OUTROS SABERES SOBRE A ESCOLA: A VOZ DO ALUNO NA PESQUISA EM EDUCAÇÃO

May 24, 2017 | Autor: Carmen de Mattos | Categoria: Etnografía, Ensino, Student Voice
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

OUTROS SABERES SOBRE A ESCOLA: A VOZ DO ALUNO NA PESQUISA EM EDUCAÇÃO Carmen Lucia Guimarães de Mattos University of British Columbia (UBC) Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Walcéa Barreto Alves Centro Universitário La Salle (UNILASALLE) Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) RESUMO Este texto discute a voz aluno na pesquisa educacional. Seu objetivo é compreender os processos e práticas interativas no ambiente escolar na perspectiva dos estudantes que fazem parte desse contexto. As análises derivam de duas pesquisas; uma bibliográfica que investigou (683) artigos sobre o fracasso escolar baseados em entrevistas “com/sobre” alunos que fracassam na escola e encontrou somente (1) que realmente ouviu esse aluno; e a outra é uma pesquisa etnográfica que privilegiou o aluno como agente ativo no ato de dar sentido aos dados coletados durante a realização da pesquisa, sentidos estes que podem provocar mudanças na escola. Estudos de Fine (2013), Grion (2013), Cook-Sather (2013), Mattos (2011, 1992) e Alves (2003, 2012) formam a base teórico-epistemológica dos resultados apresentados. Fatores como: relações assimétricas de poder, currículo centrado em práticas pedagógicas que não privilegiam os saberes dos alunos, pouca sensibilidade da escola em relação aos temas que permeiam o ambiente escolar e a violência da/na escola, emergiram da voz do aluno que, transformadas em vinhetas etnográficas, demonstram como eles se descolam do entendimento e realização de suas tarefas, dos professores, dos pais e de outros alunos e priorizam emergências que surgem na sala de aula, na escola e na família. Como resultado, esses alunos experimentam situações de vulnerabilidades em sua escolarização e as descrevem no enfrentamento das vivências do dia a dia. Para os alunos a escola é percebida como um espaço de construção de experiências com potencial transformador, especialmente a partir de suas vozes, permitindo compreender que o ensinar não se restrinja a uma mera transferência de conhecimentos, mas que a escola seja lugar de vida, de produção de conhecimento e de vicissitudes que propulsionem novas formas de interpretar, ver e ouvir a realidade a partir do outro. Em particular, invertendo-se as relações hierárquicas de poder e flexibilizando a assimetria existentes entre elas. Palavras-chave: aluno; etnografia; pesquisa bibliográfica

Introdução Este texto busca dialogar com professores e pesquisadores sobre a importância de ouvir o aluno como fonte primária de conhecimento sobre a escola, o ensino e a pesquisa. Assim, pensa-se nos alunos como agentes do conhecimento, potencialmente transformadores da escola. O suporte teórico para as análises da voz do aluno tem como

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base os conceitos e teorias derivados dos estudos de Fine (2013) a respeito da pesquisa participativa, Cook-Sather (2013) e Grion (2013) sobre o potencial da voz do aluno como contribuição para promoção de mudanças na escola, Mattos (2011, 1992) sobre a abordagem “bottom-up” (de baixo para cima) e (2003, 2012) sobre a reflexividade dos participantes na pesquisa etnográfica. Dentre as diversas etapas que envolvem o trabalho de pesquisa, em uma delas, realizada por Mattos e Castro (2010a), intitulada “Fracasso Escolar: Gênero e Pobreza” foram estudados 2.017 textos científicos nacionais sobre o fracasso escolar em escolas públicas brasileiras. Este estudo bibliográfico chamou a atenção das autoras para o grande número de textos que argumentavam que os seus dados expressavam as percepções e o entendimento dos alunos sobre o fracasso escolar. Mediante interesse destas pesquisadoras sobre como estes alunos foram ouvidos, selecionou-se 683 textos que utilizavam entrevistas como instrumentos. Os objetivos foram: verificar a presença ou não de alunos como informantes primários dos estudos realizados; compreender como essas pesquisas situavam os alunos; e verificar se eles foram ouvidos ou não. O resultado da pesquisa apontou que: dos 683 textos, somente dez (10) relatavam ter incluído em suas entrevistas a participação de alunos como sujeitos da pesquisa, assim como outros participantes: professores, pais e diretores de escola. Essas pesquisas, embora variando o modelo de entrevistas, fizeram uso, prioritariamente, de entrevistas que pudessem lançar luz sobre o fracasso escolar e a realidade de crianças e jovens que o viviam. Entretanto, na descrição sobre esse fracasso priorizaram as falas dos demais entrevistados e não dos alunos. Entre os dez (10) textos que incluíram os alunos como entrevistados, apenas um (1) utilizou entrevista aberta, isto é, que ofereciam liberdade para que os entrevistados respondessem o que pensavam, independentemente das perguntas pré-concebidas pelo entrevistador. Pode-se inferir sobre os 683 estudos analisados, que existe uma dificuldade, entre os pesquisadores, em lidar “com a fala do outro”, sobre o seu objeto de estudo. No caso dos estudos analisados, as vozes sobre o fracasso escolar. Ao mesmo tempo em que parece existir uma necessidade, entre esses mesmos pesquisadores, de controlarem “o que este outro fala”, a partir da tentativa de falar sobre este outro e, assim, comprovar suas próprias hipóteses sobre o que é o fracasso escolar na visão dos sujeitos de suas pesquisas, embora sem a participação dos mesmos nesses resultados. Esses estudos revelam a necessidade de pesquisas que deem relevância à voz do aluno enquanto agência humana no ato de dar sentido ao conhecimento acerca de sua

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realidade, especialmente na escola e na sala de aula. Revela, ainda, que essas pesquisas educacionais, embora os tenha descrito como sujeitos primários, não os reconhece como vozes legítimas e válidas, pois interpretam o que esses alunos falam sem, efetivamente, ouvir a sua voz enquanto produtores do conhecimento. A ausência das vozes de alunos nas pesquisas educacionais releva a importância de se explorar mais detalhadamente o que eles tem a nos dizer sobre si próprios e sobre as suas escolas. Entendemos que numa Pedagogia vivenciada na condição pós-moderna (PINAR, 2003), os alunos têm acesso a uma variedade infinita de informações e que o papel de professores, sabedores dos conteúdos validados culturalmente, é de auxiliá-los a fazerem sentido dessas informações, transformando-as em conhecimento e atribuindo significado à sua realidade com seus próprios conteúdos. Reconhecendo a ausência da voz do aluno em pesquisas educacionais (MATTOS; CASTRO, 2010b), pretende-se estudar o que dizem essas vozes, a partir do acervo de pesquisa do banco de dados do Núcleo de Etnografia em Educação (NetEdu/UERJ). Esses dados, envolvem coletas realizadas em escolas públicas com a participação e colaboração de alunos da educação básica e de graduação (bolsistas de iniciação científica da UERJ) considerados sujeitos primários e agentes ativos nessas pesquisas. Portanto, as bases empíricas que compõem as vinhetas etnográficas exploradas no texto advém de pesquisas desenvolvidas ao longo dos últimos 10 anos por este Núcleo.

Ouvindo a voz do aluno: contribuições teóricas O Projeto Ciência Pública (Public Science Project), atualmente desenvolvido por Michelle Fine, na Universidade da Cidade de Nova York (City University of New York – CUNY), nos Estados Unidos da América (EUA), tem como uma das atividades, a pesquisa que é realizada em aliança entre universidades, pesquisadores, estudantes de graduação, ativistas, jovens em desvantagem social e membros de diversas comunidades e instituições da cidade, procuradores públicos, advogados, entre outros. O modelo de pesquisa participativa adotado, evidencia o engajamento político e acadêmico entre os membros da equipe. Existe uma prioridade em ouvir, de forma igualitária, as vozes de todos os participantes, em especial os marginalizados socialmente. Fine explica que o grupo criou uma “zona de contexto” (TORRES, et. al., 2008), o que significa que pessoas de diversos segmentos sócio-educacionais se reúnem com os pesquisadores e, juntos, partilham conhecimentos e criam as questões da

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pesquisa, os instrumentos, as amostras, as análises e os produtos, tornando-se uma equipe e constituindo o que ela considera “campo de pesquisa”. Nesse contexto, todos os membros da equipe são treinados juntos sobre métodos de pesquisas, projetos e epistemologia. Todas as diferentes vozes são consideradas e as diferentes opiniões são colocadas no campo de compreensão e negociação. Para Fine (2013), a chave para que isso aconteça é acreditar na “ação de pesquisa crítica participativa”, de forma que as pessoas que viveram injustiças e que tem um entendimento íntimo sobre os caminhos pelos quais a injustiça opera, possam ter liberdade para relatar esses eventos. Fine (2013) explica que, nesse processo, o mais desafiador é convencer as pessoas com Doutorado de que os estudantes marginalizados, também têm conhecimento. O cultivo de diferentes opiniões, quase sempre, significa uma “queda de braço” sobre as divergências. Segundo a pesquisadora, se existem diferentes tipos de jovens na sala, normalmente, os “bons alunos” acham que devem ensinar aos “maus alunos”, quando, na verdade, ela está interessada, justamente, nos pontos de vista dos “maus alunos”: “eles sabem de coisas... eles são experientes... eles seguram um pedaço diferente da história” (Idem). Fine (2013) contrasta, ainda, o tipo de investigação conhecida como “pesquisaação” com a “pesquisa participativa” que delineia em seus projetos. Quatro princípios modelam esta última: a) as pessoas que viveram injustiças têm profundo, íntimo conhecimento sobre as estruturas, histórias, efeitos e consequências da injustiça. Portanto, dispõem de um ponto de vista importante para fazer sentido a respeito dela; b) essas pessoas também têm o direito de fazer pesquisa; c) na universidade, os pesquisadores têm a obrigação de projetar pesquisas que não contribuam para ampliar o quadro de violência em que essas pessoas vivem, como a “violência epistemológica” (TEO, 2010), isto é, empreender mais violência aos grupos sobre os quais se pesquisa; d) a pesquisa deve ter ação aderente a ela, seja através de uma organização política ou um movimento social que visem mudanças. Para Fine (2013), esses são os elementos críticos da “pesquisa participativa”, que é diferente da “pesquisa-ação”, pois a pesquisa participativa desafia especialistas a tomarem posições mais democráticas em todo o processo de fazer pesquisa, sem que se promova uma ação de pesquisa de forma unilateral, isto é, levar a um grupo vulnerável aquilo que achamos ser bom para ele. Fine comenta que para isso é preciso que pesquisadores se posicionem em favor da comunidade, pois ela também “possui os dados”. Assim, em colaboração, podem-se

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pensar os tipos de produtos mais apropriados para essa comunidade. Ela exemplifica que os seus projetos começam pela questão política sob o ponto de vista do marginalizado, porque as pessoas das comunidades estão interessadas no que a comunidade pensa sobre as questões que enfrentam no seu dia a dia (FINE, 2013). O trabalho de Fine e sua equipe servem como subsídio e aporte teórico para este trabalho na medida em que ela inclui como participantes primários da pesquisa pessoas que, na maioria das vezes, são esquecidas, e dá importância a voz do excluído de maneira a legitimar os resultados da pesquisa. Esta é uma postura crítica frente a realidade do excluído. Alison Cook-Sather também contribui teoricamente com este trabalho. Ela explica a partir do projeto de pesquisa “Ensinando e aprendendo juntos” (Teaching and Learning Together), desenvolvido na cidade da Filadélfia, EUA, que no “esforço de posicionar os alunos como sujeitos ou protagonistas” das interpretações de suas próprias vivências e experiências, a pesquisa qualitativa coloca em primeiro plano a voz e a experiência do estudante (COOK-SATHER, 2013, s/p). Especificamente, a pesquisa posiciona os alunos como informantes, redefine seu papel, "ouvindo-os", e muda o quadro de referência, alterando assim a apresentação. Cook-Sather (2002) explica que a voz dos alunos é orientadora dos resultados e que os objetivos políticos e pedagógicos precisam preponderar na pesquisa. Para que isso aconteça, esses objetivos devem: 1) desafiar o modelo tradicional de ensino segundo o qual teóricos e pesquisadores geram conhecimentos e os passam para os professores. Estes, por sua vez, são pressionados a implementá-los como um novo conhecimento, posicionando os alunos como receptores passivos desta transferência; 2) alterar a dinâmica de poder na relação professor/aluno: preparar professores comprometidos a agirem sobre as perspectivas dos alunos; e, 3) promover a consciência crítica no aluno sobre as suas experiências e oportunidades educacionais, de modo que este adquira mais confiança em expressar o que precisa como aprendiz. Este trabalho também se pauta nas pesquisas de Valentina Grion, que estuda questões como – o que é uma boa escola a partir do ponto de vista do aluno? Suas colocações partem do pressuposto de que “os alunos têm ideias muito positivas e realistas a respeito de sua escola e de como ela pode ser melhorada” (GRION, 2013, s/p). Ela explica que os alunos querem realmente mudar a escola e isso não pode ocorrer sem que a participação democrática na escola seja levada mais a sério. Para a autora é necessário empreender ações onde “os alunos possam atuar como copartícipes nos

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processos de mudança” (GRION, 2013, s/p), garantindo que espaços de discussão sejam legítimos e valorizados e onde alunos e alunas possam falar. Faz-se necessário, portanto, que “reajustemos os nossos ouvidos para que possamos ouvir o que eles dizem e, assim, redirecionarmos nossas ações em resposta ao que ouvimos” (GRION, 2013, s/p). Na esteira de Cook-Sather, Grion assenta que "os alunos têm uma perspectiva única sobre o que acontece na escola e nas salas de aula” (COOK-SATHER 2009, p. 5) e que, por isso, podem e devem ser considerados pela política nacional de avaliação escolar. A partir da explanação acima, torna-se evidente a relevância e necessidade de se ouvir a voz do aluno na realização de pesquisas que buscam compreender a escola com seus sujeitos e pretendem contribuir para sua transformação. Alves (2012) aponta a necessidade de se iniciar o planejamento das ações pedagógicas e educacionais sob uma perspectiva “bottom-up” (MATTOS, 1992) levando-se em consideração as demandas que emanam da base (o aluno) para o topo (gestores educacionais). A partir deste prisma, considera a viabilidade de uma aplicabilidade significativa das ações educativas, tomando como ponto relevante na construção conjunta a voz de alunos e alunas em suas compreensões sobre a escola em seus papéis social e educativo.

O que acontece quando a voz do aluno é ouvida na escola? Nas pesquisas realizadas pelo NetEdu, lidou-se com temas que não são usualmente motivadores para os professores, como: violência na/da escola; interações e discriminação de gênero; percepção dos alunos sobre o fracasso escolar; a situação de pobreza associada ao desempenho do aluno; dentre outros. Pesquisou-se, ainda, como os alunos se percebem na realização de tarefas escolares, os processos de avaliação da aprendizagem; como se dá a relação “professor-aluno” no contexto das classes de programas compensatórios (como classes de repetentes, progressão, aceleração, dentre outros). Revisitando os dados do Núcleo supracitado, mostra-se aqui alguns eventos nos quais alunos e alunas se revelam conhecedores de suas próprias ações, limites e possiblidades no interior da escola e da sala de aula, constituindo-se atores críticos do seu papel social como educandos (MATTOS; CASTRO, 2010b). Em pesquisa realizada em uma escola localizada na Baixada Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro, em 2010, um dos procedimentos de coleta de dados utilizado foi a realização de entrevistas feitas por alunos e alunas do 1º ano do Ensino Médio com

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seus colegas do 6º ano do Ensino Fundamental. Os pesquisadores treinaram os estudantes como entrevistadores para que as entrevistas se desenvolvessem de modo que permitisse a liberdade de resposta dos entrevistados. Os temas propostos pelos pesquisadores foram: ordenações de gênero e situação de pobreza como indicadores do fracasso escolar. Entretanto, por proposta dos alunos do Ensino Médio, foi acrescentado o tema violência. De acordo com eles e com seus professores, a escola é situada num bairro muito violento, envolvendo crimes, roubos e guerra do tráfico de drogas que refletem de modo negativo no ambiente escolar, levando os estudantes a situações de desespero e vulnerabilidade. O resultado dessas entrevistas e das observações de campo, identificam instâncias de reflexividade crítica dos entrevistadores e entrevistados sobre os temas perguntados. Neste texto, serão apresentadas somente as análises do tema da violência, por este ter sido de escolha dos alunos. Serão apresentados dois eventos, em forma de vinheta etnográfica, contendo: sua contextualização, as inferências dos alunos; interpretação das falas e seus fundamentos teóricos.

Evento 1: Aprendendo sobre violência Renato – Alguém já tentou violência contra você? Maria – Já, teve uma vez que eu quase fui estuprada. Só que eu falei com o meu pai, o meu pai veio resolver. Renato – Você já presenciou algum caso de violência em sua família? Maria – Já, eu odeio o meu tio! Cara, assim! O meu sonho sempre foi matar ele [...] eu odeio ele! Ele metia a porrada na minha mãe [...] eu sempre defendi a minha mãe[...] eu já puxei a faca pra ele, quase que eu meti a faca nele! Renato – O que você acha desses atos de violência? Maria – É muita coisa!!! O meu pai era assim, o meu pai começou com faca, enfiava a faca nos outros, depois o meu pai começou a levar armas pra casa. Aí um dia eu cheguei pro meu pai e pedi uma arma pra ele de presente de aniversário... Maria, menina de 9 anos com a estatura de 7 devido a uma doença rara que limita seu crescimento físico é consciente da violência em que vive e visualiza como saída a própria violência. Renato, seu colega entrevistador, alarmado com a forma como ela falou do “quase estupro”, mudou imediatamente de assunto após a resposta de Maria. Ele declarou ter ficado “sem palavras” diante do sofrimento da menina, embora já soubesse do caso, pois Maria havia sido afastada dos pais e vivia com a avó por ter sido vítima de violência doméstica.

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Renato declarou que não fazia ideia de que a pesquisa levasse os alunos a falarem tão abertamente sobre as suas vidas, e que ele se sentiu útil ao “ouvir” os colegas. Lembrou que na comunidade não existe preocupação das autoridades em oferecer suporte social e psicológico para as vítimas de violência. Junto à equipe de pesquisa, ele argumentou que a violência vivida pelos alunos desta escola criou um círculo vicioso que impede as pessoas de viverem em liberdade e que a escola é um lugar onde se sentem livres, embora esta reproduza, na forma de agir, a lógica de violência das famílias e da sociedade que a circunda. O sentimento de liberdade relatado por Renato reflete o potencial existente nas relações escolares, um sentimento de pertencimento, de compartilhamento de valores que podem auxiliá-los a reverter o quadro de violência em que vivem. Nesse contexto, a escola se assemelha a um laboratório onde os alunos experimentam a violência brincando e desafiando uns aos outros. Este evento, da forma como foi significado pelo próprio aluno-pesquisador, denota a importância de se ouvir a voz do aluno e como este sente a necessidade de expor a sua realidade numa solicitação e consequente permissão de ser ouvido e visto. A maneira como a aluna entrevistada falou sobre a sua realidade não seria assim colocada se não lhe houvesse sido dada esta possibilidade, mediante a realização da entrevista. O fato de uma aluna ser ouvida, em ambiente de pesquisa, por outro aluno, também aponta um referencial importante para compreendermos esses atores enquanto potenciais agências de transformação da escola e da sua própria realidade: a entrevistada, por ter tido a oportunidade de compartilhar algo que lhe era extremamente significativo e marcante; o entrevistador, por se deparar com as possibilidades que a pesquisa traz a partir do momento em que ouve o outro.

Evento 2: Escola como laboratório da violência Renato –Você já viu alguma briga na escola? Pedro – Já(risos). Renato – Por que esse sorriso, aí (risos)? Pedro – Pô, lá na sala tem um monte, cara. Renato – Por que motivo? Pedro – Pô, porque começa assim, eles brincam depois levam tudo a sério. Pesquisadora – Mas tem umas brincadeiras assim na sala de aula? Alunas entrevistadas [em grupo] – TEM! Pesquisadora – Mas como é ? [pergunta ao grupo de alunas] Carol – Eles ficam brincando de soquinho... essas coisas. Mas também quando um se machuca o outro já quer machucar também, aí começa a briga. Pedro – A mesma coisa, tudo a mesma coisa... só na hora da saída que não... na hora da saída que tem alguns que fica... tipo assim, calmo! É engraçado que eles

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ficam levados só na hora na escola... Parece que eles sofrem uma transformação quando pisam do portão para fora. Lá dentro é diferente! Parece que do portão pra fora eles se transformam, é um negócio esquisito. Como vemos na asserção acima, os alunos usam e escola para experimentar formas de se libertar da violência que vivenciam fora dela, transformando o ambiente escolar em um caos, onde eles próprios, os professores e o pessoal da escola – gestores, professores e funcionários, não compreendem o que acontece. As brincadeiras são transformadas em lutas corporais e modificam o clima escolar, limitando as possibilidades de aprendizagem e de convivência pacífica. Alunos e escola, como um todo, se opõem em seus propósitos básicos. A escola, além de ensinar os conteúdos acadêmicos, ensina também a viver, a se defenderem da vida lá fora. O entendimento que os alunos têm sobre o papel da escola e dos professores também se altera, assim como as práticas relacionadas à violência da/na escola. Ao serem perguntados sobre como os professores reagem às brincadeiras que envolvem violência na escola, os alunos explicam que a violência física é a única que pode ser considerada violência pela escola, as outras não contam. A visão sobre este tipo de violência a partir da perspectiva do próprio aluno ganha outras cores e versões se vistas pela escola sob este aspecto. Se o olhar e o ouvir da pesquisa não estiverem atentos ao que a voz do aluno traz, significando os fatos ocorridos no cotidiano escolar, a violência entre os alunos não passa de uma concepção estratificada de “bagunça”, “desrespeito” e “atos de marginalização”. A apresentação da concepção trazida pelos próprios alunos e a interpretação dos dados pelo processo da pesquisa que tem como prerrogativa ouvir a voz destes atores, permite à escola uma visão diferenciada, possibilitando ações de transformação na forma de lidar com os aspectos de violência no cotidiano da sala de aula e do próprio contexto educacional como um todo.

Considerações finais Quanto mais se realizam pesquisas que têm como pressuposto teóricometodológico ouvir a voz dos alunos e alunas, mais se tem consciência de que é necessário ouvi-los ainda mais. Sucessivamente a esta consciência, urge a necessidade de se compreender a realidade da própria escola a partir da voz daqueles que são a base da pirâmide educacional, para quem, para onde e de onde devem ser impulsionados o planejamento e as ações educacionais a fim de se promover igualdade e justiça social.

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Michelle Fine (2013) descreve em seu trabalho que as pessoas marginalizadas tem sido tratadas de modo desatento às suas demandas pelas pesquisas educacionais que, com isso, estas podem estar promovendo a “violência epistemológica” além da violência constante que esses sujeitos estão inseridos em seu dia a dia. Isto é, os pesquisadores podem estar reproduzindo as relações de violência em suas próprias relações de trabalho. Uma das formas de evitar que isso aconteça é delinear pesquisas que sejam originárias daqueles que estão à margem da sociedade, incluindo questões que permeiem diferentes posições, de pessoas de diferentes segmentos

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educacionais, e não somente originárias de demandas acadêmicas. Além disso, faz-se necessário que as pessoas pesquisadas sejam incluídas em todo o processo da pesquisa, desde do projeto até o produto fina que, dessa forma, refletirá o pensamento de todos e não apenas do acadêmico responsável. Cook-Sater; Grion (2013), em adição à perspectiva de Fine (2013), acreditam que ouvir o aluno pode impulsionar mudanças na escola. A abordagem das autoras é desafiadora, mas faz sentido, quando associamos as experiências de Alves (2012) em relação à reflexividade do aluno pesquisador sobre a sua própria realidade e a abordagem “bottom-up” proposta por Mattos (1992). Afirmamos, portanto, que, delineando pesquisas que incluam os sujeitos como participantes ativos do processo, incentivando a reflexividade dos mesmos e dos próprios pesquisadores no ato de fazer pesquisa, pode-se constituir uma chave para informar mudanças na escola. As vinhetas etnográficas apresentadas sobre a violência, demonstram que os alunos/pesquisadores e alunos/pesquisados são capazes de pensar sobre as situações vividas no cotidiano da escola de uma perspectiva inédita. Suas vozes expressam preocupação com eles mesmos, com os outros alunos, com os professores, com as práticas de sala de aula, com as interações entre eles e o pessoal da escola, enfim, com a escola como um todo. Nuances dessas expressões, na maioria das vezes, não são percebidas pelos pesquisadores e pelo pessoal da escola. Nos pesquisadores provoca uma visão equivocada desses processos interativos e dessas atividades. No pessoal da escola, provoca a percepção de que os alunos são bagunceiros e não querem fazer as tarefas propostas e ainda que sentem prazer em perturbar o ambiente escolar. Entretanto, em recente reunião entre professores, gestores e profissionais da Secretaria de Educação onde ocorreram muitas das pesquisas realizadas pelo NetEdu, os professores se mobilizaram enfrentado os representantes da Secretaria no sentido de promoverem mudanças no currículo e na avaliação, predominante normatizada e de

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caráter nacional. A mobilização foi no sentido de que as mudanças incluam as vozes dos alunos e dos professores. Os caminhos a trilhar a partir dessa perspectiva e preocupações são inerentes a confrontações e delimitações e partem da própria dialética do campo de pesquisa e da educação. No entanto, as possibilidades a serem criadas a partir da voz dos alunos permite compreender que é possível articular mecanismos de transformação da realidade educacional atual, onde o ensinar não se restrinja a uma mera transferência de conhecimentos, mas que seja lugar de vida, de produção de conhecimento e de vicissitudes que propulsionem novas formas de interpretar, ver e ouvir a realidade a partir do outro. Em particular, invertendo-se as relações hierárquicas de poder e flexibilizando a assimetria existentes entre elas.

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DEVECCHI, C. (Eds). Não publicado. MATTOS, C.L.G. Picturing school failure: a study of diversity in explanations of “educational difficulties” among rural and urban youth in Brazil. 1992. 268f. Thesis (Ph.D. in Education) – Graduate School of Education, The University of Pennsylvania. Philadelphia. USA, 1992. MATTOS, C.L.G. A abordagem etnográfica na investigação científica. In: MATTOS, C.L.G; CASTRO, P.A. (Orgs.). Etnografia e educação: conceitos e usos. Campina Grande: eduepb, 2011. MATTOS, C.L.G.; CASTRO, P. A. de. Fracasso Escolar: Gênero e Pobreza. Rio de Janeiro, RJ, Relatório Final de Pesquisa. Brasília: MCT/CNPQ. 2010a, 185f. MATTOS, C.L.G.; CASTRO, P. A. de. Entrevista como instrumento de pesquisa nos estudos sobre o fracasso escolar. IV Seminário Internacional de Pesquisa e Estudos Qualitativos. 9, 10 e 11 de Outubro 2010 UNESP - Universidade Estadual paulista Campos Rio Claro - SP – Brasil. 2010b. PINAR, W. International handbook of curriculum research. Mahwah, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 2003. TEO, T. What is epistemological violence in the empirical social sciences? Social and Personality Psychology Compass. 4/5, 295-303. doi:10.1111/j.17519004.2010.00265.X. 2010. TORRES, M. E. et al. Participatory Action Research in the Contact Zone. In J. Cammarota; M. Fine (Orgs.). Revolutionizing Education: Youth Participatory Action Research Motion. New York: Taylor ; Francis, (p.23-44), 2008.

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