(P) As camadas simbólicas da Custódia de Belém

July 2, 2017 | Autor: P. Martins Oliveira | Categoria: Estilo Manuelino, Gil Vicente
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AS CAMADAS SIMBÓLICAS DA CUSTÓDIA DE BELÉM Paulo Martins Oliveira

Inserindo-se na lógica artística do seu tempo1, a Custódia de Belém deve ser interpretada em vários planos sobrepostos, nomeadamente: 1. Os apóstolos em torno de uma coluna de luz (cilindro de cristal, ou viril), que começa por representar a Ascensão de Cristo ao Pai (figurado no topo). Uma transição similar do mundo visível para o invisível encontra-se por exemplo na Ascensão do Retábulo da Paixão de Cristo da Sé de Évora, também no Retábulo da Sé de Viseu, ou ainda no conjunto pictórico da Charola de Tomar, sendo que nestes casos ainda se observam os pés de um Cristo que desaparece nos céus. 2. Os apóstolos recebendo agora as inspiradoras (iluminadoras) línguas de fogo, que lhes permitiriam difundir a Fé pelo mundo. Por um lado, existe assim uma relação lógica entre o vidro “luminoso” e a pomba do Espírito Santo (estrategicamente também figurada na Custódia); e por outro lado nota-se uma continuidade natural entre a Ascensão e o Pentecostes, sendo que em ambos os casos a “luz” (o cristal) substitui a pessoa corpórea de Cristo (Jo.12:46). Trata-se de um aspecto fundamental relativo à Fé dos cristãos, ou seja, o acreditar-se em algo que escapa aos sentidos. 3. Na época dava-se grande importância à combinação entre a Vida Contemplativa e a Activa. Na Custódia, a primeira é inerente à contemplação (pelos discípulos) da subida de Cristo aos céus, enquanto a segunda está subjacente ao utilitário Pentecostes, que marca o início da evangelização do mundo pelos apóstolos (e seus sucessores, até D. Manuel). 4. A Ascensão implica uma despedida de Cristo, e o Pentecostes um reencontro com o Seu espírito inspirador, equiparado a uma iluminação (Jo.14:18-20). 5. A noção de reencontro é enfatizada através dos conceitos da eucaristia e da transubstanciação, nomeadamente quando colocada a hóstia consagrada (Corpo de Cristo)2. A Custódia

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de Belém revela-se assim bastante versátil e coerente em termos de significado, com ou sem a hóstia. 6. Na mesma peça sublinha-se o conceito de reencontro enquanto promessa e recompensa para os verdadeiros crentes que, no Fim dos Tempos, se reunirão na Jerusalém Celeste, a qual “não precisa do Sol ou da Lua para a alumiar. A glória de Deus [Pai] ilumina-a e a sua lâmpada é o Cordeiro [Filho]” (Ap.21:23). 7. Reforça-se pois o simbolismo do elemento de cristal enquanto “lâmpada” iluminadora de Cristo. Por seu turno, isto explica melhor o facto de os indivíduos ajoelhados estarem descalços, ou seja, mortos e ressuscitados (por sobreposição ao papel de discípulos humildes). 8. Nesta representação paradisíaca, a Custódia de Belém concilia a humilde luz branca (Bernardo de Claraval) com a exuberante e rica Jerusalém Celeste (abade Suger). 9. A referida Jerusalém Celeste será composta por uma parte urbanística/arquitectónica, e por outra ajardinada3. Na metade superior da Custódia predomina a vertente edificada, e na base a dimensão naturalista. 10. A relação entre essas duas partes introduz uma evolução vertical (≈Ascensão) do Éden original (base, alfa, Génesis, Antigo Testamento) para a Jerusalém Celeste (topo, ómega, Apocalipse, Novo Testamento), realçando-se a unidade e coerência das Escrituras. 11. A base naturalista também representa o quotidiano mundo terreno, enquanto ponto de partida, havendo então que penosamente ascender ao mundo superior (através da luz inspiradora de Cristo). 12. Neste contexto, o simbolismo do caracol (na base) reporta o lento e difícil esforço de “ascensão” dos fiéis em geral4. 13. Este caminho ascensional culminará, na Jerusalém Celeste, com os eleitos a poderem provar da Árvore da Vida (imortalidade), com a qual finaliza a própria Bíblia (Ap.22:19-21). A Custódia sugere assim o perfil estilizado de uma árvore. 14. Na peça está igualmente representada a cena da Anunciação (nas duas figuras menores que flanqueiam o círculo dos apóstolos), enfatizando-se a ideia de promessa e de reencontro, uma vez que o futuro nascimento de Cristo era também associado à Sua própria ressurreição (Jo.16:20-22). 15. A mesma cena da Anunciação celebra a descendência de D. Manuel (vejam-se as cronologias), assegurando-se a continuidade do ciclo imperial inaugurado pelo Venturoso5.

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16). Ao topo, a Custódia apresenta simbolicamente D. Manuel (≈ Pai) como um conciliador e unificador da nobreza lusitana (≈ apóstolos), permitindo que o país iniciasse a etapa imperial da sua História. Neste âmbito, D. Manuel é associável ao Imperador Clarimundo, i.e. a claridade/luz do mundo (personagem literária criada por João de Barros). 17. Simbolicamente figurado no topo, e aí segurando a orbe imperial, D. Manuel apresenta-se alegoricamente como um imperador alternativo ao primo e rival Maximiliano Habsburgo. Do mesmo modo, os nobres portugueses reunidos em círculo correspondem aos Eleitores do Sacro Império (que por sua vez eram a versão secular dos cardeais, os quais por seu turno ocupam formalmente o lugar dos apóstolos originais). Em suma, este fruto artístico do génio de Gil Vicente deve ser entendido como uma peça cuidadosamente desenhada para sintetizar diferentes assuntos teológicos, relacionados com o desaparecimento físico de Cristo e respectiva substituição quer pela hóstia, quer pelo luminoso Espírito Santo, que conduzirá os fiéis de uma estado inferior para a resplandecente e redentora Jerusalém Celeste. Ao mesmo tempo, e sempre desdobrando os mesmos elementos visuais, a Custódia de Belém exalta D. Manuel como o líder secular da Idade do Espírito Santo, ou seja, aquele que trará paz à nação e concórdia ao mundo, sendo portanto o genuíno Imperador da Cristandade.

Disponibilizado para consulta Setembro de 2015

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NOTAS Sobre essa versatilidade vejam-se estudos anteriores (e.g. A Última Ceia de Leonardo e as três camadas, ou A configuração de Torre de Belém, por exemplo). 1

Acrescente-se que muitas custódias, em vez do cilindro, apresentam antes uma abertura circular, frequentemente rodeada por raios que insinuam o Sol (luz de Cristo ≈ Apolo, Juízo Final de Michelangelo). Esse círculo também simboliza e adaptava-se a uma hóstia, ou seja, o Corpo de Cristo, inserindo-se na mesma lógica compósita do cilindro de cristal (substituição do verdadeiro corpo por um símbolo iluminado pelo Espírito Santo; a propósito, vejam-se igualmente os painéis centrais superior e inferior da Retábulo de Gand, onde no altar aí figurado o corpo é substituído por um cordeiro (≈ custódia). A relação entre corpo e luz conhece outros exemplos interessantes na arte europeia, caso do Retábulo Bladelin/Middelburg. Aqui, o inspirador Sol com o Menino (volante direito) também alude ao Pentecostes, introduzindo-se a Ressurreição (renascimento) de Cristo bem como a promessa de reencontro no Fim dos Tempos. 2

A suposta decoração vegetalista da arquitectura gótica é na verdade o resultado da fusão entre essas duas vertentes (edificação+jardim), desempenhando por isso um importante papel simbólico. Confiram-se os capítulos introdutórios de A Janela de Tomar. 3

O caracol era já um símbolo medieval que aludia a esse lento e difícil esforço de elevação. Uma variante deste conceito evolutivo é o labirinto simbólico colocado logo à entrada (≈ base, ponto de partida) de alguns templos medievais. A propósito da Custódia aqui em análise, note-se que a respectiva base apresenta elementos que, por seu turno, são já propriamente paradisíacos, ligando-se à camada simbólica do Éden original. Assim, os diferentes pormenores devem ser decompostos e associados às respectivas camadas interpretativas. A mesma lógica verifica-se ainda na “decoração” de livros e documentos da época. 4

Com toda a probabilidade, a encomenda da Custódia também visava celebrar o nascimento de D. João (III), observando-se que a importância da descendência irá estar igualmente em destaque no programa iconográfico da Janela manuelina de Tomar. De facto, o Venturoso testemunhara as vicissitudes de D. João II e dos Reis Católicos (todos ficando sem descendência masculina legítima), sendo que o próprio D. Manuel vivenciara esse risco com a morte do primogénito D. Miguel da Paz. 5

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