(P) Garcia Fernandes e o Casamento de Santo Aleixo

June 28, 2017 | Autor: P. Martins Oliveira | Categoria: História De Arte Em Portugal
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GARCIA FERNANDES E O CASAMENTO DE SANTO ALEIXO PAULO MARTINS OLIVEIRA

Na arte portuguesa, uma das obras de interpretação controversa tem sido o tradicionalmente designado Terceiro Casamento de D. Manuel I, pintado por Garcia Fernandes em 1541 e hoje exposto no museu lisboeta de S. Roque.

Acerca desta obra, reveste-se da maior importância a leitura originalmente desenvolvida por Joaquim Oliveira Caetano, segundo a qual tratar-se-á na verdade do Casamento de Santo Aleixo. A lógica argumentativa apresentada é de facto bastante coerente e sólida1, não havendo razões fundamentadas para que ainda se coloquem reservas ou hesitações quanto à reformulação do título.

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Confiram-se as respectivas conclusões relativas a Garcia Fernandes e à Misericórdia de Lisboa, publicadas em 1998. 1/7

Por seu turno, no presente contributo procura-se agora argumentar que O Casamento de Santo Aleixo constitui uma obra organizada em diferentes camadas interpretativas2, que foram cuidadosamente sobrepostas e conectadas por Garcia Fernandes. Assim, e de modo sistemático: 1) A pintura começa de facto por representar o casamento de Santo Aleixo (camada oficial).

2) Santo Aleixo fora obrigado a casar-se contra a sua própria vontade.

3) A ideia essencial é a de um casamento forçado. Na pintura em questão, é todavia a noiva quem, na verdade, ali está contra a sua vontade, e não o noivo.

4) Ou seja, Garcia Fernandes recorreu ao matrimónio de Santo Aleixo para aludir sub-repticiamente ao infame terceiro casamento de D. Manuel I, com D. Leonor (Eleonor, ou Eleonore) de Áustria, originalmente comprometida com D. João, filho e herdeiro do próprio Venturoso.

5) Isto explicará a interpretação tradicional do quadro, ou seja, parece ter prevalecido o significado subjacente, e não o oficial, tendo em conta a postura das figuras centrais.

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Trata-se de uma lógica que pode ser identificada em várias outras obras artísticas. Veja-se por exemplo As camadas simbólicas da Custódia de Belém, ou The composite episodes in Christian Art. 2/7

6) Na altura era comum a dissimulação de letras e outros símbolos (através da modelação de pregas de roupa, ramagens de árvores, etc.). Estas inclusões tinham diferentes objectivos, incluindo a identificação de personagens3.

7) No ventre da noiva é visível um E, ou seja, Eleanor (Leonor).

8) Imediatamente ao lado identifica-se um J, ou seja, D. João4.

9) Deste modo, o mesmo casamento também representa o desejado matrimónio (nunca ocorrido) entre D. [E]Leonor de Áustria e D. João, o qual se encontra aqui fisicamente sobreposto ao pai, D. Manuel5.

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Confira-se The hidden letters in old paintings, e Álvaro Pires, Mestre da Lourinhã. Para além dos casos aí apontados, existem numerosos outros que importa notar, pois permitem renovar as perspectivas sobre muitas obras de arte. 4 A propósito do quadro de Garcia Fernandes, as letras J e E no ventre da noiva podem, ainda, simbolizar os dois noivos: João e Emanuel (D. Manuel). 5 A este propósito veja-se por exemplo um outro contributo, sob o título The merging of identities in old paitings. 3/7

10) O escandaloso matrimónio com D. Manuel levara D. Leonor a ser efectivamente considerada uma infeliz mártir, vítima de um monarca lascivo6. Exemplo comparativo: Políptico de Santa Auta (MNAA), detalhes

det.1

det.3

det.2

Representações alegóricas de D. Leonor de Áustria, como serena mártir (det.1), e como verdadeira noiva do jovem príncipe D. João (dets.2 e 3).

det.4

Retrato alegórico da nova rainha de Portugal D. Leonor de Áustria, tendo ao fundo a também infeliz homónima D. Leonor de Avis, antiga rainha.

11) Este Políptico de Santa Auta (c.1520) foi executado pouco depois do controverso matrimónio de D. Manuel com D. Leonor de Áustria (1518). Já o Casamento de Santo Aleixo foi pintado mais tarde (1541), tendo D. João entretanto casado com D. Catarina de Áustria (irmã da referida D. Leonor de Áustria).

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Este aspecto poderá ter contribuído, em parte, para a figuração de D. Manuel como o bíblico rei David (2Sm.11:2-4), como se observa em diversos testemunhos artísticos da época. 4/7

12) Quando, em 1541, Garcia Fernandes alude ao casamento nunca ocorrido entre D. João e D. Leonor, está-se agora implicitamente a criticar D. Catarina de Áustria.

13) A este propósito, desde muito cedo que D. João era tido como uma figura de fraca vontade e determinação, sendo D. Catarina de Áustria responsabilizada por grande parte do cunho ultra-conservador que acabaria por predominar no reinado joanino. Exemplo comparativo: Retrato de D. Catarina de Áustria com Santa Catarina (MNAA)

det.1

det.2

det.3

D. Catarina de Áustria (na verdade nascida em Espanha, Torquemada) apresenta uma face demoníaca em perfil (det.1)7. Já na base do seu vestido está modelada uma forma ambiguamente sugestiva, de cariz não elogioso (det.2). Note-se ainda que as feições da esposa de D. João III são projectadas nas da santa homónima (det.3), a qual surge todavia dignificada, provavelmente simbolizando a infortunada irmã D. Leonor de Áustria, que após a morte de D. Manuel não teria melhor sorte em França.

14) Assim, no Casamento de Santo Aleixo, a sobreposição de um matrimónio nunca ocorrido (D. João com D. Leonor) expressa uma nostalgia especulativa, ou seja, algo que poderia ter evitado um mal (D. Catarina de Áustria).

7

Embora mais subtil, existe outra face no lado oposto da cabeça de D. Catarina, olhando para o lado esquerdo. 5/7

15) Este tipo de exercício não era de todo inédito e, a propósito do príncipe D. João, atente-se a uma interessante ambiguidade satírica no MNAA, utilizando duas figurações de jovens príncipes (Inv.27 Pint., Inv.31 Pint.).

16) De facto, estas composições dinâmicas eram relativamente comuns, quer na arte portuguesa, quer na europeia em geral.

17) Paralelamente, o Casamento de Santo Aleixo deverá também evocar o tema do Casamento da Virgem. Exemplo comparativo: O Casamento da Virgem (MNAA)8

18) Mas ainda a propósito do Casamento de Santo Aleixo, existem outros elementos de interesse a considerar, nomeadamente quanto a três indivíduos em concreto: o primeiro à esquerda; o celebrante central; e a suposta figura feminina à direita9.

8 9

Em alguns detalhes, esta obra (c.1523) parece também aludir ao terceiro casamento de D. Manuel. Este e outros aspectos serão abordados por associação aos temas principais a que dizem respeito. 6/7

19) De notar igualmente que a obra desenvolve-se numa completa simetria, propositadamente quebrada pela presença do encomendador do quadro (cujo pai homenageado constitui uma típica duplicação envelhecida, em primeiro plano)10.

Em suma, o livre-pensador e talentoso Garcia Fernandes insere-se num cotexto caracterizado por uma excepcional versatilidade criativa, onde as pinturas constituem verdadeiros laboratórios e compêndios polissémicos.

Disponibilizado para consulta Outubro de 2015

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Na Crónica de D. Manuel (IV:XXXIII), Damião de Góis destaca o papel de um Álvaro da Costa no processo que levaria D. Leonor a casar antes com o Venturoso. Fica em aberto a possibilidade de, através do Casamento de Santo Aleixo, existir orgulho (ou auto-crítica?) nessa intervenção diplomática. De qualquer modo, foi de facto inscrita uma perspectiva satírica por parte de Garcia Fernandes. 7/7

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