Outras imagens -Trauma e Fotografia na representação da Segunda Guerra Mundial

August 1, 2017 | Autor: Eva Barrocas | Categoria: Visual Culture, Photography Theory, Second World War
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Outras imagens Trauma e Fotografia na representação da Segunda Guerra Mundial

Mestrado em Antropologia – Especialização em Culturas Visuais Ano Lectivo 2014 /2015 - 1º Semestre/ Janeiro 2014 Disciplina: Imagens Contemporâneas

Docente: Margarida Medeiros Discente: Eva Barrocas (43919)  

Índice 0-­‐INTRODUÇÃO  ...................................................................................................................................  3   1-­‐FOTOGRAFIA:  UM  TESTEMUNHO  EM  TEMPOS  DE  GUERRA.  .............................................  4   2-­‐FOTOGRAFIA  E  TRAUMA.  .............................................................................................................  7   3-­‐  OUTRAS  IMAGENS:  UMA  PROCURA  PELA  REPRESENTAÇÃO  DO  TRAUMA.  ................  8   3.1-­‐UMA  REVISITAÇÃO  DOS  ARQUIVOS.  .............................................................................................  8   3.2-­‐  DORA  FOBERT:    IMAGENS  CONTEMPORÂNEAS  DE  UM  TRAUMA  HISTÓRICO.  .........................  11   4-­‐CONCLUSÃO.  ....................................................................................................................................  15   BIBLIOGRAFIA  ....................................................................................................................................  16  

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0. Introdução “The repetition of the same few images has disturbingly brought with it their radical decontextualization from their original context of production and reception.Why, with so much imagery available from the time, has the visual landscape of the Holocaust and thus our opportunity for historical understanding been so radically delimited?” (Hirsch, 2002, p.8)

Ao ser criada a partir do real, a fotografia é dotada de um valor documental privilegiado. O carácter indexical da fotografia confere-lhe uma veracidade que a tornou numa ferramenta de passagem de testemunho. As fotografias são um rasto material de um momento engolido pelo devir do tempo. São registos do que já foi. A circulação de fotografias gera uma partilha das memórias que ficaram fixadas nas imagens, e que agora, surgem diante nós. A

Segunda Guerra Mundial foi um dos eventos mais fotografados e

documentados da História. Porém, a sua representação visual baseou-se numa repetição das mesmas imagens (Hirsch, 2002). Houve, nos meios de comunicação, a criação de uma representação dominada por fotografias dos inúmeros cadáveres das vítimas, dos campos de concentração, da miséria e das condições desumanas vividas nos guetos. Estas fotografias existem como provas da ocorrência da violência extrema vivida durante o Holocausto. Contudo, apesar da sua importância inquestionável, será que o domínio destas imagens na representação do Holocausto limitou a representação que hoje temos do trauma vivido pelas vítimas? Será que existem outras imagens que concedem ao observador uma aproximação da dimensão traumática e pessoal do ocorrido? A gradual consciencialização da dificuldade inerente à transmissão e comunicação do sofrimento através da imagem fotográfica levou à que surgissem novos diálogos sobre a representação do trauma através da fotografia. O presente trabalho de investigação pretende explorar o potencial de representações alternativas do trauma vivido no Holocausto. Relativamente ao conteúdo da minha investigação proponho a sua divisão em três partes fundamentais. Numa primeira parte são apresentadas diferentes perspectivas sobre a utilização e as consequências da divulgação de fotografias de guerra explicitamente violentas nos meios de comunicação. A segunda parte refletirá sobre as dificuldades inerentes à representação do

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trauma através da fotografia. A experiência traumática reside num nível da mente inacessível diretamente, mas que se reflete na vida de quem a viveu. Então, se as memórias da experiência traumática ficam reservadas num nível subconsciente, como que invisíveis, será possível transmitir um testemunho traumático através da imagem fotográfica? Numa terceira parte são apresentadas duas possibilidades de criação de representações alternativas do Holocausto: a revisitação dos arquivos fotográficos e a criação de representações atuais de traumas históricos. O observador é desafiado, não a constatar a veracidade do ocorrido através das fotografias, mas a pensá-lo. Para ilustrar a primeira abordagem baseada numa revisitação dos arquivos, são apresentadas duas fotografias e a obra de Didi-Huberman (2002) intitulada Imagens apesar de tudo. Para ilustrar a criação de representações contemporâneas do Holocausto é apresentado e analisado o projeto Dora Fobert (1925 – 1943) de Adam Broomberg e Olivier Chanarin. Este projeto foi exposto na exposição Alias em Cracóvia em 2001, em que todas as imagens apresentadas eram de autores fictícios.

1-Fotografia: um testemunho em tempos de guerra. A relação unitária entre a imagem fotográfica e o que foi fotografado, o referente fotográfico, confere às fotografias o estatuto de provas da existência do que é visível (Barthes, 2013). Utilizada como um instrumento de registo, a fotografia permite uma materialização de fragmentos da memória, fixando momentos que mal após o disparo foram engolidos pelo devir constante do tempo. Diversos autores e teóricos do estudo da fotografia, debruçaram-se sobre as consequências da divulgação massiva de imagens explicitamente violentas e sobre o papel da fotografia enquanto ferramenta de transmissão de testemunhos de dimensão traumática. Segundo Virginia Woolf, na sua obra Three Guineas, a divulgação de fotografias captadas durante e após uma situação de guerra, neste caso a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), permitiria demonstrar a insanidade e devastação dos horrores cometidos. Para Woolf (1938), o impacto da visualização explícita da violência seria homogéneo e constante no público, independentemente de quem fosse o observador das imagens: “They are not pleasant photographs to look upon. They are photographs of dead bodies for the most part. (…) Those photographs are not an argument; they are simply a crude statement of fact addressed to the eye. But the eye is connected with the brain; the brain with the nervous system. That system sends its messages in a flash through every past memory and present

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feeling. When we look at those photographs some fusion takes place within us; however different the education, the traditions behind us, our sensations are the same; and they are violent” (p.10).

A utilização da fotografia na documentação de guerras e em situações de violência extrema generalizou-se a partir da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Na Primeira Guerra, numerosos soldados levaram consigo máquinas fotográficas (Griffin, 1999, p.123). As reproduções das suas fotografias começaram a ser distribuídas através de revistas ilustradas e da televisão após o final da guerra (Ibid, p.123). Em 1930, no aniversário da Primeira Guerra, foi publicado Krieg dem Krieg! (War against War!) de Ernst Friedrich. O álbum, composto por mais de 180 fotografias de arquivos militares e médicos alemães, apresenta um conjunto de fotografias de rostos e corpos desfigurados, ruínas e devastação de cidades. A obra de Ernst Friedrich tornouse num dos livros mais polémicos, devido ao seu conteúdo violento e explícito. Numa perspectiva semelhante à de Woolf (1938), Friedrich pretendia que a violência presente nas fotografias transpusesse a imagem e tocasse o observador. Quando a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) começou, a fotografia já tinha

um papel preponderante na vida social da Europa e dos Estados Unidos da América. Tanto do lado dos Nazis como dos Aliados, inúmeros militares receberam formação fotográfica (Griffin. p.125). A produção de material visual foi extremamente utilizada como mecanismo de documentação durante a Segunda Guerra Mundial: “The Nazis were masterful at recording visually their own rise to power as well as the atrocities they committed, immortalizing both victims and perpetrators. Guards often officially photographed inmates at the time of their imprisonment and recorded their destruction. Even individual soldiers frequently traveled with cameras and documented the ghettos and camps in which they served. At the liberation, the Allies photographed and filmed the opening of the camps; postwar interrogations and trials were meticuously filmed as well” (Hirsch, 2001, p.5).

Após o Holocausto, houve uma vasta divulgação de fotografias dos campos de concentração, dos corpos mortos e amontoados nas valas comuns e da miséria vivida nos guetos. Passados setenta anos, estas fotografias continuam a permanecer como a representação dominante do que se passou e como um prova do ocorrido. Estas imagens tiveram um papel preponderante na criação da memória histórica da Europa. E continuam a circular e a invadir a mente de quem as vê. No seu artigo “Surviving Images: Holocaust Photographs and the Work of Postmemory”, Marianne Hirsch resumiu várias questões relativas à repetição da

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divulgação de fotografias de corpos, campos de concentração e situações de miséria da Segunda Guerra: “If these images, in their obsessive repetition, delimit our available archive of trauma, can they enable a responsible and ethical discourse in its aftermath? How can we read them? Do they act like cliche?s, empty signifiers that distance and protect us from the event? Or, on the contrary, does their repetition in itself retraumatize, making distant viewers into surrogate victims who, having seen the images so often, have adopted them into their own narratives and memories, and have thus become all the more vulnerable to their effects? If they cut and wound, do they enable memory, mourning, and working through?” (Hirsch, 2001,

p.8). Uma das possíveis consequências da divulgação generalizada e repetitiva destas imagens é a sedação gradual do observador. Roland Barthes, na Câmara Clara, já se tinha debruçado sobre a indiferença causada pela visualização de fotografias, que apesar de serem dotadas de um forte significado presente na natureza do seu conteúdo, não produzem o impacto esperado no observador: “Coisa estranha: o gesto virtuoso que se apropria das fotos “sérias” (investidas de um simples studium) é um gesto preguiçoso (folhear, olhar rápida e distraidamente, demorar-se e apressar-se) (Barthes, 2013, p.58).

Susan Sontag, acompanhando a mesma preocupação com as consequências da divulgação de fotografias explicitamente violentas escreveu: “It used to be thought, when the candid images were not common, that showing something that needed to be seen, bringing a painful reality closer, was bound to goad viewers to feel more. In a world in which photography is brilliantly at the service of consumerist manipulations, no effect of a photograph of a doleful scene can be taken for granted. As a consequence, morally alert photographers and ideologues of photography have become increasingly concerned with the issues of exploitation of sentiment (pity, compassion, indignation) in war photography and of rote ways of provoking feeling.”

(Sontag, 2004, p.62). A repetição da divulgação de fotografias explicitamente violentas nos meios de comunicação pode também levar a uma midiatização da própria violência: “É nisto que se joga o paradoxo de mostrar os horrores de guerra através de imagens: não apenas se banalizam esses horrores que se pretende denunciar como, sobretudo, se resvala inevitavelmente para o território incerto de uma fascinação, de uma estetização” (Pinto de Almeida, 1995,

p.21).

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2-Fotografia e Trauma. “For trauma to be understood, its “immediacy” must be studied as it unfolds according to its own dynamic, at once outside of and yet inside of the same moment, as a kind of index of a historical reality—a historical reality “to whose truth there is no simple access.”” (Baer,

2002, p.11) Sigmund Freud descreveu trauma como um fenómeno psicológico de fixação, em que o paciente permanece estagnado num momento passado: “In the first place, both patients give us the impression of being fixated upon some very definite part of their past; they are unable to free themselves therefrom, and have therefore come to be completely estranged both from the present and the future” (Freud, 1916, p.236). Esta estagnação do paciente

num momento passado remete-nos para a essência da própria fotografia. Tal como o processo de fixação traumática, a fotografia é produzida através da fixação de um fragmento temporal. Desta forma, a própria natureza e ontologia da fotografia transformam-na num meio privilegiado para representar a vivência traumática. A dificuldade de representação do trauma reside na própria natureza do processo traumático em si. A memória do trauma permanece num nível inconsciente, inacessível diretamente mas que se reflete na vida de quem o experienciou. A fixação traumática é provocada por uma experiência insuportavelmente violenta para ser relembrada conscientemente. Quando a força da agressão vivida transgride a concepção da realidade da vítima, esta experiência dá origem a uma memória recalcada, torna-se algo que é impossível de reviver conscientemente. O paciente permanece num estado de Lachträglichkeit (latência). Então, sendo o trauma caracterizado por um recalcamento e por um estado de latência provocado por uma violência extrema, será que pode ser representado visualmente através do registo do ato de violência em si? Como pensar uma experiência que reside no inconsciente de quem a viveu? A imagem fotográfica fornece um registo e uma memória, que dialoga com outras memórias e outras imagens na mente do observador. As imagens extremamente violentas, por tudo o que nelas é visível, podem bloquear o pensamento. Porém, depois da constatação do visível, há que passar para uma criação de diálogo sobre o que foi visto, refletir sobre o que surge diante dos nossos olhos. Para tal, são essenciais outras imagens, que possuem um enorme poder de expansão e de representação do trauma, poder esse que está latente no diálogo entre o que nos mostram e no que não nos mostram.

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3- Outras imagens: Uma procura pela representação do trauma. “If we recall only the killings—rather than the victims’ lives and deaths—our acts of remembrance will inadvertently align us with the Nazis’ way of viewing “non-Aryan” life as extraneous to their master plan, thus casting all European Jews in the role of icons of death.” (Baer, 2002, p.129).

Depois da divulgação massiva de fotografias dos corpos e das condições desumanas em que viveram milhares de pessoas durante a Segunda Guerra Mundial, outro tipo de imagens pode permitir uma aproximação da dimensão traumática do que aconteceu. Imagens essas que remetem o observador para uma representação pessoal das vítimas, invocando a memória de outros factos e imagens. As fotografias dos numerosos corpos mortos e da violência vivida enraizaram-se na nossa mente e na nossa memória, sendo invocadas, mesmo que a nível subconsciente, quando vemos outras imagens do Holocausto. Esta criação de diálogo entre a imagem que é vista, e as que residem na memória visual do observador, cria uma forma distinta de pensar a passagem do testemunho traumático. Essas outras imagens, ferem, não pela presença do que está explícito, mas pelo que levam o observador a imaginar. 3.1-Uma revisitação dos arquivos. “The very word Holocaust triggers a surge of derivative and familiar mental images, most of which originate with a number of news photographs taken by the Western Allies in 1945 after liberation of camps in Austria and Germany. (…) When they have not become mute clichés, on the other hand, these graphic images of death are likely to disable the viewer’s capacity to remember or to respond, either critically or with empathy. In their irreversible finality, such pictures represent history as locked in the past.”(Baer, 2002, p.79)

Há fotografias em que o momento que desencadeou o trauma vivido pelas vítimas da Segunda Guerra Mundial, não está explícito porém desenvolve-se na mente do observador. Ao escrever sobre a fotografia S'niatyn'- tormeting jews before their execution1, Janine Struck (2003) descreveu o que sentiu ao observar a cena presente na imagem: “I felt ashamed to be examining this barbaric scene, voyeuristic for witnessing their nakedness and vulnerability, and disturbed because the act of looking at this photograph put me in the position of the possible assassin”(Ibid, p.2). Nesta imagem, a vulnerabilidade dos que estão em pé

e despidos é esmagadora. Os pequenos detalhes não são imediatamente detetados pelo observador, como o homem idoso apenas com uma meia ainda calçada e o rapaz com o 1 Ver anexo 1.

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chapéu. O chapéu e a meia ficaram por tirar, por despir. Na fotografia A Jewish woman fighter in the Warsaw (Warszawa) ghetto uprising, who fell into the hands of German soldiers, takes off her clothes2, de autor desconhecido, o observador é confrontado com uma rapariga capturada pelos soldados alemães e que se está a despir. Esta rapariga, segundo a legenda que nos é apresentada, pertencia ao movimento de resistência conhecido como a Insurreição de Varsóvia, que organizou uma luta pela libertação de Varsóvia do domínio alemão entre Agosto e Outubro de 1944. Há um contraste evidente entre o corpo nu e desprotegido da rapariga e os numerosos soldados fardados, armados e com capacete que a rodeiam. Estas duas imagens não encaixam na tipologia clássica de representações de guerra e do Holocausto. Em ambas, há uma leitura que é invocada pelo contraste entre os pretos e os brancos e o enquadramento. A presença dessa leitura, como escreveu Didi-Huberman (2012) reside na: “Complexidade de uma montagem: o contraste dilacerante, numa mesma e única experiência, de dois planos em tudo opostos”(Ibid, p.49). A violência

está num estado latente. O punctum barthesiano destas fotografias reside na vulnerabilidade dos corpos nus, acentuada pelo contraste entre estes e o ambiente e as pessoas que os rodeiam. Segundo Barthes (2013): “Por muito fulgurante que seja, o punctum possui, mais ou menos virtualmente, uma força de expansão”(Ibid, p.54). A cena

fotografada permanece interrompida. Apesar de não se conhecer o autor destas imagens, o enquadramento sugere que são registos do lado nazi. O observador prevê o que vai acontecer. A experiência da agressão em si é vivida na mente, através de uma expansão do significado da imagem através da sua contextualização no seu universo mental. A dimensão pessoal presente nas imagens fere o observador: “More than just evocative and representational power, images also quickly assume symbolic power—the trace in the story becomes not just a footprint in the snow but a trace of the children who were killed” (Hirsch,

2001, p.15). Didi-Huberman (2012), no livro Imagens Apesar de tudo, debruçou-se sobre a importância de quatro fotografias captadas por membros do Sonderkommando3 de Auschwitz em Agosto de 1944. Estas imagens diferem das apresentadas previamente porque são de autoria judaica. Todo o processo de captação destas imagens foi uma resistência, realizada através de uma tentativa de comunicação com o mundo exterior: 2 Ver anexo 2. 3 Nos campos de concentração existiam unidades de trabalho compostas maioritariamente por judeus que eram obrigados (se recusassem seriam mortos) a tratar de tarefas relacionadas com as câmaras de gás e com os crematórios.

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“As quatro fotografias arrancadas pelos membros do Sonderkommando ao crematório V de Aushwitz dirigem-se ao inimaginável, e refutam-no da maneira mais dilacerante possível”

(Ibid, p.33). Em três destas fotografias vemos vultos, pessoas. Em duas fotografias é possível ver fumo, cadáveres no chão e pessoas em pé e em movimento, à frente do fumo. Vemos numa terceira imagem, num canto, vultos de mulheres nuas que saem de entre as árvores. Estas imagens não contêm tudo o que aconteceu naquele momento, há pouca informação explícita, e os detalhes são de difícil ou impossível percepção. Contudo, estas imagens transmitem outro tipo de informação. O seu enquadramento, o facto de estarem desfocadas e de haver uma em que é o conteúdo é imperceptível, transmitem-nos informação sobre o momento em que foram tiradas. Nelas reside o medo, a pressa de quem as captou. A dimensão traumática está presente simultaneamente no que nelas é visível e no que ficou ausente da imagem, mas é pensado pelo observador. Uma revisitação dos arquivos pode ser a chave para que sejam produzidas novas abordagens em resposta às problemáticas derivadas da representação do trauma e da passagem de testemunho através da fotografia. Seguindo a perspectiva apresentada por Didi-Huberman (2012) é necessário pensar o que é considerado de uma violência inimaginável. Há que olhar para imagens que têm recebido menos atenção mediática, porque não contêm informação explícita sobre os crimes cometidos, e pensá-las. Estas imagens contêm num estado latente uma possibilidade de expansão do seu significado. Desta forma, podem ser produzidas novas linhas de discurso e de transmissão da dimensão traumática, juntamente com uma procura pela representação pessoal das vítimas. Como escreveu Didi-Huberman (2012): “Imaginar apesar de tudo, o que exige de nós uma difícil ética da imagem: nem o invisível por excelência (preguiça do esteta), nem o ícone de horror (preguiça do crente), nem o simples documento (preguiça do sábio)” (Ibid, p.60).

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3.2- Dora Fobert: Imagens contemporâneas de um trauma histórico. “Trauma is a disorder of memory and time. This is why in his early writings Freud used the metaphor of the camera to explain the unconscious as the place where bits of memory are stored until they are developed, like prints from black-and-white negatives, into consciously accessible recollections” (Baer, 2002, p.9)

A fotografia, devido ao seu valor documental e ao papel fulcral que continua a representar na vida quotidiana no século XXI, mantém-se como meio de excelência no trabalho sobre a memória e o trauma: “Nonstop imagery (television, streaming video, movies) is our surround, but when it comes to remembering, the photograph has the deeper bite. Memory freeze-frames; its basic unit is the single image. In an era of information overload, the photograph provides a quick way of apprehending something and a compact form for memorizing it. (…) Each of us mentally stocks hundreds of photographs, subject to instant recall” (Sontag, 2004, p.20).

Fotógrafos e artistas contemporâneos, confrontados com as dificuldades inerentes à transmissão da experiência traumática, têm desenvolvido uma procura pela criação de registos de fragmentos perdidos da História. No seguimento desta nova linha de trabalho fotográfico, será interessante realçar o projeto Dora Fobert (1925– 1943) de Adam Broomberg e Oliver Chanarin4. Este projeto foi apresentado na exposição Alias em Cracóvia em 20015. Dora Fobert é uma representação alternativa do trauma vivido no Holocausto. Em Dora Fobert (1925 – 1943) o observador é confrontado com imagens de um arquivo de fotografias, salvo por uma sobrevivente do Holocausto. As fotografias são apresentadas como sendo registo de uma jovem fotógrafa polaca e judia, cujo nome era Dora Fobert. Dora Fobert viveu no gueto de Varsóvia durante a Segunda Guerra Mundial. Dora foi deportada para o Campo de Concentração de Treblinka em Augusto de 1942, e não sobreviveu. As fotografias foram guardadas pela sua amiga, Adela K. Como em numerosos guetos judeus espalhados por toda a Europa, no gueto de Varsóvia as condições de vida eram muito precárias entre os seus habitantes e havia um controlo apertado das atividades que se desenrolavam dentro do gueto. Mais de 5.000 pessoas por dia eram transferidas do gueto para o campo de concentração de Treblinka. 4 Adam Broomberg e Oliver Chanarin são sul-africanos e trabalham em conjunto em Londres. Têm desenvolvido trabalhos de fotojornalismo onde exploram os limites da utilização da fotografia como documento. 5 Ver anexos 3,4 e 5.

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E, entre Julho e Setembro de 1942, mais de 265.000 foram transportadas para Treblinka. (Berenbaum, 2013) Durante a Segunda Guerra Mundial foram mortos seis milhões de judeus. Apesar das tentativas de destruição da cultura judaica no regime Nazi, houve movimentos de resistência. A grande maioria de imagens da época foram produzidas pelos nazis e por fotógrafos judeus a trabalhar para os nazis. A representação do outro, neste caso o povo judeu, era controlada pela propaganda nazi. Chegaram até aos dias de hoje imagens de fotógrafos e militares nazis, mas também, e em muito menor número, registos de quem estava a ser o alvo do conflito. Existem arquivos fotográficos de membros de organizações de resistência e de fotógrafos judeus: ”Some used their cameras as an act of resistance, recording the acts of terror committed by the Nazis or collaborators. For others, taking photographs of family or friends, making family albums or recording the hardship of daily life were ways of resisting and surviving”(Struck, 2003, p.6)

O arquivo de Dora Fobert, pode ser interpretado como um ato de resistência cultural, não apenas por ser uma representação de autoria judaica de outros membros da sua própria cultura, durante o genocídio do qual foram vítimas, mas também por ser um conjunto de retratos de mulheres, num ambiente íntimo. Este conjunto de fotografias compõe um registo fotográfico no feminino e sobre o feminino. Estas fotografias podem ser encaradas como a materialização de uma resistência psicológica em resposta ao clima de opressão e violência vivido no Holocausto. O universo íntimo e pessoal dos sujeitos fotografados transitou da esfera privada, protegida numa dimensão paralela e invisível, para o universo fotográfico. Sometimes, she would take pictures. We often visited her in the studio. There were eight, maybe ten of us, girls who always went about together. Before the war, we’d gone to the same high school, our families knew each other and they all came from a group of intellectuals. Despite the war, we still wanted to spend time together. Despite the hard times, we still wanted to play. We imagined who we would be, once we become women. We looked with awe at the actresses from the ghetto theatre when they came to have their pictures taken. One day, Dora had an idea that she will take pictures of us. It was becoming increasingly dangerous in the ghetto. It was June 1942 and one could feel that something was about to happen. We took all the clothes we could find at home and we came to the studio. We were dressing up and putting on make-up and Dora was taking pictures. After a while, some of us even undressed. None of us was forced to do it, it just happened naturally. We didn’t feel like victims, we weren’t scared. We only felt that we were beautiful. We imagined that we were in the studio of a well-known fashion

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photographer. We really believed that we would survive the ghetto and all our dreams would come true. What we were doing was of course done in secret. Not even Dora’s brothers were aware of it. But the word spread among the women in the community and others came to pose for Dora. Adela K em Dora Fobert (1925 – 1943).

Nas fotografias de Dora Fobert, a data e as informações que são fornecidas com as imagens situam-nas num dos períodos mais negros da História. Estas imagens invocam outras imagens vistas pelo observador. Em diversas fotografias do Holocausto, o observador é numerosas vezes confrontado com a nudez. A nudez está presente nas fotografias das valas comuns onde os nazis depositavam os cadáveres despidos. Um dos processos de humilhação praticados pelos nazis, era obrigarem homens, mulheres e crianças a despirem-se antes de serem executados ou para escolher quem era apto para trabalhar e quem seria morto. Durante o domínio nazi, as mulheres judias eram consideradas feias e desprezíveis, em contraposição com o estereótipo de beleza natural ariana. A violação das mulheres, não só judias, foi utilizada como uma ferramenta de guerra durante o Holocausto. O corpo feminino foi desumanizado e totalmente objetificado. A nudez nas imagens das vítimas do Holocausto é maioritariamente associada a um abuso de poder, a uma imposição de um estado de fraqueza e vulnerabilidade. A presença da nudez em Dora Fobert aparece num contexto muito distinto do apresentado previamente. O corpo nu surge como um símbolo de intimidade e beleza. Segundo o testemunho de Adela K, as mulheres e raparigas despiram-se porque se sentiram confortáveis e confiantes. Todavia, Dora Fobert nunca existiu. Adam Broomberg e Olivier Chanarin convocaram a ligação entre fotografia e verdade para criar uma fotógrafa e imagens de arquivo fictícias. As mulheres fotografadas em Dora Fobert (1925 - 1943) existiram num determinado momento de espaço e tempo. Esse momento ficou capturado em película, passando a pertencer ao universo fotográfico e existindo independentemente do sujeito fotografado. As fotografias representam simultaneamente uma prova da existência do referente fotográfico e um estado de ausência (Barthes, 2013). O que vemos nas imagens, já não existe como a câmara o presenciou, esse momento foi engolido pelo devir constante do mundo. É essa ausência do objecto fotografado que permite materializar a história de Dora Fobert e das mulheres judias do gueto de Varsóvia. As imagens fotográficas ficaram deslocadas no tempo e ganharam novos significados através da alteração do contexto em que são expostas. Oliver Chanarin comentou numa entrevista: “Dora Fobert may not have existed, but she easily could have. It's 13

paradoxical but that's what makes this fiction authentic.”6 O carácter fictício de todo este

arquivo é invisível para o observador, as imagens vivem na sua mente como uma representação do real. As mulheres e raparigas presentes nas fotografias de Dora Fobert foram voluntárias que quiseram dar corpo e participar na criação do projeto. Broomberg e Chanarin optaram por apresentar as imagens em negativos de papel. As fotografias não foram nem reveladas nem fixadas. A permanência em negativo congelou os retratos destas mulheres em espectros de uma existência interrompida. O negativo é parte do processo fotográfico mas não é comum ser um fim em si mesmo. As imagens permaneceram num estado dormente “Normally, an event becomes an experience once it is integrated into consciousness. Some events, however, register in the psyche—like negatives captured on film for later development—without being integrated into the larger contexts provided by consciousness, memory, or the act of forgetting.” (Baer, 2002, p.9) A

permanência em negativo confere as imagens uma presença

fantasmagórica. Os corpos são brancos, aparentemente transparentes. Muitas das vítimas do Holocausto morreram muito jovens e não chegaram a poder completar as suas ambições e desejos. As imagens de Dora Fobert foram apresentadas protegidas por um vidro vermelho, para que não fossem queimadas e destruídas pela luz.7 O vermelho confere aos retratos, que aparentemente estão como que protegidos numa dimensão espectral, uma dimensão sangrenta, violenta. O que vemos nestas imagens é uma “realidade” fotográfica criada através de um cruzamento entre a ficção e a História. A história de Dora Fobert ganha corpo e é transmitida ao observador a partir da utilização da fotografia. Dora Fobert desafia o domínio de uma representação genérica das vítimas, permitindo ao observador, através de uma ficção, aproximar-se da dimensão pessoal do trauma vivido durante o Holocausto. Para além destas imagens questionarem a representação visual mais clássica do Holocausto, as fotografias de Dora Fobert, através de um discurso metalinguístico, colocam questões relacionadas com a própria utilização da fotografia como prova e como documento. 6 Jenny Cusack, Adam Broomberg & Oliver Chanarin: Dora Fobert, Dazed, 2011. http://www.dazeddigital.com/artsandculture/article/11811/1/adam-broomberg-oliver-chanarin-dora-fobert 7 O comprimento de onda correspondente à cor vermelha não tem qualquer efeito sobre o papel fotograficamente sensível.

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4-Conclusão. No mundo em que vivemos, repletos de imagens, a fotografia, devido ao seu carácter indexical, continua a ser extremamente utilizada em representação relacionadas com o trauma e a memória. A experiência traumática não é de acesso direto, reside no inconsciente de quem a viveu, daí a dificuldade de a representar e transmitir através de uma representação explícita e informativa. A revisitação dos arquivos e a criação de representações contemporâneas de traumas históricos podem ser ferramentas para que se criem novas formas de pensar a transmissão do trauma vivido durante o Holocausto. Para tal, são utilizadas fotografias que permitem uma expansão do seu significado, não através de uma apresentação explicitamente violenta dos atos e das consequências da crimes contra a Humanidade praticados durante o Holocausto, mas através de uma invocação da capacidade imaginativa do observador. Ou seja, ao visualizar estas imagens há uma expansão do seu significado, através da informação que está latente nas fotografias. Desta forma, o observador tem a possibilidade de se aproximar da dimensão traumática e simultaneamente pessoal presente nas fotografias, através do despertar de uma lógica interna definida pelo universo visual do observador. Assim, o que não é explícito ou visível é pensado: “Para recordar é preciso imaginar” (Didi-Huberman, 2012, p.49) As fotografias, fornecem testemunhos, não apenas devido ao seu carácter indexical mas através da sua dialéctica enquanto medium de materialização da memória.

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Bibliografia Baer, Ulrich. Spectral Evidence, Massachusetts, The MIT Press, 2002. Barthes, Roland. A Câmara Clara, Lisboa, Edições 70, (1980) 2013. Berenbaum, Michael, “Warsaw Ghetto uprising”, Enciclopedia Britannica, 2013, Acedido

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Uprising Broomberg, Adam. Chanarin, Oliver. “[Dora Fobert (1925-1943)]” , Fotografias, Cracóvia, 2012. Acedido em: http://www.choppedliver.info/dora-fobert/ Didi-Huberman, Georges. Imagens apesar de tudo, KKYM, Lisboa, 2012. Cusack, Jenny. “Adam Broomberg & Oliver Chanarin: Dora Fobert”, Dazed, 2011. Acedido em : http://www.dazeddigital.com/artsandculture/article/11811/1/adam-broombergoliver-chanarin-dora-fobert (Janeiro 2015).

Freud, Sigmund. A General Introduction to Psychoanalysis., iBooks, (1916). Acedido em: https://itunes.apple.com/WebObjects/MZStore.woa/wa/viewBookid=4FE17751427F3D 69EBE140449CB537D2 Griffin, Michael. “The Great War Photographs: Constructing the Myths of History and Photojournalism”, Picturing the Past: Media, History, and Photography, Illinois, University

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1999

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https://www.academia.edu/189691/The_Great_War_Photographs_Constructing_Myths _of_History_and_Photojournalism Hirsch, Marianne. "Surviving Images: Holocaust Photographs and the Work of Postmemory," Yale Journal of Criticism in Visual Culture and the Holocaust, New Brunswick,

(ed.)

Barbie

Zelizer,

2002.

Acedido

em:

http://www.fsf.ane.ru/attachments/article/157/mar%20f.pdf. Pinto de Almeida, Bernardo. Imagem da Fotografia, Lisboa, Assírio e Alvim, 1995. Sontag, Susan. Regarding the pain of others, New York, Picador Editions, 2004, Acedido

em:

http://monoskop.org/images/a/a6/Sontag_Susan_2003_Regarding_the_Pain_of_Others. pdf

16

Struck, Janine. Photographing the Holocaust: The interpretation of the Evidence, I.B. Tauris, Londres, 2004. Woolf, Virginia. Three Guineas, Blackwell Publishing, (1938) Acedido em: http://www.blackwellpublishing.com/content/BPL_Images/Content_store/Sample_chap ter/9780631177241/woolf.pdf

17

ANEXOS

18

1. S'niatyn'- tormeting jews before their execution 1943, autor desconhecido. Fonte: Struck, Janine. Photographing the Holocaust: The interpretation of the Evidence, I.B. Tauris, Londres, 2004.

2. A Jewish woman fighter in the Warsaw (Warszawa) ghetto uprising, who fell into the hands of German soldiers, takes off her clothes, data e autor desconhecidos. Fonte: http://www.infocenters.co.il/gfh/list.asp

19

3. Adam Broomberg and Oliver Chanarin (2011) Untitled, 1942, Dora Fobert Archive of Adela K.

20

4. Ibid, 2011, Untitled, 1942, Dora Fobert Archive of Adela K. 21

5. Ibid, 2011, Untitled, 1942, Dora Fobert Archive of Adela K. Untitled, 8 x 10 inches, C-41 print, 2011 Fonte: Broomberg, Adam. Chanarin, Oliver. “[Dora Fobert (1925-1943)]” , Fotografias, Cracóvia, 2012. Acedido em: http://www.choppedliver.info/dora-fobert/ 22

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