Paisagem, um espaço de habitar

July 23, 2017 | Autor: Paulo Lousinha | Categoria: Arquitectura, Paisagismo
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Paisagem, um espaço de habitar: notas pessoais de uma aula de Aurora Carapinha. 1. Como nos diz Simon Schama, a paisagem para além de ser um amontoado de pedras ou um conjunto de rochas, é também um amontoado de memórias.1 Para Rute Matos, Schama “(...) defende um modo de olhar, de redescobrir o que já possuímos, mas que, de alguma forma, se escapa ao nosso reconhecimento e apreciação para, deste modo, apresentar não uma explicação do que perdemos mas sim do que ainda podemos ter. Para isto o autor selecciona três sistemas constituintes da paisagem: a mata, a água e a rocha (geologia) e, através deles, procura desvendar o seu conteúdo mítico, indo de um lugar para outro, de uma época para outra, através de transições planeadas, onde percebemos o que se mantém inalterado ou com a mínima transformação, o que surge de novo e o que desaparece, impelindo-nos a encarar velhos cenários com um novo olhar e a reconhecer a quantidade de memória acumulada que está presente na paisagem.”2 A Paisagem é pois feita desta construção. A paisagem tem por isso um valor identitário. É irrepetível, porque só existe nesta relação intima entre as condições geográficas, ecológicas e o povo que as interpretou e as transformou. Cada vez que fazemos um atentado na paisagem, ele tem repercussões ao nível ecológico, mas também ao nível cultural e ao nível da nossa identidade, porque a paisagem é um espaço de habitar. Para Rute Matos, “A paisagem é uma construção resultante de dinâmicas culturais, sociais e económicas de carácter colectivo, resultado formal de um conjunto de factores e processos interactivos, quer naturais – directamente relacionados com fenómenos e valores biológicos, ecológicos ou ambientais, presentes em espaços intervencionados pelo homem – quer culturais – referentes aos valores formais que num dado momento exprimem a herança que representa a natureza, a tradição ou o progresso enquanto testemunho da acção humana.”3 Por isso mesmo, a paisagem é objecto de interesse de vários campos do conhecimento. Para o arquitecto, o valor da paisagem é matéria de trabalho pelas diversas possibilidades de reflexão sobre a sua acção no espaço, que no entanto, vão muito para além de um conjunto de questões formais e visuais essenciais à caracterização do lugar. Para muitos, o carácter do lugar é uma relação afectiva com o mesmo, transcrita em avaliações subjectivas de teor mais ou menos poético, que depois se transcrevem em frases poéticas. Contudo, o carácter do lugar não se pode resumir a um conjunto de questões formais e visuais. O carácter do lugar tem que ser a soma das questões visuais, que por sua vez são resultados de um conjunto de outras relações. O perigo desta valorização poética da imagem, sem compreendermos a complexidade do conjunto de todas as relações, poderá implicar tirar partido das formas mas não do carácter do lugar. 2. Uma velha dicotomia que o tempo tem atenuado, leva alguns autores a diferenciar a paisagem em duas realidades distintas: paisagem natural e paisagem cultural. Outra das das discussões actualmente aceite como ultrapassada, mas que durante muito tempo dividiu quem trabalha o espaço de habitar, é separação entre paisagem rural e paisagem urbana. A

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Simon Schama, Paisagem e memória. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

Rute Matos, A Reinvenção da Multifuncionalidade da Paisagem em Espaço Urbano - Reflexões, Tese de Doutoramento. Évora, Universidade de Évora, 2010, p. 149. 2

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idem, p. 49.

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paisagem é só uma, e transforma-se em rural, em industrial, em urbana, conforme as necessidades do homem. Não há várias paisagens. Há apenas uma, que é contínua, mas que se vai transformando, uma vez que não se podem estabelecer limites entre estas diferentes realidades, dada a sua estreita relação. Viver bem a cidade não é uma preocupação da nossa história recente, mas uma preocupação ancestral, quer no oriente quer no ocidente. A urbanidade, entra na preocupação da discussão da cidade, como afirma Matos, citando Mumford, “bem antes da formação da cidade industrial já a noção de viver para lá das complexidades da civilização era atractiva, tal como o demonstram as villae romanas e, posteriormente, as renascentistas.”4 Mas, é com a visão das utopias do século XIX, ainda segundo a mesma autora, que a preocupação da urbanidade se desenvolve tal como hoje a conhecemos, “(...) não tanto no pressuposto de salvar o espaço urbano mas sim a cidade enquanto comunidade, tendo apresentado novas fórmulas de convivência que exigiam uma integração do espaço agrícola com o espaço urbano.”5 3. As questões levantadas no final do século XIX mas sobretudo no século XX sobre a relação entre a cidade e o campo, são consequência directa da ruptura entre estas duas realidades.6 Ou seja, a cidade e o campo sempre foram uma realidade una, na sua relação: sempre uma precisou da outra numa grande relação de inter-penetração. Mas este sistema depende da qualidade da intervenção do homem para manter o seu equilíbrio, ou seja, do conhecimento e valorização da ecologia. As rupturas surgem pela violentação dos processos naturais que quebram equilíbrio, que no seu limite podem conduzir ao fim do planeta. A este propósito, Rute Matos cita aquilo que Caldeira Cabral classificava de “trabalhar com a Natureza, ou contra ela.”7 Um jardim, desenvolve-se num habitat, é uma criação artística. A paisagem, é um objecto estético. A paisagem é espaço de habitar. A arquitectura da paisagem, envolve uma construção com a natureza, e por isso precisa de tempo. “A paisagem revela-se então expressão de existência e forma de representação da relação que o homem estabeleceu com a natureza, transformando-a em formas que respondem às várias funcionalidades da paisagem - habitar, cultivar, recolher, fruir, conservar em bases sustentáveis pela economia e ecologia dos processos. Este entendimento da paisagem determina, que a compreensão, a caracterização, a avaliação inter-relacional dos vários sistemas que desenham a paisagem sejam um processo metodológico recorrente na prática da arquitectura paisagista em Portugal, motivando também que a proposta se ofereça quase como uma evidência do lugar pré- existente.”8

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Rute Matos, A Reinvenção da Multifuncionalidade da Paisagem em Espaço Urbano - Reflexões, op. cit., p. 109. 5

idem, p. 110.

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A construção de jardins, surge sempre quando há rupturas de urbanidade.

7

Rute Matos, A Reinvenção da Multifuncionalidade da Paisagem em Espaço Urbano - Reflexões, op. cit., p. 48. Rute Matos, “A Reinvenção da Multifuncionalidade da Paisagem em Espaço Urbano - Reflexões”, Tese de Doutoramento, Universidade de Évora, Évora, 2010, p. 95. 8

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4. Numa visão muito cartesiana, podemos catalogar três momentos na teorização da construção do conceito da paisagem assentes em três idades: a idade do camponês, com a construção da paisagem definida pelos campesinos; uma outra, mais elitista e mais duradoura, identificada com a ideia da arte; finalmente a idade da paisagem que vai para além das significações estéticas, definida pelo conhecimento de quem a olha enquanto geógrafo, ou arquitecto, ou engenheiros. Podemos dizer que nos últimos anos, os estudos da paisagem se dividem entre os que reflectem sobre a paisagem enquanto representação e os que analisam a paisagem enquanto elemento identitário. A visão expressa por Jean-Marc Besse no seu livro “Voir la terre, six essais sur le paysage et la géographie” segue este segundo caminho, numa visão muito bachelariana, que a nós, enquanto arquitectos, nos interessa particularmente. Segundo Edir Pereira, a questão colocada por Jean-Marc Besse no seu livro “Voir La Terre”, e que nos abre a possibilidade de pensar a paisagem para além da história do conceito, “(...) é a emergência da experiência, da consciência e do sentimento da paisagem na modernidade.”9 Besse, reflecte ao longo de seis ensaios, sobre a nossa existência enquanto sujeitos da paisagem. A nossa relação com o espaço numa experiência paisagística, é abordado ao longo do primeiro ensaio, numa tensão que opõe um sentido interior - que desqualifica o espaço - e um sentido exterior - que valoriza a posição e o deslocamento no espaço. No segundo ensaio, este autor reflecte sobre a Terra como paisagem, para demonstrar como antes de adquirir uma significação puramente estética ligada ao campo das artes pela pintura, a paisagem era uma experiência territorial e geográfica. Para Besse, o que provoca esta mudança de interpretar e ver o mundo, neste início de século XVI, é o grande deslocamento provocado pelas grandes navegações e descobrimentos. O terceiro ensaio explora a concepção de paisagem do século XVIII a partir de uma visão romântica. Segundo Pereira, “Mostra a relação entre um mundo já representado (pelos textos e pelas pinturas, a cultura herdada) e o mundo como objecto visual - a paisagem agora não apenas como um meio a partir do qual se produz uma imagem do mundo, o mundo como imagem dada a um observador distanciado e deslocado, mas também como imagem de uma representação.”10 Reflecte a experiência paisagística como condição de uma vivência efectivamente integral do mundo. Jean-Marc Besse, observa no quarto ensaio que as significações da paisagem vão para além das significações estéticas, enquanto produção cultural. Além disso, relaciona-as com a particularidade de quem as olha: o geógrafo, o cientista, o engenheiro, o arquitecto, etc. Na leitura de Pereira, sobre o pensamento de Besse, “O que não é apenas uma questão subjectiva, mas antropológica, já que o olhar desses sujeitos representa saberes instituídos. A paisagem não é apenas objecto de uma contemplação e avaliação estética, mas o seu valor reside no facto de ser representativa da acção humana e, mais ainda, do desenvolvimento de uma cultura do olhar.”11 Esta separação da condição subjectiva e objectiva, (ou seja, da

Edir Pereira, “Resenha - Ver a Terra: Seis Ensaios Sobre a Paisagem e a Geografia” in GEOgrafia VIII(15), Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, 2006, p. 143. 9

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Edir Pereira, “Resenha - Ver a Terra: Seis Ensaios Sobre a Paisagem e a Geografia”, op. cit., p. 145.

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Edir Pereira, “Resenha - Ver a Terra: Seis Ensaios Sobre a Paisagem e a Geografia”, op. cit., p. 146.

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estética e da ciência) no conhecimento da paisagem é uma atitude modernista. É a paisagem de que nos fala Álvaro Domingues, “Mais do que uma morfologia, ou de uma tipificação de morfologias, as paisagens geográficas continham uma espessura antropológica, uma memória reveladora de diversas sedimentações ou marcas deixadas por sucessivas transformações. As paisagens eram património cultural, elemento imprescindível da identidade de um povo ou até de um modelo de coesão do Estado-Nação. De resto, ideologicamente, as regiões – áreas de extensão de unidades e padrões de paisagem –, legitimavam as teses orgânicas do equilíbrio da nação na sua diversidade e relação entre ambientes («meios geográficos») e «modos de vida», e o quadro estável do mosaico das paisagens-tipo de cada região.”12 O quinto ensaio, ainda segundo Pereira, analisa a relação entre a geografia, a paisagem e a fenomenologia. A fenomenologia filosófica distingue geografia e paisagem, ficando a primeira do lado da percepção e a segunda do lado do sentir. O tema é retomado no sexto e último ensaio, ainda que olhado de uma outra perspectiva: a paisagem como sentido de responsabilidade ética de habitar a terra. Mas começando pela “primeira idade” de facto, o camponês é o grande responsável pelo desenho da paisagem. O caso europeu em geral, e o português em particular, são disso um exemplar testemunho. O desenho de paisagem desenvolve-se nestes “pequenos laboratórios” que o homem funda: a pequena horta, o horto, numa manifestação da vontade de transformar o espaço que o recebia. Seguidamente chega a idade do artista, que tanto vai do jardineiro ao pintor, e que sobrepõe à idade anterior do camponês uma leitura estética, ou seja, a afirmação da dicotomia ócio / não ócio. De facto, a visão esteta só poderia vir de quem não produzia, não porque o camponês não a tivesse, mas porque exige um certo afastamento para a fazer. Neste processo a pintura exerce um papel fundamental, muito relacionado com forma de pensar e de estar. Mas esta apreciação estética da natureza, está muito ligada ao elogio do belo natural. Mas o que é a natureza? Para Rosário Assunto, a natureza é tudo, é qualquer coisa que não conseguimos abarcar na nossa condição humana. Mas há uma relação afectiva do homem com a natureza. Não é por acaso que as primeiras representações da paisagem são emolduradas pelo vão de uma janela; porque segundo Assunto, a paisagem é o excerto da natureza que o homem consegue compreender. O pensamento deste autor recorda-nos a importância de restabelecermos uma ordem de continuidade entre o ser humano e o ser natural. Assunto propôs para "um problema que parecia definitivamente liquidado, o problema de uma qualificação estética da natureza a procurar na natureza mesma - ou melhor, na natureza de que fazemos experiência."13 Segundo Adriana Serrão, a densidade intrínseca da paisagem vem acentuada por duas linhas fundamentais: por um lado, a qualidade estética deve ser procurada "na natureza mesma", como qualidade própria e não projectada de fora; como segundo elemento, na natureza que experienciamos, porque "vivemos nela", num habitar ou

Álvaro Domingues, “A Paisagem Revisitada” in Revista Finisterra XXXVI(72). Lisboa, Centro de Estudos Geográficos - Faculdade de Letras, 2001, p. 55. 12

Rosario Assunto, “Il Paesaggio e l’estetica” in Adriana Serrão, “Filosofia e Paisagem - Aproximações a uma Categoria Estética” in Philosophica (23), Lisboa, Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras Universidade de Lisboa, p. 92. 13

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vivenciar directo. Como natureza estética directamente experienciada, presença e não representação, a paisagem apresenta-se assim segundo uma dupla referência: ao ser mesmo da natureza e ao nosso modo de a experienciar. Implica o nosso estar-em nela: é sempre a "experiência de nós vivendo nela".14 Assunto avança ainda com o conceito de "finitude aberta" (finitezza aperta), isto é, como um espaço que reúne simultaneamente três dimensões: a finitude, a abertura e a exterioridade. Ao mesmo tempo delimitada, aberta e exterior, uma paisagem é um espaço especial onde emerge uma "meta-espacialidade do espaço" e onde se dá também como que uma "cristalização" do próprio tempo. 5. Estamos na terceira idade. Pensar o lugar e a sua história, procurando remover as sucessivas camadas do tempo que se sobrepõem umas às outras, é um acto fundamental no projecto. Longe de ser uma análise historicista, é um dos muitos instrumentos que manipulamos enquanto arquitectos para entender o lugar. Ou como lhe chama Alexandre Alves Costa, são os nossos “instrumentos de reconhecimento do real”15 para perceber a história e o passar do tempo. A arquitectura, vista também como construção da paisagem, acaba quase sempre por ser um equilíbrio entra a Natureza e tudo o resto que o tempo ainda não comprometeu, num princípio de continuidade, mais ou menos desinibido, num processo baseado no espírito do lugar. E a memória é indissociável desta caracterização do lugar.


Adriana Serrão, “Filosofia e Paisagem - Aproximações a uma Categoria Estética” in Philosophica (23), Lisboa, Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras - Universidade de Lisboa, p. 92. 14

Alexandre Alves Costa, “Musealização do Sítio de Castelo Velho (resumo)” in Susana Oliveira Jorge (coord.), Recintos Murados da Pré-História Recente. Porto-Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2003, p. 67. 15

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Referências ASSUNTO, Rosario, Il Paesaggio e l’estetica. Palermo: Edizioni Novecento, 1994. COSTA, Alexandre Alves, “Musealização do Sítio de Castelo Velho (resumo)” in Susana Oliveira Jorge (coord.), Recintos Murados da Pré-História Recente. Porto-Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2003, p. 67-78.. DOMINGUES, Álvaro, “A Paisagem Revisitada” in Revista Finisterra XXXVI(72). Lisboa: Centro de Estudos Geográficos - Faculdade de Letras, 2001, p. 55-66. MATOS, Rute, A Reinvenção da Multifuncionalidade da Paisagem em Espaço Urbano Reflexões, Tese de Doutoramento. Évora: Universidade de Évora, 2010. PEREIRA, Edir, “Resenha - Ver a Terra: Seis Ensaios Sobre a Paisagem e a Geografia” in GEOgrafia, ano VIII(15). Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, 2006, p. 143-149. SERRÃO, Adriana, “Filosofia e Paisagem - Aproximações a uma Categoria Estética” in Philosophica (23). Lisboa: Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras - Universidade de Lisboa, p. 87–102. SCHAMA, Simon, Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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