Paixões

June 13, 2017 | Autor: Pedro Persone | Categoria: Music, Musicology, Composition and Rhetoric
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SOBRE A “TEORIA DAS PAIXÕES DA ALMA” E O DISCURSO MUSICAL NOS SÉCULOS XVII E XVIII Pedro Persone

Introdução Na Grécia antiga o termo “Pathos” era usado para determinar Paixão ou Emoção, ou seja, determinava sofrer paixão ou ser atingido por algo. O mesmo termo, em latim, vem em sua forma passiva: Afficere (de Affectus) e na palavra “Passio”. Affectus, em nossa linguagem, implica numa violenta emoção da alma, como o desejo enquanto paixão, bem como força de vontade. Assim, a Teoria das Paixões é uma teoria sobre todas as maneiras, ou tipos, de paixões e emoções de nossa alma. Na Grécia houve alguns esforços em desenvolver uma teoria das paixões musicais. Dizia-se que movimentos melódicos causavam movimentos correspondentes na alma do ouvinte, isto é, causavam emoções. No mundo artístico encontramos o termo Imitação, ou seja, a arte imitando coisas do mundo como são apresentadas a nós. Assim dizia Platão. Ele próprio fêz uma estimativa em música de como ela poderia servir de maneira ético-moral para seu pensamento de um Estado Ideal. Por exemplo, o modo Dórico poderia ser usado graças à sua seriedade; o Frígio por suas características valentes e guerreiras; já o modo Lídio era desaconselhável por possuir características afeminadas. Contudo, Aristóteles afirma ter a música não só um carácter eticarmente bom, mas também, um carácter sensualmente belo, e junto disso, também, a qualidade de transmitir - ou mediar - certas impressões por si só. O princípio aparece também na filosofia de Theodret (457 d.C.) que diz: “...o original (o protótipo) da arte é a natureza e a imagem (ou retratação) da natureza é a arte”. A compreensão do termo “música” no século XVIII é acompanhada também por pontos de vista éticos e morais que caracterizam a natureza. Em música a imitação da natureza dever ser entendida, também, como a representação das paixões e emoções humanas. Originalmente, baseia-se nas teorias das paixões, mas junto há a Teoria dos Temperamentos (humanos), Teoria das Características dos Tons e a Teoria da Retórica e da Oratória. Aqui abordaremos os aspectos: Paixões e Retórica. Porém, uma breve incursão pelos domínios da Teoria dos Temperamentos Humanos nos mostra que era assim entendida a diferença do humano humor: quatro sumos do corpo determinavam qual a característica pessoal; aqueles em que predominava a substância viscosa correspondiam aos Flegmáticos, aos com predomínio de sangue os Sanguíneos, bílis amarela aos Coléricos e bílis negra aos Melancólicos. Sobre as características dos tons temos uma enumeração feita por Johann Mattheson (1681-1764)(1), onde ele descreve os principais tons usados por ele e seus contemporâneos. Temos por exemplo Ré Menor: carácter devoto, tranqüilo, plácido, agradável e contente. Utilizado em composições de Igreja, inspira a tranqüilidade, serve, também, para o desenvolvimento mental. Ré Maior: agudo, voluntarioso, serve para fazer barulho. É guerreiro, alegre. Serve para alento quando não tocado por trompetes e timbales, podendo ser de uma estranha delicadeza. Sol Menor: bastante sério, mas pode ser de uma alegria afável, pode ser muito formoso, terno, desejoso. Mistura de queixa e alegria moderadas. Sol Maior: é insinuante, falante, brilhante. Serve para coisas sérias e alegres. E assim continua Mattheson. O mesmo estudo foi realizado por C.F.D. Schubart (1739-1791)e dizia que cada tom tem sua côr. Inocência e simplicidade se encontram sem sustenidos e bemois, mais doces e melancólicos. Quanto mais sustenidos, mais selvagens e emocionais são as tonalidades. Depois Schubart descreve as principais tonalidades. Bem, mas acima de todas essas considerações, a música deveria conter ou exprimir a Paixão. A paixão da qual estamos falando é realmente a unidade de muitas emoções individuais. Assim temos a unidade das paixões construídas sobre um affectus básico. Houve alguns movimentos intelectuais que tentaram arranjar sistematicamente as paixões. A Escola Estóica, analisando a dualidade das emoções, acrescentou uma terceira divisão. Assim, haveria emoções do prazer de um lado, e emoções de desagrado (ou aversão) de outro; o novo item acresceu a emoção do desejo. Baruch Spinoza (1632-1677) escreve na terceira parte de sua “Ethica Ordine Geometrica Demonstrata”, sobre a Origem e a Natureza das Afecções(2).

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Christian Wolff (1679-1754) escreve sobre duas diferentes paixões básicas: uma é Voluptas (desejo) e a outra é Tedium (indiferença). Ambas são marcadas pelo carácter de Gaudium (alegria) e Tristia (tristeza). Elas formam a unidade básica das paixões de onde todas as outras formas de emoção são derivadas. É de grande importância o fato dele não falar de paixões individuais, mas de uma paixão principal que é composta de muitas emoções. Esta paixão principal, ou a idéia da grande e extensa paixão, é decisiva na arte da música barroca. Os teóricos, que nos séculos XVII e XVIII escreveram sobre música, trabalharam principalmente no desenvolvimento da teoria das paixões e tentaram tratar a música em termos de métodos. Mesmo as mais profundas e sombrias correntes da alma eles se esforçaram por enquadrá-las no Ratio. E óbvio que foram influenciados pelo Racionalismo. Voltando porém a Spinoza e Wolff, tanto um quanto outro estudaram aquele que foi o grande pensador (ou que mais influenciou o pensamento) barroco: René Descartes (1596-1650). Descartes abriu para o mundo as portas da especulação científica baseada no método(3). Ele criou o método num mundo que despertava durante a virada do século XVI ao XVII. Seu livro Discurso sobre o método tem como objetivo guiar “a reta conduta do leitor à Razão e à buscada Verdade das Ciências”, ou seja, guiá-lo ao bom uso da Razão e torná-lo apto a alcançar a Verdade na investigação das Ciências. Assim podemos, com segurança, concluir que o Compendium Musicae (1618)(4), seu primeiro livro, é uma tentativa de tratar a música através da Razão, pela mensuração matemática da afinação e dos modos, bem como situar o intérprete e o público como “Almas sentindo a música”. O projeto filosófico de Descartes teve ligações com músicos. Seu livro - Discurso sobre o Método - recebeu esse nome por sugestão de Père Mersenne (Harmonie Universelle)(5). Descartes mantinha estreito contato com Constantinj Huygens (1596-1687)(6). Sua reflexão filosófica se inicia pela verificação do progresso das ciências, principalmente a matemática, onde é possível obter a certeza. Além disso, ele fazia parte de algumas “sociedades secretas” ou “Ordens Iniciáticas” que eram “guardiãs” ou “veladoras” de certas ciências “paralelas”, desde o Egito até hoje. Então, como Rosacruz, ele com certeza trabalhou a Cabala... Em meio a todas essas influências, Descartes estabeleceu quatro regras em seu método: “A primeira é nunca aceitar nada como verdadeiro se eu não tenho evidente conhecimento de sua veracidade: isto é, cuidadosamente evitar conclusões precipitadas e pré-concepções, e não incluir nada em meus julgamentos que não se apresente tão claro e distinto de maneira que eu não tenha como duvidar. A segunda, é dividir cada ume das dificuldades e examinar, em tantas partes quanto possível e possa requerer para poder resolver melhor. A terceira, é dirigir meus pensamentos de maneira ordenada, começando com os mais simples e fáceis objetos conhecidos para ascender pouco a pouco, degrau por degrau, ao conhecimento do mais complexo, e supor alguma ordem mesmo entre objetos que não têm uma ordem natural de precedência. Por último, obter, através de enumerações tão completas e revisões tão compreensivas, a certeza de não haver deixado e esquecido nada para trás” (Discurso sobre o Método, Parte II). Assim temos: 1o - Regra da Evidência 2o - Regra da Análise 3o - Regra da Síntese 4o - Regra da Enumeração Pelo Método, Descartes investiga o fenômeno e efetua a especulação na metafísica, isto é, ele soluciona problemas matemáticos e resolve, ao mesmo tempo, o problema da solidão do ser humano com a existência de Deus. Assim, a veracidade das idéias, desde que claras e distintas, pode ser garantida pela veracidade própria de Deus.

O alcance do Tratado das Paixões da Alma no pensamento do homem “barroco” Em 1618 Descartes se alista nas tropas do príncipe Maurício de Nassau. No fim do mesmo ano, ele compõe o “Compendium Musicae” e o oferece a Isaac Beeckman como presente de Ano Novo. Embora Descartes desejasse manter o tratado só entre eles, uma cópia “caiu nas mãos” de Marin Mersenne. Não resta dúvida de que grande parte de “Questions Harmoniques”, “De la Nature des Sons” e “Harmonie Universelle” são resultado da correspondência mantida entre Mersenne e Descartes. Podemos, também, sentir a influência de Descartes, muito tempo depois, em Jean-Philip Rameau (1683-1764)(7), que obteve a conclusão da teoria das inversões, tentada, mas nunca concluída por Descartes. Pela especulação filosófica da razão, Descartes influenciou, entre outros, Spinoza, Leibniz e Wolff. Essa razão cartesiana vai crescer e atingir maturidade, segundo minha linha de pensamento, e em termos de música, na obra de Johann

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Sebastian Bach (1685-1750), onde a precisão matemática está presente. A música de Bach é notável por sua tecnologia, perfeito discurso - alta técnica oratória - e dosagem perfeita entre Razão e Beleza. Arrisco, aqui, colocar uma questão que surgiu durante esta pesquisa: conhecendo o Tratado das Paixões da Alma(8), não teria feito Bach, em suas “Paixões”, um vocabulário ou glossário, não somente retórico, mas, inclusive, das paixões humanas? E conhecendo o Discurso sobre o Método, não teria ele classificado e especulado as paixões em sua música? Mas o homem comum da era barroca deve ser delimitado em dimensões sociais e históricas, porque este homem simples, por vezes inculto, não é um Bach, nem um intelectual, e menos ainda um membro do Corpo Clerical da Igreja. Este homem simples porém ouve todos os domingos a música de um Bach, absorve a pregação da Igreja e assiste, ainda que de uma certa distância, ao progresso da Ciência, nas mãos de um Galilei, Newton ou Kepler. E no coração desse homem habita um dualismo: o mundo Divino - a Igreja e os Dogmas - e o mundo Físico - a Ciência e a explicação do fenômeno natural. Então, a ciência tinha o método e a Igreja lutava contra esse método. A velha problemática humana: Fé contra Razão! O Tratado das Paixões da Alma é o último trabalho de Descartes. Escrito em francês, editado e publicado na Holanda (Amsterdam) e na França (Paris) em 1649 - um ano antes de sua morte -, ele foi composto para a princesa Elizabeth da Bohemia, a Princesa Palatina (1618-1680), que era discípula de Descartes. Um mês antes da publicação das Paixões, Descartes chegou a Stockholm (outubro de 1649) convidado pela rainha Cristina da Suécia. Sofrendo com o rigoroso inverno sueco, e, certamente do tédio de suas obrigações na Corte (que incluía dar aulas à rainha às cinco horas da manhã) ele contraiu pneumonia e morreu nessa mesma cidade em 11 de fevereiro de 1650. Jules Simon diz em sua introdução às Paixões que “tudo em Descartes se baseia em três pontos”: 1o - A autoridade da Razão 2o - Distinção entre Espírito e Corpo 3o - A contínua Criação Para o primeiro Descartes estabelece a filosofia moderna; para o segundo, o espiritualismo moderno; para o terceiro, a família dos filósofos-espiritualistas modernos, chamada Escola Cartesiana. A filosofia de Descartes é baseada na dúvida. Nela está todo o seu método. É a proclamação da livre pesquisa... Mais uma vez, temos um simbolismo Rosacruz: os três pontos (triângulo) ou a perfeita manifestação. O tratado se divide em três partes e é composto de 212 artigos: Parte I: (art. 1-50) as paixões em geral e incidentalmente toda a natureza do homem; Parte II: (art. 51-148) o número e ordem das paixões e explanação das 6 paixões primitivas; Parte III: (art. 149-212) as paixões específicas. Descartes descreve no art. 7 (“breve explicação das partes do corpo e de algumas de suas funções”) o seguinte: “...finalmente, sabe-se que todos esses movimentos dos músculos, assim como todos os sentidos, dependem dos nervos, que são como pequenos fios ou como pequenos tubos que procedem todos do cérebro, e contêm, como ele, certo ar ou vento muito subtil que chamamos `espíritos animais'”. E explica no Tratado do Homem(9): “...as partes do sangue que penetram tão rapidamente no cérebro, servem, não somente para nutrir e sustentar sua substância, mas também e principalmente para produzir nele um certo vento muito subtil, ou melhor, uma chama muito viva e muito pura que é chamada de espíritos animais”. Por muito subtil Descartes quer dizer “composto de minúsculas partículas de rápido movimento”. Descartes identifica como sede dos espíritos animais (e da imaginação) uma glândula situada no centro do cérebro, chamada glândula pineal. No art. 10, Descartes explica “como se produzem no cérebro os espíritos animais”: “Mas o que há de mais notável é que todas as partes mais vivas e mais sutis do sangue que o calor rarefez no coração entram incessantemente em grande quantidade nas cavidades do cérebro. E a causa que as conduz para aí, de preferência a qualquer outro lugar, é que todo o sangue saído do coração pela grande artéria toma seu curso em linha reta para esse sítio, e que, não podendo entrar todo, porque o lugar possui apenas passagens estreitas, só passam as suas partes mais agitadas e mais sutis, enquanto o resto se espalha por todos os outros locais do corpo. Ora, tais partes do sangue muito sutis compõem os espíritos animais, e não precisam, para tal efeito, receber qualquer modificação no cérebro, exceto a de serem separadas das outras partes do sangue menos sutis; pois o que denomino aqui espíritos não são mais do que corpos e não têm qualquer outra propriedade, exceto a de serem corpos muito pequenos e se moverem muito depressa, assim como as partes da chama que sai de uma tocha, de sorte que não se detêm em nenhum lugar e, à medida que entram alguns nas cavidades do cérebro, também saem outros pelos poros existentes na sua substância, poros que conduzem aos nervos e daí aos músculos, por meio dos quais movem o corpo em todas as diversas maneiras pelas quais esse pode ser movido”.

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E no Tratado do Homem: “...as artérias nessa região (do cérebro) têm vários pequenos orifícios através dos quais as partes mais refinadas do sangue podem fluir para dentro dessa glândula... Estas partes do sangue, sem nenhuma preparação ou alteração exceto por sua separação das partes mais grosseiras e sua retenção da extrema rapidez que o calor do coraçao dá a elas, deixam de ter a forma de sangue, e são chamadas `espíritos animais'”. Após as considerações sobre as funções do corpo, Descartes, no art. 17 , entra nas funções da alma e conclui que, em nós, a função da alma são nossos pensamentos. E estes são de dois gêneros: uns são ações da alma, outros as suas paixões. Por ações ele entende todas as nossas vontades, pois vêm diretamente da alma e parecem depender apenas dela. E entende por paixões todas as espécies de percepções ou conhecimentos existentes em nós. Daí, as ações da vontade se dividem em ações internas e externas. As primeiras terminam na alma mesma, como quando queremos amar a Deus ou dirigirmos nossa atenção a um objeto; as outras terminam no corpo, como quando movemos nossas pernas com objetivo de passear. Assim como a vontade, nossas percepções também se dividem em duas classes: as que têm a alma como causa e as que têm o corpo como causa. A maioria das representações causadas pelo corpo, partem de objetos exteriores, se transmitem pelos nervos até o cérebro e são percebidos pela alma. Por exemplo, a luz de uma vela ou o som de um sino. Outra categoria de percepções não se refere a objetos exteriores, mas ao nosso próprio corpo; exemplo: fome, sede, calor, dor e outras percepções que não se referem a causas exteriores. W.Dilthey(10) sintetiza bem quando nos diz: “Descartes distingue destas duas classes de paixões, que estão condicionadas fisicamente e se referem ao corpo, a percepções de estados que atribuímos à alma e que não referimos a causa imediatamente atuante; os sentimentos de alegria e de cólera podem ser excitados por objetos exteriores, mas não são referidos a estes como fazemos com as percepções sensíveis, se não que as apreendemos como estados anímicos internos. Isto é o que, em sentido estrito, denominamos paixões. Descartes define as paixões como as percepções ou sensações ou emoções da alma que referimos a ela mesma e que são causadas ou reforçadas por movimentos dos espíritos animais”. Outro ponto importante para nós, músicos, está no art. 45, onde Descartes escreve: “Nossas paixões também não podem ser diretamente excitadas nem suprimidas pela ação de nossa vontade, mas podem sê-lo, indiretamente, pela representação das coisas que costumam estar unidas às paixões que queremos ter, e que são contrárias às que queremos rejeitar. Assim, para excitarmos em nós a audácia e suprimirmos o medo, não basta ter vontade de fazê-lo, mas é preciso aplicar-nos e considerar as razões, os objetos ou os exemplos que persuadem de que o perigo não é grande; de que há sempre mais segurança na defesa do que na fuga; de que teremos glória e alegria de havermos vencido, ao passo que não podemos esperar da fuga senão o pesar e a vergonha de termos fugido, e coisas semelhantes”. E o mais importante motivo que impede a alma de dispor de suas paixões é que - como já dissera Descartes - as paixões não são só causadas pelos espíritos animais, mas são também mantidas e fortalecidas por eles. Assim, enquanto não cessar realmente a emoção, os espíritos animais continuarão agindo naquele sentido, ou melhor, sustentarão aquele medo, aquela tristeza, aquela dor, etc.(11) Chegamos, assim, à segunda parte do tratado, “Do Número e da Ordem da Paixões...”, e Descartes vai enumerando e descrevendo cada paixão. Na ilustração da página ao lado, está - conforme a ordem estabelecida pelo autor - a seqüência completa das paixões. Aquelas em destaque representam as seis paixões primitivas. Depois de todas as detalhadas explanações, no art. 212, ou seja, o último, Descartes diz: “De resto, a alma pode ter seus prazeres à parte; mas, quanto aos que lhe são comuns com o corpo, dependem inteiramente das paixões: de modo que os homens que elas podem mais emocionar são capazes de apreciar mais doçura nesta vida. É verdade que também pode encontrar nela mais amargura, quando não sabem bem empregá-las e quando a fortuna lhe é contrária; mas a sabedoria é principalmente útil neste ponto, porque ensina a gente a tornar-se de tal forma, seu senhor e a manejá-las com tal destreza, que os males que causam são muito suportáveis, tirando-se mesmo certas alegrias de todos”.

A Ordem e Enumeração das Paixões da Alma Art. 53 - Admiração; Art. 54 - Estima ou Desprezo, Generosidade ou Orgulho, Humildade ou Baixeza; Art. 55 -Veneração ou Desdém;

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Art. 56 - Amor e Ódio; Art. 57 - Desejo; Art. 58 - Esperança, Temor, Ciúme, Segurança e Desespero; Art. 59 - Irresolução, Coragem, Ousadia, Emulação, Covardia e Pavor; Art. 60 - Remorso; Art. 61 - Alegria e Tristeza; Art. 62 - Zombaria, Inveja, Piedade; Art. 63 - Auto-satisfação e Arrependimento; Art. 64 - Favor e Reconhecimento; Art. 65 - Indignação e Cólera; Art. 66 - Glória e Vergonha; Art. 67 - Fastio, Pesar, Jovialidade (Alegresse); Art. 69 - “mas o número das `paixões' que são simples e primitivas não é muito grande. Pois passando em revista todas as que enumerei, pode-se facilmente notar que há apenas seis que são tais, a saber: a Admiração, o Amor, o Ódio, o Desejo, a Alegria, a Tristeza; e todas as outras compõem-se de algumas dessas seis, ou então são suas espécies. Por isso para que sua multidão não embarace nossos leitores tratarei aqui separadamente das seis primitivas; e, em seguida, mostrarei de que forma todas as outras tiram daí sua origem”.

Ilustração I - René Descartes, Tratado das Paixões da Alma (1649).

Assim, tenho a “esperança” de haver aguçado o interesse dos leitores a respeito dessa importante obra. A leitura dela, em conjunto com o Compendium Musicae e as conclusões de André Pirro em seu livro Descartes et la Musique, poderão elucidar a afirmação de que o músico da era barroca conhecia bem a obra de Descartes. A relação entre compositor (ou intérprete) e ouvinte “Deixe o cantor ter uma bela voz com boa entonação, e bem suportado, deixe-o cantar com expressão, suave e ruidosa; e em particular ele poderá expressar bem as palavras, assim elas poderão ser entendidas e acompanhe-as com gestual e movimentos, não só das mão mas de outros gestos que são ajudas eficazes para mover os afetos... E o sr. Emílio aprovaria a troca de instrumentos de acordo com os Affetti do intérprete... Mudando de um Affetto a outro que é contrastante - como tristeza para alegria, ferocidade para doçura, e assim moverá um auditório” (Emílio de Cavalieri, ca.1550-1602, prefácio de Rappresentazione di Anima et di Corpo, Roma, 1660). “Em Florença /.../ estes entendidíssimos senhores me confortaram /.../ e igualmente em Roma, onde /.../ todos puderam dar bom testemunho quanto me exortaram a continuar a começada empresa, dizendo-me que havia muito tempo não ouviam tanta harmonia de uma `voce sola', sobre um simples instrumento de corda, que tivesse tanta força de mover o afeto da alma quanto aqueles madrigais...” (Giulio Caccini, prefácio de Le Nuove Musiche, Firenze, 1601). “Além disso, é bem sabido que os virtuosi, particularmente aqueles da antiguidade, têm tentado sempre atingir através da música quase os mesmos resultados que os mestres da oratória, escultura e pintura puderam produzir... de fato, esta arte é capaz de conduzir através do esboço da face, as emoções interiores do espírito... Além disso, oratória tem completamente em seu poder os espíritos de seus ouvintes e pode moldá-los, quase como cera, em estados de tristeza, alegria, compaixão, ira ou cólera, amor e outras emoções... É particularmente notável como foram bem sucedidos os mestres na expressão de pensamentos e emoções... Em minha opinião, você apresenta primeiro um certo Affectus e tenta conduzir o ouvinte à paixão intentada...” (Johann Kuhnau, 1660-1722, prefácio de Musikalische Vorstellung Einiger Biblischer Historien, 1700). Com esta pequena introdução de citações de alguns compositores que marcaram época, fica evidente a preocupação com

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o transmitir afeto.

1. Afectus Exprimere Em seu artigo para a revista Notes (XXX, 2, 1973), George Buelow diz: “Este autor achou problemático o ensino do pensamento musical do barroco por motivo de serem seus estudantes totalmente despreparados para os aspectos não musicais dos conceitos. A verdadeira terminologia da Retórica é uma linguagem nova que o estudante deve aprender antes de se aprofundar no estudo da Teoria musical barroca”. Para isso, Dr.Buelow oferece nesse artigo uma extensa bibliografia. Quando começa a surgir a “Seconda Pratica”, tratados de retórica como o de Henry Peacham (The elder, 1576-1643), The Garden of Eloquence (London, 1577), já contêm conceitos que chamam a atenção para a semelhança da retórica com a música, comparando o efeito retórico na mente a essa “doce e musical harmonia”. Então, a idéia do barroco é expor e representar na música todas as Paixões da alma. Para tal, o discurso musical deve ser perfeito em suas regras de retórica e oratória. Essa idéia de expor as humanas paixões estava fundamentada em vários tratados de teóricos italianos, tais como Zarlino, em Instituitioni Harmoniche (1558), que aplicava a teoria das paixões à teoria dos intervalos. Na sua opinião os intervalos sem semitom (como terça maior, sexta maior ou décima-terça maior) representavam a paixão Alegria; já os que incluem semitom (tais como terça menor, sexta menor ou décima-terça menor) a paixão Mágoa ou Aflição. Escalas maiores se usavam ou serviam para alegria, ou regozijo, escalas menores para a tristeza e escalas cromáticas, para seu gosto, herdavam uma certa “licenciosidade e fraqueza” e nunca podiam se usar só, mas apenas num contexto com escalas diatônicas. Ele compara com farinha que necessita de alguns condimentos para se fazer o pão. Outra nova idéia é passar além do “material”. É a idéia de reproduzir pensamentos interiores, ou um texto na música de acordo com sua substância. Neste sentido os teóricos comumente usavam a palavra “Affectus Exprimere”, que implica em reproduzir paixões, que inerentes a um texto, devem ser impressas na música. Estes pensamentos - affectus exprimere, exhibere, profere - exprimem não somente relíquias do barroco em suas substâncias, mas também conduzem o compositor a manter sua alta reivindicação: ele busca o extremo excitamento da alma do ouvinte e com isso atinge poderosa representação das paixões, requerendo não somente a compreensão e cognição do ouvinte, mas também uma condição de extrema excitação de sua alma. Assim atingido um estado interior de excitação, ele era posto novamente em tranqüilidade. Importante é dizer que a música não era composta com o único objetivo de representar uma emoção particular, mas toda uma gama de paixões poderiam se mesclar numa peça.

2. Musica Pathetica O compositor barroco acredita na forma imanente e no efeito poderoso da música. Ele acredita-a capaz de criar, aumentar e acalmar as emoções do público. A música deve atrair por sua própria força, assim ela é dirigida diretamente à alma e de certa forma ela depende do público. Ela deve convencer, agitar, enfim, mover. E, movendo, ter as emoções do público sob cerro domínio. Assim ela pode ser tida como “Musica Pathetica” graças ao seu poder mágico. O compositor (e sem dúvida o intérprete) trabalha com duas paixões principais: a Alegria e a Tristeza. Busca-se tensão e relaxamento. Ele sabe que o ouvinte tem uma alma apaixonada e tenta calcular, antecipadamente, as reações emocionais desse ouvinte. Misturando teoria dos afetos, poder mágico, teoria dos temperamentos, características dos tons a um perfeito discurso, mais uma inspiração pessoal, ele objetiva mover a alma do ouvinte. E, se é um bom intérprete e consciente das leis da retórica, move desde a mais simples e doce ternura ao mais veemente e violento apelo guerreiro. Então, sem necessariamente refletir ou conjecturar pela via intelectual sobre o evento musical, o ouvinte se dá espontaneamente às suas paixões.

Procedimento A partir daqui, nosso guia será Johann Mattheson, através do que ele nos legou em seu importantíssimo Der Vollkomene Capellmeister, de 1739. Nesta obra ele trata, além de tópicos essenciais a todo e qualquer músico, do plano racional de composição que se baseia nas instruções da teoria da retórica: Inventio, Dispositio, Decoratio e Pronuntiatio.

1. Inventio Inventio quer dizer a invenção de uma idéia, ou melhor, em se tratando de música, a invenção de algo ainda não ouvido. Na opinião de compositores barrocos, a arte de Inventio é passível de ensino. No capítulo IV da 2a parte, Mattheson diz que a arte de Inventio tem três companheiros inseparáveis, que são: Dispositio, Elaboratio e Decoratio; e explica melhor: uma hábil disposição, uma elaboração diligente, e uma ornamentação inteligente da melodia. A Ars Combinatoria, os Loci Topici e muitas fórmulas musicais pertencem à Ars Inveniendi.

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Inventio requer inspiração e razão condicionados pelo talento. Pela razão é ordenada a fantasia do compositor e prevenida a extravagante expansão dela. Além disso, cuida da elaboração criativa do tema, mas uma paixão objetiva há de ser representada. Uma reflexão intelectual é necessária, do contrário a expressão musical dessa paixão pode levar à pobreza de fantasia devido a figuras estereotipadas. Por outro lado, uma exposição intelectual da paixão será carente em fogo para excitar o ouvinte. A invenção em si é ensinável, como já dissemos, porém esta parte, ou melhor, este equilíbrio entre Ratio e Passio, não pode ser ensinado já que há tão grande variedade da humana fantasia. Então, a única condição é, realmente: Talento! “Certas fórmulas especiais que podem ser usadas para expressão em geral devem ser vantajosas para o tema ou principal exposição que na ciência da melodia é o que equivale ao texto ou o sujeito para um orador, isto quer dizer: O compositor, por muita experiência e audição atenta a boas obras deve reunir algo aqui e ali em modulações, pequenos grupetos, eventos inteligentes, passagens e transições agradáveis que se fossem ítens isolados jamais poderiam produzir idéias inteiras senão por combinações apropriadas. Se, por exemplo, eu tivesse as três seguintes diferentes e separadas passagens em mente:

e quisesse fazer uma frase coerente com elas, talvez aparecesse:

2. Dispositio Mattheson diz (Cap. XIV, 2a parte, “Der Vollkomene Capellmeister”): “...Agora, antes de mais nada, a respeito da dispositio: ela é uma nítida ordenação de todas as partes e detalhes de uma melodia ou de toda ume composição melódica, sobre a maneira pela qual alguém conjectura ou delineia uma construção e faz um plano ou desenho para mostrar onde um quarto, um Parlor (sala de visitas), uma câmara, etc... deve se situar. Nossa disposição musical é diferente de uma organização retórica de uma mera fala, apenas pelo tema, sujeito ou objeto: por isso se observa essas seis partes que são prescritas e um orador, que são introdução, narração, discurso, corroboração, confutação e conclusão. Exordium, Narratio, Propositio, Confirmatio, Confutatio e Peroratio. Exordium é a introdução e início de uma melodia, em que a meta e todo o propósito deve ser revelado, assim o ouvinte estará preparado e estimulado para a atenção. Freqüentemente, quando examinamos uma peça sem instrumentos, somente com a parte vocal e o baixo, esta introdução ocorre no baixo antes da entrada da parte vocal; se um grande acompanhamento é apresentado, no ritornello. Nós chamamos esta parte que ocorre no início, com instrumentos, um ritornello: porque a seguir é repetida, e uma peça pode facilmente tanto começar, quanto acabar com ele. Narratio é como falar um relato (informação), através do qual o sentido e o caráter do conteúdo discursivo é mostrado. Ocorre com a entrada ou início da parte vocal ou a parte concertante mais significativa e refere-se ao Exordium, que a precedeu, por meio de uma habilidosa conexão. Propositio ou o verdadeiro discurso contém resumidamente o `conteúdo' ou meta da oratória musical, e é de dois tipos: simples ou composta, ao que, também, pertence a variada ou ornamentada Propositio em música, de que nada é mencionada em retórica. Tal discurso acontece imediatamente após a primeira Cansura na melodia, a saber: quando o baixo, por assim dizer, `fala claro', e o apresenta tão resumido quanto simples. Então a parte vocal inicia na Propositionem Variatam, unida ao baixo contínuo, e efetuam o discurso combinado. Depois tomaremos uma ária e, examinando-a de acordo com essa ordenação, veremos se isto é real então. De maneira que tudo o que foi dito será entendido claramente, pelos olhos e ouvidos; pensado pode parecer tão novo quanto estranho. Confirmatio é uma corroboração (ou comprovação) do discurso, e em melodia é comumente encontrada em repetições bem concebidas que são usadas além da expectativa; isto não deve ser entendido em relação a reprises ordinárias. A introdução repetida de certas agradáveis idéias vocais, ornamentadas por todo o tipo de boas variações é o que tratamos aqui como será claro no exemplo que se seguirá. Confutatio é uma dissolução das execuções e pode ser expressa na melodia por combinações ou até mesmo através de citação e refutação de aparecimento de idéias estranhas: mas através de tal antítese, se estiverem bem acentuadas, a audição será fortalecida em sua alegria, e tudo que mover contra ela em dissonâncias e sincopações será `alisada' e

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resolvida. Entretanto, não se encontra este aspecto de disposições em melodias tanto quanto em outras coisas; ainda que seja verdadeiramente uma das mais bonitas. Peroratio finalmente é o fim ou conclusão de nossa oração musical, que deve produzir uma impressão especialmente enfática, mais ainda, que todas as outras partes. E isto acontece não somente no curso ou progresso da melodia, mas especialmente, no epílogo, seja no baixo contínuo ou em um acompanhamento mais `forte'; quer já se tenha ou não ouvido este ritornello previamente. O hábito estabeleceu que nas árias nós fechamos com quase as mesmas passagens e sons com os quais começamos: assim nossa peroração é substituída pelo nosso Exordium”. No Cap. XIV, 3a parte, Mattheson acrescenta: “O Exordium ou introdução de nossa ária é esta frase ou este tema no baixo:

Imediatamente e sem grande divagação é tomado pela parte vocal /.../ imitada da seguinte forma, soando quase igual [Ver, na página ao lado, Ex. IV].

Exemplo IV.

Agora, segue-se o contraste na terça, o baixo toma a repetição e, como se fosse o discurso propriamente dito que, como Propositio Simplex, aparece assim [Ver Ex. V].

Exemplo V.

A parte vocal, então, acrescenta o seguinte, com a variação e faz uma Propositionem Variatam [Ver Ex. VI].

Exemplo VI.

Então o baixo retoma o tema mais uma vez, e na verdade como foi na introdução: antes de terminar novamente a ele se junta a parte vocal imitativa, dá à melodia um aspecto vocal completamente diferente, e em associação com o baixo, realizam um discurso combinado, Propositionem Compositam, da seguinte maneira [Ver Ex. VII].

Exemplo VII.

Além disso, após alguns compassos, percebe-se a confirmação, ou corroboração disso que havia sido exposto de várias maneiras; mas, com uma marcante e bela variação, como vemos: metade da oração musical é assim constituída e, então, usualmente, é encerrada como se iniciou, e isso constitui a peroração ou conclusão” [Ver Ex. VIII].

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Exemplo VIII.

Na segunda parte, após o escritor haver conduzido sua nova narração e introduzido uma apóstrofe, ele dilacera, por assim dizer, um pequeno pedaço de seu prévio tema principal, e faz um especial fora dele; elabora, através de ligação e refutação (quero dizer, respostas dissonantes) até ele quase delicadamente atravessar a refutação, resolve e leva seu período ao descanso na quarta da tônica, segundo a maneira `Hypodorian'. A seguir a frase toda explicada e com anotações [Ver Ex. IX]: a) Aqui termina a Peroratio; b) Aqui ocorre um Transitus ou uma transição, através do qual o precedente se liga ao seguinte /.../ c) A apóstrofe ou Aversio começa aqui; d) Esta é a repetição ou Repercutio no sexta da tônica; e) neste ponto a Confutatio adquire suas resoluções: Confutatio, Rhetoribus Dissolutio, Nobis Resolutio.

Exemplo IX.

A seguir o baixo toma o tema por outra repetição na quarta, faz algo inusitado com ele, e é seguido nisso pela parte vocal, mas com grandes melhoramentos: algo como amplificação ou verificação (Amplificationi & Argumentationi) pela qual a melodia chega à quinta [Ver Ex. X].

Exemplo X.

Então, segue-se uma nova repetição, ou uma Repercutio na quinta da tônica, que figura na arte da retórica, e de fato na Figuris Dictionis (figuras de linguagem) é dado o nome Refractio ou Reverberatio (Refraçao ou Reverberação): desta vez a parte vocal não imita, mas toma uma nova movimentação contrastante” [Ver Ex. XI].

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Exemplo XI.

Isto pode servir como um esboço exato que serve não somente à disposição (Dispositio) como, também, demonstra uma diligente elaboração (Elaboratio). Junto a isto são revelados os seis aspectos da disposição, porém nos lugares em que temos as Figuris Dictionis e Sententiae, é tratado o terceiro item do processo composicional, a ornamentação (Ornamentatio).

3. Elaboratio Como já foi dito, Invenção requer fogo e gênio; Disposição ordem e medida, mas Elaboração requer sangue-frio e circunspecção. Isto é, uma boa coisa requer tempo. Isso após vários parágrafos aconselhando o compositor a ter calma e paciência na elaboração, para que não ocorra erro por pressa ou caprichos extravagantes, porém vazios musicalmente, que denotam indivíduos cheios de si e maus compositores. E Mattheson conta ainda que se na elaboração sofre o autor de languidez, indolência e constrangimento, com certeza esse será o impacto causado ao ouvinte! “Finalmente, nem todas as pessoas são capazes, nem todo o tempo e horas suficientes para boa elaboração: e muitos sentem como se estivessem fazendo algo hoje que lhes será adverso amanhã. Raramente se encontra um mestre rico em invenção que elabora habilmente suas peças; por outro lado, o mais laborioso artista nem sempre é o mais miserável inventor. Em resumo! Quem quer que disponha bem já terá feito a metade para a elaboração. Só tomará pouco tempo e atenção, não uma grande quantidade de trabalho. É muito pior se o último estiver muito em evidência que se não estiver presente”.

4. Decoratio O autor nos diz que a ornamentação depende mais do julgamento sonoro e da habilidade de um cantor ou instrumentista que da real prescrição do compositor da melodia. E que se pode ornamentar a melodia de alguém, pois as abundantes figuras ou tropos da retórica podem prestar grande serviço, se bem usados. Ele critica os franceses - “por mais que aprecie seu estilo instrumental” - por excesso de ornamentos(12), pois uma ornamentação muito carregada pode desfigurar totalmente as Figurae Sententias. Assim o melhor juiz é o Gôut! Sobre ornamentação inadequada ele relata a seguinte anedota sobre Josquin (des Près): “Quando Josquin estava ainda em Cambrai e um homem executou uma coIoratura absurda em uma de suas peças, e que Josquin não havia escrito, isso o incomodou tanto que Josquin disse a ele: `Sua besta! Por que adicionou a coloratura? Se eu a quisesse teria eu mesmo adicionado! Se quer corrigir canções já escritas, então componha-as você mesmo e deixe a minha tranquila'”. Embora isso possa parecer que eles não aceitassem nenhuma ornamentação além da já escrita, sabe-se que os compositores apreciavam as ornamentações bem colocadas, e retoricamente apropriadas! Depois disso seguem-se exemplos e termina a segunda parte.

Conclusão “O cantor em sua oração deve, então, despertar as paixões dos ouvintes através de sua maneira de performance. Para isso ele deve, primeiro, entender o texto e sua música”, da mesma forma que escolares Elisabetanos aprendiam a entender poesia, orações, etc...; isto é, ele deveria aprender a reconhecer “cada Tropo, cada figura, bem como letras das sentenças; mas também a pronunciação retórica e, também, gestos acertados para cada palavra, sentença ou afecção”. É o conselho de R.Tolf. Assim, para o entendimento real de uma peça musical (principalmente dos séculos XVII e XVIII) é mais que necessário, é essencial, que, além da análise que hoje se ensina, comecemos novamente a ter um

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entendimento analítico segundo a retórica. Pois, só pela análise das figuras e o que representam afetivamente é que poderemos nos aproximar da intenção emocional do compositor. Do contrário ocorrerão erros brutais como, por exemplo, o seguinte. Não poucas vezes ouvi o Prelúdio em Fá Menor, no XII, BWV 881 do W.T.C. Seg. Vol. sendo interpretado de maneira errada, principalmente nos compassos 1-4 (primeira metade), 8 (segunda metade)-16 (primeira metade) e nos compassos semelhantes que se seguem. Acontece que, especificamente nesses lugares o afeto é dor, lágrimas (pelo menos segundo J.S.Bach, em sua Paixão Segundo São Mateus!), além disso a tonalidade é Fá Menor. Mesmo assim, ouve-se, por vezes, sendo tocado num “belo de um allegro”. Claro, a pronúncia harmônica será entendida, mas a pronúncia retórica e/ou afetiva será simplesmente ignorada. Mas, não será a Harmonia um suporte para o discurso? Thomas Wright em “The Passion of the Mind in General” (London, 1604) coloca: “É quase impossível para um orador agitar uma paixão em seus ouvintes, exceto se ele afetar-se primeiro com a mesma paixão”. Ele sugere, ainda, que o orador observe homens apaixonados, tomando nota de como eles se portam nas paixões e observando o que eles falam em contentamento, tristeza, ira, medo, esperança, etc.; quais os movimentos que são despertados nos olhos, corpos e mãos, etc. Isso nos remete a Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788) que instruía a seus alunos dizendo: “Um músico não pode emocionar aos outros a não ser que se emocione ele mesmo”. Entendido o processo retórico, outra questão a ser discutida é: será que só através da observação - como sugere Wright poderemos transmitir as emoções plenamente? Acredito que não. O músico, além daquelas horas de trabalho técnico, de afinação de seus instrumentos, e do trabalho de repertório, tem que viver. Quero dizer, é necessário um grande número de experiências, onde ele poderá formar um “arquivo de paixões”. Senão,como poderá ele interpretar “Les Tendres Sentiments”, “L'Amant Plaintif”, “Les Tendres Reproches”, “Les Doux Propos” e outras que ele só poderá interpretar se viveu, se deliciou e sofreu de amor? Onde buscará emoção semelhante ao “Capriccio sopra la Lontananza del Fratello Dilettissimo”? Se nunca esteve num cavalo que disparava, como soará sua interpretação de “Le Vertigo”? E a dor pela morte de um ente querido, não será ela importante para a execução dos vários “Tombeaux”? Mas ele não poderá esquecer dos “Bruits de Guèrre”. E para coroar tudo isso, cedo ou tarde, terá o cravista que se defrontar com um “Prélude non mesuré”, que é um estilo eminentemente retórico, e aqui, então, há que se ter uma estória a se contar, senão será como ler um livro com páginas em branco! Assim, acredito firmemente que, além de conhecedor da retórica, o músico deve ser rico em experiências para que se possa realizar o “discurso musical”.

NOTAS (1) MATTHESON, Johann. Das Neu-Eröffnete Orchestre (Hamburg, 1713), Reprint Georg Olms Verlag. (2) Ver: terceira parte da Ética de Spinoza. (3) Ver: Discurso sobre o Método. Antes de mais nada é uma obra que serve para inspirar a organização de um método de estudo musical. (4) “A base da música é o som, seu objetivo é agradar e despertar várias emoções em nós”. Assim se inicia o “Compendium Musicae”. A obra só foi publicada após a morte de Descartes. Certamente, para escrever seu Compendium, Descartes se baseou no “Instituitioni Armoniche” de G.Zarlino (1517-1590), pois ele admite haver estudado a obra do importante autor italiano, de onde tirou viárias idéias para suas teorias. No Compendium cada frase é de grande importância. Como exemplo temos: “...mesmo os animais podem dançar ao ritmo se forem ensinados e treinados, para isso toma-se apenas o estímulo físico para executar esta reação”. Nesta questão Descartesse adianta - a respeito do reflexo condicionado - em 300 anos a Ivan Pavlov (1849-1936). Diga-sede passagem que este tinha um busto de Descartes em sua sala! (5) Marin Mersenne (1588-1648), mais conhecido como Père Mersenne, estudou no Colégio Jesuíta de Les Mans e no colégio La Flèche, onde foi colega de Descartes e iniciou uma longa amizade. Depois ele foi estudar teologia na Sorbonne. Seu real interesse era a música do ponto de vista analítico. E como fruto desse interesse temos obras que foram marcos na história da música, tais como a já citada “Harmonie Universelle” (1636), que compreende estudos sobre a natureza dos sons, mecânica, consonância e dissonância, modos, composição, voz e canto, etc.. É, sem dúvida, a fonte mais importante sobre a prática musical no século XVII. (6) Contantjin Huygens (1596-1687) era o grande diplomata holandês, músico de grande talento, escreveu “Parhodia Sacra et Profana” Unius Vocis cum Basso Continuo, (Amsterdam: Muziekuitgeverij Saul B. Groen, 1975). É uma coleção onde se misturam salmos latinos, árias italianas e árias francesas para voz solo e baixo contínuo. Escreveu, ainda, uma comédia popular, ensaios científicos sobre vários assuntos e grande número de poemas nas sete línguas que falava. (7) Rameau pode ser considerado um dos últimos cartesianos da música. Toda a questão cartesiana entre os franceses foi terrivelmente discutida no episódio conhecido como a “Querelle des Bouffons”, onde Rameau e Voltaire defendiam o estilo francês e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) que foi o escolhido dos enciclopedistas para criar uma confusão muito mais

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filosófica que musical. A querelle chegou a dividir a rainha (pelos italianos) e o rei (pelos franceses). Tudo começou com a apresentação, em Paris, da “Serva Padrona” de Pergolese, à qual se seguiram outras óperas bufas (daí o nome da querela). Rousseau escreveu, além do “Dictionaire de Musique” (1768, reprint Georg Olms Verlag), vários artigos sobre música. Ele dizia não existir a música francesa e que a música deveria ser uma melodia acompanhada de maneira simples. De qualquer forma, o próprio Rousseau se reconhecia um músico medíocre. Suas idéias musicais parecem ter se proliferado no século seguinte ao seu, daí a colocação de “pai do romantismo”. (8) É tão certo quanto seu conhecimento da obra de Quintiliano (Ver: GEIRINGER, K. J.S.Bach. Jorge Zahar Editor, pág. 90). (9) “O Mundo” e “Tratado do Homem” são duas partes de um tratado que Descartes escreveu nos anos 1629-1633, e que, sabendo da condenação de Galileu pela “Santa” Inquisição decidiu não publicar. São obras póstumas. (10) Wilhelm Kilthey (1833-1911). (11) Ver: referência à criação das paixões ou importância de um arquivo via experiência do intérprete, na Conclusão. (12) Talvez por isso, ou para prevenir erros de natureza retórica é que François Couperin (1668-1733), le Grand, tenha dito que o intérprete de suas peças deveria seguir os ornamentos indicados.

BIBLIOGRAFIA ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. (Coleção Universidade) S.1., Editora Tecnoprint, s.d. Aut. Div. Retórica Geral. São Paulo: Editora Cultrix/EdUsp, 1974. Aut. Div. Os Sentidos da Paixão. São Paulo: Companhia das Letras/FUNARTE, 1989. BUELOW, George J. “Doctrine of Affections”, “Doctrine of Figures”, “Rhetoric and Music”, in: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. BUELOW, George J. Thorough-Bass Accompaniment according to Johann David Heinichen. Ann Arbor: UMI Research Press, 1986. BUTLER, Georg G. “Music and Rhetoric in Early XVIIth Century English Sources”, in: Music Quarterly, LXVI, 1, 1980. CACCINI, Giulio. Le Nuove Musiche (Firenze, 1601). Facsim., Firenze: Ed. Studio per Edizioni Scelte, 1983. CAVALIERI, Emílio de. Ver: MacClintock. CICERO. Divisions de I'Art Oratoire/Topiques. Paris: Société d'Edition “Les Belles Letres”, 1960. DAVIES, Stephen. “Is Music a Language of Emotions?”, in: British Journal of Aesthetics, vol.23, no.3, Summer/1983. DESCARTES, René. Compendium Musicae/Compendium of Music. Musicological Studies and Documents, 8. American Institute of Musicology,1961. DESCARTES, René. The Philosophical Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. DILTHEY, Wilhelm. Hombre y Mundo em los siglos XVI y XVII. México: Fondo de Cultura Economica, 1947. DIPERT, Randall R. “The Composer's Intentions: An Examination of Their Relevance for Performance”, in: Musical Quarterly, LXVI, no 2, 1980. FLUDD, Robert. Escritos sobre Música. Madrid: Editora Nacional, 1979. KINKERDALE, Ursula. “The Source for Bach's Musical Offering: The Intitutio Oratoria of Quintilian”, in: Journal of American Musicological Society, XXXIII, 1980. KUHNAU, Johann. Six Biblical Sonatas (1700). New York: Broude Brothers, 1953. MacCLINTOCK, Carol (Selected, translated and edited). Readings in the History of Music Performance. Bloomington: Indiana University Press, 1982. MALIPIERO, G. Francesco. L'Armonioso Labirinto. Da Zarlino a Padre Martini (1558-1774). Milano: Rosa e Ballo Editori, 1946. MATTHESON, Johann. Der Volkommene Capellmeister (1739) (A Revised Translation with Critical Commentary by Ernest C.Harriss). Ann Arbor: UMI Research Press, 1981. PIRRO, André. Descartes et la Musique. Paris: Librairie Fischbacher, 1907.

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QUINTILIANO. Oeuvres Completes. Paris: Garnier Frères, Librairies-Editeurs, s.d. SILVEIRA, Ligia Fraga. As concepções Médicas e Morais na Filosofia de Descartes (Tese de Doutorado). São Paulo: USP, 1985. SPINOZA, Baruch. Ética. São Paulo: Nova Cultural, 1989. STREET, Alan. “The Rhetoric-Musical Structure of Goldberg Variations: Bach's Clavier-Ubung IV, and the Institutio Oratotia of Quintilian”, in: Music Analysis, 6, 1-2, 1987. TOFT, Robert. “Music a sister to Poetrie. Rhetorical artifice in the Passionate Airs of John Dowland”, in: Early Music, May/1984. WELLS, Robin Headlam. “The Ladder of Love. Verbal and Musical Rethoric in the Elizabethan Lute-Song”, in: Early Music, May/1984.

Pedro Persone estudou com Maria José Carrasqueira, Roberto de Regina, Huguette Dreyfus, graduando-se em cravo pela UNICAMP (Profa. Helena Jank). Freqüentou cursos dc Música Antiga tendo aulas de cravo ministradas por Edmundo Hora, Christophe Rousset (França), Jacques Ogg e Augusta Campagne (Holanda). Professor de cravo e música de câmara no Conservatório Dramático e Musical Dr. Carlos de Campos, Tatuí/SP, dedica-se à pesquisa e realiza palestras e masterclasses de cravo, baixo-contínuo e música de câmara. Seus recitais - como solista ou com seu conjunto La Stravaganza refletem a pesquisa sobre dedilhado antigo, fraseologia, estilo, estética, baixo contínuo, teoria dos afetos, retórica e oratória. voltar

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