PAGU: ALMA CAMPO DE BATALHA

May 19, 2017 | Autor: Sandra Santos | Categoria: Gender Studies, Literature, Feminism, Brasil, Patrícia Galvão (Pagu), Modernismo Brasileiro
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PAGU: ALMA CAMPO DE BATALHA

Sandra Isabel dos Santos Cardoso1

meu corpo é um campo de batalha. fiz do coração minha morada; de minha pele, uma muralha. nas mãos, revolução. meu corpo é um campo de batalha. minha carne, insistência. de minha pele fiz cicatriz. de minha alma, resistência.2

Resumo: O presente artigo, a partir da vida-obra3 de Pagu, tem por objetivo analisar e desconstruir alguns dos tópicos intrínsecos à própria construção de Pagu. Para cumprir essa intenção, através de uma proposta cartográfica, abordar-se-á a época em estudo - o Modernismo –, contextualizando-o na história política, social e cultural do Brasil, assim como as relações e representações de género e poder inerentes às lutas feministas e, mais concretamente, reivindicadas na trajetória política, artística e literária de Patrícia Galvão. Palavras-chave: Cartografia. Modernismo. Feminismo. Relações e representações de género e poder. Patrícia Galvão (Pagu).

Abstract: This article, from the life-work of Pagu, aims to analyze and deconstruct some of the topics intrinsic to the own building Pagu. To fulfill this purpose, through a cartographic proposal, will be addressed in time study - Modernism - contextualizing it in the political, social and cultural history of Brazil, as well as gender and power relations and representations inherent to the feminist struggles and, in particular, claimed in the political, artistic and literary trajectory of Patrícia Galvão. Keywords: Cartography. Modernism. Feminism. Gender and power relations and representations. Patrícia Galvão (Pagu).

1º ano mestrado em Estudos Editoriais; nº mecanográfico: 82093; e-mail: [email protected]. Marcelo Caetano, homem transsexual e ativista. 3 Conceito de Augusto de Campos, no livro homónimo Pagu: Vida-Obra. 1

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Início da rota A propósito do V Congresso Internacional em Estudos Culturais – Género, Direitos Humanos e Ativismos, foi sugerida a escolha de uma dessas temáticas, a fim de elaborar um artigo científico. Assim é que o presente trabalho debruça-se sobre as relações e representações de género na vida-obra de Pagu – figura feminina fundamental do Modernismo brasileiro. Em primeiro lugar, tendo como tema-base a análise da vida-obra de uma figura feminina influente à sua época e sem época, ou seja, uma personalidade intemporal, este artigo científico tem por objetivo analisar e desconstruir várias questões inerentes à própria construção de Pagu. Assim, proceder-se-á à contextualização do Modernismo brasileiro numa época política, social e cultural de enorme reivindicação da cultura e da arte como ferramentas de transformação social. Além disso, a fundamentação crítica obedecerá à análise de diversos autores e respetivas obras, ajudando assim a estabelecer um mapa teórico das representações de género e poder. Em segundo lugar, com o decorrer das leituras, foi possível intuir que, aliado à pesquisa, teria de haver um enredo cartográfico, isto é, a partir das premissas basilares, neste caso, as temáticas do Modernismo e das relações de género e poder, ir afunilando a análise para exemplos mais palpáveis. Desta forma, chegou-se à conclusão de que seria interessante fazer um “mapa” da vida-obra de Pagu. Através dos vários eventos da sua vida e obra, estabelecer-se-á paralelo com as grandes temáticas em estudo. Pagu é símbolo de várias lutas universais, nomeadamente, da luta pela emancipação da mulher em todos os âmbitos da vida. Mesmo existindo áreas que historicamente são dominadas pelo homem, a mulher tem um contributo imenso a delegar à sociedade. Pagu é a prova de que diferentes lutas ideológicas, se aliadas, se potenciam.

Cruzamento de fronteiras Para sustentar a presente matéria de estudo, será apresentada uma lista de autores e obras que se debruçam sobre a época em estudo – o Modernismo – e outros que fazem referência às relações de género e poder. Partindo dos pressupostos da “cartografia”, enunciados por Romagnoli (2009), em que o objeto de estudo parte “de uma fundamentação própria, afirmando uma diferença, em uma tentativa de reencontrar o conhecimento diante da complexidade” (p. 169), a temática central será mapeada, sendo portadora de “um novo patamar de problematização, contribuindo para a articulação de um conjunto de saberes, inclusive outros que não apenas o científico, e favorecendo a 1

revisão de concepções hegemônicas e dicotômicas” (p.169-170). Assim, segundo Mairesse (2003), a cartografia “desencadeia um processo de desterritorialização no campo da ciência, para inaugurar uma nova forma de produzir o conhecimento, um modo que envolve a criação, a arte, a implicação do autor, artista, pesquisador, cartógrafo” (p. 259). Oswald de Andrade, autor associado ao Movimento Modernista Brasileiro, desenvolveu uma extensa reflexão crítica em torno da conjuntura política, social e cultural da sua época. No conjunto das suas obras completas, no livro Estética e Política, tece um informe sobre o modernismo: “A palavra “Moderno” pertence a qualquer época. Foram modernos os iniciadores de todos os movimentos estéticos e filosóficos, de todos os movimentos científicos e políticos” (Andrade, 1991, p. 97). Em Macunaíma, Mário de Andrade apresenta um retrato da sociedade brasileira. Utilizando um tom humorístico e imbuído numa imagética indígena e mítica, alerta para a salvaguarda da identidade brasileira: Pois não contentes de terem aprendido de França, as subtilezas e passes da galanteria á Luís XV, as donas paulistanas importam das regiões mais inhóspitas o que lhes acrescente ao sabor, tais como pezinhos nipónicos, rubis da Índia, desenvolturas norteamericanas; e muitas outras sabedorias e tesoiros internacionais. (Andrade, 1985, p.62)

Esta primeira fase do Modernismo, denominada “fase heroica”, critica alguma indefinição e imaturidade da pátria brasileira. De facto, fica patente uma forte influência das vanguardas europeias nas técnicas de linguagem. No entanto, o Movimento Modernista não estava apenas confinado à arte e à literatura, uma vez que afirmava ser um “movimento espiritual” e “total” (Teles, 1986, p. 323). “O Brasil é móvel. Todo o universo move-se, transforma-se perpetuamente” (Teles, 1986, p. 321). No decurso deste grande Movimento, Oswald arquitetou um processo de “verdadeira praxis revolucionária”, nas suas palavras, “a prática culta da vida”, (Andrade, 1990, p.12). No seu livro célebre A Utopia Antropofágica, Benedito Nunes realça a importância vital e emblemática de Oswald de Andrade na concretização do ideário modernista. Um conjunto de acontecimentos históricos sucederam-se, como a crise do liberalismo económico e político de 1929, o crash da Bolsa de New York que se repercutiu na exportação do café brasileiro, entre outros, despertando em Oswald e em outros modernistas o desejo acérrimo de adotar um posicionamento político de pendor esquerdista. “E ao firmar-se nesse lado, iniciando uma fase de militância política marxista, abjurou sua atitude de chefe da vanguarda ‘antropófaga’ ” (Andrade, 1990, p. 6-7). 2

No seu fulcro, o Manifesto Antropofágico apresentava-se como um projeto altamente promissor: “A perspetiva definida pelo Manifesto – sentimental, intelectual, irônica e ingênua ao mesmo tempo – é um modo de sentir e conceber a realidade, depurando e simplificando os fatos da cultura brasileira sobre que incide”. (Andrade, 1990, p. 10). A par de outras importantes figuras, Pagu exerceu um papel intelectualmente notável neste período de construção e consolidação do Modernismo. Tânia Brabo (2009) coloca em perspetiva as temáticas do Género, Educação e Política, tendo como pano de fundo a realidade brasileira. Reconhecendo a persistência da dominação masculina (Bourdieu, 1999), todos os contributos de mulheres como Pagu, entram diretamente para a história do movimento feminista: (…) conquistas do movimento feminista no século XX, que incluem direitos civis, políticos e sociais (formais e, em parte, substantivos) para as mulheres – à educação, ao voto, ao trabalho, à reprodução voluntária – e liberdade nos costumes, da vestimenta ao prazer sexual. (Brabo, 2009, p. 12)

Brabo (2009) menciona que “a sociedade brasileira, fortemente dominada por uma mentalidade patriarcal” apresenta ainda hoje marcas profundas impressas por essa mentalidade na organização social” (Brabo, 2009, p. 41). No entanto, devido à maior instrução académica e à inserção profissional em posições tradicionalmente ocupadas por homens, verificou-se uma maior penetração das mulheres no espaço público: Com início no final de século XIX, o século XX foi rico na evolução e na emancipação feminina. É destes tempos uma maior visibilidade do feminismo no Brasil, teoria e prática voltada para a valorização da mulher, para a busca da igualdade, compreendida como respeito às diferenças, vistas como valores. (Brabo, 2007, p. 23)

Todas as diferentes escalas dos movimentos feministas conferiram visibilidade à sua atuação e reivindicação e, portanto, maior poder: O poder deve ser entendido em conexão com diferentes níveis, incluindo o institucional, o familiar e o individual. Para alguns teóricos, o poder é uma somazero: o aumento de poder de um grupo implica necessariamente perda de poder por parte de outro. A ideia de uma redistribuição do poder, só por si, implica conflito. Nesta sequência, o empoderamento das mulheres sobressairia em detrimento da perda de poder dos homens. Algumas destacadas escritoras feministas têm alterado o paradigma de que o poder deve necessariamente envolver dominação por alguns, e obediência ou opressão por outros. Os homens também beneficiariam dos resultados desse empoderamento das mulheres, uma vez que teriam a possibilidade de viver numa sociedade mais equitativa e desempenhar novos papéis. (Oxaal & Baden, 1997, 1-2) (tradução nossa)4.

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Original em inglês nos Anexos 3

Não obstante, cabe verificar que antes de atingirem-se tais metas, um dos desafios passa por entender e analisar determinados conceitos que estruturam a própria sociedade. A semelhança do que constata Butler (1990), conceitos como a “política” e “representação” imbuem-se de uma rede complexa de significações: Mas a política e a representação são conceitos controversos. Por um lado, a representação serve como termo operativo dentro de um processo político que visa extender a visibilidade e a legitimidade às mulheres como sujeitos políticos; por outro lado, a representação é a função normativa da linguagem, quer para revelar ou distorcer o que é assumido como sendo verdadeiro acerca da categoria da mulher. (Butler, 1990, p.1) (tradução nossa)5.

Ainda que existam diferenças biológicas e sociais, que muitas vezes legitimam uma maior predominância e dominação masculina, o Feminismo nasce com a intenção basilar de distribuir equitativamente o poder: “Parte do projeto feminista pretendeu criar organizações igualitárias e não hierárquicas, que poderiam demonstrar as possibilidades das formas não patriarcais de trabalho.” (Acker, 1990, p.141 apud Gould 1979; Martin 1990) (tradução nossa)6. Desse nascimento, é bom lembrar, o anúncio precursor foi feito por Simone de Beauvoir já em 1949, em seu livro O segundo sexo, cujo título emblemático punha o dedo na ferida da “secundariedade feminina”, para usar a expressão de Malu Heilborn (…) (Brabo, 2007, p. 26)

Segundo Brito, Capelle & Melo (1990), “Considerando-se as relações de gênero como relações de poder (Cappelle et al., 2002), pode-se buscar compreender como a inserção feminina em determinados tipos de organização pode alterar a configuração das relações de poder em seu interior” (p.366). Em Hierarchies, Jobs, Bodies: A Theory of Gendered Organization, Acker (1990) desmistifica a ideia de que a estrutura do trabalho é neutra no género, sustentando que o trabalho é “desincorporado” ou desencarnado. Antes de tudo, o trabalhador é um homem e, sendo homem, tem um corpo. Para além de o utilizar profissionalmente, o corpo é detentor de características inalienáveis, como o são a sexualidade e as relações com a procriação. Este sistema organizacional que trata o trabalho unicamente com o intuito de obtenção de lucro, elege imediatamente o homem como a força motriz de toda esta cadeia económica, ficando confinada a mulher a um lugar marginal. “Os corpos das mulheres não podem ser adaptados à masculinidade hegemónica; para funcionar no topo

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das hierarquias masculinas requer que as mulheres considerem irrelevante tudo aquilo que as torna mulheres.” (Acker, 1990, 153) (tradução nossa)7. A realidade social, da qual homens e mulheres fazem parte, inscreve-os em compartimentos sociais e simbólicos: O mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão sexualizantes. Este programa social de percepção incorporada aplica-se a todas as coisas do mundo e, antes de tudo, ao próprio corpo, em sua realidade biológica: é ele que constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-a aos princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária de dominação dos homens sobre as mulheres, ela mesma inscrita, com a divisão do trabalho, na realidade da ordem social. (Bourdieu, 2002)

Betsy Wearing (1998), citando Turner (1991), levanta questões deveras pertinentes quando compara a instituição religiosa à económica. Foca ainda que o corpo é a ferramenta que permite aceder à virtuosidade do trabalho: “A Escola de Frankfurt argumentou que o 'Cristianismo e o capitalismo uniram forças em declarar que o trabalho é virtuoso, mas o corpo é carne e fonte de todo o mal. A relação de amor-ódio com o corpo domina a cultura moderna'”(Wearing, 1998: 104 apud Turner, 1991:17) (tradução nossa)8. Em A Dominação Masculina, Bourdieu (2002), “longe de afirmar que as estruturas dominação são a-históricas”, veio corroborar, pelo contrário, a ideia de que as ditas estruturas “são produto de um trabalho incessante (e, como tal, histórico) de reprodução”. Para tal, “contribuem agentes específicos (entre os quais os homens, com as suas armas como a violência física e a violência simbólica) e instituições, famílias, Igreja, Escola, Estado”. Portanto, segundo Bourdieu (2002), “a estrutura impõe suas pressões aos dois termos da relação de dominação, portanto aos próprios dominantes, que podem disto se beneficiar, por serem, como diz Marx (2000), ‘dominados por sua dominação’.”

Destino: Pagu vida-obra Patrícia Rehder Galvão, conhecida pelo pseudónimo de Pagu9, exerceu as atividades de escritora, poeta, diretora de teatro, tradutora, desenhista, jornalista e militante política.

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ibidem Quem lhe atribui este pseudónimo é Raul Boop, pensando, a princípio, que o seu nome seria Patrícia Goulart. Boop dedicou-lhe um poema intitulado “Coco de Pagu” - Anexos. 8 9

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Destacou-se pela sua atitude vanguardista, sendo a primeira mulher presa no Brasil por motivações políticas. Pagu ficaria para sempre associada ao Manifesto Antropofágico escrito e apresentado por Oswald de Andrade entre 1928 e 1929. Cabe então contextualizar muito sucintamente que este Manifesto esteve inserido no Modernismo brasileiro - amplo movimento cultural que se repercutiu fortemente sobre a cena artística e sobre a sociedade brasileira na primeira metade do século XX, sobretudo nos domínios da literatura e das artes plásticas. Na sequência de um anterior manifesto, o da Poesia Pau-Brasil – escrito também por Oswald de Andrade -, o Manifesto Antropofágico possuía um maior pendor político. Declarava valores como o primitivismo e surrealismo de André Breton, o marxismo de Karl Marx, a psicanálise de Freud e a filosofia de autores como Rousseau, Nietzsche, Engels, entre outros. É possível então ter uma panorâmica de quão inspiradora se revelou esta profusão de ideologias. O termo “antropofagia” derivava da noção de devorar e deglutir tudo o que fosse estrangeiro, nomeadamente, a cultura e as técnicas, de forma a sujeitá-las a uma “digestão crítica”; o nosso “estômago cultural” podia assim assimilá-las ou, pelo contrário, considerando-as impróprias ou indesejáveis, vomitá-las. O manifesto retomava também a crença indígena de que os índios antropófagos comiam o inimigo, supondo estarem a apreender as suas qualidades. A par de Patrícia Galvão, várias figuras da linha da frente do modernismo brasileiro, como Mário de Andrade, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Pedro Nava, entre outros, contribuíram para a Revista de Antropofagia. Esta teria uma segunda fase (ou “segunda dentição”), dirigida por Geraldo Ferraz e contando com os “antropófagos” Oswald de Andrade, Raul Bopp, Geraldo Ferraz, Tarsila do Amaral e a própria Patrícia Galvão. Nessa revista, influenciada pelos trabalhos de Tarsila do Amaral, Pagu desempenhou a função de poeta-desenhista. Em todos os croquis há a sombra da influência do casal Oswald e Tarsila. Dizia-se que Pagu amava Oswald com a mesma intensidade com que admirava Tarsila. Diferentemente de Tarsila, Pagu tinha, aliado ao seu gosto pelo desenho, propósitos literários. Um desses exemplos é O Álbum de Pagu: Nascimento, vida, paixão e morte, cuja publicação ficaria a cargo de Tarsila. No livro Pagu: Vida-Obra (2014), Haroldo de Campos invoca a interdisciplinidade da sua escrita, mencionando o caráter visual e criativo dos seus textos: 6

Os “poemas ilustrados” de Pagu estabelecem um inter-relacionamento entre as linguagens verbal e não verbal que convoca para a poesia elementos das “charges”, dos anúncios, das histórias em quadrinhos, do cinema e de todo o universo visual modernista.

O Álbum de Pagu10 respeita a produção da poeta-desenhista entre os dezoito e os dezanove anos, em plena efervescência antropofágica. O diálogo entre a escrita e a ilustração denotam já traços de irreverência e de transgressão. Nas palavras de Augusto de Campos (2014), há um aguçado olhar sobre a realidade “quanto à linguagem dos textos, entre poesia, prosa e legenda, todos eles tingidos de malícia e sensualidade”. Pagu constrói uma relação muito estreita entre o verbal e o não-verbal, procurando albergar nos seus trabalhos “elementos das ‘charges’, dos anúncios, das histórias em quadrinhos, do cinema e de todo o universo visual modernista” (Campos, 2014). Simbolicamente dividido em três fases, O Álbum de Pagu: Vida, Paixão e Morte, prenuncia um intento de arrumação das linguagens que, como se poderá perceber ao longo da sua vida-obra, não se compartimentam, mas, pelo contrário, se heterogeneízam e intensificam. Em 1930, o casamento de Oswald e Tarsila desmorona-se, correndo o boato que Pagu seria a grande responsável, uma vez que fora amante de Oswald ainda casado. À época, para escândalo de uma sociedade conservadora, Oswald casa-se com Pagu, de quem nesse mesmo ano tem um filho, Rudá de Andrade. Por essa altura, ambos tornam-se militantes do Partido Comunista Brasileiro. Com Oswald, edita o jornal O Homem do Povo, assinando a coluna A Mulher do Povo11, entre 27 de março e 13 de abril de 1931. Em formato tabloide, a publicação, com forte pendor político, fornecia uma imagem condizente com os seus propósitos interventivos. Com títulos desenhados em letras art déco, o pasquim “proletário” contava com artigos, sob vários pseudónimos, de Patrícia. Além disso, era também autora das ilustrações, charges, vinhetas, títulos e legendas. Na sua coluna, criou uma “história em quadrinhos” com três personagens - Malakabeça, Fanika e Kabeluda12 - que formavam um casal e uma sobrinha revolucionária (a sobrinha assemelhava-se, naturalmente, a Pagu). Mais uma vez, não identificava a sua autoria verdadeira. Contudo, viria a aparecer um característico “P.” de Patrícia que confirmaria o seu cunho autoral. Nessa secção, criticava, sempre de um ponto de vista marxista, as que considerava ser as “feministas de elite” e as classes dominantes. Com uma linguagem bastante incisiva e desbocada, opinava sobre assuntos que a incomodavam na sociedade brasileira contemporânea, assim como de temáticas mais polémicas e lascivas.

Alguns dos desenhos constam ilustrados nos Anexos. Exemplos da coluna nos Anexos. 12 Ilustração nos Anexos. 10 11

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Em Agosto de 1931, é presa pela primeira vez e isto aconteceria mais vinte e duas vezes. Augusto de Campos (2012) faz referência às marcas traumáticas que tais acontecimentos causaram em Pagu: “as atividades partidárias de Patrícia lhe valeram anos de prisão, marcados pela doença e pelo sofrimento (“Dez anos que abalaram meus nervos e minhas inquietações, transformando-me nesta rocha vincada de golpes e de amarguras, destroçada e machucada, mas irredutível”)”. Em 1933, sob o pseudónimo de Mara Lobo, é publicado o seu romance Parque Industrial, com o subtítulo Romance proletário. Em Parque Industrial, Pagu, numa alusão ao movimento de mulheres sufragistas de Inglaterra, critica os valores elitistas das mulheres de São Paulo. A sua indignação não tem que ver com o movimento sufragista em si, mas sim com a sua despreocupação em torno de questões mais amplas e fraturantes, como a condição social da mulher proletária e das mulheres negras. "- O voto para as mulheres está conseguido! É um triunfo! /-E as proletárias? /- Elas são analfabetas. Excluídas por natureza" (Galvão, 2006, p. 78). De facto, em Parque Industrial são, por um lado, retratadas mulheres que não têm qualquer posicionamento político e social e, por outro, há um conjunto de mulheres militantes comunistas que reivindicam os seus direitos, exercendo papéis determinantes no projeto ideológico do romance proletário. Pagu faz duras críticas ao Feminismo na sua vertente burguesa e liberal, uma vez que este não toma em consideração as classes mais pobres. Uma das personagens, Rosinha, expõe às suas companheiras de trabalho: Camaradas! Não podemos ficar quietas no meio dessa luta! Devemos estar ao lado dos nossos companheiros na rua, como estamos quando trabalhamos na Fábrica. Temos que lutar juntos contra a burguesia que tira nossa saúde e nos transforma em trapos humanos! (Galvão, 2006, p. 87-88)

Em Gender Trouble, Judith Butler afirma a necessidade de se compreender o cruzamento do género com a raça, classe, etnia, região e sexo, uma que se “torna impossível separar o conceito de ‘género’ das interseções políticas e culturais, nas quais é invariavelmente produzido e mantido” (Butler, 1990, p. 3). (tradução nossa)13. Tomaz Tadeu da Silva (2009), a propósito do cruzamento entre identidade e as relações presentes em sociedade, refere que “a identidade marca o encontro de nosso passado com as relações sociais, culturais e econômicas nas quais vivemos agora… a identidade é a intersecção de nossas vidas cotidianas com as relações econômicas e políticas de subordinação e dominação (Rutherford, 1990, p. 19-20)”.

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Original em inglês nos Anexos 8

Pagu tem, portanto, a capacidade de estabelecer uma “relação entre o social e o simbólico”: “Toda a prática social é simbolicamente marcada. As identidades são diversas e cambiantes, tanto nos contextos sociais nos quais elas são vividas quanto nos sistemas simbólicos por meio dos quais damos sentido a nossas próprias posições” (Silva, 2009, p. 33). Se tivermos em conta as posições de dominação existentes em sociedade, a masculinidade e a feminilidade não podem somente ser explicadas como referentes ao biológico: “O género refere-se aos papéis sociais que as pessoas ocupam, os quais são produzidos por uma divisão sexual do trabalho; o sexo refere-se ao sexo biológico e as sexualidades referem-se ao desempenho das identidades de género.” (Turner, 2008, p.9) (tradução nossa)14. Bourdieu (2002), no seu livro A Dominação Masculina, aborda a questão da socialização dos corpos: O corpo biológico socialmente modelado é um corpo politizado, ou se preferimos, uma política incorporada. Os princípios fundamentais da visão androcêntrica do mundo são naturalizados sob a forma de posições e disposições elementares do corpo que são percebidas como expressões naturais de tendências naturais. (Bourdieu, 2002)

Durante os anos subsequentes, Pagu envereda numa viagem pelo mundo, passando por países como os EUA, França, Alemanha, Polónia, URSS e Japão. Nestes países, contacta com várias personalidades destacadas nos campos da política, das artes e das letras. Assiste também a várias situações infligidas ao proletáriado e às classes pobres que retiram crédito ao que postulava o Partido Comunista. No panfleto político intitulado Verdade e Liberdade (1950), Pagu documenta o que vivenciou: E o ideal ruiu, na Rússia, diante da infância miserável das sarjetas, os pés descalços e os olhos agudos de fome. Em Moscou, um grande hotel de luxo para os altos burocratas, os turistas do comunismo, para os estrangeiros ricos. Na rua, as crianças mortas de fome: era o regime comunista. (Verdade e Liberdade, 1950)

Em 1935, é presa em Paris, sendo repatriada para o Brasil. Descrente dos valores comunistas, em 1940, sai definitivamente do Partido Comunista. Divorciada de Oswald de Andrade, Pagu voltaria a encontrar o amor junto do jornalista Geraldo Ferraz, de quem teria o seu segundo filho, Geraldo Galvão Ferraz. Como seria de prever, dez anos de militância política, de exílios e prisões, desgastaramna física e psicologicamente: “Outros se mataram. Outros foram mortos. Também passei 14

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por essa prova. / Também tentaram me esganar em muito boas condições./ Agora, saio de um túnel./ Tenho várias cicatrizes, mas estou viva” (Verdade e Liberdade, 1950). Ainda assim, Pagu soube distanciar-se desses fantasmas, retomando os seus interesses artísticos, através do desenvolvimento de uma intensa atividade jornalística, como cronista, articulista, tradutora e poeta. Personificou valores utópicos, sempre com o intuito de subverter os paradigmas conservadores e burgueses da sua época. Numa série de artigos escritos para o jornal O Estado de S. Paulo, em 1953, um deles intitulado A Marcha das Utopias, Oswald de Andrade formula: No fundo de cada utopia não há somente um sonho, há também um protesto. Não é outro o sentido do grande estudo de Karl Mannheim intitulado Ideologia e utopia, esse de que ao contrário da ideologia que procura manter a ordem estabelecida, toda utopia se torna subversiva, pois é o anseio de romper a ordem vigente. (Estado de S. Paulo, 1953)

Num dos seus artigos, intitulado Cor Local, no Diário de São Paulo, Pagu refere-se à diversidade de gente que o Movimento Modernista abarcou: — O que é incrível é que o movimento modernista tenha procriado uma raça de gente tão diversa. Editoras congestionam as tipografias. Livraria que é mato. Disputam-se até livros caros. E a terminologia é infernal, tão notável é um Kafka quanto um “rebento” que pode pagar um editor para se colocar na lista de “editado”… Ainda bem que lhe encontro, Oswald de Andrade, madrugando à porta do livreiro da rua Marconi, primeiro na “fila”, para comprar as Nouvelle Revue Française acabadas de chegar. Ainda bem que continua nem que seja como historiador, procurando ressuscitar a antropofagia, revisá-la, transformá-la — ou então inventar qualquer outra coisa. (Diário de São Paulo, 24 de novembro de 1946)

Pagu, ao mesmo tempo que critica o florescimento insustentável de “rebentos” que disputam o seu lugar com génios da literatura mundial, enfatiza o caráter inventivo e revolucionário da Antropofagia. Refere que há quem seja “simplesmente mercenária, e que só escrevia para ganhar dinheiro, e que não seria capaz de fazer uma linha, desinteressada do mercado consumidor e do comerciante de revistas e livros.” Diagnosticada com um cancro, Pagu é operada, em setembro de 1962, em Paris. No entanto, a cirurgia é malsucedida, voltando para o Brasil onde viria a morrer a 12 de dezembro com apenas 52 anos. Fim de viagem “Militante do ideal”, como lhe chamaria o seu marido Geraldo Ferraz, Pagu deixou imanente uma obra e uma aura para a posteridade. Materializou os seus ideais através 10

da renovação da linguagem artística, conquistando um lugar influente quase sempre inacessível às mulheres. Quando muitos se academizaram ou desistiram dos seus ideais, Pagu jamais esmoreceu. Embora desiludida em vários aspetos políticos, sempre idealizou uma transformação social através da arte e da cultura, para isso desempenhando um papel ativo e interventivo à sua época. A sua obra reflete a sua vida: embora fragmentária e dispersa, a sua obra materializou a sua insaciável demanda por uma sociedade mais justa e fraterna, consciente dos perigos burgueses e capitalistas que, ao contrário do que faziam supor, não permitiam um maior acesso a bens e serviços por parte da população, mas sim um maior fechamento e estandardização. Desta forma, Pagu lutou com as armas que pode, sempre com o intuito de denunciar as tentativas de tiranização das artes pela política. Um espírito insaciado que perdura mais atual do que nunca.

Referências bibliográficas Acker, J. (1990). Hierarchies, Jobs, Bodies: A Theory of Gendered Organizations, Gender and Society. Vol. 4, No. 2 (Jun., 1990), pp. 139-158. Andrade, O. de (1990). A utopia antropofágica. São Paulo: Globo. (Obras completas de Oswald de Andrade). Andrade, M. de (1985). Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada. Baden, S. & Oxaal, Z. (1997). Gender and empowerment: definitions, approaches and implications for policy. Bridge Institute of Development Studies, University of Sussex. Bourdieu, P. (2002). A Dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. _________(1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. Brabo, T. S.A .M. (org.) (2009). Gênero, educação e política: múltiplos olhares. São Paulo: Ícone, FAPESP. _________________(2007). Gênero e Educação: lutas do passado, conquistas do presente e perspectivas futuras. São Paulo: Ícone, FAPESP. Butler, J. (1990). Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. 1st ed. Routledge. Campos, A. de (2014). Pagu: vida-obra. São Paulo: Companhia das Letras.

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Anexos

4. Original em inglês Power must be understood as working at different levels, including the institutional, the household and the individual. For some theorists power is a zero-sum: one group’s increase in power necessarily involves another’s loss of power. The idea of a redistribution of power is therefore seen as necessarily involving conflict. In this perspective, women’s empowerment would lead by implication to less power for men. Some feminist writers on power have challenged the idea that power must necessarily involve domination by some, and obedience or oppression of others. Men would also benefit from the results of women’s empowerment with the chance to live in a more equitable society and explore new roles. (Oxaal & Baden, 1997, 1-2)

5. But politics and representation are controversial terms. On the one hand, representation serves as the operative term within a political process that seeks to extend visibility and legitimacy to women as political subjects; on the other hand, representation is the normative function of a language which is said either to reveal or to distort what is assumed to be true about the category of woman. (Butler, 1990, p.1)

6.

“Part of the feminist project was to create nonhierarchical, egalitarian organizations that would demonstrate the possibilities of nonpatriarchal ways of working” (Acker, 1990, p.141 apud Gould 1979; Martin 1990).

7.

“Women's bodies cannot be adapted to hegemonic masculinity; to function at the top of male hierarchies requires that women render irrelevant everything that makes them women” (Acker, 1990, 153).

8.

“The Frankfurt School argued that ‘Christianity and capitalism have joined forces to declare that work is virtuous, but the body is flesh and the source of all evil. The lovehate relationship with the body dominates modern culture’ ” (Wearing, 1998: 104 apud Turner, 1991:17).

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9. Coco de Pagu/Raul Bopp Pagu tem os olhos moles uns olhos de fazer doer Bate-coco quando passa Coração pega a bater Eh Pagu eh! Dói porque é bom de fazer doer Passa e me puxa com os olhos provocantissimamente Mexe-mexe bamboleia pra mexer com toda a gente Eh Pagu eh! Dói porque é bom de fazer doer Toda gente fica olhando seu corpinho de vai-e-vem umbilical e molengo de não-sei-o-que-é-que-tem Eh Pagu eh! Dói porque é bom de fazer doer Quero porque te quero Como não hei de querer? Querzinho de ficar junto que é bom de fazer doer Eh Pagu eh! Dói porque é bom de fazer doer

In: Revista Para Todos…, Ano X, no 515, Rio de Janeiro, 27 de outubro de 1928, p. 24. 1a versão do poema “Coco de Pagu”, de Raul Bopp.

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10.

Álbum de Pagu ou Pagu: Nascimento, vida, paixão e morte (1929). Publicado nas revistas Código no 2, Salvador, 1975, e Através no 2, São Paulo: Duas Cidades, 1978.

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11. In: O Homem do Povo, nº3, Terça-feira, 30 de Março de 1931; O Homem do Povo, nº 8, Segunda-Feira, 4 de Abril.

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12. In: O Homem do Povo, na secção A Mulher do Povo, 1931.

13. “becomes impossible to separate out ‘gender’ from the political and cultural intersections in which it is invariably produced and maintained” (Butler, 1990, p. 3).

14. “Gender refers to the social roles which people occupy that are produced by a gender division of labour; sex refers to biological sex and sexualities refer to the performance of gender identities” (Turner, 2008, p.9).

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