(P) A configuração da Torre de Belém

September 22, 2017 | Autor: P. Martins Oliveira | Categoria: História da arte, Estilo Manuelino, Torre de Belém
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A CONFIGURAÇÃO DA TORRE DE BELÉM Paulo Martins Oliveira Resumo: constituindo muito mais que um edifício de cariz militar, a Torre de Belém distingue-se igualmente como uma elaborada construção simbólica, que associa diferentes elementos para sintetizar a natureza e a missão de um povo e do seu providencial monarca.

A lógica criativa que se observa em pinturas e esculturas do Renascimento pode ser igualmente encontrada em monumentos como a Torre de Belém (1514-1519)1. De facto, também este edifício revela um intelectualismo baseado na sobreposição harmonizada de camadas de significado, permitindo combinar mensagens autonomizadas. Neste contexto, identifica-se até um sistema comum e complementar que associa os principais monumentos então construídos ou reformulados, incluindo o Convento de Cristo, o Mosteiro dos Jerónimos e a própria Torre de Belém. Essa filosofia partilhada vai mais além que o discutido programa decorativo manuelino, assentando na verdade numa complexa engenharia simbólica, feita de soluções de compromisso que se traduzem em dinâmicos desdobramentos de significado. Por exemplo, na célebre janela do Convento de Cristo, os polémicos elementos naturalistas reportam afinal, em simultâneo, o mar e a terra2, numa ambivalência que se vai reflectir na configuração da distante Torre de Belém3. Deste modo, o igualmente famoso edifício ribeirinho simboliza ao mesmo tempo o elemento continental (evocando a torre de menagem de Beja) e o elemento oceânico (na sugestão de navio, dada sobretudo pelo baluarte horizontal fronteiro)4. Esta associação entre a terra e o mar expressava o desígnio cruzadístico português, do qual se encontram ecos nítidos por exemplo nos Lusíadas – obra que recuperou o programa manuelino a vários níveis. Nessa lógica, estando Portugal no limite poente do mundo antigo (Hespéria) 5, o país marcava o sítio “onde a terra se acaba e o mar começa” (Lus.III:20), e foi por essa via oceânica que os seus navegantes acrescentaram “novos mundos” àquele conhecido desde sempre. Esse projecto era espiritualmente guiado por um ideal evangelizador e ecuménico que deveria dar continuidade à reconquista cristã, já concluída no território metropolitano: “E assi, não tendo a quem vencer na terra, vai cometer as ondas do Oceano” (IV:48). Ao subir ao trono, D. Manuel aprofundou esta lógica e foi conquistar o “mar largo”, como forma de cumprir a obrigação que lhe ficara de seus antepassados (cujo intento foi sempre acrescentar a terra cara)”, como se lê nos Lusíadas em IV:66-67, e cujo conceito fundamental se repete aliás ao longo da obra, cujo título evoca um povo entre a terra e o mar 6. 1

Também em Duarte Galvão se encontra uma lógica idêntica, nomeadamente quando elogiou ao Venturoso a “perseverante devação, e cuidado, em proseguir, e obrar por mar, e terra, guerra contra os mouros”7. A Torre de Belém sintetiza essa saída do território ancestral para, através das ondas, adquirir e cristianizar novas terras, respeitando uma missão sagrada também conhecida por Quinto Império8. O inimigo muçulmano era o grande adversário dessa tarefa ecuménica, o que realçava a importância operativa e simbólica do Magrebe 9. Por isso, tal como a fachada maior dos Jerónimos, também a “nau” (Torre de Belém) se encontra apontada a sul 10. Neste contexto, o simbolismo do monumento ribeirinho é particularmente subtil e elaborado, pois combina a primitiva cruzada metropolitana (≈ torre de menagem de “Beja”) e a actual missão ultramarina (≈ baluarte horizontal, “nau”). Por outras palavras, está-se perante uma torre continental que se metamorfoseia em navio oceânico. Fica aqui sintetizada a transição do próprio país, o qual, da primeira fase da monarquia (fundada por D. Afonso Henriques), evoluía de modo adventício para uma nova etapa, verdadeiramente imperial e liderada pelo Primus Rex D. Manuel, venturoso pela graça de Deus. Esta progressão nacional está aliás também inscrita na relação entre as estátuas do Infante e do arcanjo S. Miguel, na fachada maior do Mosteiro dos Jerónimos, conforme referido noutro lugar11. Reforçando a ligação entre os dois monumentos vizinhos, importa também notar como a Torre de Belém expressa uma outra evolução, esta especificamente relativa ao próprio D. Manuel – o duque de Beja que, pela divina providência, ascendeu ao trono e assumiu o papel de grande cruzado da Fé12. Isto realça o motivo pelo qual foi seleccionada a torre de Beja para modelar a parte posterior do monumento lisboeta, simbolizando a origem do messiânico D. Manuel, que evoluirá ele mesmo para um desígnio imperialista, construído sobre as rotas marítimas (i.e. a parte fronteira do edifício, sugestiva de uma nau). Em conclusão, a Torre de Belém é portanto uma solução de compromisso que une e harmoniza dois elementos distintos, e que em última análise fazem coincidir um monarca com o destino do seu povo.

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Notas Quanto à cronologia, nomeadamente a propósito do início dos trabalhos (1514), é coerente a dedução que Reynaldo dos Santos extrai dos documentos – confira-se A Torre de Belém, pp.39-40, 58-59, 77-78. Relativamente à data de termo, deverá ser considerado o ano de 1519 como referência, uma vez que Gaspar de Paiva passou então a habitar e a dirigir o edifício já funcional, sendo que uma finalização definitiva afigura-se no mínimo dúbia (cf. p.44, nota 3 – a informação desta nota é de facto importante, embora a interpretação de Reynaldo pareça menos consistente neste particular). 1

Os principais intérpretes dessa polémica foram Reynaldo dos Santos (leitura marítima) e PaulAntoine Evin (leitura terrestre). Sobre esta questão veja-se A arte do Renascimento e o renascimento da Arte, vol.1, 2004, p.174 (notas 502 e 503); e Reynaldo dos Santos – a cultura artística e a regeneração nacional, 2010, p.170. 2

Para mais sobre a conexão entre o Convento de Cristo e a Torre de Belém, veja-se A Síntese de Belém (online). 3

Em todo o caso, a própria “torre de menagem” evoca o “castelo” dos navios, ou seja, a parte posterior e mais elevada. A ideia de nau é ainda reforçada pelo facto de o monumento estar rodeado de água, e também de bocas-de-fogo à maneira dos navios de guerra. 4

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Cf. o estudo A Hespéria e os Jerónimos (online).

Sobre a ligação entre o “mar e a terra” veja-se por exemplo I:15, 28, 52, 80, 106; II:48; IV:14; V:14, 42; VI:27, 85; VIII:78; IX:86; X:90-91. Mais especificamente quanto à vocação marítima dos portugueses – “gente marítima de Luso” – veja-se I:42,62; II:21; IV:84; X:142. Sobre o simbolismo do Tejo e de Belém (relacionando-se indirectamente com a Torre), confira-se por exemplo X:10, 12, 37. 6

7

D. Galvão: Prólogo da Crónica de D. Afonso Henriques, p.29 [ed.1726].

Embora o conceito já então existisse, no século XVI ainda se procuravam em Portugal sinónimos para o “Quinto Império”, isto porque a dignidade imperial estava formalmente reservada ao eixo germano-austríaco. Neste contexto, uma das alternativas era a designação: “rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém mar em África, senhor da Guiné, da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia” (≈ imperador). 8

No estudo A Hespéria e os Jerónimos releve-se a importância do Magrebe na construção de uma grande potência ocidental ibero-marroquina, ligando as duas “Colunas de Hércules”. 9

Atente-se que numa perspectiva focada na Torre de Belém, existe aqui uma componente térrea e outra marítima. Contudo, ao alargar-se o horizonte naquela zona geográfica, o elemento térreo passa a ser representado pelo Mosteiro dos Jerónimos (e pela Capela de S. Jerónimo), enquanto o marítimo é dado pela Torre de Belém, que assume ainda mais o papel de nau (veja-se em nota anterior como a sua torre vertical corresponde ao “castelo” de um navio). 10

11

Cf. o estudo A Estátua do Infante-Cruzado D. Henrique (online).

A mesma lógica verifica-se no Convento de Cristo, cf. “A versatilidade manuelina de Tomar” in Três estudos sobre arte portuguesa (online). 12

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