Paixão Pelo Consumo e Consumo Pela Paixão: O Processo de Comoditização do Mercado de Futebol Brasileiro

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Paixão Pelo Consumo e Consumo Pela Paixão: O Processo de Comoditização do Mercado de Futebol Brasileiro. Autoria: Getulio Reale, Marlon Dalmoro, Rodrigo Costa Segabinazzi

Resumo Neste estudo buscou-se compreender o processo de comoditização no mercado brasileiro de futebol, em franca expansão em função do crescimento dos clubes e dos grandes eventos esportivos que se avizinham. Por meio de um olhar etnográfico na relação entre produtores e consumidores ligados ao Sport Clube Internacional (Porto Alegre – RS), buscou-se compreender como torcedores e gestores de marketing dos clubes de futebol brasileiro criam, modificam, mantem, contestam e transformam (negociam) significados culturais. Os resultados dão conta que a paixão do torcedor justifica a necessidade dos produtores de marketing de comoditizar o mercado do futebol.

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1. Introdução Jogadores repatriados da Europa com salários de nível internacional, jogadores se fixando no Brasil apesar de propostas milionárias do exterior; parcerias de clubes nacionais com clubes internacionais, e especialmente uma busca pela profissionalização da gestão dos clubes de futebol. Essa tem sido a tónica daquilo que tem sido chamado de profissionalização do futebol brasileiro (Rodrigues & Silva, 2009; Tagore, 2013). De modo associado, a realização de megaeventos esportivos no Brasil, que exige a construção e reforma de estádios locais de acordo com o modelo FIFA de gestão do futebol, bem como a exploração destes eventos, tem sido vista como uma oportunidade para gerar receitas para os clubes de futebol nacionais. Nesta contextualização, é evidente um processo de mudança pelo qual vem passando o futebol brasileiro, visando uma integração internacional e profissionalização de gestão (Albino, Carrieri, Figueiredo, Saraiva & Barros, 2009). Derivado deste processo, observa-se a atribuição de valor econômico, ou seja, um processo de comoditização de elementos que antes não eram considerados em termos econômicos. Esse fenômeno, observado por Andrews e Ritzer (2007) como um processo de mercadização, envolvendo tanto a profissionalização quanto comoditização, passa ser uma realidade brasileira. A profissionalização e a adoção de práticas internacionais, especialmente Europeias, de gestão do futebol no Brasil resulta numa expansão do mercado para áreas antes não determinadas. Este processo de comoditização envolve aspectos culturais na medida em que os produtores e consumidores negociam os significados no mercado (Moisander & Valtonen, 2006). Sendo assim, compreender como produtores de marketing e consumidores/torcedores negociam significados culturais dentro deste processo de comoditização do futebol passa a ser uma prerrogativa na análise do processo de profissionalização do futebol brasileiro. Além disso, ao passo em que o futebol é um fenômeno social com maciça participação dos mais diversos estratos da sociedade brasileira (Damo, 1998, 2005; Oliven & Damo, 2001), diversos interesses estão em jogo e envolvendo diferentes agentes (Carvalho, Marques & Carvalho, 2009). Com a intensa presença do futebol como fenômeno cultural nas mais diversas facetas institucionais e estratos sociais do Brasil, ainda mais numa perspectiva de crescimento do mercado do futebol brasileiro e em função da Copa do Mundo FIFA de 2014 no país, os temas relacionados ao futebol, no “país do futebol”, parecem assumir um caráter de interesse geral da sociedade. Compreensão esta que baseia-se nas afirmações de Da Matta (1982), Damo (2005), Oliven e Damo (2001), para quem o futebol é um contexto social privilegiado para se pensar a sociedade, pois como bem mostram estes autores, estão representadas ali e participando de alguma forma desta realidade sociocultural todas as etnias, gêneros, classes sociais, faixas etárias e localizações geográficas do Brasil. Além disso, o futebol permeia formal e informalmente diversas esferas institucionais do pais, em especial a mídia profissional e o Estado. Adotando um olhar a partir da Consumer Culture Theory (CCT) (Arnould e Thompson, 2005), este estudo integra uma tentativa de olhar as modificações no mercado do futebol, reconhecendo um processo de comoditização de produtos e serviços atrelado a um contexto cultural. Especificamente, aqui, busca-se compreender como torcedores e gestores de marketing dos clubes de futebol brasileiro criam, modificam, mantem, contestam e transformam (negociam) significados culturais. Com a utilização de um olhar etnográfico, o processo de comoditização das marcas dos clubes de futebol emerge como um processo chave nas transformações dos significados culturais em torno do futebol. Os resultados reforçam a compreensão de que os processos de comoditização estão, de fato, entrando com força no mercado de futebol brasileiro, tendo a 2   

 

paixão como o elemento que produz sentido para as ações de produtores e consumidores. A seguir será relatado o processo de construção da interpretação que levou aos achados acima descritos, começando pela compreensão do processo de comoditização. 2. Compreendendo o processo de comoditização A construção deste estudo teve foco na busca da compreensão da relação entre produtores de marketing e consumidores, visto que nesta relação, significados culturais relacionados à marca, produtos e serviços do clube são negociados e envolvem um processo de comoditização (processo de tornar as coisas vendáveis) entre ambos os agentes (Peñaloza, 2000). Neste sentido, volta-se o olhar para a relação (Kates, 2007; Miller, 2007; Moisander & Valtonen, 2006) e negociação existente no processo de comoditização no mercado de futebol (Adrews & Ritzer, 2007; Guiianotti & Robertson, 2004). Para entendermos o processo de formação e transformação dos mercados por meio do processo de comoditização de práticas culturais, é interessante começarmos pela perspectiva de Marx (1990), que nos primeiros capítulos de “O Capital”, debruçou-se justamente sobre a natureza das mercadorias, ou commodities. Para o autor, o surgimento das mercadorias foi fruto de um processo histórico lento e gradual nas esferas da produção, circulação e consumo onde bens que eram produzidos em função do seu “valor de uso” passaram a ser produzidos pelo seu “valor de troca”. De uma realidade onde se trabalhava, produzia e trocava bens em função de valores tradicionais e em função da utilidade concreta e direta daquilo que se produzia, passou-se a trabalhar e produzir bens como meios (de troca) para obtenção dos bens que realmente tivesse valor final (de uso). Esse processo levou a um gradual afastamento entre o produtor e a natureza prática e final dos seus produtos e consequente abstração da vida produtiva em relação às relações sociais afetivas concretas do dia-a-dia, que se reflete no que Marx chamava de “fetichismo da mercadoria”, esse produto produzido não pelo seu valor de uso, pela utilidade final que pudesse ter, mas pelo seu valor de troca. Os mercados, portanto, seria justamente a esfera de circulação desses produtos “fetichizados”, as mercadorias. A relação que se estabelece com o torcedor universo do futebol de espetáculo (Damo, 2005), especialmente no caso dos clubes da elite do futebol brasileiro é, entre outras coisas, uma relação mercantil, que se baseia na produção de uma mercadoria (o espetáculo no estádio de futebol, os produtos e serviços com a marca do clube, etc.) para a troca no mercado pelo “equivalente universal”, também conhecido como “dinheiro” (Marx, 1990). É orientada, então, por uma ação racional prática e utilitarista, nas palavras de Marx, “fetichizada”. Em adição, as ações mercantilistas dos clubes de futebol correspondem, seguindo o raciocínio da Sahlins (2003), a uma relação entre cultura e razão prática, visto a impossibilidade de descolamento dos mercados em relação ao social. Assim, dentro de uma perspectiva cultural, e seguindo estudos como Barber (1995), a noção de cultura nos auxilia na compreensão das trocas de mercado, pois seguindo Sahlins (2003), todas as economias são imersas no social. Ou seja, os mercados são esferas complexas de trocas materiais e simbólicas onde significados e fluxo de bens materiais são disputados e negociados a partir das posições dos agentes no espaço social, e as mercadorias e sua circulação, uma parte concreta deste processo, obviamente, conforme elaborado acima, percebida e “praticada” pelo humano por meio das “lentes da cultura”. Assim, passaremos agora elaborar uma possível perspectiva acerca de como este processo vem ocorrendo no universo do futebol brasileiro. 2.1 O contexto de pesquisa Para buscar compreender como o processo de comoditização estava sendo negociado na relação entre produtores de marketing e torcedores foi escolhido um clube que tivesse as 3   

 

características de “grande clube de futebol”, conforme Andrews e Ritzer (2007) e Guilianotti e Robertson (2004), um participante da elite do futebol brasileiro, com grandes reservas de capital simbólico e futebolístico (Damo, 2005), com grande atividade de marketing e gerador de muitas oportunidades de relação com os torcedores no papel de consumidores. Adicionando a facilidade de acesso, foi escolhido o Sport Club Internacional. No período de realização do estudo (entre março de 2010 e janeiro de 2011) este era o clube com o maior número de sócios no Brasil (106 mil sócios) e um dos cinco maiores clubes em termos de tamanho de quadro social no mundo. Com faturamento em 2011 de R$ 188 milhões, sendo R$ 40 milhões com quadro social, R$ 11 milhões com licenciamento de marca, R$ 58 milhões com venda de ingressos em jogos e televisionamento, R$ 24 milhões com patrocínios, e 55 milhões em outras receitas (incluindo transações com jogadores de futebol). O clube teve, do ano de 2010 para 2011, um considerável crescimento das vendas, em especial em licenciamento de marca (mais de 100% de crescimento) e patrocínios (mais de 110% de crescimento). Estes números representam o segundo maior faturamento entre os clubes de futebol Brasileiro, ficando atrás apenas do São Paulo Futebol Clube (Internacional 2012). O Sport Clube Internacional é considerado pela mídia local e nacional e pelos próprios profissionais de marketing do clube um dos mais modernos e avançados em termos de gestão em todos os seus departamentos, incluindo o de marketing (Internacional, 2010). Por exemplo, além dos 106 mil sócios, o clube tem uma parceria internacional com clubes de futebol do exterior como Atlético de Madrid (Espanha), Chicago Fire Soccer Club (EUA), Tottenham Hotspur F. C. (Inglaterra), entre outros, com a qual pretendem a busca por novas oportunidades comerciais (Internacional, 2011). Além disso, conforme afirma Damo (1998), o clube tem torcedores espalhados entre todas as categorias sociológicas tradicionais, como renda, escolaridade, faixa etária, etnia e gênero. Este fato problematiza a questão da segmentação e definição de publico alvo, um problema que pode informar a discussão acadêmica que ocorre sobre o uso da categoria das tribos de consumo ou subculturas de consumo ou das categorias sociológicas tradicionais (Magnani, 1992; Holt, 1997) para a representação dos torcedores. 2.2 A busca da compreensão Para uma apreensão deste universo, foi lançado um olhar etnográfico sobre as práticas e relações de consumidores e produtores de mercados ligados ao Sport Club Internacional durante o período de março de 2010 a janeiro de 2011. A coleta de dados ocorreu por meio de diversas interações que envolveram observação participante e entrevistas. A observação participante ocorreu em diversos jogos da temporada, “churrascos” e assistência de jogos em bares com torcedores, eventos de marketing como lançamentos de uniformes, lançamentos de livros, visitas ao museu e ao estádio do clube, lojas no estádio, shopping centers e centro de Porto Alegre. Foi mantido um diário de campo no qual foram anotadas as descrições das práticas dos agentes, conversas informais e as principais impressões do pesquisador de cada momento de vivência no campo, totalizando 52 páginas. Foram realizadas 15 entrevistas formais com produtores de marketing e torcedores. Entre os entrevistados associados aos produtores de marketing estavam o diretor de marketing do clube, um assessor de marketing do clube, o representante da marca de material esportivo que patrocina-o (Reebok), uma vendedora de loja de produtos com a marca do clube, um funcionário do serviço de marketing de visita ao estádio do Sport Club Internacional (estádio Beira-Rio), o “Visita Colorada”, a gerente do museu do clube, a proprietária de uma empresa fornecedora de serviços de mensagens por celular contratada pelo Internacional, o proprietário da empresa que fornece os alimentos e bebidas no estádio Beira-Rio. Entre os torcedores foram entrevistados um 4   

 

agrônomo de 29 anos, uma padre de 46 anos, uma empresária do setor hoteleiro de 33 anos, um aposentado, torcedor símbolo do clube, de 76 anos, um professor universitário de 33 anos, um programador de informática de 30 anos e uma engenheira de alimentos de 26 anos. Estes torcedores foram escolhidos de forma emergente no desenvolver do campo e por contatos com conhecidos dos pesquisadores e as entrevistas conduzidas conforme os ensinamentos de McCracken (1988). Além disso, foram filmadas e analisadas cerca de 8 horas de práticas culturais em ações de marketing e jogos do Internacional. A análise e interpretação dos dados ocorram de forma iterativa, conforme os princípios do circulo hermenêutico (Moisander & Valtonen, 2006; Emerson, Fretz & Shaw, 1995), desde o começo da vivência no campo, passando por todo o período da etnografia, nos meses de análise pós-campo e até durante o processo de escrita deste artigo. Dados empíricos, teorias, preconcepções do pesquisador foram sendo confrontados, refletidos e interpretados de forma a criar uma compreensão da realidade cultural vivenciada pelos investigadores. A análise foi sendo construída durante todo o processo e pouco a pouco, numa atividade de ir e vir, do inicio para o fim e do fim para o início do conjunto de dados. De forma fluida e intuitiva as diversas informações apreendidas eram relacionadas reflexivamente para que uma representação consistente da realidade cultural vivida fosse criada com base naquilo que viu, escutou e viveu no campo. Buscou-se fazer diálogos entre os dados e a teoria, entre os dados e as preconcepções do pesquisador, entre as preconcepções e as teorias para que, no fim chegássemos a representação científica do processo de comoditização deste contexto de consumo e marketing (Moisander & Valtonen, 2006). Este processo ocorreu utilizando os textos culturais gerados no diário de campo, entrevistas e análise dos vídeos, que durante o processo de análise foram sendo gradualmente transformados em categorias representativas do universo cultural estudado, conforme ensinado por McCracken (1988) e Moisander e Valtonen (2006). Os achados etnográficos a seguir são o resultado deste processo de construção do conhecimento, no qual as diversas experiências de vivência com produtores de marketing e torcedores foram oportunizando a coleta de dados e a construção da interpretação sobre o como esta ocorrendo processo de comoditização em um contexto do futebol brasileiro. A partir do próximo capítulo, o texto será escrito em primeira pessoa, pois reflete as percepções do campo por parte do primeiro autor deste estudo. 3. “Inter, estaremos contigo! Tu és minha paixão! Não importa o que digam...”: A paixão que une e justifica. “Inter, estaremos contigo/Tu és minha paixão/Não importa o que digam,/Sempre levarei comigo/Minha camisa vermelha/E a cachaça na mão/O gigante me espera/Para começar a festa/Xalailaia xalaialaia xalaialaia/Você me deixa doidão Xalaialaia xalaialaia xalaialaia/Inter do meu coração!” (Cântico da torcida organizada Guarda Popular do Inter, “Camisa Vermelha”).

Esta canção da torcida Guarda Popular do Sport Club Internacional, uma das mais cantadas e com mais emoção nos jogos que participei, representa em parte o que a paixão significa para os torcedores. A paixão é um sentimento que permite fazer coisas que normalmente não fariam, coisas consideradas “doidas”, carregadas se euforia e êxtase. Faz com que o torcedor permaneça junto ao clube e o acompanhe “sob qualquer circunstância”, ou com dizem no cântico, “Não importa o que digam”. A palavra paixão é provavelmente uma das mais usadas e certamente a mais marcante de toda esta vivência nesse contexto cultural. O termo paixão é usado tanto por produtores como por torcedores e tem um papel central no significado que ambos atribuem a relação com o clube. É um conceito cujo significado media as relações entre produtores e torcedores, 5   

 

portanto as relações de consumo e comoditização. Mas o que o significado deste termo, construído no processo de vivência de campo, nos diz sobre como acontece o processo de comoditização neste contexto do futebol brasileiro? Os torcedores dão um significado à paixão que parece ter o sentido e legitimar suas ações que aparentemente rompem com as expectativas das pessoas não envolvidas com o clube ou com o futebol em geral. Todos os atos considerados exagerados, ou não conformes aos padrões de ação médios das pessoas estudadas são justificados como causados pela paixão. O trecho abaixo de uma entrevista também ajuda a ilustrar esta representação e a intensidade das experiências que dão significado à paixão pelo clube: “O Inter pra mim é uma paixão. É uma paixão e é uma coisa que me dá uma alegria, sabe, poder torcer pelo meu time. (...) E esse sentimento é o que une assim (...), é tão divertido aquele clima de comemoração, de vitória. Eu lembro bem assim de todo mundo se abraçando e um monte de gente que eu nunca tinha visto. A paixão toma conta, tu nem te preocupas... e isso eu acho muito legal.” (Babila, empresária).

Fica clara a importância e a intensidade do desejo de ir ao estádio torcer com o time para o informante. Este tipo de experiência tem o significado de transcender a realidade concreta do ser individual, de ser uma experiência forte, carregada de sentimentos intensos ligados à euforia, alegria, unidade, êxtase. A paixão pelo clube é uma força que “transforma”, que é significado como razão para as pessoas tomarem atitudes que normalmente não tomariam, que faz as pessoas entrarem em uma mesma “vibração”, agirem em conjunto, rumo a objetivos comuns; é unir-se em comunidade, em troca de sentimentos intensos, de confiança; é até mesmo tornarem-se agressivas e violentas. Também nos atos de consumo, como comprar ou usar produtos que não são os que mais gostariam, são justificados como inevitáveis ou aceitáveis em função da paixão pelo clube. Diversas vezes me confrontei com situações em que uma pessoa estava comprando, por exemplo, uma camiseta do time, mas não encontrando a versão vermelha do primeiro uniforme, apenas a branca do segundo uniforme, falava “Ah, mas é do Inter”, ou quando no caso de uma torcedora ao usar um radinho de pilha de baixa qualidade e antigo, tradicional dos estádios de futebol, com o brasão do clube falava: “É velhinho e feinho, mas é do Inter!”. Da mesma forma, para os produtores a paixão do torcedor é significada como uma emoção muito intensa que liga o torcedor de forma muito profunda ao clube. Essa conexão “transforma” as pessoas, as induz a fazerem coisas surpreendentes, a realizarem grandes esforços pelo clube. Torna-as ao mesmo tempo flexíveis, exigentes e muito fiéis. Chega ao ponto de fazê-las consumirem produtos geralmente associados a outro gênero. Em resumo, é uma “loucura”, nos termos dos produtores: “Facas!...uma coisa que o homem não ia olhar pra um conjunto de talheres... eles querem levar porque é do Inter. Copos... ‘Ah, vamos levar copo!’. Cuia nova... ‘Vamos levar uma mateira nova pra passear!’. (...) Pra decoração [são] mais os homens também que compram. Às vezes eles dizem ‘ah, vou apanhar da mulher se eu levar’. Tapete! Uma coisa que eles nunca... na verdade, não dariam muita bola, deixariam mais pra mulher fazer, né... e aqui eles acabam fazendo... comprando.” (Roberta, produtora).

A paixão é a principal explicação, ou o principal conceito usado para descrever quem é o torcedor/consumidor do clube: é “loucura”, é uma participação fortemente emocional e intensa, transforma as pessoas. Os produtores de marketing identificam essa paixão, até porque todos se dizem torcedores do clube. Compartilham deste sentimento e dos significados que ele carrega. No entanto, na condição de gestores do clube se imbuem de uma racionalidade prática e procuram utilizar essa força central na relação do torcedor com o clube para tentar construir a situação de mercado mais adequada para a condição competitiva na 6   

 

qual veem o clube. Com creem que o clube está numa competição intensa por recursos, inclusive com os grandes clubes de Rio de Janeiro e São Paulo, essa paixão precisa, na sua visão, ser convertida em recursos, na compra de produtos e serviços, ou seja, precisa ser comodificada. Em todas as ações de marketing que acompanhei, entre elas o lançamento dos uniformes para o campeonato Mundial Interclubes de 2010, a promoção “POA – Abu Dhabi – Fretamento Internacional: Eu vou!” (que levou dois torcedores para assistir a final do Campeonato Mundial Interclubes com todas despesas pagas nos Emirados Árabes) e a promoção “Reebok te leva para Abu Dhabi! – Rumo ao Bi Mundial” (Internacional. 2010a), um ponto central que causava estranhamento era que todas eram explicitamente e reiteradamente dirigidas aos “sócios em dia” do Internacional. É possível interpretar que o marketing só trata como Colorados (outra forma de chamar os torcedores do Sport Club Internacional) aqueles que pagam mensalidades de sócio do clube. O mesmo vale para a possiblidade de conseguir ir ao estádio assistir aos jogos, pois é praticamente impossível conseguir ingressos sem ser sócio em dia do clube, uma vez que todos os ingressos, em especial nos “grandes jogos”, se esgotam rapidamente apenas com as compras dos sócios em dia. A forma encontrada pelos produtores de marketing para comodificar a paixão é se apropriar do discurso das torcidas, representados pela musica acima transcrita, de “apoiar sempre”, de “jamais abandonar”, e criar ações de marketing e discursos explícitos e implícitos que levem a conexão da noção de paixão, de “verdadeira paixão”, ao consumo cada vez maior. Isso significa tentar influenciar aos poucos as crenças dos torcedores de que ser colorado de verdade, estar apaixonado de verdade pelo clube é “estar em dia” com a mensalidade do clube, é ir assistir (e consumir) a todos os jogos, mesmo nos jogos sem importância e nos dias frios e chuvosos, e comprar os produtos com a marca do clube sempre, não apenas quando o time está vencendo. Como foi relatado por um dos produtores de marketing, “o torcedor tem que ser sócio do clube, não do time” (João, produtor). Ou seja, os produtores de marketing tentam, na prática, fazer com que só possa ser colorado, que só se sinta “apaixonado de verdade” o torcedor que consome produtos e serviços do clube e em especial adimplente com mensalidade de sócio. A paixão está sendo comodificada na medida em que ela está se tornando gradualmente associada a noção de ser “sócio em dia” e consumir em todos os jogos da temporada, não apenas nos jogos importantes, com finais. 4. Os processos comoditização como necessidade de vitória no circulo virtuoso do futebol/negócio Foi possível interpretar que os produtores de marketing do Sport Club Internacional servem de mediadores entre as forças globais de comoditização e comercialização do futebol expressadas pelo modelo FIFA de futebol e torcedores do clube. Da mesma forma, conforme relatado por Andrews e Ritzer (2007), de fato a gestão de marketing do Sport Club Internacional é orientada e definida pelos processos inter-relacionados de “corporativização” (a gestão e o marketing das entidades esportivas de acordo com motivo de lucro), espetacularização (a primazia da produção de experiências orientadas pela mídia ao entretenimento) e comoditização (a geração de muitas correntes de receitas relacionadas ao esporte), apresentando alto grau de uniformidade global com relação à infraestrutura mundial do esporte (Andrews & Ritzer, 2007). Isso pode ser notado pela forte valorização e ação no sentido de evolução, profissionalização e racionalização da gestão clube (por exemplo, com a obtenção do certificado de qualidade ISSO 9000), assim como pela força que está sendo feita no sentido de obter sucesso no “círculo virtuoso do futebol/negócio” pela separação, ou 7   

 

melhor, pelo “afastamento” entre a motivação para consumo e os resultados do time dentro de campo, processo que será melhor detalhado à frente. Tanto produtores como torcedores têm a referência do modelo europeu de futebol, especialmente notado nas reiteradas referências aos modelos do Barcelona, Manchester United e Bayern de Munique. Além destas referências, no primeiro jogo que fui ao Beira-Rio, após um churrasco com amigos de um informante, me deparei, no intervalo do jogo, com o telão do estádio mostrando os torcedores que efusivamente exibiam suas carteiras de sócio do clube. Aqueles que eram focados por um zoom da câmera filmadora comemoravam muito enquanto eram parabenizados por receber uma camiseta oficial do clube como prêmio (caso fossem “sócios em dia”). Logo associei a experiência a um jogo de basquete NBA (National Basketball Association) norte-americana que havia assistido no passado, no qual, sem dúvidas, a parte mais interessante eram os intervalos, onde shows incríveis, com muitas premiações para a torcida. Esta impressão ainda foi corroborada por comentários de produtores sobre a referência norte-americana: “Daqui a pouco a gente vai chegar num patamar ai, tipo, que nem NBA que as pessoas vão e que é um programa que as famílias gastam, sei lá, 500 dólares pra ir num jogo NBA” (Marlon, produtor).

Essa reflexão expressa uma tendência na aplicação de ações de marketing que tem origem em práticas de marketing do exterior, especialmente Europeias, a grande referência de gestão do futebol, mas também dos EUA, referência em otimização do consumo. São tipos de ação que não partem de uma iniciativa ou tradição da torcida, mas são colocadas pelo marketing para o torcedor a partir de fora. Esse fato representa dois aspectos fundamentais do processo e comoditização do mercado de futebol: o marketing é um agente de mudança e imposição de práticas de comoditização (Peñaloza, 2000; Moisander & Valtonen, 2006), e também um agente do processo de mercadização global, trazendo para a cultura do torcedor local práticas oriundas de outros países (Andrews & Ritzer, 2007; Giulianotti & Robertson, 2004). Evidencias textuais referentes a estas práticas também ficam muito bem representadas nas entrevistas com os produtores de marketing, como no trecho a seguir: “O departamento de futebol faz o que quer e bem entende, contrata e às vezes o marketing fica sabendo pelo jornal que esse jogador foi contratado. Enquanto você olhar os clubes da Europa há uma supervalorização, uma superutilização da contratação desse ídolo com o objetivo de captar recursos. Tá aí a apresentação do Kaká no Real Madrid, do próprio Cristiano Ronaldo, cujas camisas vendidas, possibilidades de negócio que surgiram, praticamente pagam a conta da contratação desse grande herói.” (João, produtor).

Outra experiência etnográfica muito marcante, que por um lado confirmou a interpretação relata acima, fortemente coerente com a teoria, diga-se de passagem, e por outro começou a despertar o olhar para outro aspecto, o da elitização, foi a observação participante na produto/serviço “Visita Colorada”. Esta é uma visita guiada organizada pelo departamento de marketing do clube em parceria com uma empresa de turismo. A visita leva grupos de torcedores a diversas partes do complexo Beira-Rio, como o túnel de acesso ao campo de jogo, ao campo de jogo, aos camarotes ou suítes do estádio e termina no Museu, onde outro guia faz o tour para os interessados. Interessante que parte da visita e dos comentários e brincadeiras feitas pelo guia giram em torno do projeto “Gigante para Sempre” que inclui a reforma do estádio Beira-Rio que adequará o estádio ao modelo FIFA (assentos para todos expectadores, proximidade do campo e outros itens de conforto, segurança, visibilidade e publicidade,), viabilizando o uso do estádio para a Copa de 2014. Referências também eram feitas ao Allians Arena do clube alemão Bayern de Munique, que explicitamente serviam de referência estética quando o guia falava sobre a beleza do projeto do estádio Beira-Rio 8   

 

reformado. Aqui, a referência à Europa e aos clubes da Europa fica evidente. O que os produtores dizem para os torcedores é que o clube quer ser como os grandes times da Europa, e por tanto procura mimetizar suas melhores práticas e referências e as justifica pelo sucesso financeiro e de conquistas destas referências. Toda a forte referência do modelo europeu e suas práticas são utilizadas pelos produtores e torcedores para justificar as ações e mudanças no sentido de busca de aumento de faturamento do clube como algo necessário para sobreviver no mercado atual e poder conseguir aquilo que mais querem os torcedores: as vitórias do time. O processo de comoditização, pelo aumento dos preços e de quantidade de produtos e serviços com a marca do clube, e mais amplamente pela profissionalização e racionalização geral dos processos organizacionais é significado como um caminho necessário e inevitável para a manutenção e sobrevivência do clube. Assim, a Europa, mais fortemente, e os EUA, com menos força, são tidos como as referências do ponto de chegada, do caminho evolutivo do clube. Para sobreviver é necessário entender o que acontece lá, globalmente, e procurar estrategicamente agir aqui, localmente, para posicionar-se em uma situação favorável frente à concorrência pelo dinheiro dos torcedores que cresce constantemente. Os torcedores em geral e os estudados em específico demonstram uma admiração pelo sucesso dos clubes europeus e em geral aprovam as ações do marketing do clube no sentido de trilhar este mesmo caminho. Produtores e torcedores, portanto, negociam o significado deste processo de comoditização como uma necessidade de os torcedores investirem no clube, comprando produtos e serviços, associando-se no clube, para que este tenha recursos para poder montar melhores times, com melhores times, ganhar mais títulos, com mais títulos conquistar mais torcedores e assim por diante, como que num “circulo virtuoso do futebol/negócio”. O significado negociado também parece criar um tipo de segregação entre torcedores “melhores” e “piores”, de mais ou menos prestígio, de acordo com o comprometimento que demonstram por meio da intensidade e frequência de participação e do consumo. Portanto, para que o time vença é necessário que o torcedor consuma e nisso há um acordo de significado claro negociado entre produtores e torcedores para dar sentido ao aumento do consumo, das vendas e da elitização do mercado da marca Internacional. Como afirma a torcedora Babila (empresária): “Chego a ter prazer de pagar, sabe? Coisa que raramente acontece, mas [risos] o Inter tem esse negócio”. O processo de elitização (aumento dos preços) e de comoditização (mais e mais cobrança por produtos e serviços) é, então, tem seu significado negociado como uma necessidade inevitável para sobreviver na competição global e cuja demonstração de comprometimento ao clube, de paixão, passa necessariamente por consumir cada vez mais e em especial ser “sócio em dia” do clube, unindo em seus discursos e práticas a crença na competição global de mercado, do fatalismo do capitalismo, com a paixão do torcedor como solução para vencer nessa competição. 5. “São todos os colorados!”: Da tribo de consumo para as categorias sociológicas tradicionais Durante minha experiência de campo criei a convicção de que os produtores de marketing não fazem distinções significativas entre os diferentes grupos interpretativos, ou tipos sociais existentes, na superdiversificada massa de torcedores do Sport Club Internacional. Os torcedores/consumidores são concebidos e significados como “todos os colorados” ou “torcedores apaixonados”, não havendo uma compreensão ou utilização das distinções existentes entre torcedores em termos das categorias sociológicas tradicionais (classe social, etnia, faixa etária, gênero, formação escolar) para a formulação de estratégias 9   

 

de marketing e comunicação de marketing. Exceção existe em relação ao gênero feminino e a crianças, que começam a receber atenção especial, mas de forma genérica como “feminino” ou “criança”, e não como grupos com gostos e significações de marca específicas, mas apenas com os tamanhos e formatos adaptados (as histórias que são contadas por meio dos produtos não têm distinção significativa em termos de enredo/conteúdo). Produtores significam esse tratamento da torcida como “uma coisa só”, ou “todo o tipo de pessoa” como fruto da união que a paixão possibilita e faz com que eles não tenham, na prática, e julgado pelos resultados, necessidade de conhecer o torcedor por métodos tradicionais de segmentação pelas categorias sociológicas tradicionais, nem que precisem de um tipo de conhecimento mais objetivo, derivado de pesquisas formais sobre os torcedores. O fato de todos os produtores serem também torcedores faz com acreditem conhecer o conteúdo dessa paixão e, portanto, saibam o que é “ser colorado”, o que é “ser do Internacional” e, assim, saibam o que querem os torcedores em termos de ações de marketing. Isso tem impacto, por exemplo, na forma como são concebidas as ações de marketing segundo os próprios produtores, “pela convivência do dia a dia” (João, produtor), “pelo que se houve pela convivência com os torcedores” (Antônio, produtor), e assim por diante. O trecho abaixo ilustra essa ideia: “Bom, o Inter pra mim, além de ser o clube do meu coração, nasci colorado, eu vi esse clube crescer, pela minha idade vi a inauguração do Beira-Rio, a construção, pra mim hoje é dos maiores clubes do Brasil, pelo tamanho que atingiu. Não só pelos títulos conquistados, mas pela grandeza, pelo número de sócios (106 mil sócios)(...) e por uma ligação sentimental muito forte. Eu acho que o principal fator de você trabalhar num clube de futebol, por mais profissional que você seja, acho que se você consegue ter uma ligação emocional ela também ajuda bastante. Ajuda bastante porque faz conheceres um pouco o perfil desse torcedor, porque tu és um torcedor. Então, mais ou menos, fica mais fácil entender o que o torcedor quer.” (João, produtor). “Não, a gente não tem como distinguir, porque a classe social é muito... não há uma classe A ou a classe B. São todas as classes, elas visitam, vêm pra conhecer o clube independentemente da classe social, independentemente da etnia, independentemente da preferência de jogador A, jogador B, independentemente de... (...) é difícil diferenciar assim.” (Edilson, produtor).

Essa constatação adiciona conhecimento à linha de estudo realizada por Kover (1995) sobre as “teorias implícitas” que os profissionais de marketing usam para desenvolver seu trabalho. Em sua análise, ele identificou que as “teorias implícitas” verificadas junto aos produtores estudados em muito se diferenciavam das teorias desenvolvidas pela academia. Isso indicaria diversos novos caminhos e abordagens de investigação para as próprias teorias acadêmicas sobre os consumidores. Uma área não explorada pela academia é a que versa sobre como os produtores percebem os consumidores quanto às teorias de tribos de consumo (Cova, 1997; Maffesoli, 2006), subculturas de consumo (Schouten & McAlexander, 1995) e categorias sociológicas tradicionais. Frente às discussões da melhor pertinência do uso de categorias sociológicas tradicionais ou do conceito de tribos urbanas de Maffesoli (2006) o estudo da realidade cultural do mercado do Internacional revela que o conceito tribo de consumo ou subcultura de consumo “serve” aos anseios dos produtores de marketing e parece funcionar na sua prática. A unidade entre clube e torcedor, ou entre produtor e consumidor, é tão forte neste contexto, em função da paixão, que os produtores atingem seus objetivos com as ações de marketing criadas em cima de conceitos que equiparam os torcedores às “tribos urbanas”. Isso ocorre praticamente sem nenhum tipo de segmentação e posicionamento conscientes e elaborados para distintos grupos interpretativos. Portanto, podemos concluir que o tipo de conhecimento mais superficial e de fundo mais experiencial presente nas abordagens 10   

 

de tribos de consumo tem uma utilidade prática para a gestão do marketing, no contexto dos clubes e torcedores/consumidores de futebol. É importante ressaltar que a forte valorização do “sócio em dia” com a mensalidade do clube, praticamente excluindo os demais torcedores dos seus discursos e possibilidade de participação em promoções e ações de marketing do clube, assim como a constante referência dos discursos do marketing para a importância do consumo dos produtos e serviços do clube, mostra que nem todos podem participar desta “tribo”. Não basta ser “apaixonado” pelo clube e estar disposto a “dar a vida” por ele para fazer parte deste grupo, é preciso contribuir com recursos financeiros na competição pela sobrevivência na qual o clube se encontra. Assim, pode-se notar um processo crescente de elitização na medida em que para a gestão e o marketing do clube tem espaço na convivência institucionalizada somente aqueles que podem contribuir financeiramente e em especial por meio da associação e consequente repassagem mensal de dinheiro ao clube. Nessa tribo o capital simbólico cada vez mais determinante para pertencer é o capital econômico, não mais necessariamente a dedicação e comprometimento com, a paixão pelo clube na beira do campo, torcendo e incentivando o time em todos os jogos ou outras modalidades de práticas clubística. 6. “O torcedor tem que estar com o time na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza”: Os derivativos de marketing. O departamento de marketing do Internacional trabalha com o intuito de criar o maior número de receitas financeiras possíveis para o clube, e este é o principal objetivo dos profissionais de marketing, conforme relatado pelo produtor de marketing João, em entrevista. Acompanhei diversas ações que foram realizadas durante o período da etnografia ou em anos anteriores recentes, entre elas a “Marcha do Centenário”, lançamentos de uniformes, sorteios e promoções culturais (relatadas acima), festa realizada no estádio Beira-Rio para cessão de cinema com lançamento do documentário da conquista do bicampeonato Copa Libertadores 2010. Esse último foi um evento do departamento de marketing com o objetivo de promover as vitórias do clube e vender produtos a elas relacionados. O evento rendeu o registro no Guinness Book como “a maior audiência a uma cessão de cinema do mundo”, levando o nome do Sport Club Internacional a esferas antes não preenchidas pela sua marca (e remetendo a grandiosidade, evolução e profissionalismo), e proporcionando divulgação e venda de diversos produtos e serviços. Este tipo de conquista representa a realização de ações de marketing grandiosas e marcantes tendo um significado importante no contexto estudado. Não apenas as vitórias do time dentro de campo, a conquista de títulos pelo time são, agora, exaltados e divulgados pelo clube e seu departamento de marketing. As próprias ações de marketing, a qualidade e profissionalização da gestão administrativa e de futebol do clube passam a receber um significado de grandiosidade, vitória e conquistas que não se percebia há poucos anos atrás e que agora são oferecidos ao torcedor como “vitórias” do clube. Este fato é representado pela fala abaixo de João, produtor de marketing: “Tanto que foi, até hoje, reconhecido pela FIFA o único clube que consegui mobilizar 10 mil pessoas pra um final de mundial. Isso ai não existe no futebol. Acho que isso tem tudo a ver com essa fase dos último 6,7,8 anos do Internacional e que soma tudo né. O ser o modelo de gestão, ser o marketing mais premiado, estádio da copa, o maior quadro social, não estou falando no futebol né ...” (João, produtor).

Acontece que os resultados do time dentro de campo, as vitórias, são algo de muito valor para os torcedores, mas que o marketing não pode controlar. O pertencimento clubísticos e o consumo dos produtos do clube tem uma forte relação com o desempenho do time nos campeonatos e neste ponto o marketing tem muito pouco ou nada a fazer, 11   

 

especialmente no Brasil. Em função disso os profissionais de marketing estão buscando criar formas de faturamento, comoditizar produtos e serviços, que cada vez dependam menos dos resultados do time dentro de campo. Uma das formas está em oferecer mais segurança, mais conforto e opções de entretenimento para os torcedores, o que está sendo construído em referência ao modelo FIFA de futebol e estádios de futebol. Aqui entra a questão da relação de “casamento” entre clube e torcedor trazida por um dos produtores de marketing do clube como aquilo que estão procurando construir na relação com os torcedores: “E tentar ver o que a gente pode fazer pra que aumente o grau e, principalmente, para que ele sinta que está valendo a pena independentemente de ter sido campeão ou não, independe do resultado de campo. ‘Bom, vale a pena eu ser colorado, vale a pena eu ser sócio, porque eu tenho isso, isso e isso.’ (...) Então é o que eu digo, é uma relação de marido e mulher. De casamento, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, tem que estar junto. Senão, que raio de torcedor eu sou? Eu sou um torcedor de momento, um torcedor de oportunidade(...) O torcedor tem que acabar com a mania de ele querer vir só no jogo da final. No jogo filé mignon. Tem que tá aqui na hora do Gauchão, na hora daquele jogo que ainda não tá valendo nada. No inverno, chovendo. E cabe a nós o quê? Trazer alternativas pra que ele se sinta confortável, ele se sinta bem para vir num jogo desses aí às dez da noite, em pleno inverno. Se eu não tiver segurança... Um bom estacionamento, uma boa iluminação, um bom banheiro, uma boa alimentação, são coisas que nós estamos trabalhando para melhorar” (João, produtor).

O casamento representa uma relação na qual o consumidor está junto na “alegria e na tristeza”, na “riqueza e na pobreza”, ou seja, consumindo sempre, independentemente do desempenho momentâneo do time. Essa relação comprometida, de estar “sempre junto”, é relacionada a “ser colorado de verdade”. As referências da Europa, do modelo FIFA e da busca do marketing por aumentar receitas independentemente dos resultados do time em campo estão resultando num processo de desvinculação entre pertencimento clubístico e consumo do motivo tradicional de torcer e pertencer dos torcedores: os jogos, as disputas e as vitórias dentro de campo. Esse processo de “glocalização” da “cultura FIFA” de gestão de futebol, baseado na lógica de mercado, tem forte relação com a tentativa dos produtores de marketing de mudar a cultura do torcedor, no sentido de desvincular o consumo dos resultados de campo. Para que o processo de “corporativização” (Andrews & Ritzer, 2007) seja implantado e o clube possa vencer no “círculo virtuoso do futebol/negócio”, é preciso que ocorra a “espetacularização” e a “comoditização”. O caminho encontrado pelos produtores de marketing do Sport Club Internacional passa pela aculturação do torcedor, no que chamam de um “casamento”, no qual o torcedor esteja sempre junto com o clube, mesmo diante das derrotas. Para isso, os produtores procuram desvincular o consumo dos resultados de campo, de forma que o processo descrito por Andrews e Ritzer (2007) possa ser acelerado, buscando associar a paixão do torcedor ao consumo cada vez maior e em especial a condição de “sócio em dia”. Não é a satisfação do consumidor em si que faz o clube buscar oferecer mais conforto, segurança e novos e mais elaborados produtos, mas a corrida na disputa pelo mercado global de futebol. De certa forma, essa busca por mais lucro e vitória na competição de mercado é força para que produtores tentem “desviar a atenção” dos torcedores do esporte em si, das vitórias do time dentro de campo, como produto, para o espetáculo em seus produtos secundários ou periféricos. Nesse sentido, o marketing não aparece como algo que satisfaça necessidades ou desejos, mas como algo que cria mercado: o mercado da vitória no círculo virtuoso do futebol/negócio, independentemente dos resultados do time de futebol, o mercado dos “derivativos de marketing”. Este talvez seja o ápice desse processo que, de tão afastada que a relação pode se tornar entre torcedor e o jogo em si, que o próprio marketing e suas realizações e conquistas passam a ser um produto oferecido por este, para que os torcedores dele “desfrutem”, na 12   

 

mediação de suas relações sociais, por meio do pertencimento clubístico. É como se fossem “derivativos” do mercado de ações. Os “derivativos de marketing”, que ocorrem quando produtos não vinculados ao produto central no caso o pertencimento clubístico em torno do jogo de futebol passam a ser criados e recriados, em um looping sem fim, saídos de algo que já não tem mais ligação com a relação original ou com o que era valor originalmente. É o marketing não como um meio para a satisfação de necessidades e desejos (e paixões), mas como um fim em si mesmo. Claro que não ocorre um desligamento total do que sejam questões relacionadas ao pertencimento clubístico, pois a própria superioridade do marketing do clube em relação ao marketing do clube rival é um meio que se tem mostrado efetivo para os torcedores negociarem suas relações sociais de competição e rivalidade. No entanto, já não é mais o futebol o conteúdo simbólico mediador da interação, mas sim o marketing e suas realizações. Portanto, podemos notar aqui que o marketing do Internacional trabalha para a reprodução e expansão daquilo que Firat e Venkaesh (1995) chamam de sociedade do espetáculo, na qual o consumo e o marketing assumem o papel anteriormente preenchido por outras formas de sociabilidade, por outros mediadores de relações sociais. O marketing busca desvincular o consumo da relação essencial do pertencimento clubístico, que em grande parte diz respeito à união interna (paixão), para oposição em uma negociação de rivalidades locais, regionais e nacionais, por meio da disputa, ou guerra, simbólica realizada pelos times dentro de campo e pelas torcidas fora dele (Oliven & Damo, 2001; Damo, 1998). O marketing do Internacional esforça-se para que essa negociação ocorra pela disputa do “melhor marketing”, o “melhor estádio”, a “melhor propaganda”, ou ainda por valores não associados à disputa, como conforto, segurança, seguindo uma linha “Disney”, ou de “Fifalização”, do entretenimento. 7. Em prol de considerações finais Neste estudo, buscou-se compreender como torcedores e gestores de marketing dos clubes de futebol brasileiro criam, modificam, mantem, contestam e transformam (negociam) significados culturais por meio do mercado. Com base numa abordagem etnográfica no âmbito do Sport Clube Internacional de Porto Alegre – RS, dados, teorias e percepções dos pesquisadores foram confrontados, resultando em quatro categorias de análises: paixão, comoditização, tribo de consumo e categorias sociológicas tradicionais e derivativos de marketing. A análise integrada destas categorias demonstra que, em primeiro lugar, o conceito de paixão é usado por produtores e torcedores para dar sentido e legitimar suas ações e omissões que aparentemente rompem com as expectativas de pessoas de fora e de dentro do universo do futebol. Contudo, observa-se que está ocorrendo um processo de comoditização e elitização do futebol, negociado como uma necessidade para que o clube tenha melhores times e, portanto, mais vitórias dentro de campo. Assim, não são somente as manifestações de paixão dos torcedores, quase que inconsequentes para quem não conhece sua lógica interna (Damo, 1998) e sem sentido comercial que movem as práticas de mercado no futebol, tão pouco somente as conquistas de títulos, mas sim a necessidade de vencer na competição do mercado financeiro do futebol para continuar existindo enquanto clube. Aqui, destaca-se um reconhecimento dos agentes de mercado de que a comoditização do futebol consiste num processo de adequação a uma nova realidade do futebol brasileiro, necessária para que a paixão pelo clube possa ser vivenciada, preservada ou mesmo aumentada. Emerge assim uma situação dúbia, da qual serve de inspiração para o título deste artigo: existe uma “paixão pelo consumo” por parte dos produtores de marketing, expressada no processo de comoditização e promulgada como condição de sobrevivência do clube e um “consumo pela paixão” pelos 13   

 

torcedores, que estão dispostos a comprar os mais diversos produtos para expressarem sua paixão pelo clube e auxiliar na promoção do clube. Nesta relação, um terceiro ponto que se destaca está na significação do torcedor e do futebol por parte dos produtores de marketing, não restritas a uma classificação de mercado consumidor, mas sim de uma tribo ou subcultura de consumo (Cova 1997; Maffesoli, 2006; Schouten & McAlexander, 1995). Esta perspectiva altera as relações básicas entre produtores e consumidores, colocando todos como agentes em prol da valorização do clube. Por meio de articulações mercadológicas, esta valorização não passa somente pelo número de vitórias do time dentro de campo, mas também por aspectos mais facilmente gerenciados pelo clube. Agindo como um substituto as vitórias no futebol, a divulgação de “ganhos” que reforcem a paixão dos torcedores pelo clube funcionam como “vitórias artificiais do marketing”. Elementos que geram derivativos de marketing, ou seja, recursos que o clube dispõe para estimular o consumo de produtos e serviços atrelados ao clube, substituindo aquele impulso de consumo que tradicionalmente estavam atrelados às vitórias do time dentro do campo de futebol. Ao utilizar as lentes da cultura e do marketing para analisar as relações entre produtores e consumidores no âmbito de um clube de futebol, adiciona-se um olhar sobre as relações mercadológicas que se fazem cada vez mais presentes no âmbito do futebol brasileiro. Aqui, a paixão justifica a necessidade de se comoditizar o mercado do futebol, transformando a dinâmica de marketing do futebol de uma relação vitória-incentivo para uma relação onde prevalecem os derivativos de marketing e a aproximação de produtores e consumidores em torno de uma tribo de consumo, que implica, tragicamente na exclusão daqueles torcedores que não tem condições materiais de participar desta “tribo” por não terem poder de consumo. O olhar adotado neste estudo pode ser complementado com perspectivas oriundas de outros contextos, especialmente clubes que não passaram por um processo de profissionalização da gestão. Cabe ainda ressaltar que os achados aqui relatados, especialmente no que tange aos torcedores, pode dever-se a caracterização relativamente homogênea em termos das categorias sociológicas tradicionais do conjunto de entrevistados em relação ao universo de torcedores do Sport Club Internacional, muito mais heterogêneo (Damo, 1998). Além disso, a análise de categorias complementares, como aquelas oriundas de uma perspectiva econômica ou sociológica, apresenta potencial de contribuição na compreensão das dinâmicas de mercado que se fazem cada vez mais reluzentes na “paixão nacional”. Referencias Albino, J.C.A.; Carrieri, A.P.; Figueiredo, D.; Saraiva, F.H. & Barros, F.L.R.S. (2009) Sport Club Internacional e a constituição da identidade corporativa de “clube-empresa” . Organizações & Sociedade, 16(48) 81-100. Andrews, D. L. & Ritzer, G. (2007) The Grobal in the Sporting Glocal. Global Networks. 7(2)135- 153. Arnould, E. & Thompson, C. (2005) Consumer Culture Theory (CCT): twenty years of research. Journal of Consumer Research. 31(4) 868-882. Barber, B. (1995). All economies are “embedded”: the career of a concept, and beyond. Social research, 62(2) 387-413. Carvalho, F.A; Marque, M.C.P. & Carvalho, J.L.F. (2009) Redes interorganizacionais, Poder e Dependência no Futebol Brasileiro. Organização & sociedade, 16(48) 101-121. 14   

 

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