Padrões de intenção e ordem pictórica

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Universidade Federal de Pernambuco – CAC – dDesign Programa de Pós-graduação em Design

Padrões de intenção e ordem pictórica Eduardo Souza

Recife 2015

Introdução Ao ler Baxandall, tive a sensação de que algo não estava tão explícito em suas explicações históricas dos quadros: algum fator muito significativo de que ele não explicitava. Muito próximo ao final do Padrões de Intenção, ele iluminou esse aspecto. Parece que quanto mais distante (cronologicamente, sobretudo) uma cultura é da nossa, mais suas produções deixam de ter um caráter estético e passam a ter relevância histórica. Evidentemente que, enquanto uma janela para uma outra cultura, o objeto pictórico é, também, histórico, mas sua relevância factual, aquilo que lhe é própria—sua pictorialidade— vai evaporando. Acredito que, como Baxandall fraseou categoricamente, o médium pictórico é o meio pelo qual as pinturas significam. Ao contrário do que polarizações podem gerar, evidentemente não significa que não visamos instituir um formalismo absoluto—os aspectos culturais, sociais, econômicos, afetivos, psicológicos, etc, também podem ser extraídos de uma obra de arte. Entretanto, me parece mais comum que a obra enquanto objeto pictórico seja esquecido em detrimento a interpretações e elucubrações. Esse ensaio é uma tentativa de interpretar a obra de Baxandall centrada no conceito de ordem pictórica para contrapor às explicações históricas dos quadros da crítica inferencial—atitude muito bem estabelecida por ele próprio.

Um direcionamento à ordem pictórica “Nós não explicamos um quadro: explicamos observações sobre um quadro”. Esse é o ponto de partida epistemológico com que Michael Baxandall inicia o seu Padrões de Intenção – A explicação histórica dos quadros (1985). O que se segue são análises feitas através de um diálogo vivo, formando a fundamentação da crítica inferencial—não seria tão distante chama-lo de manifesto, se quisermos. Entre seus objetivos está conciliar a polarização entre crítica e história de arte—o que fica mais evidente, por exemplo, no seu artigo Language of Art History (1979). O nosso, no entanto, pode ser algo que Baxandall sequer previu: entender como o conceito de ordem pictórica é tratado, ainda que indiretamente, em suas análises. De imediato, percebemos sua capacidade de diálogo: mesmo fazendo uma explicação histórica dos quadros, nunca perde o quadro de vista. A crítica inferencial encara o tato crítico e domínio histórico como quase a mesma coisa. Além disso, é fortemente ostensiva—por mais que essa característica seja própria do campo, ela é subvalorizada. Assim, a construção da perspectiva histórica nunca é o fim da crítica inferencial. Seu fim é a melhor apreciação do quadro—estética e historicamente. As análises se desenrolam leves e diretas, empilhadas de referências—vale dizer que nenhuma das aparentes digressões é sem propósito. É constante que Baxandall nos forneça respostas provisórias em sua argumentação, a fim de desembaraçar um problema por vez. Por um lado, manter o todo da argumentação em mente demanda algum esforço; por outro, quase sempre há uma revisão ao iniciar cada sessão. Isso reflete, também, a posição de Baxandall com relação à própria crítica: ele não quer instituir uma única interpretação. O seu diálogo traz implicações que podem ser problemáticas: parece fácil perder a mão ao referenciá-lo. A crítica inferencial não parece ser passível de generalizações e categorizações; ela se torna uma boa ferramenta analítica somente em contato direto com um caso específico—é fortemente ostensiva e viva. Várias das noções que adota “são gerais demais para ser útil em casos particulares”. Entretanto, “sua utilidade está em ser uma fórmula não descritiva (...), que permite incluir as características específicas de casos particulares”.

A estrutura é didática: Baxandall faz uma incursão na história da arte em três partes, de Picasso a Piero della Francesca, no século XV. Antes disso, entretanto, se propõe à análise da Ponte do Rio Forth, na Escócia, para testar seu método idiográfico. Ele parte da “ideia de que é possível explicar objetos históricos considerando-os como soluções a problemas que aparecem em determinadas situações, e tentando reconstruir uma relação lógica entre esses termos”. São apresentados os primeiros conceitos da crítica inferencial, como os de Encargo e Diretrizes—aspectos que devem ser obedecidos e que motivaram a criação de algo. A questão implicitamente sublinhada, parece, é a desmistificação da obra de arte. A ponte, enquanto objeto histórico, é evidência de uma postura individual frente a um conjunto de aspectos circunstanciais, assim como, por exemplo, O Retrato de Kahnweiler, de Picasso; nesse sentido, eles “não são necessariamente diferentes (...) [as diferenças] parecem ser mais de grau de equilíbrio de seus elementos”. Ainda assim, fica claro que o método utilizado para a Ponte do Rio Forth precisa ser adequado para essa outra categoria de objeto. É necessário definir melhor alguns aspectos da crítica. Um dos termos mais passíveis de confusão é o de intenção. Em seu uso corrente, a palavra pode significar as opiniões e o estado de espírito de indivíduos, mas “a intenção não é um estado de espírito construído, mas uma relação entre o objeto e suas circunstâncias”, ou seja, ela “aplica-se mais ao quadro que aos pintores”. A reconstituição que fazemos “não é uma narrativa, mas uma representação de atividade de reflexão ou de racionalidade intencional referida às circunstâncias, cuja existência e sentido, nunca é demais insistir, se realiza no confronto ostensivo” com o objeto em questão. Em relação à ponte, é menos óbvio definir as circunstâncias de Picasso (seu Encargo e Diretrizes), ou separar as etapas de concepção e execução. Fica claro, então, que, para Picasso, “o Encargo em si não tem forma; as formas começam pelas Diretrizes”. Uma chave para entende-las é o mercado de arte de sua época: era uma cultura em que convivia. O mercado “constitui um meio de comunicação não verbal” em que “ambas as partes façam escolhas e que toda escolha feita por um grupo tem consequências para o espectro de escolhas possíveis para ambos os lados”. Cada escolha de cada uma das partes vai constituir um padrão de transações, a que Baxandall nomeia troc. Portanto, Picasso “dispunha de uma multiplicidade de opções, e cada uma lhe permitia apoiar-se numa série de expectativas” que formavam seu Encargo. Ou melhor, a parte histórica de seu Encargo.

A generalidade do troc é evidente. Aqui, uma das partes—o mercado de arte—fundamenta algumas de suas significações “de maneira confusa nas indicações oferecidas por fatos estruturais, e não nas expectativas expressas”, que, por sua vez, estão relacionados a um sistema econômico, embora nem sempre o reflitam de modo imediato ou preciso. O troc é a ideia a que essas indicações vão se articular para que se tornem significativos para a crítica. “Até as ideias mais gerais somente adquirem significado definido quando consideradas à luz de contextos pictóricos específicos—quando o geral se une ao particular”. Na pintura, os processos de concepção e execução se interpenetram constantemente, pois “cada pincelada modifica um quadro”. Assim, é preciso entende-la como um fluxo intencional constantemente mutável para resolver as diretrizes e problemas (primários e secundários). Há uma sequencia inumerável de intenções que se formam no ato de execução do quadro—inclusive aquelas decisões não fazer ou deixar como está. Picasso tinha problemas primários que se inseriam em um todo maior da história da arte—a exemplo, a tensão entre a bidimensionalidade e a tridimensionalidade. Assim que ele “confronta esses problemas com seus meios materiais” surgem outros subproblemas—a preocupação central do pintor— que são respondidos, com novos repertórios a cada quadro. O Retrato de Kahnweiler representa não só um passo na evolução do próprio Picasso, como também “um episódio numa sequencia de formulação e resolução de problemas”. Por isso, o que veio antes e depois de um quadro nos dá uma perspectiva do conjunto de intenções do pintor, de sua evolução. Aqui, as características pictóricas ganham papel central. Para Picasso, o encargo era habitual; ele lidava com as questões imediatas da pintura. Os problemas que ele achou e se propôs “são reais e importantes tanto para a pintura quanto para o mundo visível”. Mesmo que ele não tivesse consciência dos seus critérios, ele tinha de os possuir para saber quando algo era achado— daí sua famosa frase: “eu não procuro, eu acho”. Enfim, “ter critérios para avaliar o próprio trabalho é agir com uma intenção”. Baxandall considera a análise ainda muito esquemática e geral. A partir da análise de Uma dama tomando chá, de Chardin, visa dar um enfoque mais apurado, definindo a que outros fatores do troc a crítica de arte pode se associar. Dito de outra forma, deve-se “examinar até que ponto se pode pensar para fins críticos nas relações entre o interesse visual dos quadros e a reflexão sistemática (...) que faz parte da cultura (...)”, dado que no troc, um pintor apenas desenvolve uma melhor sistematização das ideias.

Grande parte do terceiro capítulo monta o cenário de Chardin ao pintar o quadro e o explica à luz do conceito de nitidez corrente no “lockianismo vulgar” da época. Não é difícil afirmar que algumas noções correntes de nitidez poderiam nos ajudar descrever o quadro. Porém, essa construção da mentalidade histórica se mostra necessária, mas não suficiente para compreender o quadro: ela pode ajudar a descrevê-lo, mas não ajuda a explicá-lo. Para isso, as características pictóricas precisam vir à mesa. Chardin—assim como Picasso e qualquer outro pintor—está inserido na história da arte. Em seu troc, está a relação com outros trabalhos holandeses, além de suas próprias questões com a luz em seus quadros. “Uma parte do problema dele, portanto, era de saber como conciliar esse esquema de uso da luz, de grande função dramática, com o tema nórdico do ajuntamento de frutas e coisas inanimadas e as cenas cotidianas da vida burguesa”, enquanto que as questões da visão nítida, se entraram em suas diretrizes, “deve ter sido no nível da crítica e da autocrítica”. Os conceitos internalizados por Chardin servem para nos ajudar a compreender melhor a obra na medida em que, pictoricamente, isso se justifica segundo as intenções do pintor. O uso da percepção é essencial para Chardin na sua narratividade “camuflada na despretensão de sensações que não duram mais do que alguns instantes”. Em sua época, já se questionava o que a pintura representa, já que um desenho técnico representaria a substância de forma muito mais confiável—em oposição às sensações, no lockianismo vulgar. Uma dama tomando chá, “pode representar uma percepção fugidia (...). Mas também é possível que o quadro represente uma percepção global e duradoura, o registro de vários níveis de atenção (...). Ou ainda, pode ser o registro dessa segunda forma de percepção sob a falsa aparência da primeira”. A narrativa é fundamentalmente pictórica, um “registro de atenção reconstituído que nós mesmos, guiados pela nitidez e por outros elementos, sumariamente voltamos a reconstituir”. A questão central reservada para O Batismo de Cristo de Piero della Francesca é saber até onde é possível penetrar nas estruturas de intenções e qual é a validade crítica dessas observações. Mesmo que este seja de fato o objetivo principal de Baxandall, é nessa busca que ele explicita o conceito que nos parece o mais importante e permeia todo o livro, o de ordem pictórica. As questões linguísticas do início do livro são retomadas e agravadas por tratar de uma cultura muito diferente da nossa. Reconhecendo a diferença entre a perspectiva do nativo e do observador, a mera utilização do termo commensurazione para explicar os padrões de

intenção de Piero já se mostram eficientes. A impossibilidade de remontar a perspectiva do nativo é óbvia, usar isso como um argumento contra o esforço de fazê-lo é o mesmo que “dissuadir alguém de treinar corrida ao dizer que ele nunca vai correr uma distância em absolutamente nenhum segundo”. À medida que avança, Baxandall rejeita explicações da alta iconografia, porque “elas se apoiam em elementos adicionais”, exegéticos. Essas explicações podem ser substituídas por outras—mais simples—que obedeçam às três posturas autocríticas de legitimidade, ordem e necessidade crítica e estejam diretamente ligadas às características pictórica da obra. A partir de uma primeira de análise, que é usada para testar a aplicação dessas posturas e delinear as principais peculiaridades do quadro, ele propõe uma interpretação simples do quadro. Esta última é guiada pelas posturas autocríticas e um forte conhecimento de causa. O fio condutor da análise são os problemas pictóricos que Piero, enquanto pintor, encontrou. Por exemplo, ele teve de lidar com uma situação nova: compor o batismo em um formato vertical. Isso criou um problema que ele teve de resolver de acordo com sua linguagem pictórica, que não permitiria espremer os anjos em primeiro plano, comprometendo a monumentalidade da pintura—uma forte característica de sua linguagem. Com essa postura, salta aos olhos o que faz da crítica inferencial muito mais do que uma explicação histórica dos quadros: a consciência aguda de que os significados simbólicos “(…) não são imediata ou individualmente necessários para a intenção que nos parece estar na origem da peculiar organização de formas e cores que vemos nessa pintura”. O que emerge como potencial nesse tipo de crítica é, sobretudo, a autoridade da ordem pictórica. “São eles [os dados visuais], não os símbolos, a linguagem do pintor”. De fato, “é difícil ressaltar, numa explicação verbal de um quadro, a autoridade desses dados visuais em comparação com a significação desta ou daquela coisa codificada em um dicionário de símbolos”. Entretanto, “a autoridade deles é fundamental, se realmente levamos a sério que pintura é uma arte visual”. Baxandall tenta explicar o que nos parece o conceito-chave do Padrões de Intenção, um “elemento impreciso da organização da pintura (...): parece tão frágil, tão estético, e toma tanto tempo”: a ordem pictórica. Há uma questão em especial que marca O Batismo de Cristo: a relação entre o plano e o espaço pictórico—um problema que lembra aquele defrontado por Picasso, séculos

depois. O plano do quadro estava perdendo seu peso para o espaço, em uma composição fortemente baseada na profundidade. Piero parece ter criado paradoxos de acomodação em diversos elementos para equilibrar a composição, “como se quisesse contrabalançar num nível infra-representacional a energia de sua representação no espaço profundo”. Embora reconheça que essas explicações seriam facilmente rejeitadas pelo campo da crítica, Baxandall tem como objetivo primário, não convencer estar certo, mas “afirmar claramente uma atitude: a de que este é medium pictórico através do qual as pinturas significam”. Para ele, a ordem “pode ser observada em todas as coisas, desde a forma da pincelada de um pintor barroco até a reestruturação da experiência visual implícita n’O Retrato de Kahnweiler, de Picasso; ou ainda na manipulação da visão distinta por Chardin. Atrás de uma grande pintura supõe-se uma grande organização—da percepção, da emoção, da construção”. A crítica inferencial, feita e construída de forma dialógica, não tenta categorizar as obras entre um pólo estético e outro histórico; é capaz de identificar e respeitar o médium pictórico. A finalidade da crítica não é se arrogar a autoridade da interpretação mais correta: o que determinará o valor de cada uma delas é se o público puder apreciar uma obra com mais clareza. O público é o teste. Neste sentido, quanto mais científica for a história, mais ela se torna crítica: os resultados e métodos precisam ser mostrados e testados; se o resultado não for efetivo, aquela alternativa é rejeitada.

A ordem pictórica como unidade de análise Embora o subtítulo possa nos apontar em uma direção, Baxandall parece utilizá-la como uma premissa para escavar “(…) o decisivo é um elemento impreciso da organização da pintura que, numa situação normal, eu não tentaria explicitar: parece tão frágil, tão estético, e toma tanto tempo”. A explicação histórica dos quadros é evocada por toda tradição da crítica de arte, evidenciando-a ou negligenciando-a. O terceiro caminho é este que Baxandall pretende trilhar com a crítica inferencial: conciliar a perspectiva histórica com a prioridade estética de uma pintura. Para ele, o material histórico contribui para as análises formais, e não o contrário, em que a arte é tratada como um sintoma de um padrão histórico geral. A proposta é audaciosa, para dizer o mínimo: além de desatar o nó entre crítica e história, ele analisa a obra de arte com uma posição mais pragmática, circunstancial, reconhecendo a singularidade do objeto pictórico. No entanto, o que parecem problemas distintos são causa e consequência. Baxandall é muito prudente, muitas vezes contra-argumentando suas propostas, a fim de criar interpretações mais coesas para a dos quadros. Parece relevante, antes de nos aprofundar na ordem pictórica, explicitar a fundamentação filosófica da crítica inferencial. Quando Baxandall afirma que explicamos apenas observações sobre um quadro, escutamos o eco da virada linguística que ocorreu ao longo do século XX. Apesar desse movimento já ser questionado como uma ontologia para a realidade, ele é muito significativo para a crítica de arte. Disso, decorre a ostensividade do seu procedimento: a linguagem não é o objeto da crítica de arte, a obra o é. Esta é a primeira razão pela qual priorizamos as características pictóricas. Um fundamento implícito em suas análises é o de rejeitar explicações (exageradamente) exegéticas; daí, também, provém a força da autoridade da ordem pictórica. A justificativa parece óbvia, mas é o que parece passar desapercebido ou subvalorizado na maior parte dos posicionamentos críticos: pintura é uma arte visual. Dessa forma, é necessário que respeitemos sua autoridade. “Necessário”? Segundo que critérios ou parâmetros? Autoridade é, a um só tempo, outorgada e imposta; para obedecê-la, essas duas transações precisam ser cumpridas.

A imposição da ordem pictórica é simples de demonstrar: basta-nos apontar para uma imagem. A pintura é constituída por uma visualidade de fato. Poderíamos discutir se compartilhamos de uma mesma realidade factual, mas não vamos às ontologias. Para o que nos interessa, há um objeto com características pictóricas das quais não podemos nos desviar. Caso contrário, a explicação não seria direcionada ao objeto pictórico, mas a um outro referente (a que ele se relacionaria). Algo assim pode ser adotado por um historiador que, para ilustrar o período do Renascimento Italiano se utilizasse do objeto histórico que é um desenho de Brunelleschi. Ora, mas esse mesmo desenho pode, também, ser um objeto pictórico para o crítico de arte. Evidencia-se, então, que um objeto pode ser, a um só tempo e para cada observador, pictórico, histórico, afetivo, político, ideológico, econômico... Todo objeto é infinitamente multifacetado. Diante disso, é nossa postura crítica que definirá o grau de autoridade da ordem pictórica. Ao priorizar a análise dos dados visuais de um quadro, automaticamente outorgamo-lhe autoridade. Outras vias são possíveis, naturalmente. As explicações mais exegéticas se utilizam de recursos externos ao objeto pictórico para isso: outros documentos, textos críticos, evidências históricas. Entretanto, é a partir dos dados visuais que as pinturas significam; se queremos analisar pictoricamente uma obra, a ostensividade é o que nos dará coerência analítica, o que implica no respeito à ordem pictórica—elementos exegéticos auxiliarão, sem dúvida. Esta é a segunda razão pela qual priorizamos as características pictóricas. Compreender o campo cultural de onde o artista estrutura o troc nos faz reconhecer, nomear melhor aquilo que o quadro nos mostra. Daí vem a preocupação linguística da explicação dos quadros: nomear algum aspecto pictórico como o artista poderia tê-lo feito em seu tempo colabora com a explicação verbal. Com o apoio do conceito de nitidez do lockianismo—um dado histórico—Baxandall consegue re-conhecer aspectos pictóricos de Uma dama tomando chá; não o contrário. Conhecer novamente é olhar um quadro com outros olhos: olhar a narrativa da percepção de Chardin é imediato e sincrônico, reconhece-la, não. Poderíamos dizer, então, que a explicação de um quadro nomeia aspectos pictóricos que nos ajudem a reconhece-lo melhor. Nesse aspecto, o crítico tem um papel muito parecido com o do escritor: nomear os aspectos que nos fazem estranhar um quadro— que tomam nossa percepção e nos fazem contemplá-lo—ou seja, que fazem dele um bom quadro. A diferença crucial é que o crítico se utiliza de uma linguagem demonstrativa e fundamentalmente ostensiva, enquanto o escritor precisa construir um universo que se

sustente na palavra. A crítica literária, por outro lado, se vale da mesma linguagem do seu objeto e é, portanto, metalinguística. Portanto, uma crítica que não se outorgue tanta autoridade é capaz de respeitar a ordem pictórica e produzir explicações mais estreitamente conectadas ao objeto pictórico. É essa, acreditamos, a fundação da crítica inferencial que ele propôs.

Uma análise pictórica Para tentar concretizar uma crítica que prioriza a autoridade pictórica—uma ideia bastante geral—, vamos associá-la às questões específicas de um objeto pictórico. Não poderíamos classificar essa análise como uma crítica inferencial, pois não dispomos de dados suficientes: a história da arte, do gênero, do autor ou da própria temática. Vale ressaltar: acreditamos que a crítica inferencial prioriza os aspectos da ordem pictórica, mas não é exclusivamente formalista. Os dados históricos são necessários para uma boa crítica inferencial. O que estamos realizando é meramente uma análise pictórica. A Chegada de Shaun Tan é mais facilmente classificado como um romance gráfico (graphic novel): em geral, uma narrativa em arte sequencial que possui estrutura bem diferente das histórias em quadrinhos “de linha”. Esses romances gráficos tendem a se diferenciar, também, pela temática e tom das histórias que contam, aprofundando nos aspectos psicológicos dos personagens, por exemplo. Enquanto arte sequencial, a narrativa se dá em duas instâncias: de cada quadro com os demais e o quadro isoladamente. Os recursos utilizados para construir a sequencialidade, ou seja, entre quadros, derivam fortemente da linguagem cinematográfica: os cortes, enquadramentos, planos, e movimentos de “câmera”—sobretudo pan e zoom (Figura 1)— evocam os de um filme da década de 50. Talvez essa sensação derive, também, da monocromia da narrativa, à medida que os desenhos são todos feitos com grafite e apenas matizados com alguma cor (Figura 2)—geralmente uma variação de sépia—a depender do humor da cena.

Figura 1: Um exemplo de uma narrativa bastante inspirada no cinema, sobretudo pelo zoom out da cena.

Figura 2: Enquanto o “branco” é mais acinzentado e frio no cenário urbano, ele esquenta e amarela quando os personagens vão para um local ao ar livre. Observar também que a cor fora dos quadros é branca, pois a sequência faz parte da história principal.

Os planos mais abertos, que ocupam páginas inteiras, poderiam ser comparados a pinturas, no que diz respeito à sua narrativa interna (Figura 3). As técnicas e princípios de composição, enquadramento e leitura, por exemplo, não se alteram. Entretanto, a narrativa se apóia menos em uma “narrativa da percepção” como Chardin ou Picasso, e mais em uma representacional (ou ilustrativa) de Piero della Francesca, se pudermos usar as análises de Baxandall como parâmetro. A diferença entre as obras de Piero e Shaun Tan poderia ser a natureza do “texto de apoio” que o objeto pictórico representa: o primeiro é o texto bíblico, enquanto o segundo é o próprio romance. Essa diferença se torna mais evidente ao perceber que A Chegada não possui texto: sua narrativa se dá exclusivamente através de dados pictóricos e sua sequencialidade. Por exemplo, o recurso para identificar um flashback é a mudança da cor das margens: enquanto a história principal tem a cor da página branca, as histórias auxiliares as tem preta ou com texturas (Figuras 2 e 3).

Figura 3: A figura acima é uma página dupla entre várias do romance. A composição é cuidadosamente baseada na diagonal. A narrativa interna a esse quadro comunica da mesma forma que outras pinturas ou desenhos: pictoricamente. Observar também, nas bordas, o espaço externo ao quadro é preto: se trata de um flashback.

Por fim, a linguagem narrativa de Shaun Tan se revela nos próprios elementos que usa para contar a história. Sua principal característica é mesclar criaturas e situações fantásticas a eventos cotidianos e fatos históricos, muitas vezes se valendo da representação literal de uma metáfora. Um dos exemplos é transformar toda informação verbal em glifos ininteligíveis, fazendo com que o leitor, junto ao protagonista, seja um estrangeiro no mundo narrado (Figura 4).

Figura 4: Detalhes. Podemos ver dois dos principais elementos da linguagem gráfica. Acima, um “texto” com glifos ininteligíveis. À direita, uma criatura fantástica interagindo em uma situação cotidiana.

Até agora, tentamos analisar a obra pelos dados visuais que ela nos fornece em sua pictorialidade e sequencialidade. Evitamos utilizar palavras que remetam a sentimentos ou como deveria fazer o leitor se sentir no confronto com a obra. Também, não descrevemos ou contamos os eventos que se desdobram ao longo da história. Lidamos apenas com 1) gênero; 2) linguagem sequencial; 3) narrativa; e 4) linguagem gráfica. Todos esses dados nos foram dados pela ordem pictórica que a obra nos apresenta. O próximo passo deve ser 1) uma explicação mais interpretativa, centrada nas representações e em seus signifcados; e 2) uma análise pictórica mais cuidadosa de planos significativos. Isso, entretanto, requer uma análise hermenêutica que não é o objetivo do presente ensaio. Para finalizar, convém dizer que entre as referencias dos quatro anos de pesquisa para a realização de A Chegada, estão não apenas fotografias e filmes, mas livros, pinturas e gravuras. Pode se mostrar relevante, por exemplo, comparar a pintura Coming South, 1886, de Tom Roberts, com o quadro desenhado por Shaun Tan (Figura 5), ou entre as fotos de referência e seus desenhos—e realizar um tipo de análise genética.

Figura 5: À esquerda, o desenho de Shaun Tan. À direita, a pintura de Tom Roberts, Coming South, de 1886. Nota-se, antes de mais nada, que a pintura está espelhada no desenho de Shaun Tan.

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