Paisagem_poder de mediação no uso do espaço público urbano.docx

May 26, 2017 | Autor: Anna Ludovici | Categoria: Territoriality, Paisagem, Urban Space
Share Embed


Descrição do Produto

1



Paisagem: poder de mediação no uso do espaço público urbano
Anna Ludovici
IGOT, UL, [email protected]
Resumo
Frequentemente a geografia concentrou-se na compreensão do comportamento social no espaço público urbano. Os lugares considerados "agregadores" não são susceptíveis de ser usados diretamente e de forma autónoma pelo cidadão e para gerar uso e empatia com eles não é suficiente a presença de equipamentos. Para ser aproveitada, a cidade precisa de um "mediador" cultural e social, que justifica a acção direta no território. Atualmente esta função é desempenhada por elementos ligados ao consumo. As "esplanadas" demonstram claramente como o actor social age de forma "indireta" sobre o espaço público, utilizando-o nas parcelas privadas. Mas há lugares urbanos que nos encorajam a agir diretamente no território: aquelas porções de território reconhecíveis enquanto "paisagem" na sua dimensão individual e colectiva, onde o actor age diretamente, praticando a experiência da paisagem na forma que mais lhe agrada. Esta reflexão procura verificar como a paisagem afeta o uso do espaço público urbano.

Palavras-chave: paisagem, espaço público, espaço urbano, território, mediação.
Introdução
Este artigo pretende oferecer uma reflexão sobre o conceito geográfico de paisagem, enquanto elemento mediador no uso do espaço público urbano. Em termos concretos, questiona-se como e de que forma a paisagem afeta e modifica o comportamento social no espaço público. Frequentemente a geografia concentrou-se na compreensão do comportamento social no espaço público urbano, procurando analisar como os atores sociais o utilizam e vivenciam. A sua acção é direta ou é mediada por alguma coisa? O que parece evidente, é que não é suficiente a presença de equipamentos para gerar uso e empatia com o espaço público. De facto, os lugares geralmente considerados "agregadores", como as praças, não são susceptíveis de ser usados diretamente e de forma autónoma pelo cidadão. Para ser aproveitada, a cidade precisa de um "mediador" cultural e social, que justifica a acção direta no território e que, na maioria dos casos, vai para além dos equipamentos coletivos. Neste breve artigo vou tentar de expor quais são os elementos que desepenham atualmente esta função intermediária, e mostrar qual é a possível função da paisagem.
1. Paisagem: visões e perspectivas na geografia
O conceito ocidental de paisagem nasceu indissociavelmente ligado com a ideia de beleza, lindeza e harmonia, todos conceitos emprestados pelas artes, principalmente as pictóricas. É sobretudo a partir de XVIII séc. que se definiu o principal papel da arte: a imitação da natureza. Esta abordagem 'estética' levou bem longe a simples reprodução artística da natureza, até chegar a uma verdadeira modelação do espaço natural. De facto é propriamente atribuível a este período o nascimento de disciplinas, como por exemplo a arquitectura da paisagem, que tiveram o explicito objectivo de transformar a natureza seguindo as regras da arte e dos seus modelos mais sofisticados.
A geografia, só numa fase muito mais recente, começou a procurar qual fosse o seu próprio papel na definição do que é ou não é a paisagem, e como este conceito pudesse se referir não apenas às regras artísticas, mas também e sobretudo a uma produção do território propriamente geográfica. Sem entrar nos detalhes, pois não é esta a sede certa por isso, quer-se mesmo dar uma rápida recapitulação deste processo. Inicialmente (primeira metade do século XX) o estudo geográfico da paisagem pode ser resumido em duas visões principais: uma volta a identificar a paisagem como "uma fisionomia caracterizada por formas", e portanto ligada "ao método morfológico". Outra ligando a paisagem "às características de uma área expressa nos seus atributos físicos-naturais e humanos" , "aproximava o estudo da paisagem do das regiões […] adoptando como método a análise corológica" (Barata Salgueiro, 2001).
É só a partir da segunda metade do 1900, nos anos '70 e '80, e graças a introdução pelas diferentes disciplinas de conceitos inovadores, como o do "espaço vivido" (Fremont, 1976), que a noção de paisagem começou a ser definida a partir de uma dupla ligação entre os elementos intrínsecos na natureza, e as qualidades próprias de quem observa. A 'paisagem geográfica' resultava assim de um conjunto de elementos físicos e antropológicos relacionados em forma "dialéctica" (Bertrand, 1972). Uma "double artialisation" (Roger, 1997) da natureza, ou seja um processo de formação da paisagem, divido ao conjunto de duas acções: uma directa "in situ" constituída pelas acções directamente exercitadas in loco; e uma segunda indirecta "in visu", mediata pelo olhar do observador, constituída por uma concetualização, podemos dizer a priori, de modelos intelectuais e de alguma forma não imputáveis a uma realidade exterior. Já Berque (1994) destacava que, pelo facto de ser fruto desta interação entre espaço observado e attitude do observador, "estudar uma paisagem não é apenas uma análise da sua morfologia". Mas também não é reduzível exclusivamente a "um espelho da alma" do observador (Berque, 1994). Turco (2010) fala de paisagem como uma das "configurações do território", intendendo com o termo 'configuração' os atributos reconhecíveis numa territorialidade. Nesta visão, de facto, o território é a superfície da terra afetada pelos processos de "humanização" da natureza através de acções de apropriação simbólica e material, e a territorialidade aparece portanto como uma "qualidade territorial". A territorialidade enquanto qualidade geográfica, portanto, é declinada através "configurações" variáveis no tempo e no espaço, nas quais são reconhecíveis conformações arquetípicas, e consente-nos de perceber a essência do lugar historicamente construído por uma comunidade humana, a sua qualidade paisagística, e também o seu valor ambiental. Podemos portanto resumir que quando falamos de paisagem entendemos uma porção de território em que de forma subjectiva um observador interage dialecticamente com as qualidades intrínsecas daquele espaço, até o vivenciar de forma colectiva em conjunto com os outros observadores.
Quando esta definição é aplicada a um espaço urbano, a sua experiência pode ter diferentes consequências. Principalmente temos de ter presente que a paisagem, assim como as outras "configurações" (Turco, 2010) da territorialidade é reconhecível só tendo em conta o factor emotivo e a capacidade de cada um de nós de receber e perceber o espaço. Neste sentido, a experiência (individual e colectiva) da paisagem no espaço público urbano, procura em nós uma sensação de bem-estar, harmonia, lindeza. Até levantar algumas questões: 'Porque é que só em determinados lugares da cidade eu consigo experênciar esta sensação?' 'Qual é a particularidade da paisagem urbana?' 'Como e de que forma afeta os comportamentos sociais?'
2. Identidade narrativa e paisagem cultural
Na prefácio do seu livro A paisagem urbana moderna Edward Relph (1987) escreve: "O final do século XX talvez seja o primeiro período da história em que é possível para a maioria das pessoas sobreviver sem o conhecimento directo do que as rodeia. […] Considero isto deprimente porque as paisagens e os lugares onde vivemos são importantes". O autor considera sobretudo as paisagens das grandes cidades, que na sua visão, mais claramente podem representar a cultura dominante contemporânea.
Já nesta premissa, podemos destacar como seja fundamental considerar o território enquanto resultado da sociedade que o produz. Neste quadro a paisagem assume a função de "identidade narrativa" em que cada percurso de vida pode se reconhecer. Isto apenas é possível quando um território consegue transformar-se na paisagem de todos, ou seja quando "uma cidade é capaz de conservar as suas próprias ícones, sem por isso se identificar exclusivamente nelas" (Turco, 2010). Numa certa forma é preciso retomar a metáfora de Turri (1998) que compara a paisagem com o teatro. Na visão do autor a transformação de um panorama numa paisagem acontece a partir da necessidade de conservar a ideia de maravilha associada à acção de observar, junta com a experiência própria do teatro, que vê o expectador não simplesmente numa posição passiva, quanto numa dialéctica activa com o que se passa sobre o palco, e que de facto constitua a base da dramaturgia (Turri, 1998). Este processo pressupõe portanto de um lado uma capacidade de "descrição" (Lehmann, 1950) da paisagem, que não é apenas uma descrição objectiva do que se vê, mas é resultado da interiorização emotiva do observador. De outro lado, como relata muito bem Andreotti (2014), é necessário "um processo psicológico que não é um ato autônomo do sujeito, mas a soma das emoções do sujeito e daquelas que o próprio sujeito transborda na paisagem […] que bem longe de ser uma entidade, é um pressuposto de uma relação". "A paisagem, portanto, marca o homem do qual é marcada, reflete-o, dele é a história. Pode ser considerada o poema que narra os eventos humanos em seu desenvolvimento: a composição na qual o homem escreveu tudo o que tem estado na ética, na estética, no pensamento, na guerra e na paz, no progresso ou na decadência, na carência ou na abundância, na história ou no mito, nos momentos de religiosidade ou de agnosticismo. Refere-se à paisagem cultural que é logos, discurso da memória, da história e da cultura, e, como tal, paradigma de valores éticos e estéticos." (Andreotti, 2012).
De facto a estrutura territorial que mais representa a expressão da cultura ocidental moderna e contemporânea é a cidade na sua essência e nos seus símbolos. Aquela mesma cidade que já a partir da idade de médio foi construída para satisfazer as necessidades económicas, comerciais e de segurança dos cidadãos, e que acabou para se identificar com a unidade mínima do estado moderno. Neste sentido algumas cenas urbana podem bem ser considerada e analisada enquanto paisagem. Portanto, a partir das definições utilizadas até então para tentar de compreender o articulado e complexo processo de formação, descrição e percepção da paisagem em geral e da paisagem urbana em particular, o que aqui questiona-se é se e de que forma a experiência da paisagem afeta o uso do espaço público urbano.
3. Espaço público urbano: paisagem como elemento de mediação
O espaço público pode ser considerato seja enquanto âmbito público de participação, seja enquanto espaço físico de acesso e uso, e a sua noção é relacionada com concepções e práticas relativas às relações sociais, à constituição da ideia de espaço, de colectividade e de cidadania. Na experiência social das últimas décadas, a vida pública no espaço urbano desenvolveu-se de forma cada vez mais complexa. A função tradicional da cidade, o seu papel, a sua construção/distribuição física no espaço mudou completamente com a evolução da cidade pós-moderna, um processo muito bem descrito pelo Boni (2012), que fala de uma cidade que já não consegue definir a si mesma, nas suas funções e prerrogativas. Uma cidade que, parafraseando Guattari (1985), é marcada para práticas sociais que a pulverizam em "territórios de subjetivação". O valor e o significado dos espaços públicos urbanos são redefinidos e re-conceptualizados através de dinâmicas consumisticas que alteraram a paisagem urbana. Podemos falar de um uso funcional do espaço urbano, ou seja de intervenções urbanas de re-localização e re-valorização que tornam o patrimônio cultural uma mercadoria. Uma nova realidade que se reflecte também nas definições de conurbations (Geddes, 1949), cityscape, landscape-cities, global cities, city-region, em fim naquelas práticas de gentrification que Benjamin (1997) define de "embelezamento estratégico".
Ao lado deste primeiro tentativo de enquadrar a cidade de um ponto de vista formal, não podemos não considerar o aspecto substancial do uso e do acesso ao espaço público urbano. De facto sentimos como estes processos de periferização e suburbanização, conduzem ao desaparecimento da vivência do espaço público, uma literature of loss (Kilian, 1998) onde as praças já não são lugares de encontro, e o problema da mobilidade paralisa a paisagem urbana. A acessibilidade cada vez mais ligada as dinâmicas de consumo, transformou-se também nas formas de mediação. De facto paralelamente ao urbanismo fragmentário e policêntrico, vão surgir novas formas de representar e de vivenciar a cidade. Falamos sobretudos daquelas imitações de espaços tradicionais da cidade, os novos espaços comerciais - shoping, esplanadas etc. - e os seus consequentes usos e tipologias. O espaço urbano portanto encontra-se constringido entre a propriedade privada e o uso colectivo (Silva Graça, 2006) na construção de lugares artificiais nos quais os cidadãos acabam num 'paradoxo geográfico': utilizam o espaço público, livre e gratuito, através de porções fechadas, privadas e a pagamento, onde as lógicas de consumo, misturadas as exigências de segurança e vigilância condicionam o uso do espaço público urbano.
Mas isso nem sempre é verdade: há lugares urbanos que nos encorajam a agir diretamente no território, sem que ocorra mediação por qualquer tipo de equipamento ou condicionamento associado à obrigação de consumo. Refiro-me àquelas porções de território reconhecíveis enquanto "paisagem", onde o actor pratica na forma que mais lhe agrada a experiência da paisagem na na sua dimensão individual e colectiva.
Conclusões
Como refere A.Turco nas primeiras páginas da sua 'Teoria geografica della complessità' "o território é, simultaneamente, produto geográfico da ação social e prerrogativa de nova produção territorial" (Turco, 1988). A partir de uma observação dos comportamentos sociais em determinados lugares urbanos, é possível intuir como a vivência da paisagem, afeta não apenas a nossa percepção mas também a nossa forma de interagir com o espaço público. De facto, é nestas parcelas de território que os cidadãos aproveitam e vivenciam o espaço urbano de forma directa, utilizando a sensação de harmonia, beleza etc. como factores de qualidade que levam os observadores a ter uma experiência emotiva satisfatória.
Se assumimos que um território reflecte a sociedade que o o produz, é também verdade que aquela mesma sociedade impõe as formas e as possibilidade de acesso ao espaço. Em termos gerais podemos dizer que atualmente a nossa sociedade, presa em exigências marcadas pelo consumo e pela globalização dos mercados, age consequentemente planeando os espaços urbanos de forma que sejam cada vez mais competitivos a nível económico e comercial, até utilizando a componente estética da arquitectura como valor de troca, e já não exclusivamente na procura do seu valor artístico.
Nesta abordagem, a paisagem, intendida na sua polivalência cultural, simbólica, subjectiva, interrompe este sistema e acaba para ser um instrumento muito importante, não apenas para interpretar as cidades atuais, mas sobretudo para imaginar novas formas de planeamento urbano. De facto, a paisagem, introduzindo uma 'variável emocional' na equação do funcionamento do espaço urbano, consegue elevar a um nível mais alto a inteligibilidade, a construção e a eficácia do espaço urbano. Nesta forma a vivência da paisagem, que se manifesta no uso directo do espaço público, acaba para ser um dos fatores mais determinantes daquela mediação que há entre uma sociedade e as formas e possibilidades dela fruir do seu próprio território. Assim a paisagem, enquanto instrumento de mediação no uso do espaço urbano, pode constituir a base da futura topogenese da cidade.
Bibliografia
Andreotti, G. (1996). Paesaggi culturali: teoria e casi di studio. Milano: Unicopli. (Tradução brasilerira – Curitiba:UFPR, 2013)
Andreotti, G. (2012). O senso ético e estético da paisagem. Ra'e Ga-O Espaço Geográfico em Análise, 24.
Baumann, Z. (2014). Il demone della paura. Bari: Laterza.
Benjamin, Walter (1997), Paris, capital do século XIX, in Carlos Fortuna (org.). Cidade, cultura e globalização. Ensaios de sociologia. Oeiras: Celta Editora.
Berque, A. (Ed.). (1994). Cinq propositions pour une théorie du paysage. Editions Champ Vallon.
Bertrand, G. (1972). Paisagem e geografia física global: esboço metodológico. Universidade de São Paulo, Instituto de Geografia.
Boni, L. (2012). La città corpo senza organi. L'attualità del dialogo tra Deleuze-Guattari e Foucault sulla città come campo di produzione di soggettività.Scienza & Politica. Per una storia delle dottrine, 23(45).
Frémont, A. (1976). La région, espace vécu. Paris: PUF.
Geddes, P. (1949). Cities in evolution (Vol. 27, pp. 109-123). London: Williams & Norgate.
Guattari, Félix (1985), Espaço e poder: A criação de territórios na cidade, Espaço eDebates, 16.
Kilian, Ted (1998), "Public and Private, Power and Space", in L. Andrew; J. M. Smith (orgs.), The Production of Public Space. New York: Rowman & Littlefield Publishers.
Lehmann, H. (1950). Die Physiognomie der Landschaft (pp. 182-195). Springer Berlin Heidelberg.
Relph, E. C. (1987). The modern urban landscape: 1880 to the present. JHU Press.
Roger, A. (1997). Court traité du paysage (Vol. 14). Paris: Gallimard.
Salgueiro, T. B. (2001). Paisagem e geografia. Finisterra, 36(72), 37-53.
Silva Graça, M. (2006). Espaços públicos e uso colectivo de espaços privados.Cultura Light, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 107-115.
Turco, A. (1988). Verso una teoria geografica della complessitá. Milano: Unicopli.
Turco, A. (2010). Configurazioni della territorialità. Milano: Franco Angeli.
Turri, E. (1998). Il paesaggio come teatro. Venezia: Marsilio.





Na teoria da territorialização, Turco individua três principais configurações da territorialidade: a paisagem, o lugar e o ambiente.
Segurança e vigilância também podem ser interpretadas como bens de consumo (Baumann, 2014)



XIV Colóquio Ibérico de Geografia/ XIV Coloquio Ibérico de Geografía
11-14 novembro de 2014/ 11-14 Noviembre de 2014
Departamento de Geografia, Universidade do Minho



Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.