Paisagens sonoras: quando a escuta recorta o invisível [divagações a propósito de algumas experimentações]

June 14, 2017 | Autor: Ana Godoy | Categoria: Arte, Ecologia, Subjetividade
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Paisagens sonoras: quando a escuta recorta o invisível [divagações a propósito de algumas experimentações]

Ana Godoy1

Resumo: Como ultrapassar os tempos psico-físicos da audição? Por que fazê-lo? São essas as duas questões que vêm mobilizando desde 2003 meu trabalho com paisagens sonoras e que pretendo desdobrar aqui a partir de alguns aspectos de três experimentações, realizadas entre 2003 e 2008, com crianças, jovens e adultos em ambiente escolar. A partir de materiais diversos, cada uma destas experimentações explorou a ideia de uma escuta sem apoio, uma escuta nômade, uma escuta da diferença, problematizando a redução dos territórios sonoros ao estupidificante receber, classificar e interpretar, pondo em jogo a potência de uma escuta liberada da capacidade ou competência auditiva, das qualidades de uma fonte sonora e do unicentramento na cultura. Abstract: How to overcome the psycho-physical tempos of hearing? Why do it? Those are the two issues that since 2003 have mobilized my work with sound landscapes and that I intend to unfold here from three experiments, held between 2003 and 2008, with children, adolescents and adults in the school environment. Using several materials each of these experiments explored the idea of hearing without support, nomadic hearing, hearing of difference, questioning the reduction of sound territories to the stupidifying receipt, classification and interpretation, bringing to light the potency of a hearing liberated from audio capacity or competency, of qualities of a hearing source and of uni-centered culture.

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Ana Godoy é doutora em Ciências Sociais pela PUC de São Paulo vem desenvolvendo desde 2000 oficinas na interface entre ciências sociais, ecologia e arte problematizando os modos de subjetivação contemporâneos, bem como os processos educacionais aí implicados e tendo como perspectiva a contemporaneidade das sociedades de controle. Atualmente desenvolve seu segundo pós-doutorado na Faculdade de Educação da UNICAMP/Grupo OLHO. É autora do livro A menor das ecologias. São Paulo: EDUSP, 2008 e colaboradora do blog Carta Potiguar

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(...) But the silence remains. The more I think about it, the stronger it is. The piano loses its sound; the painter no longer paints; the musician ceases to make music. They lose their function, but not their beauty - they become even more beautiful.2

[1] Pedras, nomes e conceitos

Heráclito disse certa vez que “o mundo mais belo é como um monte de pedras lançado em confusão” (2006: 184)3. Na expectativa desta beleza, o resumo que apresentei poderia ser bem visto como esse monte pedras. Há ali conceitos potentes criados por Nietzsche, Deleuze e Guattari e aqueles criados por John Cage e por Silvio Ferraz, há um termo criado pelo compositor e ambientalista Murray Schafer, e há também a imagem do trabalho de Chiharu Shiota, há concepções de ecologia e há abordagens composicionais, há um projeto educacional, um programa político e há, sobretudo, os modos de existência que eles implicam. As pedras de Heráclito, assim como os nomes e conceitos aqui lançados, extraem sua beleza de um mesmo começo abissal de fissuras. Ambos seguem “uma sintaxe de fendas e rupturas” (SMITHSON, 2006: 184) e o princípio poético que os anima é o da erosão de qualquer discurso didático. Este texto, tal como cada experimentação realizada, pontos de vista que são, toma-os – pedras, nomes e conceitos - desde uma certa relação com a Terra, um modo de caminhar sobre a Terra; desde um modo de viver e pensar, um modo de habitar. 2

Tradução livre: Mas o silêncio permanece./Quanto mais eu penso sobre isso,/tanto mais forte ele é./O piano perde seu som;/o pintor não pinta;/o músico deixa de fazer música./Eles perdem a sua função,/mas não sua beleza - que se torna ainda mais bela. Chiharu Shiota. Disponível em: http://www.detached.com.au/exhibition.html Acesso: 19.01.11 3 Heráclito, Fragmento 124 apud SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra [1968]. In: FERREIRA, G.; COTRIM, C. (Orgs.). Escritos de artistas: anos 60/70. (Trad. Pedro Süssekind et al). Rio de janeiro: Jorge Zaar, 2006. ALEGRAR nº08 - dez/2011 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br

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Vocês hão de notar que “o mundo mais belo” é aquele dos problemas que inventamos e que as pedras lançadas não o foram absolutamente por Deus e arrancadas do nada. Assim é que os conceitos e termos, formulados em função de um problema musical/composicional e filosófico contemporâneo, se avizinham com os problemas de uma política e de uma educação na contemporaneidade não pelo que têm em comum e nunca pelo que poderiam fazer uns pelos outros, mas por uma linha de fissura que os percorre.

[2] Como ultrapassar os tempos psico-físicos da audição? Por que fazê-lo?

Estas duas questões presentes na abertura deste resumo formulam hoje, com clareza, a inquietação que acompanhou minha pesquisa de doutorado; inquietação cuja culminância se deu lá pelo meio dela, no ano de 2002. Às vezes é preciso esperar um outro pesquisador (no caso o Rodrigo[Fonseca e Rodrigues]) encontrar um orientador (no caso o Silvio[Ferraz]) para que certas formulações possam se dar. Todavia, naquela época em que estava às voltas com os caminhos, e às vezes obscuros de minha pesquisa, o que ali se esboçava era não só um certo modo de me conduzir em relação a ecologia, em relação a educação e a pesquisa, mas um modo de me conduzir na vida. A especificidade dessas questões não deve, portanto, nos enganar; trata-se de questões políticas ou, ainda, de questões que perfazem certa política; aquela que foge à política da audição ocupada com determinar e regular a capacidade de reconhecer, quantificar e qualificar “o som emitido por um ambiente” que está ali ou acolá, em volta de cada um ou holisticamente em volta de todo mundo, incluindo e excluindo segundo a sorte mais ou menos democrática das políticas liberais de comunicação. Uma política da audição é bem aquela “que vai da boca ao ouvido”, como diz Nietzsche, e que a máquina da cultura movimenta aparelhando a escola e a universidade tendo por fim último o Estado (2003: 126). Uma política da audição só é possível desde que exista uma orelha, – imensa, diria Nietzsche -, plantada sobre um indivíduo eminentemente passivo, a quem caberia receber sons e distribuí-los segundo sistemas classificatórios em que se combinam arranjos culturais, mnemônicos e orgânicos. Se sua utilidade é inegável da perspectiva da sobrevivência - e sem dúvida alguma imprescindível para produzir as ficções de que o Estado necessita -, não quererá dizer que a vida se reduz ao mero exercício didático-burocrático da audição. Exercício em que o

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silêncio, o som e o ruído formam uma espécie de santíssima trindade para uma escuta devota das imagens que a inteligência provê. Esta escuta devota é inseparável de uma certa compreensão da cultura. Como sugere Viveiros de Castro (2002), digamos que, desde o Sermão do Espírito Santo proferido por Padre Vieira aos gentios destes brasis, a cultura tenha sido tomada como uma paisagem povoada de estátuas de mármore e não de murta4; de maneira que é preciso um mestre que cerceie o que viceja as orelhas vindo de toda parte, para que se dê ouvidos à boa nova: a de que um museu clássico – esse espaço idílico, freqüentado por corpos submetidos à abstração subjacente a sua organização – deveria ultrapassar o jardim barroco e seus traçados complicados e proliferantes em que a sensação suplanta a ordem, e a intensidade a eternidade. Vale dizer que esta escuta (tanto quanto esta concepção de cultura) é devota das formas organizadas a priori. Assim, guardamos aqui neste texto o mesmo apreço pela música e pelos músicos que os gentios daqueles brasis guardavam, a nos lembrar que a inconstância da alma selvagem (em nada exclusiva aos selvagens) era e permanece sendo inseparável de uma escuta cujos desdobramentos não eram e não são exclusivamente musicais e não se sujeitavam então, como não se sujeitam agora, à lei auditiva ou a fé na audição.

[3] Fazer uma ideia simples proliferar...

Estas questões-problema mobilizaram as oficinas experimentais intituladas “Paisagens Sonoras”, desenvolvidas com diferentes grupos e sob diferentes regimes entre 2003 e 2008. Um modo bastante simples, mas muito eficaz de descrever estas oficinas é apresentando-as sob a forma de uma pergunta: o que aconteceria se John Cage, Edgar Varèse, Iannis Xenakis, Debussy, Beethoven, Gyorgy Ligeti, Vivaldi, Aphex Twin, Pierre Boulez, Denise Garcia, entre outros muitos, se encontrassem com Murray Schaffer? Ou ainda: o que aconteceria se as paisagens 4

“(...) A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias um ramo se lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem dois que de cinco dedos fazem sete, e o que pouco antes era homem, já é uma confusão verde de murtas. (...)”. Sermão do Espírito Santo apud VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 183-184. ALEGRAR nº08 - dez/2011 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br

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sonoras fossem uma questão de escuta? E se a escuta dissesse respeito à vida, a uma mobilidade vital e fosse, por isso mesmo, uma questão política? A grande viagem (que de saída poderia parecer uma viagem na batatinha) era descobrir como passar de uma política da audição (que mais amplamente poderia ser chamada de política da percepção) que investe numa escuta apoiada, para uma escuta sem apoio cuja potência seria, sobretudo, política. Vejam que não se trata de montar oficinas para ensinar aos meninos e meninas, aos jovens e adultos, o que é uma paisagem sonora ou o que é música contemporânea ou como fazê-las. Aí me restaria somente falar desde um conjunto de proposições e cânones na expectativa, como coloca tão bem Silvio Ferraz, de que “do discurso sobre a música saia alguma música” (2005: 15) o mesmo valendo para qualquer outra coisa. Não se propondo a ensinar alguma coisa, a oficina também não se destinava a formar alguém (um cidadão, ou quem sabe – que terror! – um cidadão compositor), pois tais finalidades são aquelas da escola (atentem aqui para o sentido amplo do termo) e do Estado, e objetivam tãosomente fazer do experimentador um trabalhador, seja ele um aluno, um professor, um músico, um bailarino, um escritor ou um mecânico de automóveis. Estas figuras, estes pequenos segmentos – e outros tantos que poderíamos enumerar – já são um modo de organizar a percepção e implicam num esquema perceptivo posto em jogo cotidianamente nas relações, fazendo com que qualquer coisa funcione segundo um modelo normativo, condicionando a apreensão tanto na dimensão visual, quanto na dimensão tátil, sonora etc. servindo, desta forma, para prevenir qualquer alteração. Assim, as experimentações com paisagens sonoras nas oficinas eram, antes de qualquer outra coisa, experimentações políticas que punham em jogo as armadilhas da cultura, cujo valor geral seria: adorar estátuas de murta desde que preservado o mármore identitário... A oficina, as peças musicais, os compositores escolhidos, os gravadores, a interface de edição de sons eram somente pequenos dispositivos para desarmar armadilhas, no entanto sua potência disruptiva, sua potência como arma não estava dada de antemão. Exaustivo e impossível aqui descrever o processo de cada oficina, mas, preservado o início deste texto, cada uma começou como um monte de pedras lançadas em confusão e que bem poderiam permanecer assim caso os participantes se contentassem somente com classificá-las... Era preciso, para que a experimentação começasse, que aquelas pedras fizessem problema e fazer problema é bem mais do que atestar a efetividade dos sistemas classificatórios, mas perceber que eles são subsidiários de maquinações que os precedem, sempre em relação com o não classificável, com aquilo que não cessa de fugir à classificação. ALEGRAR nº08 - dez/2011 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br

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Paisagem I

Para todo o grupo de jovens do ensino médio que participou desta oficina a questão era a impossibilidade de se movimentarem na grade escolar, invocada nas recursivas chamadas por atenção e nos igualmente recursivos deméritos da distração; a experimentação começou com o esforço honroso de buscar uma definição de silêncio, som e ruído. Assim, o primeiro (o silêncio) foi lançado às praias paradisíacas da natureza; o segundo (o som) e o terceiro (o ruído), por sua vez, restaram participantes do jogo do inferno civilizacional cujo movimento a sala de aula retomava. Desencadeou-se, a partir daí, um exaustivo processo de identificação e classificação de sons segundo fontes sonoras e pontos de emissão, bem como a devida relativização do ruído numa espécie de “cada qual com seu cada qual” (cada cultura com seu ruído e cada ruído com sua cultura). Os clichês que a ideia de separação entre cultura e natureza carrega permanecem sendo os mais difíceis de “abrir” ou “raspar”, porque a ideia de união ou totalidade cultura/natureza não é um modo de enfrentá-los, mas um modo de assegurar sua permanência já que todo discurso sobre o Todo ou sobre a Unidade supõem, de saída, que as partes lhes são destinadas ou derivadas...

Paisagem II

Fui chamada pela coordenação do Ensino Fundamental II a pedido da professora de geografia. Ela queria que eu desenvolvesse – em mais ou menos cinco horas distribuídas em oito encontros de cinquenta minutos – um trabalho com Paisagens Sonoras junto a três turmas da antiga sétima série. A ideia dela era experimentar com os alunos “um outro modo de „ler‟ a paisagem urbana”. Sem aqui me prender às venturas e desventuras da paisagem total identificada ao meio inerte e vivo, e ao meio cultural, o que me chamou a atenção era um certo desvio documental: a paisagem como documento sócio-cultural. A paisagem não só precisava ser vista, mas agora se exigia uma visão habilitada que inclui a leitura convencional e a decodificação visual das relações das formas entre si e da carga de informações culturais potencialmente envolvidas. Esse processo de integração entre visão e leitura punha a mostra uma sede de narrativa, e supunha uma paisagem tagarela, cabendo a nós compreender e reconhecer os sinais sonoros como caracteres mais ou menos ALEGRAR nº08 - dez/2011 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br

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ordenados. A dificuldade maior aqui era desfazer a articulação entre capacidade auditiva e competência lingüística que, na esfera da decodificação visual, se opera com um ouvido que lê e com olhos que ouvem, é somente em relação aquilo que já foi dito e escrito, isto é, aquilo que perfaz a moldura cultural.

Paisagem III

Era um programa de extensão da PUC no qual se trabalhava a formação de professores, através de um projeto voltado para jovens e adultos que desejavam ingressar em universidades. Tínhamos, eu e a bailarina e performer Joana Ferraz, sete horas para, junto com o grupo de vinte participantes (professores e alunos5), por em movimento uma experimentação com paisagens sonoras usando o romance de Clarice Lispector, A hora da estrela (1982). Começamos com os doze títulos6 dados ao livro pela autora, trabalhando a partir daquilo que Clarice Lispector designara como um sentido secreto do mundo que ultrapassa o sentido das palavras e das frases, desviandonos, desta maneira, de tudo quanto “é definível” para vermos, como diz ela, “estritamente no momento em que vemos – e não através da memória de ter visto num instante passado” (1982: 9697). Abria-se aqui uma passagem, um tipo de desvio em relação ao desvio documental, uma distância entre ler e ver: sim, ler, mas, sobretudo ver aquilo que as palavras arrastam, que está entre elas e que não coincide com elas. Tentava-se, com uma certa elegância, declinar da ideia de que não podemos descrever uma paisagem que nunca tenhamos visto, e ainda de que a socialidade apoia-se exclusivamente na herança cultural e que, portanto só existe contida numa moldura. *** Retomando uma colocação anterior é importante ressaltar que não devemos desprezar a potência do museu clássico, mas como disse Paul Valéry, ainda que muitos sejam admiráveis, poucos são deliciosos... sugestivamente, e os Tupinambas já o sabiam, as coisas talvez não queiram ser simplesmente vistas, que dirá lidas como contrapartida de uma escrita normativa, ou meramente ouvidas, mas sim devoradas (!). Daí, quem sabe, a tagarelice da paisagem pudesse ser tomada como

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Os professores eram alunos do curso de licenciatura da PUCSP que atuavam neste programa de extensão na categoria estágio docente; os alunos eram jovens e adultos que, através desse programa, se preparavam para prestar vestibular. 6 Seguem-se os títulos: A culpa é minha ou Ela que se arranje ou O direito ao grito ou Quanto ao futuro ou Lamento de um blue ou Ela não sabe gritar ou Uma sensação de perda ou Assovio no vento escuro ou Eu não posso fazer nada ou Registro dos fatos antecedentes ou História lacrimogênica de cordel ou Saída discreta pela porta dos fundos. ALEGRAR nº08 - dez/2011 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br

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aquela arenga que precedia e presidia o banquete canibal, inseparável “do sentimento da vida voluptuosa e fecunda”, como diria Humboldt, que atravessa as coisas. Fora disso, em qualquer das paisagens, temos de nos haver com a transferência de informação ordenada a alguém que lê, que vê e que ouve; pois o colonizador, o civilizador por excelência, é como um satélite de sensoriamento remoto: ele reúne informações e controla seu mundo cartográfico… ***

Paisagem I: 7 gravadores analógicos, 7 fitas de 60’ e 54 horas de experimentações

Havia como que um luta a cada encontro. A pergunta pelo silêncio esbarrava em todas as obviedades do som e do ruído que facilmente podiam ser absorvidas pelo sistema classificatório proposto por Schafer, mas não resistiam às experimentações dos compositores que nos acompanhavam desde o início e cujas peças ocupavam cada vez mais nossos encontros. Depois de mapear, sonoramente a escola alguns meninos colocam claramente o paralelo com o mapeamento da sala de aula: saber onde alguma coisa está, como ela funciona, como ela se relaciona com o que está próximo dela e como obter alguma coisa que se quer. Para isso serve o mapeamento. A exaustividade do jogo classificatório fazia-se acompanhar de experiências de saturação (escutar todas as fitas ao mesmo tempo), de reiteração (um grito era selecionado numa fita e repetido “tortamente” por outros gritos presentes nas outras fitas) e assim por diante... Fugir do mapa exigia que se criasse um “por onde” e isso era bem mais do que permanecer nele. GODOY, Ana. Paisagem Sonora 1: Selva Alienígena. Alunos do Ensino Médio, 2003 (.mp3) GODOY, Ana. Paisagem Sonora 2: Riscos. Alunos do Ensino Médio, 2003 (.mp3)

Paisagem II: 1 gravador analógico, 26 i-pods, 5 horas de experimentação

Lá fomos nós caminhar pela rua7 e mais uma vez nos reunimos em volta dos equipamentos. A conversa corria tranqüila, aquela: identificar sons, pontos de emissão... De repente, notaram que

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A experiência de caminhar pela rua foi realizada por todos os grupos com os quais trabalhei.

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havia uma coisa estranha: a gravação feita com o equipamento analógico tinha um ruído constante, ausente naquela feita com equipamento digital (i-pod). Numa conversa enlouquecida estabeleceram que ruído era „tudo aquilo que a gente não sabe o que é‟, que „tira a clareza atrapalhando a identificação‟. No jogo das preferências a gravação do i-pod (digital) foi escolhida por alguns, porque era „limpa‟, já outro grupo dizia que „ela é igual o tempo inteiro‟. Restava descobrir que ruído era aquele, mas também que canto de passarinho era aquele que ninguém tinha ouvido ao longo do caminho. Vitor, nos seus 13 anos, foi tachativo: „os equipamentos não gravam o que a gente ouve, a gente é que ouve o que o equipamento grava‟. O ruído, bem..., o ruído insistiu como uma charada que um dos meninos decifrou ao final do dia: era o mecanismo do gravador que soava junto com tudo o mais. É desse grupo a ideia de que a poluição sonora hoje não é feita só de ruído, mas de um monte de sons iguais... GODOY, Ana. Paisagem Sonora 3. Alunos de 7º série, 2006 (.mp3) GODOY, Ana. Paisagem Sonora 4. Alunos de 7º série, 2006 (.mp3)

Paisagem III: nenhum equipamento de gravação, 7 horas de experimentação

A proposta era caminhar pela rua como Macabéa. (A) Como assim? (B) Caminhar como nordestina? Como pobre? Como excluída? (C) Não, não é assim que ela aparece! – interrompeu um menino. (D) Mas ninguém vê ela... . (C) Então… é assim que ela desaparece. Ela é pobre, feia, excluída e daí? A autora não ia ter escrito um livro esquisito desse, desse jeito estranho se fosse pra dizer isso. (E) Uma moça… . (F) Fala, cutucou a menina ao lado, fala alto! (E) É uma moça, uma moça que vivia e respirava... e achava a girafa elegante. Caminhar como Macabéa é assim. É desse grupo a ideia de que Macabéa é a variação de uma sonoridade, de uma tonalidade. Os títulos, aqueles doze enumerados, dizem como Macabéa soa, e soar é o que acontece quando cada paisagem é percorrida, é desdobrada pela escuta. Um dos meninos lembrou que quando Macabéa morreu os sinos badalavam, mas não saia som. Por que os sinos não soavam? – perguntei. Ele respondeu dizendo: porque a autora diz que estória da Macabéa é antes então, se ela é antes, é silêncio... como a gente pensou, cheio. É como cada um faz soar, colocou outro, ela diz lá no fim do livro: a grandeza de cada um. ***

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De todas as oficinas-paisagem aqui referidas, trouxe a vocês somente um começo dentre os muitos possíveis. Que possamos nos abrir aos começos, que possamos inventá-los quantos, e quantas vezes for preciso é o que interessa; e que saibamos nos servir de tudo quanto nos afronta, nos limita e nos impede de fazê-lo. Por essa razão faço abertamente uma aposta em que o nomadismo da escuta, sobre o qual Ferraz tanto insiste, não é indiferente ao afeto político que Deleuze torna possível. Começar aqui é liberar o sonoro do domínio do audível, liberar a escuta do domínio exclusivo do sonoro e do musical. Talvez este seja o tipo de ato que, não só testemunha a mobilidade vital que atravessa todas as coisas – cuja atividade eminentemente criadora a escuta prolonga –, mas aquele que desfaz em nós a ideia de que o mundo informa, desfaz em nós precisamente aquilo em nome do que vivemos sob controle. Talvez para essa escuta, como para o pensamento, o que irá contar “não é mais o enunciado do vento, é o vento” (BATAILLE, 1992: 21). ***

Gostaria, para encerrar minha fala, de ler pra vocês uma transcrição que fiz de uma conversa que se deu entre alguns alunos que participaram da oficina na qual trabalhamos com as paisagens sonoras. Ela é apenas uma de muitas a nos reenviar para o título que decidi dar a este texto. Uma a nos mostrar como se percorre uma paisagem e, nesse percurso, como a escuta se torna canibal e o canibal um artista, como um artista se torna um açougueiro para que o açougueiro se torne um compositor…

Uma homenagem a Pierre Boulez: o açougueiro Pierre Boulez Répons (1981-84) (.mp3)

Enquanto a gente escutava aquela música (a música era “Répons” de Pierre Boulez)..., senti de repente o cheiro da rua onde cresci. ... a rua era de terra... no final do dia todo mundo molhava a frente das casas... e vinha aquele cheiro.... e depois já era só aquele cheiro de terra molhada no fim do dia... daí tudo ficava uma mistura de amarelo e marrom e laranja... é isso pra mim, essa é a sensação... o amarelo e o marrom e o laranja molhados. (A) isso que ele falou, é uma paisagem não é?... mas não foi o compositor quem fez, mas tinha uma paisagem lá também, dele, não tinha?... quer dizer, aquele francês, era um francês, né? tinha aquela força ... uma música é uma paisagem ou ALEGRAR nº08 - dez/2011 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br

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é ao contrário, tipo a paisagem até pode ser uma música...? (B) acho mais isso, mas também, não sei... pode ser as duas coisas, mas... se a gente anda na cidade, a cidade..., uma paisagem, prédios, casas, as pessoas..., as pessoas não é musica mas até pode ser se... só um lugar é uma paisagem? (C) não. se uma música é uma paisagem, qualquer coisa é uma paisagem. mas é uma paisagem ou tem uma paisagem nela? (A) é diferente... dizer que é uma paisagem e que tem uma paisagem..., porque ele ali sentiu o cheiro das cores, aquela história de marron, amarelo molhado e eu não senti não..., acho... quer dizer, uma música tem mais de uma paisagem ou quando escuto..., porque ela vai aparecendo, né? é como um caminho e aí outras pessoas fazem outro caminho e ele, o caminho dele tem a terra molhada e coisa e tal e naquela música, acho que foi naquela, sei lá,... meu caminho era só esquisito e a sensação que eu tinha era, não sei dizer..., eu só tava lá, quer dizer... se a gente tocar o cd de novo o caminho não vai tá lá… a gente tem que fazer... (Eu) com o que? (A) sei lá.., escutando, do jeito que a gente abre caminho com um facão, porque a coisa não é fácil, hein!? (B) com você tudo é mato ou é açougue. (A) é disso que eu sei e dá no mesmo „ce abrir caminho no mato, na carne... a coisa toda é essa, vai abrindo, tirando o que tá na frente, o que ta nos lados, vai cortando e coisa e tal. (Eu) como assim? (C) cortar a música? (A) ah meu…!, deu de explicar, não é a música mano, como no açougue não é a carne, é antes. o que vem primeiro, a gente balança a faca assim (e fez uma série de movimentos com a mão no ar) e a coisa toda acontece e só depois a faca na carne. pergunta pro francês... nossa..., gostei daquele francês...! o cara é bom de corte: um açougueiro.

Bibliografia: BATAILLE, G.[1943]. A experiência interior. (Trad. Celso L. Coutinho; Magali Montagné; Antonio Ceschin). São Paulo: Editora Ática, 1992. COTRIM, C. (Orgs.). Escritos de artistas: anos 60/70. (Trad. Pedro Süssekind et al). Rio de janeiro: Jorge Zaar, 2006. FERRAZ, S. O livro das sonoridades [notas dispersas sobre composição]. Rio de Janeiro: FAPESP/4 Letras, 2005. LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O Livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. SMITHSON, R. Uma sedimentação da mente: projetos de terra [1968]. In: FERREIRA, G.; NIETZSCHE, F. “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino”. In: ____. Escritos sobre educação. (Trad. Nóeli C. de Melo Sobrinho). Rio de Janeiro/São Paulo: PUC-RIO/Loyola, 2003. ALEGRAR nº08 - dez/2011 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br

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