfo de ouro, e diamantes. Hum destes, fabricado de cera, na vulgar materia, pelos empenhos da arte, fez nos juizos lugar à competencia, nos olhos teatro à victoria dos esplendores do ouro, das luzes dos diamantes. Além destes arcos estava prevenido hum altar para descanso do Divino Sacramento, e deliberado acto da publica veneraçaõ: foy o seu ornato pelo custo, e asseyo, viva imitaçaõ dos arcos, empenhado dispendio do Autor. (Machado, 1733, reprodução fac-similar em Ávila, 2006:44-45)

A imagem do arco triunfal também está presente no tratado de Andrea Pozzo em diversos momentos: na abertura das duas partes da obra, incluindo aí uma forma imagética de dedicação do tratado (aos imperadores austríacos), bem como nas figuras do segundo volume que discutem as diferenças entre a visão frontal, o corte e a visão oblíqua do objeto em perspectiva (Pozzo, Perspectiva pictorum et architectorum, Vol. 2, fig. 20-22). Portanto, se o arco triunfal em si mesmo não é exatamente objeto de estudo para Andrea Pozzo, aparece como uma forma possível de ser expressa nas mais diversas obras. Um exemplo fundamental é o uso deste elemento na pintura de Pozzo para o teto da nave da igreja de Santo Inácio em Roma, demarcando as partes anterior e posterior da nave, como a delimitar a estrutura de um segundo pavimento pintado daquele edifício. Note-se que Ataíde utiliza semelhante esquema compositivo para elaborar os seus arcos triunfais. Ataíde vale-se das colunas compósitas estriadas assentadas sobre pedestais, com entablamento ou frontão interrompido em quarto de circunferência. Sobre estes foram colocados querubins, à maneira dos anjos assentados sobre o entablamento nas figuras do tratado pozziano (Figura 8). Por detrás das colunas se elevam pilastras que sustentam o arco pleno, quase imperceptível com a aplicação das rocalhas e dos querubins que se assentam sobre o frontão.

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Figura 8 – POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum, vol. 1, fig 33

Árvores ou arbustos posteriores às colunas são outros motivos evidentes na obra de Ataíde (ver Figura 7) e aparecem também em outras pinturas de sua autoria, como a da capela-mor da Igreja de Santo Antônio em Santa Bárbara e a nave da Igreja de Santo Antônio de Ouro Branco. A ideia de se inserir um elemento como a árvore ou o arbusto sugere a adequação da estrutura a um novo espaço que se projeta por detrás dela, assim como as janelas que dão vazão a um aposento posterior ou céu aberto (como na Capela do Padre Faria), ou como a sucessão de balcões, sugerindo um segundo plano dentro da perspectiva. A presença do arbusto ou da árvore, além de ambientar a pilastra em um plano avançado em relação à própria parede do edifício real, evidencia o seu deslocamento ao estabelecer o contraste entre o branco do fundo e as cores utilizadas para o delineamento da arquitetura. O motivo da árvore é apenas mais um dos tantos possíveis elementos típicos das manifestações do rococó (Oliveira, 2003:33). Além das árvores e arbustos não se pode deixar de nomear os personagens que povoam a estrutura pintada e que promovem a sua vivacidade: os diversos anjos presentes em vários espaços da composição. No caso das pinturas de autoria de Manoel da Costa Ataíde, é evidente o interesse por figuras angélicas, principalmente os anjos músicos, “criaturas contemplativas que servem à função de adoração divina”. Além disso, Ataíde é o pintor que mais representou os seres angélicos nas suas mais variadas formas, como revela Adalgisa Campos: O gosto pela iconografia angélica é persistente em Ataíde: cabecinhas que recebem asas bastante coloridas (...), anjos meninos, derivados dos putti italianos – cupidos –

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adolescentes, todos dando conforto ou adorando o divino. Podem ser representados parados, em cima de nuvens, em pleno voo, sustentando panos revoltos, os quais indicam tal movimento. (Campos, 2007:221)

Povoando o ambiente definido pela arquitetura pintada, os anjos são fundamentais na acepção de um espaço em movimento constante e que é captado instantaneamente pelo olhar do espectador. Sem a sua presença a pintura perde o movimento, ainda que as formas escultóricas o denotem com tanta ênfase (por formas sinuosas, rocalhas, etc.). Outra importância é a dimensão volumétrica da pintura que pode ser estabelecida pela comparação entre o tamanho dos anjos (e consequentemente, a figura humana como base) e os elementos arquitetônicos coevos. Observando mais uma vez a pintura da nave de São Francisco de Assis podemos perceber, no tema central, a profundidade gerada, com o auxílio da cor, pelos querubins que diminuem de tamanho à medida que se penetra no espaço do céu infinito. Percebemos, portanto, como a arquitetura na obra de Ataíde na nave de São Francisco adquire um caráter bastante leve, funcionando ora como sustentação, ora como moldura para a representação principal que é o quadro central com a invocação de Nossa Senhora da Porciúncula (Campos, 2007:222-226), no sentido oposto ao que foi percebido na capela do Padre Faria. Contudo, essa delimitação definida pela quadratura não deixa de evidenciar a necessidade, contemporânea ao contexto de Ataíde, da manutenção dos elementos arquitetônicos na pintura dos forros.

Conclusão Observamos, com este breve percurso, as mudanças ocorridas na concepção das pinturas de perspectiva realizadas em território mineiro, com ênfase na produção em Ouro Preto. Os quatro tetos aqui analisados nos parecem exemplos significativos das mudanças de concepção da pintura decorativa de forros, bem como o processo de assimilação de determinados elementos, transitando entre estilos bastante distintos – como é nítida a distinção entre a capela-mor do Padre Faria e a nave de São Francisco – e evidenciando as tentativas de introdução de novas possibilidades – com as pinturas em Santa Efigênia. Se Manoel da Costa Ataíde se tornou um expoente na prática pictórica da região, seu trabalho se deveu muito às concepções anteriores, aqui sumariamente apresentadas. Por força das mudanças no gosto e estilo, os possíveis desdobramentos de sua obra e de seus discípulos já fariam parte de leituras tardias, quando nos grandes centros (sobretudo europeus [Matteucci, 2006]) a pintura de perspectiva como decoração para tetos já havia perdido sua força. Felizmente, ainda temos a possibilidade de observar estes ricos exemplares, na tentativa de compreender as diversas concepções não só do

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pensamento religioso, mas também do fazer artístico e suas tantas possibilidades de relação com as diversas formas de conhecimento vigentes na época.

Fontes MUSEU DO DIAMANTE / BIBLIOTECA ANTÔNIO TORRES – IPHAN. Cartório do 2º Ofício. Maço 175. PALLADIO, Andrea, I quattro libri di Architettura... Veneza, 1570. POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum. Pars Prima. Roma, 1693. POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum. Pars Secunda. Roma, 1700. SCAMOZZI, Vincenzo. L’Idea della architettura universale. Veneza, 1615. SERLIO, Sebastiano. Tutte le opere d’Architettura e prospettiva... Veneza, 1537. VIGNOLA, Jacopo Barozzi. Due regole della prospettiva pratica. Bologna, 1583.

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