Outro valor da notícia? Reflexão sobre as tensões entre a organização de mídia e o jornalista profissional

July 29, 2017 | Autor: Emerson Dias | Categoria: Jornalismo internacional, Radiodifusão Pública, Organizações Midiáticas
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Outro valor da notícia? Reflexão sobre as tensões entre a organização de mídia e o jornalista profissional

Emerson dos Santos Dias [email protected] Sonia Virgínia Moreira [email protected] Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Resumo: A crise da mídia tradicional e a ampliação do poder de corporações virtuais e de segmentos diversos do entretenimento envolvem discussões sobre jornalismo, produção de conteúdo e mensuração do valor da notícia neste século. Para amparar nossa proposta de análise, cruzamos três relatórios com fatos de 2013 envolvendo mídias tradicionais e digitais, entre eles a absorção da revista Newsweek pela empresa de notícias on-line IBT Media e a compra do The Washington Post pelo fundador da Amazon. Observando tal cenário, percebemos que o jornalismo segue capaz de catapultar empresas paralelas ao segmento e de atrair a atenção/consumo de um público em busca de informações diversas. O quadro mostra a demanda por ações de reformulação das organizações jornalísticas para equalizar respeito, referência e resultado, dentro e fora do ambiente virtual, com base no jornalismo de qualidade, em meio ao “oceano do infotenimento” (Dejavite, 2006). Uma maneira de atrair o público seria reformular o conceito de valor assimilado pelos consumidores de conteúdo (Picard, 2013). Nesse ambiente de mudanças estruturais no campo da atividade jornalística, este artigo parte das análises do jornalismo pós-industrial (Anderson, Bell e Shirky, 2013) e do conceito que segue atual de valor-notícia (Galtung, Ruge, 1965/1999) para analisar as tensões entre organizações midiáticas. Palavras-chaves: conglomerados; organização de mídia; jornalismo; valor-notícia

1. Introdução Na linha do tempo das organizações produtoras de notícia e de entretenimento, o ano de 2013 marcou três movimentos de peso no âmbito da indústria de mídia norteamericana: 1. a venda a Jeff Bezos, fundador e CEO da gigante do comércio eletrônico Amazon, do jornal The Washington Post, diário comandado pela família Graham há oito décadas; 2. a aquisição da revista Newsweek por Ettiene Uzac, cofundador e diretor executivo da empresa de notícias on-line IBT Media (International Business Time Media); 3. a compra do The Boston Globe por John W. Henry, o principal proprietário da equipe de beisebol Boston Red Sox. As três transações haviam sido precedidas, em 2012, pela compra da maioria das ações da Media General Inc. por Warren Buffett e sua holding multinacional de conglomerados Berkshire Hathaway Inc. 1

Da negociação que resultou na venda do The Washington Post é importante destacar o perfil das empresas: o jornal foi um dos clássicos da produção impressa centrada na credibilidade jornalística conquistada por ações históricas, como a série de reportagens iniciada em 1972 sobre o escândalo Watergate, que culminou na saída de Richard Nixon da presidência dos Estados Unidos em agosto de 1974. A Amazon, por sua vez, tornou-se referência na oferta de conteúdo editorial e de produtos de consumo em ambiente virtual, com faturamento que no segundo trimestre de 2013 chegou a US$ 15,7 bilhões – 22% superior aos índices no mesmo período do ano anterior. A crise da mídia tradicional e a ampliação do espaço de corporações virtuais no ambiente do jornalismo envolveu principalmente a produção de conteúdo informativo. Entre as perguntas em aberto nesse contexto uma se destaca: por que uma empresa virtual do porte da Amazon, dirigida por empresário conhecido pela visão de longo prazo no mundo das comunicações, compraria a estrutura completa de um jornal em meio às profecias que anunciam o fim iminente, e rápido, das publicações impressas diárias? Depois da negociação entre Bezos e a família Graham, oficializada em 5 de agosto de 2013, muito se escreveu sobre a crise das mídias tradicionais e a ampliação do poder de corporações virtuais no ambiente da comunicação, envolvendo principalmente produção de conteúdo jornalístico, literário, enfim: de informação. Alguns autores acreditam que se trata de uma inevitável adaptação e, principalmente, reformulação das organizações jornalísticas, uma forma que equalize respeito, referência e resultado dentro e fora do ambiente virtual com base no jornalismo de qualidade: “Estamos repetindo aqui nossa tese inicial de que a indústria jornalística está morta, mas que o jornalismo segue vivo em muitos lugares”, afirmam os pesquisadores C.W. Anderson, Emily Bell e Clay Shirky no relatório O Jornalismo Pós-industrial (2013), do Tow Center for Digital Journalism na Columbia Journalism School (CJS)1. Dentre as alternativas para sobreviver às instabilidades do início do século XXI, um recurso para atrair o público pode ser a reformulação do conceito de valor assimilado pelos consumidores de conteúdo, uma vez que “o bom jornalismo sempre foi subsidiado, o mercado nunca foi capaz de suprir o volume de informação que uma democracia exige” (Anderson, Bell e Shirky, 2013: 69). Sob este aspecto, reiteramos aqui a pertinência dos 12 critérios2 de Johan Galtung e Mari Ruge (1965 e 1999), que determinam o valor-notícia, ou seja, as probabilidades de um fato adquirir capacidade de notícia. Para Nelson Traquina (2008), que traduziu e analisou os critérios de Galtung e Ruge, “os critérios de noticiabilidade são o conjunto de valores-notícia

1 Utilizamos a tradução de Ada Félix para o português, mas o relatório original está disponível em: http://towcenter.org/research/post-industrial-journalism/ 2 Em análises e pesquisas posteriores, os critérios ganharam outros termos ou sinônimos, mas basicamente são os seguintes: 1) frequência; 2) amplitude ou intensidade; 3) clareza; 4) relevância; 5) consonância ou proximidade; 6) imprevisibilidade ou o inesperado; 7) continuidade; 8) composição ou equilíbrio do conteúdo noticioso; 9) referência a nações de elite; 10) referência a pessoas de elite; 11) personificação; 12) negatividade.

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que determinam se um acontecimento, ou assunto, é susceptível de se tornar notícia, isto é, de ser julgado como merecedor de ser transformado em matéria noticiável” (Traquina, 2008: 63). Jorge Pedro Sousa destaca o fato de estes critérios sobreporem à subjetividade do jornalista enquanto o mesmo estrutura a reportagem com as informações que possui. “Por outras palavras, Galtung e Ruge desviaram as atenções do processo de gatekeeping em si mesmo para a questão bastante mais complexa da noticiabilidade, isto é, das qualidades que permitem que algo se torne notícia” (Sousa, 2008: 18). Outro viés importante tem sido a valorização da produção noticiosa local, ambiente no qual vários critérios do valor-notícia ganham fôlego, a começar pela “proximidade”. É bem verdade que muitos jornais de pequeno porte estão perdendo fôlego em investimentos publicitários, mas pesquisas recentes, como a de Novais e Ferro (2013) para ficarmos no exemplo português, mostram que o declínio do jornalismo impresso segue em velocidade lenta em relação às mídias que diluem a informação jornalística em outras produções (como TV e publicações impressas focadas no entretenimento). Sobre a relevância do localismo, vale citar as negociações ocorridas recentemente, como a do investidor do setor financeiro norte-americano, Warren Buffett, que comprou vários jornais interioranos nos EUA. Entre o fim de 2012 e julho de 2013, Buffett adquiriu 28 publicações de pequenas cidades. Aqui retomamos a pergunta inicial, agora envolvendo pequenas e aparentemente limitadas estruturas jornalísticas impressas: por que e para que comprar um jornal local que ainda se utiliza de papel e de rotativas em meio aos arautos que profetizam o fim dessa mídia no embate com as plataformas digitais? O que estão em jogo, portanto, não são apenas os critérios de noticiabilidade que exibem o “valor-notícia” de um fato, mas uma informação que possa ser mensurada socioeconomicamente. Não apenas contabilizando custos, despesas e vendas de edições, mas sim algo que dilua valores social, funcional e econômico da notícia, equilibrando o valor do jornalista com o valor de consumo atribuído pelo cidadão espectador, leitor e/ou ouvinte. “As percepções de valor dos consumidores são cruciais, porque o valor econômico é mais contingente do que determinante e os indivíduos avaliam os fatores de contingência no processo de determinação de valor” (Picard, 2013: 56). Este equilíbrio é tarefa difícil na sociedade midiatizada e inundada pelo “infotenimento”3. Para colaborar no debate propomos neste artigo examinar relatórios recentes (produzidos entre 2012 e 2013) sobre a crise nas empresas jornalísticas, sejam elas tradicionais (redução de espaço e de recursos) ou virtuais (superficialidade da informação e concentração em estruturas enxutas). As pesquisas do Reuters Institute for the Study of A expressão “infotenimento” deriva do original em inglês infotainment e usualmente se refere, no jornalismo, ao espaço destinado a matérias que pretendem informar e divertir – como, por exemplo, textos sobre estilo de vida, fofocas ou notícias de interesse humano – que geralmente atraem o público. O termo sintetiza de maneira clara e objetiva a intenção editorial do papel de entreter no jornalismo, como assinala Dejavite (2006: 72). 3

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Journalism, da Columbia Journalism School (CJS) e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em parceria com a Federação Nacional dos Jornalistas, mostram as reações possíveis das organizações centradas no jornalismo de qualidade: todas precisam rever o relacionamento com o público intermediado pelo profissional de imprensa. Também apresentamos aqui duas frentes de ação possíveis para as organizações jornalísticas hoje: 1. O conceito de valor da informação jornalística com base em demandas sociais recentes e nas condições de obtenção de notícias direcionadas a leitores, ouvintes, telespectadores e usuários passa por um círculo vicioso (informação digital superficial consumida por ser gratuita; gratuidade que não incentiva ou oferece subsídios para aprofundar e melhorar a notícia produzida). Em seguida usamos os relatórios de três instituições para reforçar o entendimento de que o foco das empresas jornalísticas deve ser o jornalismo investigativo e analítico, de modo a superar o crescimento da informação amparada no “infotenimento” e no factual efêmero da comunicação virtual. Essa afirmação parece óbvia e de fácil solução à primeira vista, mas acaba por desaguar na seguinte situação: se a produção jornalística de qualidade tem um custo alto e por isso deve ter um preço, qual o valor dessa informação? E, mais importante: pensar “quanto cobrar” e o “como cobrar” é convencer o espectador a buscar uma informação não gratuita no ambiente digital? 2. Com base nessa formulação, referendamos as análises de Anderson, Bell e Shirky (2013), Mick (2013) e Picard (2013), cujos resultados mostram o processo de revalorização das organizações jornalísticas da base para o topo: o retorno do bom e eficiente jornalista investigativo e analítico debruçado sobre temas de interesse público e não apenas o entretenimento. Este texto está vinculado a pesquisas desenvolvidas pelos autores (orientadora e orientando) no Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que incluem a observação da atividade jornalística no recente sistema público de comunicação, oficializado com a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) entre 2007 e 20084. Não vamos detalhar aqui o processo de formação do campo da radiodifusão pública no Brasil, mas utilizaremos na análise autores que argumentam como esse sistema, mesmo em dificuldade em vários países europeus, ainda é opção para experiências e construção de projetos jornalísticos de valor.

2. Instituição, valor jornalístico e relação com a sociedade No relatório O Jornalismo Pós-industrial os pesquisadores afirmam que a Internet avançou rápido demais a partir da virada do milênio e, na mesma velocidade, tecnologia (condições físicas de produção) e técnica (condições profissionais de coleta de dados e de 4

A EBC foi criada em outubro de 2007 por meio da Medida Provisória nº 398, assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2008, a MP foi aprovada pelo Congresso Nacional e convertida na Lei nº 11.652, oficializando assim a criação do sistema público de radiodifusão nacional. Link: http://www.ebc.com.br/sobre-aebc/o-que-e-a-ebc/2012/09/historico

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informação) evoluíram juntamente com uma sociedade crescentemente voraz por notícias. Mas a velocidade não se repetiu no processo de seleção, decantação dos fatos e análise com resultado final jornalisticamente satisfatório. Nesse lugar estão as produções locais que se mantêm engajadas com a comunidade que, por sua vez, reconhece a pequena mídia como guardiã e ouvidora das aspirações da população. O investidor norte-americano Warren Buffett resume a relevância do jornalismo local: “Não há nenhum substituto para um jornal local que esteja fazendo um bom trabalho” (Buffett apud Lins da Silva, 2013:12). A afirmação de Picard (2013) também pode surpreender alguns teóricos do campo: ainda há espaço para a mídia tradicional. O professor do Reuters Institute for the Study of Journalism argumenta que os meios tradicionais precisam dar maior valor ao conteúdo que produzem, inclusive com a cobrança pela informação disponível em outras plataformas. O mesmo movimento dinâmico que afeta os jornais impressos e a mídia audiovisual (esta amparada na distribuição de acordo com grades de programação para consumo de massa) agora escolhe alguns veículos tradicionais como referência, em meio à avalanche de eventos audiovisuais. É preciso compreender que esses meios carregam uma condição (positiva) que segue incrustada nas organizações: no decorrer da história se transformaram em “instituições”, com estrutura definida para atender demandas sociais básicas, com caráter de relativa permanência e identificável pelo valor dos seus atos e códigos de conduta. Mesmo que as empresas de mídia virtuais estejam estabelecidas em definitivo no contexto econômico e das estratégias de negócio, elas ainda não reúnem as características sólidas de uma “instituição” – pelo menos de instituição noticiosa ou jornalística. Os pesquisadores da CJS reforçam os sinais de novas instituições em formação no ambiente digital, mas que sua consolidação é difícil, a começar pelo custo de pessoal. Entre as particularidades institucional está o custo da redação, que pode oscilar com mudanças pontuais na equipe, mas permanece estável na média histórica. Uma das marcas de uma instituição é poder enfrentar idas e vindas de pessoal sem o risco de extinção organizacional. Como isso ocorre, e como uma organização jornalística emergente vira uma instituição, é uma das questões centrais diante do jornalismo nessa transição para a era digital (Anderson, Bell, Shirky, 2013: 56).

Em levantamento feito nos EUA, Picard (2013) aponta um dos principais erros da mídia tradicional (e também de alguns meios digitais): “ Organizações noticiosas fornecem algo para todas as pessoas, mas pouco para cada pessoa (...). Assim, uma grande quantidade de conteúdo produz um valor limitado e gera audiências que, por vezes, estão dispostas a abdicar do consumo (Picard, 2013: 94).

A melhor maneira de voltar a atrair o público seria então repensar o conceito de valor junto aos consumidores de conteúdo – e par essa reorganização são necessários os jornalistas, mediadores reais entre as organizações e o seu público. 5

A parte positiva do fosso entre jornalistas e público, especialmente aqueles fora da audiência regular das notícias, parece advir do fato de os jornalistas valorizarem as notícias e informações em si e por si, enquanto os leitores, ouvintes e telespectadores valorizam o uso das notícias e de informações. Dessa forma, auxiliar os consumidores a compreender o seu significado, ver a sua relevância para si próprios como indivíduos e entender como usá-las são fatores importantes para a criação de valor (Picard, 2013: 118).

Tanto Picard quanto a pesquisa da CJS sinalizam a mediação feita pelo jornalista entre o público e a organização como uma das premissas elementares na reformulação do valor da notícia. Esse é fator a influenciar o processo de produção da informação, que deve estar dividido em dois ambientes: o processo de construção (apuração e redação da reportagem no ambiente físico ou virtual) e o processo que configura outra mediação envolvendo a organização e a fonte. Exemplo recente que confirma tal condição foi a relação entre o informante Edward Snowden5 e o jornalista Glenn Greenwald, do britânico The Guardian envolvendo monitoração e vigilância eletrônica de líderes de vários países, inclusive a presidente brasileira Dilma Rousseff6. As investigações surgiram do contato iniciado junto a Greenwald com base na credibilidade do profissional e no distanciamento político, ideológico e até mesmo físico em relação aos EUA (o jornalista mora desde 2005 no Rio de Janeiro). Em entrevista à Revista Imprensa (2013), Greenwald detalha o trabalho complexo para obter documentos, incluindo uma viagem a Ásia para encontrar seu informante: “Primeiro tive uma reunião com o The Guardian, porque sabia que precisaria de apoio institucional e queria que ficassem tão confiantes quanto eu estava. Foi apenas meia hora de conversa até eles dizerem ‘Você vai amanhã para Hong Kong’” (Demário, 2013: 31). Esse relato reforça a importância da mediação entre fonte e organização. O jornalista citado observa, porém, que o “apoio institucional” é necessário para bancar informação de qualidade e de muita demanda. Ainda que a referência seja ao The Guardian, o peso da institucionalidade também pode ser aquilo que a Amazon encontrou no The Washington Post ou que a IBT Media identificou na Newsweek. O poder da instituição, já materializado pela mídia impressa, foi bastante usado na primeira década deste século pelo site Wikileaks. O observatório digital alcançou o auge em novembro de 2010 ao divulgar, em parceria com jornais da Europa e das Américas, 251 mil documentos oficiais de diversos governos. Esse

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Edward Joseph Snowden trabalhou como analista de inteligência da agência norte-americana National Security Agency (NSA) e tornou público os detalhes de programas de espionagem e de vigilância eletrônica mantidos pelos governos dos Estados Unidos e da Inglaterra. 6 Especificamente, a espionagem americana envolvendo a presidente Dilma Rousseff teve repercussão na ONU, depois que ela abriu a Assembleia Geral das Nações Unidas em 24 de setembro de 2013. A presidente falou exatamente sobre as responsabilidades dos EUA no caso e pediu aos países membros para trabalharem em conjunto e discutir leis internacionais que evitem tais atitudes. Disponível em 27/01/2014 em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-09-24/dilma-diz-que-vai-redobrar-esforcos-para-proteger-pais-deespionagem

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exemplo mostra como o predicado institucional dos jornais tradicionais foi importante para potencializar as informações. Outro dado enfatiza as limitações da mídia tradicional: entender que um site como Wikileaks é também uma organização de notícias, que se posiciona para além da condição de fonte. Foi o que percebemos na entrevista com o porta-voz da organização, o jornalista islandês Kristinn Hrafnsson (na época o segundo na hierarquia do Wikileaks) durante o 1º Encontro Mundial de Blogueiros em Foz do Iguaçu: Publicações disseram que somos uma estrutura secundária de informação, mas nós afirmamos que chegamos de igual para igual. Alguns disseram que somos apenas fonte de informação e não gostaram da nossa exigência de saber como a informação seria entregue [ao público]. Não significa que estamos fazendo pressão na linha editorial. Todos têm liberdade. O que pedimos é que tenhamos participação na decisão final de como será a divulgação. Isso, para nós, significa espírito de compartilhamento real (Hrafnsson apud Dias, 2011: 3).

A fala de Hrafnsson coloca em risco o debate sobre a preservação das fontes e também reformula o conceito de pirâmide invertida (entendimento clássico da construção de um texto jornalístico) para o de ‘pirâmide deitada’, de Canavilhas (2007). Ao desconstruir o conceito de produção de texto jornalístico baseado na sequência tradicional (fonte > confronto e verificação das informações > produção da reportagem > divulgação da notícia), o posicionamento do representante do Wikileaks expõe outras dificuldades enfrentadas pelo jornalista profissional – como integrar-se aos processos modernos de difusão da informação do tipo crowdsourcing (o público como fonte da notícia ou o conteúdo produzido por usuários) apresentado por Briggs (2007). Sobre os ‘amadores’ atuando colaborativamente na produção de notícias, Anderson, Bell e Shirky (2013: 43) defendem que “o jornalista não foi substituído – foi deslocado para um ponto acima na cadeia editorial”. Os autores enaltecem a ação de cidadãos conectados, mas reforçam que o jornalista “já não produz observações iniciais, exercendo agora uma função cuja ênfase é verificar, interpretar e dar sentido à enxurrada de texto, áudio, fotos e vídeos produzida pelo público” (citado: 43). Estariam os jornalistas preparados para atender a essa demanda no momento em que enfrentam a aglutinação extrema do trabalho dentro e fora das redações – a exemplo do Mojo, Movement Journalist (“jornalista em movimento”), profissional equipado para viajar e produzir textos, fotos, vídeos e audiocasts – conforme a definição de Crucianelli (2010)? E qual é o impacto desse tipo de desempenho nas organizações de mídia? Outra amostra da estreita linha que separa o “jornalista multimidiático” do “jornalista acumulador de funções” está no levantamento de Jaques Mick (2013) sobre os fotojornalistas brasileiros: menos de 2% dos profissionais afirmam ter registro como repórter fotográfico, mas 35,4% responderam que produzem fotografias para a sua organização de mídia. Na extensa pesquisa – que tem origem na parceria entre a UFSC e a FENAJ para analisar 2.731 questionários entre os mais de 5 mil preenchidos pelos profissionais – estão 7

explícitas as condições precárias para o exercício da profissão no Brasil, disfarçadas em termos como empreendedorismo, jornalismo colaborativo ou jornalismo digital. Segundo o professor (Mick, 2013: 72) um em cada quatro jornalistas tem mais de um emprego na área e apenas 11,6% atuam na carga horária estabelecida por Lei Federal (jornada de 5 horas diárias ou 30 horas semanais). Outros 43,3% trabalham entre 5 e 8 horas, enquanto 40,3% exercem diariamente a profissão em jornadas que vão de 8 a 12 horas. Também há exemplos interessantes de jornalismo público ou de jornalismo “fora da mídia”, caso das assessorias de imprensa e das agências de comunicação (não de notícias). Nesses espaços são valorizados o desenvolvimento crítico e a formação acadêmica além da graduação em Jornalismo. Segundo Mick (cit.), aqueles que trabalham na mídia têm mais formação (66%) em Jornalismo do que os “fora da mídia” (51%). Mas os “fora da mídia” formam o maior grupo com pós-graduação (quase 50% contra pouco mais de 30% daqueles que atuam na mídia convencional).

Considerações finais Nos relatórios analisados, as mudanças nas condições para o exercício do trabalho profissional indicam que a maioria dos jornalistas concorda em reduzir a qualidade da notícia que produzem por limitações técnicas ou de repertório. O cruzamento das três pesquisas mostra que o jornalista se tornou refém de uma cadeia de produção que – em tese – dependeria do conhecimento e da habilidade prática do profissional como elementos fundamentais para a manutenção da credibilidade das instituições jornalísticas e para a reformulação / adaptação do valor da notícia. Nesta análise comparativa dos resultados de coleta de informação junto a profissionais em países distintos fica evidenciado que o conceito de valor-notícia precisa ser harmonizado com o processo de criação de valor e com a adaptação das organizações de mídia para novas formas de apuração e distribuição de notícias. Outras informações nos relatórios analisados tangenciam elementos adicionais, a começar pela compreensão estrutural e espacial da imprensa (local ou global) – como os escritos de Andrew Pratt (2007) sobre a importância do movimento econômico das indústrias culturais com base na geografia dos meios de comunicação. Todos estes aspectos identificam no Jornalismo pós-industrial o ambiente no qual as instituições “terão que explorar novos métodos de trabalho e processos viabilizados pela mídia digital”, pois “nessa reestruturação, todo aspecto organizacional da produção de notícias deverá ser repensado” (Anderson, Bell, Shirky, 2013: 38). De qualquer forma, a previsão é de maior integração e melhor aproveitamento de recursos em vários aspectos: profissionais, máquinas e público – este último não mais passivo diante da notícia, mas crítico, colaborador e exigente por conteúdo de qualidade, disposto a valorizar uma informação segura e real.

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