Palavra e Imagem nos Seiscentos: a imaginação artística na Contrarreforma. Palestra proferida nos Seminários 20 anos com NEPHISPO, Uberlândia, 2014.

August 6, 2017 | Autor: Guilherme Luz | Categoria: Art History, Early Modern Catholicism, Religious art, Artistic Imagination
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Palavra e imagem nos seiscentos A imaginação artística na contrarreforma Guilherme Amaral Luz (Instituto de História – Universidade Federal de Uberlândia) 2014

Imagem e Arte Religiosa nos Seiscentos • Paolo Prodi, em introdução ao Discorso de Paleotti, identifica, na “modernidade”, uma “passagem do ícone à obra de arte”, ou seja, da imagem como objeto e como sujeito ativo na relação com o indivíduo devoto à arte como deleite “estético”, admirada à distância. • No século XVII, não devemos supor uma necessária incompatibilidade entre esses dois modelos. Ao contrário, algumas das reações do Concílio de Trento em relação às inovações artísticas da Renascença estão ligadas ao seu afastamento dos protótipos inspirados e a consequente liberdade artística de interpretar a história sagrada. • Por outro lado, tais reações não buscaram sufocar o desenvolvimento de uma “artística devota”, quer dizer, uma arte de externalização de imagens edificantes produzidas pelas faculdades imaginativas da alma aos “devotos”. • Em outros termos, enquanto a imagem como “ícone revelado” supunha uma religação do devoto com o sagrado por meio do artista inspirado; a imagem, como fruto da “imaginação artística”, supunha um diálogo entre seres imaginativos com vistas à experiência sensitiva de conteúdos religiosos visualmente interpretados.

Imagem e Arte Religiosa nos Seiscentos • Tertuliano, a partir das epístolas de Paulo, defendia que o conhecimento das “coisas invisíveis” revelam-se nas “visíveis” e que a própria dinâmica da revelação bíblica se dá por meio de figuras, enigmas e alegorias, ou seja, por meio de uma “linguagem figurada”, própria tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. Assim como Gregório Magno, defendia a imagem como meio de gravar os ensinamentos da fé na memória, iluminando o entendimento. • Conforme a tópica tomista: Nihil potest homo intelligere sine phantasmate. Em São Tomás de Aquino, há uma etapa pré-racional, anterior a qualquer intelecção, que envolve a elaboração de “fantasmas” na mente, resultantes de uma comunicação entre os sentidos (externos) e a imaginação (interna). • Na teorização franciscana de um Boaventura da Bagnoregio, chega-se ao ponto de que “o mundo sensível é considerado como ‘um espelho pelo qual chegamos a Deus criador’”. Esta tese terá ressonância na Contrarreforma, aparecendo também em Gabriele Paleotti e em um jesuíta como Roberto Belarmino. • Entre os jesuítas, a experiência sensível dos mistérios na imaginação forma a base dos Exercícios Espirituais e a tônica, portanto, da mística inaciana.

Imagem e Arte Religiosa nos Seiscentos • À base da formulação de uma “teologia medieval da imaginação” está articulada a “arte da memória”, herdeira da Retórica antiga e que teve, na Retórica a Herênio, por muito tempo atribuída a Cícero, uma importante fonte de autoridade. • Segundo hipotetiza Francis Yates, a arte da memória, fortemente presente na especulação teológica e metafísica sobre a imaginação na Idade Média, exerceu um papel decisivo na formação de um “sistema de imagens” na Europa medieval. Segundo a autora: “essa arte interior, que encorajou o uso da imaginação como um dever, deve ter sido, certamente, um fator preponderante na evocação das imagens”. • Refletindo a respeito da Itália dos quatrocentos e quinhentos, Michael Baxandall também evoca as relações entre a imaginação religiosa (contemplativa e mística) e o desenvolvimento da pintura. Para ele, o artista busca oferecer um esquema visual a ser completado e desenvolvido na imaginação do observador, sem competir com ela, mas, antes, provocando-a e promovendo-a.

Imagem e Arte Religiosa nos Seiscentos • No sentido até agora exposto, não há ruptura entre a imaginação artística e religiosa do medievo e a do período que sucede a Contrarreforma. A maior novidade está na articulação das propriedades edificantes e espirituais da arte religiosa com os efeitos da emergente “intelectualização” das práticas artísticas, em curso desde a Renascença. Ainda que a arte pictórica não chegue a ganhar autonomia em relação aos seus objetivos devocionais, ela passa a gozar de estatuto de arte liberal, exposta, portanto, ao juízo cada vez mais especializado de uma “elite” iniciada nos termos elevados da crítica e da preceituação artísticas. Tudo isso em meio a um ambiente marcado pela iconoclastia e pelo cisma protestantes, exigindo da Igreja tomar posições e elaborar justificativas quanto ao uso religioso das imagens.

• Seria, no entanto, anacrônico pensar em separados valores religioso e artístico para uma pintura seiscentista. Sobretudo, no caso de obras de temática sacra. Pior ainda seria supor homogeneidade na recepção dessas obras, cuja exposição pública voltava-se a todo o “organismo” social e político. O ponto central da artística religiosa da contrarreforma estava, ao contrário, em articular as potencialidades de um sofisticado sistema preceptivo e crítico da arte à sua propaganda religiosa.

Imagem e arte Religiosa nos Seiscentos Estudando as teorias artísticas de Roma na época de Bernini, Maarten Delbeke demonstra que, para autores como Sforza Pallavicino e Giovanni Ciampoli, a arte (religiosa) legítima é aquela que produz variedade e novidade de formas para expressar a aparência de verdades eternas. Sua essência seria metafórica. Para eles, “a variedade existe no interior de uma concepção ‘fechada’ de verdade e de doutrina: enquanto a verdade não muda através do tempo, as formas que ela assume mudam”. As formas artísticas são contingências históricas cujo ser é transcendente. Na condição mortal do homem, qualquer contato com o transcendente é mediado pelas metáforas contingenciais capazes de serem experimentadas na temporalidade sublunar. O sentido da arte religiosa seiscentista seria, assim, a manifestação eficaz da divindade por meio de uma multiplicidade inumerável de formas cabíveis em cada circunstância histórica particular. Variedade e novidade devem cativar a vontade, os sentidos, a atenção e o coração dos fiéis, mas a finalidade última é coloca-los em contemplação da “absoluta uniformidade da imagem perfeita de Deus”.

Imagem e arte Religiosa nos Seiscentos Diversas são as vias que exploraram o contato com o transcendente, mediado pelas metáforas contingenciais. Dentre elas, o “caravaggismo” é um exemplo limite. Os quadros de Caravaggio apresentam o transcendente como uma “segunda persona” da vida comum, secularizando-se pois o sagrado e sacralizando o secular. Em outros termos, dramatiza a história sagrada fazendo-a presente e reconhecível no dia-a-dia das relações humanas e visível nas expressões faciais e corpóreas de gente de carne e osso, substituindo a idealidade da pintura solene da Alta Renascença por cenas equívocas do cotidiano. Mas o exemplo do “caravaggismo” é tão bom como paradigma desta “nova artística” do sagrado quanto como o seu limite perigoso, em relação ao qual não poucas objeções foram se interpondo ao longo do século XVII, seja em Roma, na Toscana ou mesmo em centros “caravaggistas”, como Nápoles e Madri. Se, por um lado, o seu “naturalismo” permitia um envolvimento imediato e afetivo com as cenas sagradas. Por outro, sua licença excessiva parecia eliminar a própria essência religiosa das mesmas: a sua relação com a transcendência. O limite, assim, entre o cotidiano como mediação e a sua autonomização é bastante tênue e, para a época, indesejável.

Imagem e arte Religiosa nos Seiscentos Virgilio Malvezzi (anti-maquiavélico): embora os assuntos políticos da humanidade fossem governados com variabilidade e imprevisibilidade, o universo, todavia, governava-se por uma ordem moral. Guido Reni, sob o olhar de seus contemporâneos, segundo Pepper, “é um corpo de obras que veicula uma noção de perfeição por meio de suas formas graciosas, suas cores límpidas e a sua composição lúcida. Tudo isso a serviço de uma atitude profundamente cristã, que (...) procura evocar uma ordem moral divina a governar os assuntos humanos”. Um resumo dessas qualidades visualizadas em Reni pelos seus contemporâneos, Pepper atribui a Cesare Rinaldi. Tratam-se de três temáticas: “justaposição entre o feminino e a beleza celestial e a passagem ao divino por meio da beleza”, “amor à beleza e à sua criação” e, principalmente, “a abertura do olhar do observador para a ‘ideia bela’, ou seja, para a ‘verdade’ que subjaz à ‘beleza’.” Em comparação com Agostino Carracci, elogiado pelos seus talentos racionais, Guido Reni sobressai especialmente pelos seus talentos “metafísicos”, “divinos”, que buscam ao mesmo tempo “imitar e exceder a natureza”, demonstrando uma qualidade “luminosa” e buscando uma “beleza celestial”. Tanto o elogio da racionalidade de Agostino quanto o caráter “divino” de Guido têm origens numa tradição “classicista”, advinda de Rafael, para a qual “a expressão artística reflete a ordem divina da existência”.

Imagem e arte Religiosa nos Seiscentos Apesar de tanto a vertente “racionalista” quanto a “metafísica” do “classicismo” buscarem mais a perfeição da natureza do que a sua imitação mais “vulgar”, separando-se, portanto, um Guido Reni e um Domenichino do Caravaggismo e do “realismo” holandês ou flamengo, a obra de Guido Reni, quando comparada a de artistas mais “racionais” ou menos “delicados”, é tomada como inferir por teóricos defensores de uma escola “clássica-idealista”, conforme o vocabulário de Pepper, identificados, por exemplo, em Bellori ou Félibien. Para esses, a mais alta tarefa da arte consistiria na produção dos affetti, ou seja, a expressão das paixões, “detalhes que deixam explícitos os objetivos de determinado objeto”. Na conjunção entre a teoria clássica e os anseios da Contrarreforma, tornava-se importante “instruir pelos affetti”, “mover a alma” por meio deles, para o que Guido Reni era tomado como “demasiado delicado”, como “superficial em apelo”. As “harmonias graciosas” de Guido, pelo que ele era louvado, falhavam no essencial: na construção, por meio da razão e da clareza, de uma retórica visual afetiva, capaz de persuadir os observadores.

Michelangelo Merisi da Caravaggio. Davi com a cabeça de Golias (1609-10). Óleo sobre tela 125 x 100 cm. Galleria Borghese.

Guido Reni. Davi com a cabeça de Golias (16056). Óleo sobre tela 220 x 160 cm. Musée du Louvre.

Michelangelo Merisi da Caravaggio. São João Batista (c. 1604). Óleo sobre tela 172 × 104 cm. Nelson-Atkins Museum, Kansas City.

Guido Reni. São João Batista e o cordeiro (16245). Óleo sobre tela 157 x 113 cm. Musée des Beaux-Arts de Nantes.

Guido Reni. São João Batista (1635-40). Óleo sobre tela, 112 x 58 cm. Galleria Sabauda, Torino.

Raffaelo Sanzio. São João Batista no deserto (1518-20). Óleo sobre tela, 165 x 147 cm. Gelleria degli Uffizzi, Florença.

Na direção de um conceito: “a imaginação artística na contrarreforma”. • A imaginação artística na contrarreforma não é um conceito que subtraia da arte o seu caráter de prática erudita, cortesã e, logo, letrada, pois autorizada por saberes humanistas herdeiros da Antiguidade e voltada ao juízo de homens iniciados em preceitos da arte; • Por outro lado, é uma busca pela produção de efeitos sensoriais que tornem visíveis conceitos invisíveis e o inominável, uma realidade “diante dos olhos”; • O fazer pictórico não é, assim, o mero “colorido” do desenho, mas a “experimentação” de meios visuais capazes de produzir a incorporação de um conceito religioso complexo, embora capaz de ser percebido, de maneira sensorial, pelo vulgo; • O artista, assim, não reproduz imagens inspiradas nem as interpreta ao seu próprio modo, mas investe artisticamente sobre a história sagrada a fim de delas extrair uma experiência profunda e espiritual dos seus sentidos; • A “crítica da arte” pelos seus conhecedores “letrados” volta-se ao juízo de propriedades artísticas da pintura de modo articulado à compreensão dos valores dos seus artifícios no alcance de determinados efeitos “espirituais”.

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