Palavras -BO em Karajá: Como Transmutar Análises Linguísticas Formais em Material Pedagógico

July 22, 2017 | Autor: Luiz Amaral | Categoria: Indigenous Studies, Applied Linguistics, South American indigenous languages, Karajá
Share Embed


Descrição do Produto

Cadernos de

Cadernos de

v. 11, n. 1 - 2014 Cuiabá - MT

Editores / Organizadores - Elias Januário - Fernando Selleri Silva

Comissão Editorial - Bruna Franchetto - UFRJ - Darci Secchi - UFMT - Elias Januário - MERIREU - Elizabeth Maria Beserra Coelho - UFMA - Everton Ricardo do Nascimento - UNEMAT - Fernando Selleri Silva - UNEMAT - Filadelfo de Oliveira Neto - CEEI/MT - Francisca Navantino Paresi - OPRIMT - Germano Guarim Neto - UFMT - Korotowï Taffarel Ikpeng - OPRIMT - Marcus Antonio Rezende Maia - UFRJ - Maria Aparecida Rezende - UFGD

Cadernos de Educação Escolar Indígena Volume 11, Número 1, 2014 Cuiabá Mato Grosso Brasil DISTRIBUIÇÃO GRATUITA As informações contidas são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores.

Cadernos de

ISSN 1677-0277

v. 11, n. 1 - 2014 Cuiabá - MT

Revisão: Fernando Selleri Silva Revisão Final: Elias Januário Projeto Gráfico/Diagramação/Capa: Fernando Neri

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA - Organizadores: Elias Januário e Fernando Selleri Silva. Cuiabá: Editora MERIREU, v.11, n.1, 2014. ISSN 1677-0277 1. Educação Escolar Indígena I. Formação de Professores. II. Interculturalidade. III. Práticas Pedagógicas. CDU 572.95 (81): 37

Instituto Merireu de Estudo Socioambiental, Pesquisa e Educação Escolar Intercultural Caixa Postal n.º 1003 CEP 78050-973, Cuiabá/MT - Brasil [email protected] / www.merireu.org.br

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.......................................................................................9 EDUCAÇÃO ESCOLAR: PELAS MÃOS DA EDUCAÇÃO INDÍGENA................................................................................................. 11 Maria Aparecida Rezende, Luiz Augusto Passos

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE BRASIL E PERÚ........................................................................23 Luis Antonio Ccopa Ybarra, Marisa Soares

ESCOLAS INDÍGENAS EM MATO GROSSO: INICIATIVAS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO SABER..........................................................43 Darci Secchi, Vanúbia Sampaio dos Santos, Aline Martins de Oliveira

UMA EXPERIÊNCIA GRATIFICANTE: EDUCAÇÃO E PERCEPÇÃO AMBIENTAL ENTRE ESTUDANTES INDÍGENAS...........................63 Germano Guarim Neto, Elias Januário

PALAVRAS –BO EM KARAJÁ: COMO TRANSMUTAR ANÁLISES LINGUÍSTICAS FORMAIS EM MATERIAL PEDAGÓGICO .........69 Cristiane Oliveira da Silva, Luiz Alexandre Mattos do Amaral, Marcus Maia

EDUCAÇÃO INFANTIL INDÍGENA E EDUCAÇÃO ESCOLAR INFANTIL INDÍGENA: SABERES E FAZERES INDÍGENAS E INSTITUCIONALIZAÇÃO.....................................................................87 Filadelfo de Oliveira Neto

“REAL” EDUCAÇÃO NA ETNIA ENAWENÊ-NAWÊ........................91 Fabrício Alves Estephanio de Moura, Aumeri Carlos Bampi, Waldir José Gaspar

DIÁLOGO INTERCIENTÍFICO NA COMUNIDADE DO CEDRO: REFLEXÕES PARA EDUCAÇÃO AMBIENTAL.................................99 Fernando Thiago, Elias Januário, Germano Guarim Neto

AGRICULTURA INDÍGENA: O CONHECIMENTO TRADICIONAL NO PREPARO DA ROÇA TAPIRAPÉ................................................. 119 Polyana Rafaela Ramos, Elias Januário, Carlos Xario’i Tapirapé

APRESENTAÇÃO

Neste décimo primeiro volume do Cadernos de Educação Escolar Indígena, agora publicado pelo Instituto Merireu – Instituto de Estudo Socioambiental, Pesquisa e Educação Escolar Intercultural, criado no ano de 2009, no contexto das Licenciaturas Indígenas Interculturais da Universidade do Estado de Mato Grosso, representa mais um espaço significativo na consolidação dos direitos dos povos indígenas e no fortalecimento das políticas públicas de educação escolar indígena em nosso país. O Instituto Merireu foi criado com o objetivo de promover ações, estudos e pesquisas visando à defesa da proteção ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, estético, histórico, turístico e paisagístico, bem como a defesa dos direitos e interesses das comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas e não indígenas de Mato Grosso, de outros Estados brasileiros e de outras nacionalidades, na perspectiva da sua autonomia, fazendose representar junto aos órgãos públicos e iniciativa privada na esfera internacional, federal, estadual e municipal. Esta edição, a exemplo das anteriores, conta com artigos que fazem uma reflexão acerca de conceitos e metodologias voltadas para a formação de professores indígenas em diversas instituições e estados da federação. Também contempla artigos que tratam de experiências nos cursos ofertados no estado de Mato Grosso. Na perspectiva de ampliar o conceito de interdisciplinaridade e interculturalidade, estamos publicando um artigo sobre uma experiência de educação e um quilombo, buscando um diálogo profícuo entre os diferentes sujeitos das comunidades tradicionais existentes em nosso país. Este periódico, a partir dessa edição, tem a iniciativa de promover o intercâmbio com outras organizações, entidades científicas de ensino e desenvolvimento social, visando à defesa, valorização e divulgação do patrimônio cultural dos povos indígenas, quilombolas e não indígenas, bem como aquela relacionada aos usos, costumes e tradições que integram a diversidade cultural do Brasil. Agradecemos aos autores que contribuíram com seus artigos para a elaboração desta edição que constitui um marco na ampliação de um espaço em defesa de uma educação escolar com base no princípio do reconhecimento da pluralidade cultural da sociedade brasileira.

Nosso muito obrigado a Maria Aparecida Rezende, Luiz Augusto Passos, Luis Antonio Ccopa Ybarra, Marisa Soares, Germano Guarim Neto, Cristiane Oliveira da Silva, Luiz Alexandre Mattos do Amaral, Marcus Maia, Polyana Rafaela Ramos, Xario’i Carlos Tapirapé, Darci Secchi, Vanúbia Sampaio dos Santos, Aline Martins de Oliveira, Filadelfo de Oliveira Neto, Fabrício Alves Estephanio de Moura, Aumeri Carlos Bampi, Waldir José Gaspar e Fernando Thiago. Desejamos a todos uma excelente leitura. Elias Januário Editor

EDUCAÇÃO ESCOLAR: PELAS MÃOS DA EDUCAÇÃO INDÍGENA

EDUCAÇÃO ESCOLAR: PELAS MÃOS DA EDUCAÇÃO INDÍGENA

Maria Aparecida Rezende1 Luiz Augusto Passos2

Resumo: Esse texto é uma provocação à discussão acerca da educação escolar indígena. Essa abordagem traz a necessidade de debater a educação indígena e território. A metodologia advém das rodas de conversas com professores indígenas de Mato Grosso, observações das aulas na aldeia Pimentel Barbosa e também depoimentos, em especial com professores e a comunidade Xavante dessa aldeia, situada também nesse Estado. O que legitima essa temática é a convivência, o trabalho pedagógico e de pesquisa com esse povo desde 1998. Toda essa trajetória de trabalho leva a uma retomada acerca da questão nominada de educação escolar indígena que não é algo que consolidado, mas ainda em (re)construção é uma ação quase inexistente em nosso Estado com poucas experiências bem sucedidas. A oportunidade de retomar esse trabalho junto aos professores e comunidade dessa aldeia veio agora em 2014 iniciando pela grande dúvida que é a construção da identificação de cada escola dessa Terra Indígena. Assim ficou decidido que será construído o que foi chamado de Projeto Pedagógico Indígena (PPI), seguido de oficinas com propostas de ações para auxiliar o desenvolvimento das aulas, intra e extra sala de aula propostas nesses PPIs. Além disso, muitas rodas de conversa e pesquisa com pessoas de todas as aldeias para buscar uma forma de construir uma educação escolar aliada à educação dos Xavante com pilares sustentados nessa cultura e a partir daí caminhar junto com a educação escolarizada nascendo nesse trabalho uma perspectiva de educação escolar indígena. Toda essa discussão nesse texto será costurada dentro de três subtítulos, educação indígena, a formação de professores e a educação escolar e uma perspectiva de educação escolar indígena. Palavras-chave: educação indígena, educação escolar, Projeto Político Pedagógico Indígena. 1 Profa. Dra. Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT/Instituto de Educação - IE/ Educação Aberta a Distância – UAB/NEAD/Dep. Teorias e Fundamentos de Educação – DTFE. Membro do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação – GPMSE e Grupo de Estudo Merleau-Ponty – GEMPO. [email protected] 2 Prof. Dr. Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT/Instituto de Educação - IE/Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGE. Dep. Teorias e Fundamentos de Educação – DTFE. Coordenador do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação – GPMSE e coordenador do Grupo de Estudo Merleau-Ponty – GEMPO.

11

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Abstract: This text is to provoke discussion around indigenous school education.This approach brings the need to debate indigenous school education and territory. The methodology comes from conversation circles with native indigenous teachers of Mato Grosso, observations of classes in the village Pimentel Barbosa and also testimonials, especially with teachers and community of the Xavante village, also located in that State. What legitimizes this theme is coexistence, the educational and research work with these people since 1998. All this tracjectory of work leads to a resumption around the question nominated of indigenous education thats not something consolidated, but still in (re) construction; its almost nonexistent in our state with few successful experiments in action. So it was decided to put together whats called the Indigenous Educational Project, which contemplates workshops with proposed actions to assist the development of classes, intra and extra classroom as sub proposals substantiate these PPIs. The hypothesis we have is that there is a mark on each persons body that corresponds to what we call episteme. Invisible to outsiders, Episteme whose meaning can only be grasped in part by the natives, and that in each of whom produces an instinct or ‘faro’, of how a curriculum should be, in the strictest sense of the term, which has echoed alive in ancestry, which regulates ethics, aesthetics, sociability and a policy governing the device of school education. Thus born is an Indian perspective for education in the villages. We expose in this text considerations from subtitles: indigenous education, teacher education and indigenous education envisaged for school education. Keywords: indigenous education, school education, Indigenous Project Political Pedagogical.

Educação indígena A educação indígena ao longo desses anos de convivência com uma cultura ocidental e capitalista vem sofrendo diversos impactos em sua educação. Muitos estudiosos sustentaram que esses povos se extinguiriam e outros com a ideia de que a escola foi a grande vilã da perda de alteridade de diversos povos. Por outro lado esses povos apoiam-se em uma resistência incompreensível aos olhos da ciência e dos não indígenas. O lingüista e antropólogo Meliá sustentado pela sua vivência com povos indígenas afirma que “os povos indígenas mantêm sua alteridade graças a estratégias próprias de vivência sociocultural, sendo a ação pedagógica uma delas” (Meliá, 1999, p. 11). Para ele a alteridade é vista na liberdade dos indígenas de serem eles próprios. Meliá com suas sábias palavras nos coloca que a maior responsável por essa façanha da afirmação de alteridade é a estratégia da ação pedagógica desses povos. A ação pedagógica desenvolvida pelos povos indígenas de acordo com esse linguista e antropólogo é visível porque eles mantêm a educação 12

EDUCAÇÃO ESCOLAR: PELAS MÃOS DA EDUCAÇÃO INDÍGENA

indígena que permite “que o modo de ser e a cultura venham a se reproduzir nas novas gerações, mas que também essas sociedades encarem com relativo sucesso novas situações” (idem, p. 12). A pedagogia indígena dá liberdade às suas crianças de serem elas mesmas que para muitos chega a raiar a anarquia. O que chamamos de infância na sociedade Xavante as crianças vivem e agem com muita liberdade chegando a ser interpretadas como “mal educadas”. Mas nessa educação inicial eles vão se fazendo mulheres e homens Xavante que a partir desse momento passaremos a chamar o termo Xavante pelo que eles se auto denominam: A’uwẽ. Nesse sentido Meliá diz que a educação sempre cria algo novo e isso o biológico não pode dar. A educação indígena, portanto, segue sua pedagogia com a força das crenças, dos mitos e do seu jeito de ser e viver um cotidiano que vai passando de geração a geração e sabiamente vai criando situação nova como uma estratégia de perpetuar sua cultura, sua educação. Um exemplo de situação nova existente são os instrumentos e as coisas que vão surgindo no interior dessa sociedade. O jogo de futebol ilustra essa questão. A preparação para o futebol é tão rigorosa e séria como o ritual da iniciação dos meninos. Não há perdedores e ganhadores, mas sim pessoas fortes que estão jogando, o que orgulha a todos e a todas. O cotidiano da sala de aula. Em sala de aula é comum o conteúdo trabalhado ser repetido diversas vezes até o último estudante que estava com dúvidas saná-las. Essa ação pedagógica é muito parecida com a pedagogia dos A’uwẽ. As atividades ensinadas pelos pais, avós, tios, padrinhos e anciões são repetidas quantas vezes forem necessárias até que o aprendiz sinta-se seguro para executá-la. Assim a educação indígena tem muito a nos ensinar: escutar o outro, observar para entender o que se passa; silenciar nos momentos de aprendizagens e até mesmo de ensino, ter perseverança, válido tanto para o ato de ensinar como para o ato de aprender, repetir a tarefa quantas vezes forem necessárias, pois ela depende da maturação da pessoa, portanto, existe o respeito por quem está na condição de aprendiz. Enfim, poderíamos elencar inúmeras situações que a pedagogia indígena poderia se colocar como educadora da educação escolar e só assim chegaríamos mais próximo da proposta de desenvolver a educação escolar indígena. É importante acrescentar que nesse árduo propósito de ir ao encontro da educação escolar indígena entram as formações de professores, seja ela inicial ou continuada, ideal seria que as duas ocorressem juntas. A respeito dessa temática faremos exposição mais detalhada no tópico abaixo acerca do assunto formação de professores.

13

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

A formação de professores e a educação escolar Nesse processo de escolarização não se pode ocultar a face da intencionalidade primeira dos colonizadores com os povos indígenas. O filósofo Agamben (2011, p. 36) faz a discussão sobre as reservas indígenas dos Estados Unidos. Ele usa o conceito de campo e de homo sacer para isso. Por isso afirma: As reservas são espaços jurídicos criados pelo direito, porém fora de qualquer direito. Elas existem como espaços anômicos onde a lei não vigora. A vida dos indígenas que ali se encontrarem está fora do direito de cidadania. O Estado necessitava controlar aquelas populações indesejadas e perigosas; o meio encontrado para tal finalidade foi a criação de espaços sem direito, fora da cidadania, as reservas. Nas reservas o Estado, podia-se violentar a vida de seus habitantes sem cometer delito já que na reserva não vigora o direito, ao menos não na sua plenitude. A reserva contém todos os quesitos do campo: nela a exceção se tornou norma, a vida existe como mera vida natural. Sua função é controlar (e exterminar). No lugar da lei impera a força.

Agamben (2011, p. 35) coloca esse campo da reserva como a segunda experiência histórica porque a primeira é a senzala. Ele define “o campo é o espaço onde a exceção se torna a norma”. Tomemos o drama dos Kaiowá e Guarani em Mato Grosso do Sul. As lideranças são assassinadas, mas não existe punição para os assassinos. A lei não vigora nesse espaço, em que a vida é considerada como “mera vida natural”. Confinados dentro de uma reserva os povos indígenas são facilmente controlados e a vida fora dela é sem direito. Isso torna essas pessoas verdadeiras homo-sacer, isso quer dizer, a vida abandonada pelo direito. As pessoas sobrevivem pobremente, sem alimentação adequada e sem direito a cidadania. Trazemos essa questão para entender melhor o que ocorre com a educação escolar. Explicando. Se a vida já não tem valor, imagina a educação indígena em relação a educação escolar. Essa última segue com superioridade ao longo dos anos. O movimento em busca de outra escolarização vem perseguindo desde a década de sessenta e tomando força a partir dos anos 90 pós Constituição Federal. Mas as amarras da educação escolar são muito forte, difícil de desvencilhar de seus propósitos. Fez-se necessário pedir cursos específicos para professores indígenas para que eles próprios assumissem a profissão professor em suas comunidades. Antes de 1996 era quase imperceptível um professor indígena com formação para essa profissão. O que se via nas aldeias era professores 14

EDUCAÇÃO ESCOLAR: PELAS MÃOS DA EDUCAÇÃO INDÍGENA

não indígenas ministrando aulas para os indígenas. Criavam-se com isso alguns problemas sérios: esse profissional, que na maioria das vezes não tinha formação nem do Magistério do Ensino Médio não sabia falar a língua indígena onde trabalhava e achava penoso ter que morar na aldeia. A dificuldade de permanecer na aldeia fazia com que as aulas durassem apenas o primeiro semestre. O índice de reprovação dos estudantes era assustador. Mas os estudantes carregavam a culpa e o problema lingüístico sequer era cogitado. A carência de professores para exercer essa atividade nas comunidades indígenas era muito grande. Até o momento a questão da educação escolar diferenciada não era citada. O problema das atividades na educação escolar para os povos indígenas se arrastava há algum tempo e o debate pelas comunidades indígenas foi ficando cada dia mais intenso. Assim foi pensada e executada a idéia da formação de professores indígenas na categoria do Magistério do Ensino Médio. De acordo com o historiador e antropólogo Elias Januário3 em 1996 é plantada a semente sobre formação de professores indígenas com o início do Curso de Magistério Específico e Diferenciado denominado “Projeto Tucum” e foi dessa experiência que surgiu o Projeto 3º Grau Indígena uma parceria da UNEMAT, FUNAI e SEDUC. Esse projeto pioneiro no país inicia em 2001 suas atividades ofertando as três primeiras Licenciaturas Específicas – Ciências Matemáticas da Natureza; Ciências Sociais e Línguas, Artes e Literatura para indígenas abarcando um universo de trinta e seis etnias. Portanto, inicia-se no Estado de Mato Grosso uma força tarefa para dar conta de formar professores indígenas e dar conta da demanda dessa modalidade. Desde o período Colonial com a chegada dos portugueses nessa terra que já estava ocupada, esses povos não tinham vez e nem voto. Passaram por diversas formas de exclusão e a escola foi uma forte aliada. A situação começa a mudar com a Constituição Federal de 1998 que é garantida aos povos indígenas o direito de se afirmarem como povos étnicos. Como curso superior pioneiro no Brasil o 3º Grau Indígena foi puxando a fila de outros cursos específicos em outros Estados da Federação que iniciam também essa formação de professores. Desse modo, muitos professores estão com formação de curso superior e dão aulas em suas comunidades, no entanto, o problema da educação escolar nas aldeias continua o mesmo: o que é educação escolar indígena? Essa pergunta é sempre repetida todas as vezes que se olha a prática pedagógica nas aldeias e o movimento dos conteúdos e os procedimentos metodológicos em geral são os mesmo utilizados para a sociedade não indígena e sem tocar no assunto 3 Informações obtidas no artigo desse autor intitulado: Ensino Superior para índios: um novo paradigma na educação. Cadernos de Educação Escolar Indígena. 3º Grau Indígena, nº 01, Volume 01, 2002. Barra do Bugres – MT, p. 15-16.

15

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

da diferença de viver e de ser pessoas com culturas diferenciadas daquela proposta pela educação escolar. Nessa formação de professor, mesmo a específica para os professores indígenas fica duvidoso para eles quais saberes devem ser considerados ao longo da sua profissão. Tardif (2002, p. 17) revela em poucas palavras como deve ser encarado esse problema. O saber está a serviço do trabalho. [...] Que as relações dos professores com os saberes nunca são relações estritamente cognitivas: são relações mediadas pelo trabalho que lhes fornece princípios para enfrentar e solucionar situações cotidianas. [...] o saber do professor traz em si mesmo as marcas de seu trabalho [...] trata-se, portanto, de o um trabalho multidimensional que incorpora elementos relativos à identidade pessoal e profissional do professor, à sua situação socioprofissional, ao seu trabalho diário na escola e na sala de aula.

Tomando por referência o que o autor coloca sobre esses saberes e os transportando para a sociedade indígena fazemos a leitura dos princípios da educação indígena que são a base e o esteio que devem sustentar a prática educativa desses professores. Quais são os princípios dessa educação? Podemos citar alguns deles aqui no caso do povo A’uwẽ: • A perseverança. Isso quer dizer que a tarefa docente é árdua, é assim fazendo e refazendo com novo significado as atividades que os estudantes A’uwẽ vão construindo seus aprendizados. • A escuta e o silêncio. Os educandos na situação de aprendizes escutam em silêncio a aula ministrada. Muitos professores (não indígenas) quando trabalham nas escolas das aldeias ficam perguntando, mas é preciso esperar esse tempo de entendimento. O silêncio é uma forma e um indicativo de que os estudantes estão procurando uma forma de compreender o explicado. • O exemplo. Os estudantes gostam de escutar exemplos de algo que ele conhece. Gosta de ver na prática como se processa. Também a pessoa que ensina é a referência, é o exemplo a ser seguido, pois é um(a) sábio(a). Esse é um dos elementos que faz a comunidade escolher o(a) professor(a), pois não é qualquer pessoa A’uwẽ que pode usar essa insígnia, por isso a aldeia toda participa dessa escolha. • A paciência e o amor. Quem ensina inventa diversas maneiras para mostrar na prática como se faz. Não altera a voz e segue o ritmo de quem está na condição de aprendiz. Isso quer dizer que vai ensinar 16

EDUCAÇÃO ESCOLAR: PELAS MÃOS DA EDUCAÇÃO INDÍGENA

quantas vezes precisar até a pessoa fazer confirmando seu saber daquilo que aprendeu. Retomando, portanto esses seis princípios, alguns colocados juntos: a perseverança, a escuta, o silêncio, o exemplo, a paciência e o amor. Se o profissional docente ignorar não somente esses princípios, mas outros tão importantes quanto esses, o seu trabalho está fadado ao fracasso. O que ocorre é que na formação de professores indígenas é comum a educação indígena com seus princípios serem ignorados. Isso ocorre com maior freqüência nos cursos em que as universidades buscam os sistemas de cotas. Elas não preparam os professores de todos os cursos para receber pessoas com outra educação, com outro modo de ser e viver. Trata todos esses alunos homogeneamente e com a presença do preconceito, discriminação e todas as formas de exclusão possível. Como os estudantes indígenas cotistas sobrevivem a isso? Exatamente pela sua educação sustentada em princípios que os fazem resistir como resistiram quinhentos anos de opressão sob proibição da língua e de suas práticas culturais, religiosas e ritualísticas. Isso não quer dizer que as universidades com cursos específicos também não incorram nesses mesmos problemas. Elas têm a diferença de poder selecionar os professores, busca compreender a dimensão histórica do seu público, tem uma intencionalidade, afinal, mesmo uma etnia sendo diferente da outra a compreensão sobre o Outro ocorre de uma forma um pouco mais comprometida. O filósofo Merleau-Ponty (FP, 2006, p. 16) afirma que “compreender é reapoderar-se da intenção total” e a dimensão da história é a relação com o Outro e com esse mesmo entendimento acrescenta que a compreensão é “a fórmula de um comportamento único em relação ao outro, à Natureza, ao tempo e à morte, uma certa maneira de por forma no mundo que o historiador deve ser capaz de retomar e de assumir”. Assim, as universidades que oferecem formação inicial com cursos específicos para professores indígenas têm tempo de preparar-se para esse comprometimento, de assumir essa dimensão histórica.

Uma perspectiva de educação escolar indígena Desde 1998 que as comunidades da Terra Indígena Pimentel Barbosa vêm solicitando uma capacitação específica para seus professores. Diversas discussões já foram realizadas no Warã, lugar ocupado pelos homens para reunir-se duas vezes. Uma antes do amanhecer e a outra se inicia ao anoitecer. Elas cumprem a tarefa de planejar e avaliar as ações realizadas ao longo do dia e em alguns casos na semana. Mesmo esse espaço sendo presença masculina as mulheres participam colocando suas idéias antecipadas, ou 17

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

seja, antes de seus esposos, genros, filhos irem para o Warã a questão é discutida em casa. A escola desejada4 por eles deve ajudá-los na resolução dos problemas que vão surgindo em seu cotidiano, isso em 1998 quando escolheram seus professores que ainda tinham como escolaridade apenas as séries iniciais do Ensino Fundamental como a 1ª série. Eles tinham problemas com mortalidade infantil e queriam saber como a escola poderia ajudá-los a solucionar esse problema. Também queriam uma escola que os ajudasse nas negociações com os não indígenas. Para eles a escola era do warazu (não indígena), mas deveria estar a serviço das comunidades. Eles queriam uma escola que respeitasse sua cultura e que não atrapalhasse seus rituais, mas que ensinasse seus filhos e filhas (naquele tempo as meninas estudavam somente até os 8 anos de idade) a ler e escrever e também a língua portuguesa. Disseram que queriam uma escola que os ajudasse a fortalecer sua cultura, as mulheres anciãs por exemplo estavam com muito medo dessa proximidade com os warazu e que essa atraísse seus jovens, principalmente os meninos que iam muito para a cidade. O projeto terminou em 2000 e não foi possível dar continuidade a esse trabalho. A experiência ao longo dos anos com o trabalho da educação escolar com a pretensão de ser “educação escolar indígena” mostrou que um primeiro passo para iniciar essa tarefa seria construir um Projeto Pedagógico Indígena. Por que? Porque nele está a participação de cada comunidade por meio de pesquisa de professores e alunos com a comunidade, reuniões no warã para discutir que tipo de escola que se quer as rodas de conversas às sombras das casas, enfim, é preciso escutar a quem essa escola de fato interessa. Entretanto, essa mesma experiência tem apontado a falta de paciência e compreensão das secretarias seja municipal ou estadual, por desinteresse ou a falta de conhecimento acerca da temática em questão. Por isso e a pedido dessas comunidades iniciaremos um trabalho de projeto de extensão e pesquisa que visa dar continuidade à formação continuada para os professores dessa Terra Indígena, observando a ação pedagógica étnica. O lingüista e antropólogo Bartomeu Meliá tem razão quando afirma que é a ação pedagógica de cada povo que os guia para a educação. Vejamos em sua fala: De fato, o objetivo que guia a ação pedagógica é esta questão fundamental: o que é um bom guarani, o que é um bom xavante, um bom bororo, um rikbáktsa é o objetivo que guia a ação pedagógica. A ação pedagógica 4 A escola desejada foi tema da monografia de Maria Aparecida Rezende. Especialização em Teorias e Métodos de Antropologia. “ Educação Escolar e Reprodução Social da Diferença: a escola desejada”. UFMT: Cuiabá, 1999-2000.

18

EDUCAÇÃO ESCOLAR: PELAS MÃOS DA EDUCAÇÃO INDÍGENA

tradicional integra sobretudo três círculos relacionados entre si: a língua, a economia e o parentesco. São os círculos de toda cultura integrada. De todos eles, porém, a língua é o mais amplo e complexo. O modo como se vive esse sistema de relações caracteriza cada um dos povos indígenas. O modo como se transmite para seus membros, especialmente para os mais jovens, isso é a ação pedagógica.

Nesse sentido é preciso dar voz a ação pedagógica de cada povo. Por isso é importante construir uma educação escolar indígena tendo o olhar voltado para a ação pedagógica tradicional. A construção do currículo seja voltada para os assuntos da comunidade e entrelaçado com a cultura A’uwẽ.. Para isso é necessário desenvolver pesquisas junto às comunidades, incluindo caciques, lideranças, conselheiros da comunidade (nas conversas do warã por exemplo), os pais, os padrinhos, professores, coordenadores e outros funcionários das escolas. Esse trabalho é árduo e longo. Não pode ser aligeirado, pois trata-se de pensar uma escola que não seja egoísta, superior ao modo de ser e viver dos A’uwẽ. Mesmo com a construção do PPI de cada comunidade (aldeia) não é suficiente para desenvolver as atividades pedagógicas. É necessário desenvolver ações pedagógicas para acompanhar as práticas docentes no agir de suas práticas educativas. A cultura escolar precisa dialogar com a cultura dos Xavante. A escolarização não pode e nem deve ser superior ou partir dela mesma. Nossa proposta é que esse movimento seja contrário, ou seja, a escolarização terá seu desenvolvimento a partir das vivências, necessidades e dos desejos de cada aldeia participante. O projeto é de suma importância por atender direto e indiretamente aproximadamente 900 pessoas. Ele visa uma interação entre educação indígena e educação escolar numa busca de construir uma educação intercultural. Municípios e Estado necessitam de curso de formação de seus técnicos para assessorar as escolas indígenas e esse projeto contribuirá nessa formação. Eles querem e também para consolidar o respeito mútuo entre os dois conhecimentos tão diferenciados: os conhecimentos indígenas e os conhecimentos da ciência ocidental. Após a realização desta pesquisa e sua sistematização, os PPIs vão sendo construídos de acordo com a identidade de cada escola e comunidade. Feito isso, necessita-se de um período de orientação do trabalho pedagógico em acordo com os PPIs, seguindo o desenvolvimento das atividades interligadas aos processos próprios de ensino e aprendizagem do povo A’uwẽ e também os diversos rituais realizados. A ação desse projeto fundamenta-se no universo de princípios em que está inserida a cultura, a educação, e a interculturalidade. Nesse sentido 19

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

há que se entender os conceitos de cada uma dessas palavras. Por cultura inspiramo-nos em Geertz (1989, p. 15) numa abordagem antropológica entendida como: [...] o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e suas análises; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis. Mas como uma ciência interpretativa, à procura de significado [...].

Em outro trecho afirma ainda que (idem, p. 103) que [...] “um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida”. É nessa esteira de pensamento que buscamos a compreensão do que seja interculturalidade. Inspirados em Martin Buber e Paulo Freire os educadores populares, (Neto & Barbosa, 2005, p. 12) extraíram a idéia de que a interculturalidade está ligada com a educação dialógica. “A educação dialógica, especialmente aquela que prima pelo diálogo entre culturas (interculturalidade) apresenta-se como uma estratégia de formação inovadora e radical” isso porque possibilita superar ações e visões etnocêntricas. Os autores (idem) continuam nessa mesma direção. O resultado da educação intercultural, vislumbrase, é contribuir para uma sociedade democrática e multicultural, fundada no diálogo, na assunção da diversidade, e na possibilidade de todos os seres humanos assumirem-se politicamente frente o mundo e tomar a história em suas mãos.

Esse entendimento de Freire e de Buber amplia o conceito de interculturalidade. A educação é o suporte de todas as vivências humanas. As pessoas são educadas desde o ventre materno e assim pela vida toda, se entendemos a educação como um processo contínuo de ensino e aprendizado. Assim, caminhamos na direção de um trabalho que prioriza a educação indígena tendo como aliada a educação escolar buscando um diálogo entre os conhecimentos indígenas e os conhecimentos da ciência ocidental. Nesse sentido indagamos: o que se quer é uma cultura escolar seguindo o mesmo ritmo da cultura ocidental? Ou é uma educação escolarizada voltada para a educação escolar indígena? A primeira dimensão – uma educação 20

EDUCAÇÃO ESCOLAR: PELAS MÃOS DA EDUCAÇÃO INDÍGENA

escolar sem o elo com a educação indígena, como é o mais comum e não há necessidade de pesquisa: é só realizar os cursos de formação continuada para professores sem atender as suas especificidades. Já a segunda dimensão, em que o respeito a diferença é prioridade, nesse caso, a pesquisa é primordial. Dessa maneira sustenta-se a tese que as ações pedagógicas sejam voltadas para a educação escolar indígena é necessário escutar as pessoas interessadas, nesse caso os A’uwẽ. Também é necessário construir o documento que dá voz a esse povo: o Projeto Pedagógico Indígena que amarra suas utopias e desejos de uma escola diferente. Outra ação importante é o acompanhamento dessas atividades para tirar as dúvidas, (re)construir as atividades que dão vida e sustentação no trabalho da prática docente. E essa prática pedagógica deve seguir pelas mãos da educação indígena para que a cultura e o modo de ser e viver dos A’uwẽ estejam assegurados não somente pela legislação, mas também pelos seus desejos de ter a escola que desenharam para ajudar na formação de seus homens e mulheres nesse contexto de contato e inovação de sua cultura.

Referencias bibliográficas MARCOALDI, Franco. Em que cremos? Redescubramos a ética. Entrevista com Giorgio Agamben. Instituto Humanitas Unisinos. Trad. Selvino J. Assmann – UFSC, 2011. http://www.ihu.unisinos.br/noticias/42848-em-que-cremosredescubramos-a-etica-entrevista-com-giorgio-agamben acesso dia 6 de maio de 2014. MELIÁ, Bartomeu. Educação indígena na Escola. Cadernos Cedes, ano, XIX, nº 49, Dezembro/99. Site: www.scielo.br/pdf/ccedes/v19n49/ a02v1949.pdf MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. NETO, João Colares da Mota; BARBOSA, Rafael Grigório Reis. O diálogo como fundamento da educação intercultural: contribuições de Paulo Freire e Martin Buber. V Colóquio Internacional RUIZ, Castor M. M. A sacralidade na vida na exceção soberana, a testemunha e sua linguagem: (Re)leituras biopolíticas da obra de Giorgio Agamben. São Leopoldo-RS: Instituto Humanitas Unisinos (IHU). Cadernos IHU, Ano 10, nº 39, 2012. TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. 21

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE BRASIL E PERÚ

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE BRASIL E PERÚ Luis Antonio Ccopa Ybarra1 Marisa Soares2 Resumo: Este artigo evidenciou o desenvolvimento de políticas públicas e projetos para a educação das sociedades indígenas brasileiras e peruanas. Executamos uma análise comparativa de seu desenvolvimento histórico em seus países. Analisamos que em ambos países a formação de educadores para a educação formal, apresenta tendências que avançam perante uma educação tradicional, todavia estão sendo utilizadas numa perspectiva neoliberal que transforma a educação em prestação de serviço, destinada a clientes sapientes do produto que necessitam consumir, observou-se a preocupação com o crescimento de parcerias público-privadas ou até a privatização plena, a flexibilização do ensino, para formar em curto espaço de tempo e com redução de custos. Analisou-se como incluir a sociedade indígena sem afetar sua alteridade, um caminho possível apresentou-se na formação de educadores bilíngues, com competência na cultura indígena e ações afirmativas de inclusão. No Brasil destacou-se o investimento no ensino superior em pesquisas e projetos de extensão e no Peru, destacouse o ensino básico e secundário para a população indígena por apresentar melhores índices de alfabetização. Palavras-Chave: Educação Indígena. Formação de Educadores. Identidade Cultural. Abstract: This article evidenced the development of public policies and projects for the education of Brazilian and Peruvian indigenous societies. We perform a comparative analysis of its historical development in their countries. We analyze that in both countries the training of educators to formal education, advancing towards trends presents a traditional education, however are in a neoliberal perspective that transforms education service delivery, aimed at sapient customers consume the product they need. Noted the concern with the growth of public-private partnerships or even full privatization, the flexibility of teaching to form in a short time and at reduced costs. Analyzed how to include indigenous society without affecting its otherness, a possible way presented in the training of bilingual educators with 1 Doutorando em Nanociências e Materiais Avançados (UFABC), Mestre em Processos Industriais (IPT) e Multidisciplinar (Educação, Comunicação e Administração) (UNIMARCO), graduação em Engenharia Mecânica Plena (Centro Universitário FEI). Professor Titular, dep. Exatas e Ciências da Terra (UNINOVE). [email protected] 2 Doutoranda em Educação (UNINOVE), mestre em Educação (UMESP), graduação em Licenciatura Plena em Letras (Inglês e Espanhol) e em Pedagogia (UNINOVE). marisasoares@ uninove.br

23

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

expertise in indigenous culture and affirmative action to promote inclusion. Brazil stood out in the investment in higher education and in research and extension projects in Peru, were detached basic and secondary education for the indigenous population by presenting best literacy rates. Keywords: Indigenous Education. Training of Educators. Cultural Identity.

Introdução A educação Intencional e formal3 desenvolvida geralmente na escola, interage com fatores sociais, políticos e econômicos que a torna um ambiente priorizado de uma formação humana pautada nos valores de uma camada da sociedade que a legitimou. Essa tendência homogeneizadora coloca em risco as identidades culturais e históricas das camadas sociais menos favorecidas. Nesse artigo focalizamos a educação das sociedades indígenas brasileiras e peruanas. Executamos uma análise comparativa de seu desenvolvimento histórico em seus países, assim como as políticas públicas voltadas para a preservação de suas identidades. Conforme Fischmann (2001, p.77), “a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948, pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, escreve em seu artigo XXVI”: Todo ser humano tem direito à educação. A educação será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A educação elementar será obrigatória. A educação técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, está baseada no mérito. A partir desse direito inalienável, desponta-se a necessidade de se analisar a formação de educadores para a educação escolar indígena, de maneira que a sociedade indígena possa preservar suas identidades étnicas, suas línguas, seus valores culturais e conhecimentos desenvolvidos entre as gerações ao longo do tempo histórico. Nosso objetivo é desenvolver subsídios teóricos referentes às condições da formação de educadores para a educação escolar indígena no Brasil e no Peru, suas condições de trabalho e de seus alunos. Essa comparação nos permitirá compreender as similaridades e as diferenças da evolução histórico social desse ensino entre os dois países e seus atuais desafios no âmbito educacional formal.

3 Educação intencional e formal refere-se às influências no processo educacional, em que há intenções e objetivos definidos, tarefas a cumprir, educação escolar e extraescolar, assim temos: a Educação não-formal, isto é, atividade educativa estruturada fora do sistema escolar convencional e, Educação formal, ou seja, que se realiza nas escolas ou outras agências de instrução e educação, igrejas, sindicatos, empresas (LIBÂNEO, 1994).

24

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE BRASIL E PERÚ

Breve contextualização histórica da educação indígena no Brasil. Em 1549 Dom João III envia ao Brasil a primeira missão jesuítica, nesse período o padre Manuel da Nóbrega e missionários compunham a Companhia de Jesus, a qual objetivava a conversão dos povos nativos à fé católica, sendo que esse processo apresentou a resistência indígena à sua escravização, tendo em vista que os portugueses estavam tomando posse de suas terras. A escola, como a sociedade ocidental se familiarizou a compreender, isto é, uma complementação da formação familiar para os valores, os costumes e os conhecimentos legitimados, com o objetivo da manutenção e reprodução dessa mesma sociedade; não fazia parte da realidade indígena, desta maneira os jesuítas conduziam prioritariamente as crianças para serem alfabetizadas paralelamente aos conhecimentos da religião cristã. Havia casas destinadas à catequização dos índios não batizados, assim como havia separadamente, os colégios destinados aos meninos naturais de Portugal, às crianças mestiças e aos índios já batizados. A formação nos colégios visava formar os futuros catequizadores, por essa razão apresentava uma educação mais ampla e tradicionalizada. Nesse período, existiam por volta de 10.000 milhões de índios. Uma característica diferente da educação dos jesuítas, constituiu-se em que esses missionários consideravam que o convívio com cristãos facilitaria a catequização dos índios, de maneira que conviviam nos aldeamentos com militares, comerciantes, colonos e escravos negros. “No quadro econômico e político, vou apresentar os mecanismos principais da exploração da colônia pela metrópole, procurando o papel nela desempenhado pelo aparelho escolar” (CUNHA, 1980, p.18). Esse papel da colônia tinha sua manutenção com a Igreja Católica, cuja burocracia estava integrada ao funcionalismo estatal, seu principal meio era a Companhia de Jesus, pela qual além de catequisar os índios, exercia sua atividade educacional nos colégios das primeiras letras, para o ensino secundário e superior. A forma de garantir sua presença na formação da sociedade colonial era pelo currículo desses colégios, pela utilização da Pedagogia Tradicional de textos escolhidos, ou seja, o início dos “livros didáticos” com textos selecionados condizentemente com as ideologias dominantes, às diversas especialidades da burocracia estatal e à organização da própria ordem religiosa que as ensinava, sob a perspectiva filosófica Aristotélica/Escolástica. No período Pombalino, em 1759, a intencionalidade era criar condições para que ocorresse em Portugal a industrialização que se processava na Inglaterra, de maneira que substituiu-se a ideologia de uma sociedade feudal, para uma sociedade capitalista mercantilista. “É provável que a perseguição à Companhia de Jesus em Portugal, como em outros 25

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

países, tivesse a ver, também, com as modificações no campo ideológico” (CUNHA, 1980, p.44). Trata-se do período da Pedagogia Positivista, houve mudança também no currículo burguês para a nobreza, conforme o modelo das public-schools inglesas, que se tratava da escola destinada à nobreza. “De outro lado, a mesma pedagogia era abstraída do seu contexto ideológico e utilizada como uma técnica flexível para a educação de tipos humanos opostos, próprios da sociedade feudal em acelerada decadência” (Ibidem, p.45). No período do Império, em 1808, a Pedagogia Positivista visava a emergência do Estado Nacional, “o espírito profissional e pragmático, então imprimido ao ensino superior brasileiro, espírito sempre tão condenado, não chegou a transformar as escolas em instituições” (WARDE, 1990). Os cursos superiores surgiram a partir de necessidades práticas e imediatas e não acompanharam a exigências da sociedade brasileira em sua totalidade. Em linhas gerais, durante todo o Período Imperial (1808-1889) realizaram-se muitos debates em torno do tema educação escolar primária organizada e mantida pelo poder público estatal que pudesse atender, principalmente, negros (livres, libertos ou escravos), índios e mulheres, que compunham as chamadas camadas inferiores da sociedade. Isso se deu em um contexto onde a instrução popular era considerada a base do progresso moral, intelectual e social de qualquer país e havia o entendimento, tanto no plano nacional quanto no internacional, de que investir na quantidade de escolas e de alunos representava a preocupação para com o progresso e civilização de uma nação. Todavia, esse Período Imperial não representou para a sociedade indígena uma política imperial que atendesse suas necessidades, os especialistas e autoridades, que chegaram a se entusiasmar com a possibilidade de haver instituições públicas destinadas ao ensino de crianças indígenas, desacreditavam que isso pudesse ocorrer sem a intervenção das missões religiosas. O início do século XX, marca uma atenção à sociedade indígena brasileira como uma fase de total identificação com a missão católica e o Estado, nesse âmbito, o setor público divide com as ordens religiosas católicas, mais uma vez, a responsabilidade pela educação formal para os índios. Assim, na primeira década do período republicano, é retomada a oferta às populações indígenas de ensino suplementar associado ao ensino de ofícios, voltados às necessidades locais, sob o comando das missões religiosas que fundaram alguns internatos para a educação de meninos e meninas. O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) criado a 20 de junho de 1910, pelo Decreto nº 8.072, tendo por objetivo prestar assistência a todos os índios 26

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE BRASIL E PERÚ

do território nacional reconheceu e demarcou terras indígenas desse modo durante muitos anos. Até que o encantamento que adveio do reconhecimento da cultura xinguana, tão harmônica entre povos de línguas tão diversas, levou Orlando Villas-Bôas, Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão a propor ao Marechal Rondon e a Getúlio Vargas a criação do Parque Nacional do Xingu, em 1953 (confirmado formalmente por Jânio Quadro em 1961). Daí por diante, o SPI, os antropólogos, indigenistas e sertanistas, depois a FUNAI, com ou sem os militares, passaram a ver as terras indígenas como territórios, como natureza culturalizada. O SPI foi extinto em 1967, sendo suas atribuições repassadas para a Fundação Nacional do Índio - FUNAI (GOMES, 2004). O regime político implantado a 10 de novembro de 1937, visava tendências à unificação do sistema educativo, além de que apresentava um forte incentivo ao espirito nacionalista, É importante compreender esse período inicia-se na revolução de 1930 e teve o seu ponto culminante no golpe de estado e na Constituição de 1937. Esse momento histórico brasileiro é marcado pelos seus objetivos: aglomerar, aproximar, assimilar as unidades federadas, num espírito de comunhão nacional brasileira. Esses objetivos tornaram-se a tarefa principal do governo que se instituiu, como novo sistema político, e começou por fortificar a autoridade do poder. Período de imposição de uma política escolar adotada pela União, isto é, um plano de coordenação de objetivos, pela padronização de processos e cooperação de recursos técnicos e financeiros. Tornou-se obrigatório em todo o país, a Bandeira, o Hino Nacional, os escudos e as armas nacionais. Radiodifusão e cinema educativo instituiu-se a “Hora do Brasil “ e organizou-se, no Departamento de Imprensa e Propaganda, a Divisão de Rádio, sob cujo controle e fiscalização ficaram todas as transmissoras brasileiras. O cinema foi utilizado oficialmente no Distrito Federal, pelo decreto que reformou o ensino na capital do país, — e foi a primeira lei que determinou o emprego do cinema para fins escolares, e em São Paulo, pelo decreto de 21 de abril de 1933 que aprovou o Código de Educação, o cinema educativo somente em 1934 veio a interessar realmente ao governo da União que instituiu medidas concernentes à utilização, circulação e intensificação de filmes escolares (decreto n° 24 651) e criou, pela lei n. 378, de1937, o Instituto Nacional de Cinema Educativo com o fim de coordenar a aplicação do cinema educativo e promover a sua divulgação por todos os meios. A utilização do cinema no ensino e na pesquisa cientifica começou a ser praticada no Museu Nacional que inaugurou, em 1910, a sua filmoteca, enriquecida em 1912 com os primeiros filmes dos índios Nambiquaras, sob o ponto de vista de Roquete Pinto, trouxe da Rondônia e as admiráveis películas com que a Comissão Rondon documentava as suas explorações geográficas, botânicas, zoológicas e etnográficas (CUNHA, 1980). 27

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

No período da República, destaca-se a busca pela identidade nacional. “Crê-se agora, apesar de reconhecermos peculiaridades étnicas ou culturais, na “unidade da civilização”: há um processo único e as principais diferenças entre as nações são de “fase” e não de “natureza” (BARROS, 1986, p.12). A compreensão dessa perspectiva é essencial para a compreensão desse período que marcou a busca de uma integração de uma suposta realidade brasileira subsidiada pela ação educativa da lei, da escola, da imprensa, do livro; pois fundamentavam-se nos valores positivistas europeus. Essa concepção Pedagógica condizia uma Filosofia Positivista que preconizavam a escola laica e estatal, a neutralidade científica vinculada à razão, com vistas ao desenvolvimento e progresso científico advindo da segunda Guerra Mundial. Pela Lei de Diretrizes e Bases de 1961 e pelo golpe de Estado, o período 1964/73 foi de grande prosperidade para o setor privado no campo educacional. Numas escolas havia estudantes de classe média dispondo de recursos para pagar as mensalidades; em outras, crianças proletárias recebendo bolsas de estudo (CUNHA, 1980). Para a formação da população indígena, nesse período há a Fundação Nacional do Índio – FUNAI que é o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro. Criada por meio da Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967, vinculada ao Ministério da Justiça, é a coordenadora e principal executora da política indigenista do Governo Federal. Sua missão institucional é proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil. Cabe à FUNAI promover estudos de identificação e delimitação, demarcação, regularização fundiária e registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, além de monitorar e fiscalizar as terras indígenas. A FUNAI também coordena e implementa as políticas de proteção aos povos isolados e recém-contatados. A partir de 1970, a Funai estabelece convênios com o Summer Institute of Linguistics (SIL), visando ao desenvolvimento de pesquisas para o registro de línguas indígenas, à identificação de sistemas de sons, elaboração de alfabetos e análises das estruturas gramaticais. Além disso, passa a ser responsabilidade dessa instituição a preparação de material de alfabetização nas línguas maternas e de material de leitura, o treinamento do pessoal docente, tanto da Funai, como de missões religiosas e a preparação de autores indígenas. O SIL, cujo objetivo principal era converter povos indígenas à religião protestante, passa a atuar de uma forma que se confunde com a do Estado e, em alguns casos, assume para si a obrigação estatal de tutela desses povos (SECAD, 2007). As políticas públicas relativas à Educação Escolar Indígena pósConstituição de 1988 passam a se pautar no respeito aos conhecimentos, às 28

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE BRASIL E PERÚ

tradições e aos costumes de cada comunidade, tendo em vista a valorização e o fortalecimento das identidades étnicas. A responsabilidade pela definição dessas políticas públicas, sua coordenação e regulamentação é atribuída, em 1991, ao Ministério da Educação. Em 2003, tem início no Ministério da Educação um movimento para a inserção e enraizamento do reconhecimento da diversidade sociocultural da sociedade brasileira nas políticas e ações educacionais, que se consolida com a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), à qual está vinculada a Coordenação-Geral de Educação Escolar Indígena (CGEEI). A criação da SECAD objetivou institucionalizar no Sistema Nacional de Ensino o reconhecimento da diversidade sociocultural como princípio para a política pública educacional, evidenciando a relação entre desigualdade de acesso e permanência com sucesso na escola com a histórica exclusão fomentada pela desvalorização e desconsideração das diferenças étnicoraciais, culturais, de identidade sexual e de gênero, nas escolas brasileiras. Assim, a educação escolar indígena passa a receber um tratamento, no MEC, focado na asserção dos direitos humanos, entre eles o de ter seus projetos societários e identitários fortalecidos nas escolas indígenas. Com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), responsável pelos procedimentos de descentralização de recursos para diversos programas de desenvolvimento da educação, entre eles o Programa Nacional de Alimentação Escolar, os diferentes Programas do Livro, o Programa de Transporte Escolar, foi estabelecida uma importante parceria para garantir o acesso das escolas indígenas a esses programas, observandose suas especificidades. Nos anos de 2005 e 2006 essas Resoluções foram específicas para a educação escolar indígena, agregando aos critérios de avaliação e seleção das propostas sua conformidade com as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena e participação das comunidades indígenas em instâncias de controle social (Ibidem, 2007). As bases legais para a formação intercultural de professores indígenas estão na Constituição Federal, artigos 210 e 231, na LDB - Lei nº 9.394/96, no Plano Nacional de Educação e na normatização do Conselho Nacional de Educação - Parecer 14 e Resolução 03/CEB-CNE, de 1999. Estes textos legais e normativos asseguram a formação de professores indígenas em programas específicos e à docência por professores oriundos de sua própria comunidade.

29

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Breve contextualização histórica da educação indígena no Peru. Na fronteira entre o Brasil e o Peru, pelo estudo de Hüttner, (2007, p.44), “situam-se as tribos indígenas de várias etnias no alto do rio Solimões, essa região é composta por sete municípios (Amarutá, Atalaia do Norte, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença, Tabatinga e Tonantins).”. De acordo com o autor, os índios do Vale do Rio Javari, compõem oito etnias, especificamente localizados nos igarapés do município de Atalaia do Norte e à beira do rio Javali região fronteiriça entre o Brasil e o Peru. Região coberta pela floresta amazônica e altas colinas, em cujas os índios constroem suas habitações. Essa população vivenciou o ciclo da borracha e depois a exploração da madeira. Nesse transcorrer muitas etnias foram dizimadas, atualmente constam alguns grupos sobreviventes. Trata-se de uma região conflitante, entre a região demarcada dos índios e os caboclos que vivem numa faixa curta de terra. Evidencia-se que há a necessidade de diálogos e novas perspectivas que integrem essa população, mediante suas diferentes tradições e valores culturais, uma vez que juntas compõem um grupo social menos favorecido e que necessita de políticas públicas que visem a melhoria de suas condições de vida. No outro lado da fronteira, no Peru, alguns grupos locais foram contatados desde o final do século XVI com a atuação missionária do regime colonial, enquanto outros só iniciaram o contato com a sociedade nacional no fim do século XIX, no período da extração da borracha. A história da população indígena peruana é dividida em dois grandes períodos, ou seja o Período Colonial, no qual observamos as incursões missionárias na Selva Central, e o Período do Peru Independente, isto é, quando houve uma atuação de novos interesses da sociedade europeia colonizadora que marcam a expansão da extração da borracha, sendo que nesse período se constituíram muitas regiões amazônicas. As pesquisas no campo da História, da Sociologia e da Antropologia têm demonstrado que a infância, tal como a conhecemos hoje, não é um fenômeno natural e universal, mas, sim, de uma construção paulatina das sociedades moderna e contemporânea (ARIÉS, 1981). Em sua obra o autor destaca a educação das crianças Incas, que oportunizava o desenvolvimento de sua autonomia4, analisando com a formação burguesa ocidental. Essa 4 Autonomia é a capacidade de gerar, em si mesmo, as emoções apropriadas em um momento determinado, sendo que estão incluídas: a autoestima, a atitude positiva diante da vida e da responsabilidade (GROP, 2009.).

30

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE BRASIL E PERÚ

população historicamente se desenvolveu por meio de sua atividade de trocas de mercadorias com outras regiões da Amazônia e na América Latina. A civilização Inca mantinha o comércio de animais e suas peles, madeira, mel, algodão, plantas da região para fins medicinais, sal, entre outros produtos naturais e produzidos em suas terras. Sua expansão e relação com as outras regiões do Império Inca sofreu sua queda com o avanço da população europeia no período da extração de borracha. Nesse Período Colonial, a presença jesuíta colonizadora é marcada pelos padres franciscanos. “Em 1635, Jerónimo Jimenez inaugura a chegada dos franciscanos, entrando em território Ashaninka e fundando a missão de Quimiri (atual cidade de La Merced)” (ZEVALLOS, 2003). Apesar das derrotas sucessivas, as entradas dos espanhóis continuam. A desarticulação do sistema de trocas nativo, através da instalação de missões em sítios estratégicos, está presente pela primeira vez na empresa evangelizadora de Biedma, franciscano identificado como o primeiro explorador da região montanhosa peruana. No período da independência do Peru em 1822, torna-se seu desafio constituirse como um Estado-nação. Todavia, a educação peruana, diferentemente da brasileira, já contava com a formação universitária desde 1551, período em que fundou-se a Universidade Maior de San Marcos, a mais antiga da América. Sua importância, destaca-se na formação do pensamento e ideário da independência e da criação de uma identidade nacional, por meio da Revista intitulada: “El Mercurio Peruano”. Suas publicações são marcas dos pensadores e professores dessa universidade centralizavam as iniciativas de debates e diálogos internacionais. O pioneirismo peruano é observado por ser o primeiro país na américa latina a ter imprensa, na cidade de Lima em 1584, foram publicados os primeiros livros latinos americanos. Em 1802, por meio de estudos e pesquisas desenvolvidos em Lima, o Barão Alexander Von Humboldt, desenvolveu seus primeiros descobrimentos sobre a corrente marinha Humboldt. Em 1822, estabelece-se o primeiro Congresso peruano seu presidente interino, Francisco Xavier Luna Pizarro, somente em 1930 será instalado um novo Congresso Constituinte, quando se elabolorou a primeira Constituição de 1933, sob o poder de Luis Miguel Cerro, que determinou a expulsão de parlamentares da Alianza Popular Revolucionária Americana, conhecida como Apristas, sendo atualmente a base histórica de um dos partidos políticos vigentes. A segunda Constituição peruana acontece em 12 de junho de 1979, sob o poder dos militares. No Peru, os militares tomaram o poder em 1968, com o apoio da esquerda, dos progressistas e com a vitória do Partido Aprista Peruano nas eleições presidenciais, sendo que esse partido apresentava interesses contrários às forças armadas e à classe social dominante. 31

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Desta forma, constituiu-se no Peru, entre 1968 à 1980, o período da Ditadura Militar. Esse período instalou reformas radicais, mas ao contrário do Brasil, não foi capaz de realizar um processo autossustentável de crescimento. Após um período de enfraquecimento dos apristas em 1975, os partidos moderados prometeram eleições abertas a todos os partidos. “O candidato centrista Fernando Belaúnde Terry assume a presidência em 1980, pois atendia melhor aos militares e às classes mais altas. Entretanto, seu mandato durou até 1985, assim como seu partido se extinguiu” (CINTRA, 2000, p.6). No âmbito educacional, o regime militar, influenciou as atividades de ensino e pesquisa das universidades, controlando o movimento estudantil. As universidades foram se tornando território fértil para a formação dos movimentos guerrilheiros, especialmente as universidades públicas do interior. A maioria dos líderes de Sendero Luminoso tinham sido professores de universidades do interior andino. Abimael Guzmán, o líder máximo de Sendero Luminoso, foi professor de filosofia da Universidade de Ayacucho, essa universidade teve sua fundação no século XVIII, nesse momento colonial havia alta extração das minas, todavia com o seu esgotamento, a cidade de Ayacucho tornou-se extremamente empobrecida. Desde o governo militar as universidades foram crescentemente tratadas com critérios políticos, chegando ao cúmulo com Fujimori. Alberto Fujimori que havia sido Reitor da Universidade Nacional Agrária, em seu mandato presidencial mandou o exército invadir as universidades e, na Universidade de San Marcos, expulsou o Reitor democraticamente eleito, um dos melhores historiadores, empossando um outro sem qualificações acadêmicas. O sistema universitário, especialmente público, foi se degradando enquanto se incentivava o ensino privado, muito caro, para as novas elites (ZEVALLOS, 2003). Atualmente, iniciou-se um programa que contribuiu para evitar a extinção da população indígena por meio da vacinação de todos os recém nascidos nos povos amazônicos indígenas Kandosi e Shapra, também se defendeu a adoção de uma política de educação bilíngue intercultural por dezesseis regiões e se comprometeu a monitorar uma efetiva educação com pertinência ao direito dos povos indígenas (UNICEF, 2012). A formação de educadores bilíngues e/ou pertencentes à comunidade indígena, conduz também à reflexão dos conteúdos e materiais didáticos elaborados para o processo de alfabetização. Na sociedade ocidental, comumente observa-se inseridos nos textos, imagens, mapas etc. valores e padrões da sociedade que os legitima. Nesse âmbito, faz-se relevante priorizar os aspectos da diversidade cultural, tanto para a sua preservação e valorização, como para desenvolver uma visão humanizada. “O famoso 32

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE BRASIL E PERÚ

“milho sagrado dos incas”, cultivado em terraços defendidos e aquecidos pelo sol acima do lago Titicaca, marca o mais alto limite do grão: c. 3.900m ou 12.700 pés.” (AMPARO, 2006, p.260). O autor explica sobre a Geografia Cultural, pela qual o geógrafo analisa o papel da sociedade humana enquanto agente geográfico. Como observar a plantação de milho dos Incas, que era cultivado não só nas ilhas lacustres, mas em terraços acima de Puno. O milho do Titicaca foi cultivado, por motivos rituais e tradicionais, em altitudes muito superiores às atingidas em outros lugares. Essa perspectiva de aprendizagem, propicia a responsabilidade social e ambiental de cada pessoa como agente de sua realidade.

Análises entre a educação formal indígena no Brasil e no Peru na atualidade. Mediante essa contextualização histórica é possível observar que os sistemas educacionais peruanos, assim como os sistemas educacionais latino americanos, perpassam os seus níveis de educação, isto é, educação básica e superior com fortes relações entre si, pois a deficiência na formação de educadores e o deficitário investimento em recursos educacionais e as condições trabalhistas dos educadores são frutos das fortes influências históricas que evidenciam os interesses do Estado: a) Primeiramente pela formação tradicional católica, isto é, dos jesuítas e dos franciscanos, a partir dos interesses das colônias, sendo que no Peru e nas demais colônias da Espanha, a criação das universidades e o ensino articulado com a pesquisa já foram se constituídos desde o século XVI; b) Diferentemente ao Brasil que dependia das universidades portuguesas para a formação de seus profissionais e intelectuais. Para graduaremse, os estudantes da elite colonial portuguesa, considerados portugueses nascidos no Brasil, tinham de se deslocar até a metrópole. Na colônia, o ensino formal esteve ao cargo da Companhia de Jesus: os jesuítas dedicavam-se desde a cristianização dos indígenas organizados em aldeamentos, até a formação do clero, em seminários teológicos e a educação dos filhos da classe dominante nos colégios reais. “Nesses últimos anos, era oferecida uma educação medieval latina com elementos de grego, a qual preparava seus estudantes, por meio dos estudos menores, a fim de poderem frequentar a Universidade de Coimbra, em Portugal” (OLIVEN, 2002, p.31). c) A desvirtuação das tendências pedagógicas no decorrer dos diferentes períodos, isto é, Tradicional, Positivista, Construtivista, Pedagógica Crítica, entre outras teorias de aprendizagem que incentivaram um 33

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

desvio na atenção das atividades dos professores para com os estudantes, porque redefinem o ensino como apoio e facilitação de aprendizagem. Assim como o Pós-Modernismo – impacto sobre a teoria e a prática educacional, numa configuração moderna de educação, pela qual os educadores podem emancipar seus estudantes transmitindo racionalidade e pensamento crítico; centralizando a aprendizagem facilitadora sobre a educação. Analisa-se que as tendências trouxeram avanços perante uma educação tradicional, todavia estão sendo utilizadas numa perspectiva neoliberal que transforma a educação em prestação de serviço, destinada a clientes sapientes do produto que necessitam consumir (BIESTA, 2013). d) A Reforma Francisco Campos inicia-se pelo decreto n. 19 851, de 11 de abril de 1931, do chefe do Governo Provisório, Dr. Getúlio Vargas, referendado por Francisco Campos, ministro de Educação, essa reforma estabelece o estatuto das universidades brasileiras, em que se adotou como regra de organização do ensino superior o sistema universitário, o qual passou a apresentar sua dicotomia: a universidade mantida pelo governo federal ou estadual, ou livre, mantida por fundações ou associações particulares. Devido a esse contexto, desencadeou-se a reorganização do ensino secundário e superior (AZEVEDO, 1971). Desse passado histórico, desdobra-se o atual crescimento de parcerias público-privadas ou até a atual privatização plena, tornando uma relação entre governos e cidadão baseada em base econômica, porque o cidadão é contribuinte/consumidor e deseja valer seu investimento. A flexibilização do ensino, para formar em curto espaço de tempo e com redução de custos. Um exemplo desse fato, são as medidas subsequentes das ações afirmativas para o ensino superior público federal. “As ações preveem, além do aumento de vagas, medidas como a ampliação ou abertura de cursos noturnos, o aumento do número de alunos por professor, a redução do custo por aluno, a flexibilização de currículos e o combate à evasão” (MEC/REUNI, 2013). Conforme Martins (2002, p.70): “Ao longo das últimas três décadas o Brasil constituiu um sistema de pós-graduação que constitui a parte mais exitosa de seu sistema de ensino, sendo considerado de forma unânime, como o maior e melhor da América Latina”. Esse fato deixa de ser surpreendente quando se tem em conta o caráter tardio do ensino superior no país e particularmente da instituição universitária no seu contexto. Por outro lado, o Peru atual, em termos de pesquisa, está muito mal quando se compara por exemplo com Brasil. Mas está melhor em termos de ensino básico. Portanto, no terreno educacional, tanto o Peru como o Brasil, em níveis diferentes, têm muito por fazer (ZEVALLOS, 2003). 34

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE BRASIL E PERÚ

A população indígena alfabetizada no Peru apresenta-se com 24% da população total, os jovens indígenas entre 15 e 24 anos representam quase 20% da população indígena em termos absolutos. Em 2007, havia 6. 489.109 jovens indígenas alfabetizados e 20.564.285 de jovens não indígenas. Há uma diferença entre a alfabetização da zona urbana sendo superior a zona rural. Em 2012, consta-se que 48,9% da população indígena e 81,1% da população não indígena concluíram a formação primária. A educação secundária apresenta 26,7% da população indígena e 63,5% da população não indígena que concluíram seus estudos (CEPAL, 2014). Apesar desta tendência positiva, a situação dos (as) jovens indígenas de 15 a 24 anos segue sendo desfavorável em comparação com os não indígenas. Considerando estes aspectos pode-se dividir os países em três subgrupos: a) Países com alta vulnerabilidade, como Guatemala, onde 28,5% de todas (os) jovens indígenas ente 15 e 24 anos não sabem ler e escrever; b) Países com vulnerabilidade média, como Brasil, Costa Rica e México, com cerca de 15% de analfabetismo entre a população de jovens indígenas; c) Países com baixa vulnerabilidade, como Argentina, Chile, Equador e Peru, com porcentagem de analfabetismo entre a população de jovens indígenas inferiores a 7,2%  (OIE, 2014). No Peru, os projetos para uma política nacional peruana de educação intercultural bilíngue com vistas na formação da população indígena, identificam que há em 2014, 1.046.639 crianças indígenas no país e que têm direito a receber educação intercultural bilíngue. Nesse âmbito identifica-se a relevância de investimentos na formação de educadores, assim como na contratação de docentes que possuam a formação intercultural e bilíngue, ou seja, que desenvolvam suas competências sobre a cultura indígena e se especializem nessa área de conhecimento. Somam-se aos fatores de formação, a necessidade de investimento no desenvolvimento de material educativo adequado à realidade dos povos amazônicos. Assim como no Brasil o SINAES - Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, avalia os cursos das universidades como um sistema regulatório, a nova Lei Universitária no Peru, afetará cerca de 53 universidades que se situam com licença provisória e poderão de fechadas pela Superintendência Nacional de Educação Universitária SUNEDU, tendo em vista políticas públicas voltadas para a qualidade da educação superior. Há uma séria preocupação de orientação e conscientização dos jovens na escolha de universidades sérias e bem avaliadas, para que seus cursos e diplomas possam ser validados. No Brasil, em 2002, respondendo à consulta dos professores e lideranças indígenas de Roraima, o Conselho Nacional de Educação argumentou pela especificidade da formação superior de professores indígenas a partir da leitura e interpretação dos direitos constitucionais dos povos indígenas. No processo de discussão e implantação de políticas 35

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

públicas de formação superior para professores indígenas, o Ministério da Educação, por intermédio da SESU e da SECAD, lançou em 2005 o Edital do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Indígenas (PROLIND). Associado aos cursos de Licenciaturas, apresentou-se a necessidade de projetos que apoiem a elaboração de materiais didáticos que considerem as especificidades das diversidades de etnias, conforme Cabixi, (2001): Dentro desse conjunto de fatores, eu gostaria de falar um pouco sobre a questão do material didático até hoje produzido para os Pareci especificamente. A única produção de material didático que nós temos são umas cartilhas de 1° a 4° ano, formuladas pelo Summer, o Instituto Linguístico de Verão. É incrível perceber que essas cartilhas foram feitas dentro de uma técnica que não é hoje aceita pelos Pareci, em função das diferenças dos subgrupos, que são os Kaxíniti, os Waimare e os Kosárini e, como eu disse antes, também em função de que os professores índios ainda não conseguiram, eles mesmos – não sei se por falta de interesse ou por falta de visão – criar mecanismos de produção dos seus próprios materiais didáticos. (CABIXI, 2001, p.57) Mediante esse contexto, o MEC pretendeu apoiar projetos de Cursos de Licenciaturas específicas para a formação de docentes indígenas integrando ensino, pesquisa e extensão, contemplando estudos de temas relevantes como línguas maternas, gestão e sustentabilidade das terras e das culturas dos povos indígenas. Os projetos também devem promover a capacitação política dos professores indígenas como agentes interculturais na formulação e realização dos projetos de futuro das comunidades indígenas. No período entre 2005-2006, o PROLIND financiou as instituições superiores de ensino a seguir relacionadas, nas quais estão sendo formados 807 professores indígenas, entretanto a meta é de que no triênio 2007-2010, as universidades públicas consigam a manutenção e implantação de cursos de licenciaturas interculturais para a formação de 4.000 professores indígenas (SECAD, 2007). Conforme o censo do ensino superior de 2011, as instituições de ensino superior brasileiras totalizam 2.365, sendo 284 instituições públicas, ou seja, 12%, As instituições privadas são 2.081, ou seja, 88%. Mas a predominância quantitativa é das faculdades particulares, com 1.869 unidades, ou seja, 89,8%. Estes dados demonstraram que os alunos beneficiários das ações afirmativas ingressam predominantemente, no ensino superior privado noturno, ou seja, faculdades que se constituem 89,8% do setor privado, assim como no período noturno (INEP/MEC, 2011). O que se pode constatar também é que esses ingressantes trazem déficit educacional da educação básica e convivem com uma carga horária 36

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE BRASIL E PERÚ

dobrada, porque a maioria dos alunos trabalha e estuda. No mundo econômico e politicamente globalizado e neoliberal, a inclusão e o acesso ao ensino superior, pode caracterizar-se como uma “adequação formativa” de profissionais, para o sistema que em breve estarão inseridos. Conforme Goergen, (2011, p.99), “Ao sistema econômico, por exemplo, interessa dispor de um indivíduo competente, hábil no manejo de conhecimentos e técnicas, maleável aos intentos do capital.”. Atualmente, no Brasil mesmo com alta na taxa de alfabetização, a população indígena ainda tem nível educacional mais baixo que o da população não indígena, especialmente na área rural. Entre 2000 e 2010, a taxa de alfabetização dos indígenas com 15 anos ou mais de idade passou de 73,9% para 76,7%, aumento semelhante ao dos não indígenas de 87,1% para 90,4%. Na área rural, a taxa de analfabetismo chegou a 33,4%, sendo 30,4% para os homens e 36,5% para as mulheres. Já nas terras indígenas, 67,7% dos indígenas de 15 anos ou mais de idade são alfabetizados. Para os indígenas residentes fora das terras, a taxa de alfabetização é de 85,5% (IBGE, 2012).

Considerações finais Quando analisamos a educação indígena, necessariamente pensamos em inclusão social e valorização da diversidade cultural, para a manutenção da identidade, da cultura e dos valores dos povos. Como incluir sem afetar sua alteridade, um caminho possível apresentou-se na formação de educadores bilíngues, com competência na cultura indígena e ações afirmativas de inclusão. Nossa recente história tem desenvolvido algumas soluções para o viés sobre a política de financiamento da educação, por meio das políticas públicas elaboradas para a inclusão, os quais se definem como Políticas de Ações Afirmativas, que se realizam por meio de cotas raciais, ou seja, estudantes que autodeclaram-se negros, pardos ou indígenas e cotas sociais de alunos que cursaram toda sua formação anterior – ensino infantil, fundamental I e II e Médio, em escolas públicas. “Tratar de inclusão ou exclusão nas universidades da América Latina remete-nos, necessariamente, às condições estruturais nas quais os sistemas de educação superior se desenvolvem” (SVERDLICK, FERRARI e JAIMOVICH, 2005). Esse desenvolvimento histórico é marcado pelo avanço científico e tecnológico, pela universalização e padronização do conhecimento, por uma fragmentação epistemológica em “pacotes préfabricados de conhecimento”, sendo que se desencadeia uma formação restrita e técnica à especificidade de determinada área profissional, fator que não condiz com as expectativas de responsabilidade pela inclusão social.

37

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

A inclusão social envolve também a valorização da diversidade cultural, frente à uniformização de uma cultura única, em 1992, a UNESCO insistiu sobre a necessidade de realizar esforços para assumir os desafios do desenvolvimento e promover a diversidade das culturas. “Esta proposição foi retomada pela Conferência Intergovernamental sobre as Políticas Culturais para o Desenvolvimento, realizada em Estocolmo em 1998” (MARÍN, 2003, p.22). Algumas mudanças e avanços na Educação formal que possibilitem o direito à educação de qualidade a todo ser humano, com respeito à sua identidade social e cultural, iniciam-se ao se encontrar um ponto de equilíbrio entre uma formação para o desenvolvimento do ser humano e atender as demandas do mercado de consumo, inserido na “economia da educação”, assim como dependem de aspectos particulares de cada participante do processo. Embora esse contexto seja o resultado das atitudes efetivas tomadas pelo Estado, ao longo da história da Educação. A reflexão filosófica é imprescindível para que uma concepção pedagógica seja uma prática de transformação e emancipação humana. “Não é possível compreender um projeto educacional fora de um projeto político, isto é, de uma visão de totalidade que articula o destino das pessoas como o destino da comunidade humana” (SEVERINO, 1986, p. XV). Esse “desenvolvimento” desdobra-se historicamente, com variados perfis, ou seja, com diferentes concepções pedagógicas que se constituem como diferentes “meios” para um “fim”, isto é, uma perspectiva limitada de formação humana. Todavia é observável que os aspectos sociais, econômicos e políticos têm desenvolvido uma Filosofia da Educação antidialética, “Somente pela compreensão da unidade dialética em que se encontram solidárias subjetividade e objetividade podemos escapar ao erro subjetivista como ao erro mecanicista” (FREIRE, 2011, p.216). Assim, cabe à reflexão filosófica explorar o significado da condição humana no mundo. A necessidade de que estejam imbricadas a Filosofia da Educação e a Pedagogia está evidenciada pelo percurso sócio histórico que demonstrou a forte influência política e econômica sobre a educação. “Esse traço tão enraizado e persistente da educação escolar tem levado a formação de um perfil neutro, generalista, insensível à dinâmica social, sem capacidade de análise dos tempos e dos espaços dos coletivos onde exercer a docência ou a gestão” (ARROYO, 2010, p.481). Para o autor existe uma visão fechada e instrumentalista de formação docente, cuja formação, deveria estar relacionada ao contexto e a realidade em que será praticada. O Conhecimento, os valores culturais e as diferentes identidades seguem diversas aproximações da realidade apercebida sob os diferentes aspectos, acumulando verdades parciais. “Não termina apenas da adição de 38

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE BRASIL E PERÚ

conhecimentos, em mudanças quantitativas do nosso saber, mas também em transformações qualitativas de nossa visão histórica” (SHAFF, 1995, p.308). Nos processos de inclusão da sociedade indígena e de sua formação que ocorrem inseridos nos padrões da cultura ocidental, devemos considerar que todo conhecimento é um processo vivo, que reage e modifica o pensamento de quem ensina e de quem aprende mutuamente. Certamente, afetará mudanças no pensamento do aluno indígena, assim como possibilitará sua emancipação e conscientização de seus direitos. Todo processo educativo deve socializar e democratizar o conhecimento independentemente das origens: social, étnica, religiosa etc., em suma sem qualquer distinção, por meio da formação mais consciente de sua responsabilidade e de sua contribuição como participante social, como construtores de sua própria história e de seu próprio tempo.

Referências AMPARO, Sandoval dos Santos, Da invisibilidade da questão indígena na geografia: relato de participação no V Simpósio Nacional e I Internacional sobre Espaço e Cultura. Revista de Estudos e Pesquisas, FUNAI, Brasília, v.4, n.2, p.253-277, dez. 2007 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. ARROYO, Miguel, Educação do Campo: movimentos sociais e formação docente – Para além das visões escolarizadas fechadas, In Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente, SOARES Leôncio [et al], Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. AZEVEDO, Fernando de, A CULTURA BRASILEIRA, São Paulo: Melhoramentos, Editora da USP, 1971. BARROS, Roque S. Maciel de, A ilustração Brasileira e a ideia de universidade, São Paulo: Convívio/EDUSP, 1986. BIESTA, Gert, Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. CABIXI, Daniel Mantenho, Educação escolar entre os Pareci, Nambikwara e Irantxe no contexto socioeconômico da Chapada dos Parecis, MT, In VEIGA, Juracilda e SALANOVA, Andrés (org.) Questões de educação escolar indígena: da formação do professor ao projeto de escola. / Darlene Taukane... (et al). - Brasília: FUNAI/DEDOC, Campinas/ALB, 2001. 39

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

CEPAL – Pactos para la igualdad. Hacia un futuro sostenible, 2014. Trigésimo quinto período de sesiones de la CEPAL, Naciones Unidas, Lima 5 e 6 de mayo, 2014. CINTRA, Antônio Octávio, Democracia na América Latina II, Novembro de 2000. Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados, Centro de Documentação e Informação. Coordenação da Biblioteca. http:// bd.camara.gov.br Acesso em 10-07-13. CUNHA, Luiz Antônio, Educação, Estado e democracia no Brasil, 2. ed.- São Paulo: Cortez, Niterói, R J: Editora da Universidade Federal Fluminense; Brasília, D F: FLACS O do Brasil, 1995. (Biblioteca da educação. Série 1. Escola; v. 17). ___________________, A universidade Temporã: o ensino superior da Colônia à Era Vargas, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. FREIRE, Paulo, Ação Cultural para a liberdade e outros escritos, 14. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. FISCHMANN, Roseli, Educação, Direitos Humanos, Tolerância e Paz, p. 67-77, v. 11, n. 20, São Paulo, Paidéia, 2001. GEORGEN, Pedro, Educação para a responsabilidade social: pontos de partida para uma nova ética. In Ética e formação de professores: política, responsabilidade e autoridade em questão. Francisca E. Santos Severino (org.) – São Paulo: Cortez, 2011. GOMES, Mércio P., Editorial - Revista de Estudos e Pesquisas. Brasília: FUNAI: CGEP/CGDOC, v.1, n.1, 2004 – Semestral - ISSN 1807-1279. GROP: GRUP DE RECERCA EN ORIENTACIÓ PSICOPEDAGÓGICA, Atividades para o desenvolvimento da inteligência emocional nas crianças, São Paulo: randa Cultural, 2009. HÜTTNER, Édson, A igreja católica e os povos indígenas do Brasil: os Ticuna da Amazônia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007. IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE Diretoria de Pesquisas. Os indígenas no Censo Demográfico 2010 primeiras considerações com base no quesito cor ou raça. Rio de Janeiro, 2012. INEP/MEC. INEP/MEC Censo da educação superior, resumo técnico de 2011. http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/ resumo_tecnico/resumo_tecnico_censo_educacao_superior_2011.pdf Acesso em:25-06-2014. 40

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UM ESTUDO COMPARADO ENTRE BRASIL E PERÚ

LIBÂNEO, José Carlos, Didática, São Paulo: Cortez, 1994. MARÍN, José, Globalización, Diversidad Cultural y Practica Educativa, Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v.4, n°8, p.11-32, jan./abr., 2003. MARTINS, Carlos Benedito, Privatização: a política do Estado autoritário para o ensino superior. Cadernos CEDES n° 5 - p. 43-61/370, 1981. MEC/REUNI, Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) Apresentação http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_ content&view=article&id=12261&ativo=503&Itemid=502 Acesso em:2106-2014. UNICEF – The draft country programme document for Peru 20122016. (E/ICEF/2011/P/L.44) was presented to the Executive Board for discussion and comments at its 2011-second regular session (12-15 September 2011). The document was subsequently revised, and this final version was approved at the 2012first regular session of the Executive Board on 10 February 2012. OIE - Transnational Observatory of Social Inclusion and Equity in Higher Education - Raça/etnia e necessidades especiais - http://www.oie-miseal. ifch.unicamp.br Acesso em: 10-07-14. OLIVEN, Arabela Campos, Histórico da educação superior no Brasil, In Educação Superior no Brasil, SOARES, Maria Susana Arrosa (org.), Brasília: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, 2002. REVISTA CADERNOS SECAD - Educação Escolar Indígena: diversidade sociocultural indígena ressignificando a escola. Organização: Ricardo Henriques, Kleber Gesteira, Susana Grillo Adelaide Chamusca. CADERNOS SECAD 3, Brasília, DF, abril de 2007. SHAFF, Adam, História e Verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1995. SEVERINO, Antonio Joaquim, Educação, Ideologia e Contra-Ideologia, São Paulo: EPU, 1986. SVERDLICK Ingrid, FERRARI, Paola e JAIMOVICH, Analía, Desigualdade e inclusão no ensino superior Um estudo comparado em cinco países da América Latina Série: Ensaios & Pesquisas do Laboratório de Políticas Públicas - Buenos Aires, Nº 10, 2005. 41

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

WARDE, Maria José, Contribuição da História para a educação. Em Aberto, Brasília: INEP, nº17, jul./set. p. 3-11, 1990. ZEVALLOS, Enrique Amayo, Seminário sobre o Peru do 20.11.03 organizado pelo Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais – IPRI do Ministério de Relações Exteriores do Brasil e o Programa de Pós - Graduação “San Tiago Dantas” – UNESP – UNICAMP - PUC-SP, 2003.

42

ESCOLAS INDÍGENAS EM MATO GROSSO: INICIATIVAS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO SABER

ESCOLAS INDÍGENAS EM MATO GROSSO: INICIATIVAS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO SABER

Darci Secchi1 Vanúbia Sampaio dos Santos2 Aline Martins de Oliveira3

Resumo: Este artigo retrata a importância da instituição escolar dentro das sociedades indígenas, e que se destacam como um dos elementos externos mais importantes que se incorporou dentro dessas sociedades. A escola há muito tempo se tornou símbolo para estas comunidades, provocando grandes mudanças nas suas estruturas culturais e sociais. A luta pela tão sonhada escola se tornou uma busca por autonomia e protagonismo a fim de gerar uma educação descolonizadora, desconstruindo os moldes que buscaram padronizar todas as culturas indígenas em uma só: na cultura do colonizador do saber. Temos o objetivo de propor algumas iniciativas que possam romper com a colonialidade fortalecendo o caminho da escola descolonizada, dos quais, destacamos o diálogo, a profissionalidade, a identidade, as mídias e meios virtuais e os projetos pedagógicos como meios para contribuírem para que as escolas indígenas possam gerir seus próprios processos pedagógicos e assim lutarem para produzirem e reproduzirem o uso de sua cultura sem sofrerem decisões alheias. Palavra-chaves: Educação Escolar Indígena. Descolonialidade. Índios em Mato Grosso. Abstract: This paper presents the importance of the school within indigenous societies, highlighting them as one of the most important external factors that are incorporated within these societies. The school long ago became a symbol for these communities, causing major changes in their cultural and social structures. The struggle for a long awaited school became a claim for autonomy and protagonism with the aim of producing a decolonizing education, deconstructing the models that have standardized all indigenous cultures as if they were one : the culture of the colonizer knowledge. We 1 Professor Associado II da Universidade Federal de Mato Grosso, doutor em Ciências Sociais (Antropologia), membro do Programa de Pós-Graduação em Educação e tutor do Grupo PETEducação. E-mail: [email protected]. 2 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Pesquisadora em estudos relacionados a infância indígena urbana no contexto amazônico. Atualmente participa do Programa Ação Saberes Indígenas na escola como formadora. E-mail: vanubia.sampaio@ gmail.com. 3 Graduada em pedagogia pela Universidade Federal de Mato Grosso. Membro do Grupo de Pesquisa em Educação Escolar Indígena. E-mail: [email protected].

43

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

propose some initiatives that break with colonialism strengthening the path of decolonized school, among which we highlight the dialogue, professionalism, identity, media and virtual media, and educational projects as a means for indigenous schools to manage their own pedagogical processes and thus produce it and reproduce it using their culture without suffering outside decisions. Keywords: Indigenous School Education. Decoloniality. Indians in Mato Grosso.

Introdução Nos últimos anos, a educação escolar vem sendo incorporada de maneira progressiva – e, possivelmente, inexorável –, ao cotidiano dos povos ameríndios. Em Mato Grosso, tal realidade assume características desafiantes, especialmente se considerada a multiplicidade étnica e a baixa concentração demográfica, ingredientes historicamente utilizados para justificar a não implementação de políticas específicas e diferenciadas para os povos indígenas. Aqui, somos quarenta povos com uma população total de pouco mais de trinta mil pessoas. O povo Xavante representa a metade desse contingente; os demais, somados, o restante da população.’ Em um contexto como o acima sintetizado, os debates acerca do lugar institucional da escola e dos seus limites e possibilidades nas aldeias, precisam ser equacionados em suas especificidades, de maneira a lhes conferir os encaminhamentos adequados. Passados mais de quinhentos anos sem considerar essa sociodiversidade nativa (RICARDO, 1995), finalmente os governos e as instituições acadêmicas parecem dispostos a incluir a temática escolar indígena na pauta das políticas públicas emergentes. Resta, porém, estabelecer o seu perfil específico e as estratégias para abordá-la. Se, por um lado, as iniciativas escolares não podem ser mais caracterizadas como experiências fragmentadas e pontuais, por outro, a sua padronização generalizada como categoria universal também não parece um “enquadramento” adequado. Na tentativa de balizar esse hiato operacional, o poder público elaborou um “pacote normativo”4 que propunha, em síntese, a criação de escolas indígenas “específicas, diferenciadas, bilíngues e interculturais” pautadas no “respeito à diversidade” e em “processos pedagógicos próprios.” As organizações indígenas, por sua parte, passaram a cobrar do poder público respostas mais efetivas e duradouras para suas necessidades

4 Trata-se do conjunto iniciativas propostas pelo MEC e por alguns governos estaduais no sentido de regularizar, estruturar e assessorar as escolas indígenas. Dentre as principais documentos destacam-se as Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, o Referencial Curricular Nacional - RCNEIs e as Orientações Curriculares para as Escolas Indígenas.

44

ESCOLAS INDÍGENAS EM MATO GROSSO: INICIATIVAS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO SABER

escolares e organizaram diversos eventos de deliberação coletiva em que reiteravam o desejo de construir uma escola indígena que atendesse às necessidades imediatas e contribuísse para a construção do projeto de futuro de cada povo. (SILVA, 1994) A configuração formal das escolas indígenas e a sua presença regular no quotidiano das aldeias representaram um importante passo na medida em que preencheu a incômoda lacuna que, há décadas, fustigava o poder público e as comunidades. Ainda assim, não foi suficiente para assegurar a sua qualidade e adequação. Há que se pensar novas estratégias para transformar essa instituição, nascida da colonialidade, em instrumento de defesa efetiva dos interesses e necessidades das populações indígenas. Há que se repensar as escolas com a presença e participação das comunidades, dos seus professores e do poder público em bases mais equitativas. Há, portanto, que se reinventar a Escola Indígena. No presente artigo, pretendemos discutir alguns dos marcos que balizam o debate acerca das atuais escolas indígenas e destacar as iniciativas que poderão auxiliar para a desconstrução da colonialidade do saber.

Marcos do debate sobre Educação Escolar Indígena Dentre as diversas temáticas que integram o campo das Ciências Humanas e Sociais, a pesquisa em educação escolar indígena é certamente uma das mais recentes. Os estudos clássicos que associaram a Antropologia à Educação tiveram por objeto preferencial os processos educacionais autóctones, isto é, a educação não-escolar desenvolvida pelas sociedades analisadas. Os primeiros ensaios que incorporam a temática escolar são oriundos da Antropologia Cultural Norte Americana do início do século passado e se consolidaram no Brasil através de três núcleos de interesses principais: a) estudos de caráter histórico-críticos, centrados na política assimilacionista e discriminatória implementada nas escolas do SPI, FUNAI e missões religiosas, e nos materiais instrucionais e livros didáticos; b) trabalhos de caráter jurídico-políticos, notadamente de cunho propositivo, apresentados por grupos, movimentos, núcleos, fóruns, associações etc. da comunidade científica e da sociedade civil; e, c) estudos de caráter didático-pedagógicos, constando de análises de experiências pessoais ou de “iniciativas inovadoras” de âmbito local e regional. Uma segunda vertente, igualmente promissora em países com contingentes populacionais indígenas mais expressivos (México, Guatemala, Equador, Peru e Bolívia), associa a temática educacional à Linguística, e 45

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

tem conseguido avançar em seus respectivos campos de conhecimento e na proposição de projetos educacionais intersocietários. Mais recentemente, a abordagem da colonialidade tomou fôlego especialmente no campo da Antropologia associada aos estudos sociológicos e econômicos de natureza marxiana. Pensadores como Aníbal Quijano, Santiago Castro-Gómez, Fernando Coronil, Enrique Dussel, Arturo Escobar, Edgardo Lander, Francisco López Segrera, Walter D. Mignolo, Alejandro Moreno, Catarine Walsh, entre outros, retomaram o debate em torno do impacto do modelo colonial sobre as instâncias de poder e de saber no contexto Latino-Americano, especialmente sobre as sociedades indígenas. Na análise das iniciativas educacionais de cunho escolar que envolve as sociedades indígenas, tais requisitos são fundamentais, pois consideram as diversas trajetórias de contato e as estratégias de convívio com a sociedade nacional. No Brasil, a atual concepção hegemônica acerca do perfil das escolas indígenas resume-se, como vimos, à aplicação de quatro adjetivos – “específica”, “diferenciada”, “bilíngue” e “intercultural” –, e às atitudes valorativas de “respeito à diversidade” e aos “processos pedagógicos próprios”. Ante a tamanha simplificação e a ausência dos meios para a sua efetivação, surgem perguntas inevitáveis como: a) A escola indígena, assim concebida, não seria a mesma escola colonial, apenas vestida com novas roupagens? b) Como foram concebidos e tecidos os caminhos que levaram a essa adjetivação? c) Quais os propósitos dessa estruturação formal? Ora, o atual modelo de escola indígena teve origem associada à Organização Internacional do Trabalho (OIT) que, a partir da década de 1950, passou a redefinir as relações laborais em âmbito internacional e ensejou a incorporação das populações do “Terceiro Mundo” ao projeto liberal. A Convenção da OIT (1957) preconizou, dentre outros direitos, a garantia de educação em todos os níveis (art. 21); a realização de estudos antropológicos prévios à elaboração de programas escolares (art. 22); a alfabetização em língua materna seguida de educação bilíngue (art. 23); uma campanha de combate ao preconceito (art. 25); e, a divulgação dos direitos e obrigações sociais e trabalhistas através de informações escritas nas próprias línguas (art. 26). Naquele contexto, e sem nenhuma maquiagem, propôs-se às escolas indígenas a função de agências padronizadoras de identidades e disponibilizadoras de mão de obra. Vejamos como isso foi expresso: Art. 24 - O ensino primário deverá ter por objetivo dar às crianças pertencentes às populações interessadas 46

ESCOLAS INDÍGENAS EM MATO GROSSO: INICIATIVAS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO SABER

conhecimentos gerais e aptidões que as auxiliem a se integrar na comunidade nacional. (…) Art. 26 -1. Os governos deverão tomar medidas (…) com o objetivo de lhes fazer conhecer seus direitos e obrigações especialmente no que diz respeito ao trabalho e os serviços sociais. (Grifos nossos).5

A partir desses propósitos, os programas escolares foram formulados anterior e exteriormente à participação das sociedades indígenas, limitandoas apenas ao seu cumprimento. Essa perspectiva encontra-se explícita também na atual LDB ao preconizar que “Os seus programas serão planejados com a audiência das comunidades indígenas” (Artigo 79, Parágrafo Primeiro, grifo nosso). Segundo a lei, as agências externas (governos, academias, conselhos) planejarão os programas das escolas, com a audiência indígena, e não o inverso: “as comunidades indígenas planejarão seus programas com a audiência do poder público, dos conselhos e da academia”. A atual legislação reafirmou a sua origem colonial e deixou de contemplar uma premissa fundamental para a superação do modelo escolar integracionista, qual seja, a possibilidade de “iniciativa” das sociedades indígenas no processo de conceber, planejar, executar e gerir os seus currículos e programas educacionais. Resguardou o direito de outorgar direitos. Os índios permaneceram na qualidade de ouvintes e não de propositores de suas próprias políticas. Por força da lei, continuaram meros espectadores ou atores coadjuvantes, sem direito ao voto nem ao veto… É preciso, portanto, substantivar essa versão simplista de escola indígena com outros ingredientes que expressem a pluralidade das situações atualmente existentes. Uma excelente contribuição nesse sentido foi apresentada pelo historiador Antonio Brand (1998, p. 7), para quem as escolas indígenas devem atender a dois desafios principais: a) “ser um instrumento de afirmação étnica e de coesão interna a serviço dos projetos de autonomia de cada povo ou comunidade”; e, b) capacitar individual e coletivamente cada pessoa, comunidade e povo indígena para o enfrentamento e ocupação dos espaços de participação em âmbito regional e nacional. Um entendimento similar pode sem encontrado também em Maher (1996), Meliá (1997; 1998) e Dias da Silva (1997) que caracterizam as escolas indígenas com os seguintes atributos: a) uma nova instituição 5 Posteriormente, na Convenção 169, adotada pela 76ª Conferência Internacional do Trabalho (Genebra, junho de 1989) foram revisadas essas proposições e acrescentadas outras diretrizes, tais como “el derecho a la autoidentificación, a la consulta y a la participación, y el derecho a decidir sus proprias prioridades” (…).

47

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

educacional, a serviço de cada povo; b) um instrumento de afirmação e reelaboração cultural; c) um elemento que contribui na conquista de espaço político; d) uma alternativa aos modelos anteriores de “escolas para os índios”; e um lugar onde se articulam os conhecimentos tradicionais e os novos conhecimentos; f) um ambiente em que se disponibilizam informações decorrentes do contato; g) uma possibilidade de construção de relações igualitárias, do reconhecimento e do respeito individual e social; e, h) um espaço de construção da contraideologia. Para a professora Mariana Leal Ferreira (1992), cada povo desenvolve alternativas de ação e implementa dinâmicas próprias para fazer frente à situação de contato. A escola aparece como um dos instrumentos a serem acionados ora como espaço de construção de identidades étnicas, ora como instância de interlocução com a sociedade não índia. Para a autora, são os índios que têm o “direito de definir as próprias concepções de educação escolar, de acordo com os processos tradicionais de aprendizagem e os interesses de cada sociedade” (p.179). É nessa direção que se encaminham também as proposições dos professores indígenas, ao definirem as principais competências dos currículos escolares. Para eles, o currículo das escolas indígenas deve expressar as práticas sociais e culturais de cada comunidade e disponibilizar os conhecimentos autóctones e das ciências, de modo que possam ser utilizados adequadamente em cada realidade concreta. No entanto, ainda existe um hiato preocupante entre o que é pensado (idealizado) nos cursos de formação e o que é vivido (realizado) nas escolas das comunidades. Ou, nas palavras de um acadêmico do curso de Licenciatura Indígena: “Imaginamos um tipo de escola, mas fazer na realidade o que se aprende não é fácil. Só alguns conseguem” (SECCHI, 2005, p. 26). De fato, conjugar a racionalidade científica ocidental com as dos sistemas de saberes indígenas, não é tarefa fácil. Somam-se a ela outros aspectos intracurriculares, como as ênfases teóricas e metodológicas, os recortes das áreas, a lógica do conteúdo, a organização disciplinar, as estratégias de avaliação, etc. e teremos uma pequena amostra da complexidade e do desafio que envolve a composição dos currículos das escolas indígenas. É nesse misto de angústia e incertezas que os professores indígenas e as agências formadoras (universidades, secretarias etc.) se sentem como “aprendizes de feiticeiros”, na busca de caminhos para a produção de currículos convergentes com os interesses e necessidades indígenas. De outra parte, é compreensível que alguns se digam “contemplados” quando recebem já impressos os “subsídios oficiais” na forma de diretrizes, parâmetros ou referenciais que balizam (norteiam!) as atividades docentes.

48

ESCOLAS INDÍGENAS EM MATO GROSSO: INICIATIVAS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO SABER

Esse dilema, aparentemente insolúvel, de gerar currículos específicos e, ao mesmo tempo, assegurar o ‘marco nacional’, pode ser encaminhado de forma inovadora, desde que percebido como uma “situação relacional” e não como “par excludente ou opositivo”.6 A mesma afirmação pode ser feita em relação ao “controle cultural” e à “colonialidade”, elementos que constituem o cenário das atuais escolas indígenas. A noção de “controle cultural” é proposta por Guillermo Bonfil Batalla (1991) para analisar os processos que ocorrem quando grupos com culturas diferentes e identidades contrastantes estão vinculados por relações assimétricas (dominação-subordinação). Para o autor, controle cultural é a “capacidade de decisão sobre os elementos culturais”, isto é, a capacidade social de utilizá-los, produzi-los e reproduzi-los. (op. cit., p 49). Essa capacidade expressa um fenômeno cultural que supõe o próprio “exercício do controle”, “exercício esse que não se dá no vazio, nem em um contexto neutro, mas no seio de um sistema cultural que inclui valores, conhecimentos, experiências, habilidades e capacidades preexistentes”. (id. ib., tradução nossa). O controle cultural, por isso, não é absoluto nem abstrato, mas histórico. A execução de um determinado “projeto social” (como a implantação de escolas indígenas, por exemplo) supõe a formulação e a colocação em ação de elementos culturais que o viabilizem, ou que o limitem e condicionem. Mas essa relação não é expressa apenas em termos descritivos (como em muitas etnografias), mas em termos políticos (de decisão; de controle; de poder). Quando um determinado grupo social toma decisões próprias sobre elementos culturais próprios, expressará uma cultura autônoma. Se essas decisões forem de outrem, expressarão uma cultura alienada. Ou ainda: se utilizar elementos culturais alheios e, sobre eles, tomar decisões próprias, expressará uma cultura apropriada; se, ao contrário, as decisões forem alheias, indicará uma cultura imposta, isso é, a colonialidade. Vejamos um quadro síntese proposto por Batalla (1991): Quadro 1- Síntese proposta por Batalla a respeito da formulação e execução de projetos sociais em termos políticos. Elementos Culturais

Decisões Próprias

Alheias

Próprios

Cultura AUTÔNOMA

Cultura ALIENADA

Alheios

Cultura APROPRIADA

Cultura IMPOSTA

6 O tratamento de categorias relacionais tais como autonomia-dependência; rural-urbano; moderno-arcaico; ensino-aprendizagem, teoria-prática como pares opositivos ou termos excludentes, vem sendo superada, progressivamente, no âmbito das Ciências Sociais.

49

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

A perspectiva estática caracterizada acima deve ser dinamizada com outras categorias que expressam capacidades (crescentes ou decrescentes) de movimento, tais como a “resistência” (para a salvaguarda da cultura autônoma); a “apropriação” (dos elementos culturais alheios); a “alienação” (ou perda de capacidade de decisão sobre elementos culturais próprios) e a “imposição” (de culturas alheias). (id., p.52). Trazendo essas proposições para a realidade específica das escolas indígenas, percebemos que tanto o projeto colonial quanto o controle cultural podem ser exercidos de diferentes maneiras, graus e formas, segundo as condições históricas e o universo específico de cada povo. Uma das formas adotadas para exercer o controle das escolas indígenas tem sido a limitação do número e da natureza das alternativas para a análise e escolha. As opções disponibilizadas, muitas vezes, não atendem às expectativas sociais e restringem-se a um menu hegemônico, expresso por parâmetros, diretrizes e referenciais nacionais únicos, definidos pelo poder do estado. Por essa razão, a adesão a um projeto escolar ocorrer mais por falta de opção do que, propriamente, por convencimento ou adequação. A título de síntese, podemos propor que a escola indígena é um elemento cultural externo que foi ou está sendo incorporado às (ou pelas) comunidades. Na condição de elemento externo, traz para o seu interior um afluxo de recursos humanos e financeiros; novas formas de organização temporal e espacial, e um conjunto de informações (saberes) que as dinamizam. A utilização desses novos recursos pode ensejar movimentos de reorganização social e comunitária, que variam desde situações excessivamente “quentes” a ponto de romper a tecitura social, até situações de impactos mínimos, a ponto de torná-los metaforicamente inertes. As escolas serão mais livres e autônomas na medida em que suas respectivas comunidades e seus professores consigam exercer o controle sobre seus formatos, seus saberes e seus propósitos. Inversamente, serão mais dependentes, sempre que esses atributos forem exercidos por agentes externos e à revelia do controle social. Atualmente, quase todos os povos indígenas ampliaram o convívio com a sociedade nacional e priorizaram a instituição escolar por percebê-la essencial para alcançar o propósito de “reafirmar suas identidades étnicas, de reconstruir o seu projeto de vida, de assumir o seu protagonismo” (TORRES, 2007). A instituição escolar “específica”, “diferenciada”, “bilíngue” e “intercultural” também está sendo reivindicada. E, segundo Paulo Freire (1982, p. 42), não é por acaso, “porque simplesmente acordaram na segundafeira, dizendo ‘vou aprender’. Deve haver uma preocupação existencial”, uma necessidade no sentido de compreender que a ideologia dominante 50

ESCOLAS INDÍGENAS EM MATO GROSSO: INICIATIVAS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO SABER

está provocando, de um lado, o afastamento e, de outro, a busca de certos instrumentos tidos como estratégicos. De posse desses contornos gerais, será possível, agora, propor algumas iniciativas que poderão ampliar o controle das comunidades sobre suas respectivas escolas e superar o modelo escolar colonial, imposto ao longo da história pelos mais diversos agentes externos.

Iniciativas para a descolonização das escolas indígenas O surgimento e consolidação da instituição escolar em todo mundo e em todos os tempos, estão associados ao domínio ou à imposição de um novo modus vivendi às populações que passaram a incorporá-la. Assim atuaram as escolas do Império Romano; assim agiram os ingleses na Índia e noutras colônias e, mais recentemente, assim agem os Estados Unidos da América e outras potências mundiais. No que se trata especificamente das populações indígenas, o ideário da imposição cultural por meio da escola, pode ser sintetizado nas palavras do coronel Richard Pratt, fundador da Escola Indígena de Carlisle, no seu discurso inauguração. Propôs, inicialmente, o diretor: “Para civilizar os índios, insira-os nas nossas escolas e quando nós os tivermos nelas, segureos lá até que estejam completamente imersos”. E, ao final, conclui, em tom professoral, dirigindo-se aos indígenas presentes: “Deixe tudo o que for indígena dentro de você morrer”.7 Não obstante as críticas e limitações atribuídas à escola, ela tem sido – e continuará sendo – uma instituição aliada aos interesses indígenas, dada a sua amplitude de atuação e aos significados que lhe são atribuídos e reatribuídos. Porquanto, a escola indígena também pode ser descolonizada em muitos dos seus atributos, propósitos e gramáticas. Sem nenhuma pretensão receitual, destacaremos a seguir alguns desses flancos que, quando abordados adequadamente, poderão ensejar uma mudança significativa na forma e no conteúdo das atuais escolas. Na verdade, são iniciativas que abarcam, desde atitudes práticas e singelas, até medidas audaciosas que requerem empenho político, recursos financeiros e adesão das comunidades para serem viabilizadas. Não basta conversar: é preciso adotar o diálogo qualificado na relação entre o “nós” e os “outros” Essa primeira iniciativa (aparentemente tão simples, senão óbvia) tem sido um ponto nevrálgico nas tentativas de interlocução entre o poder 7 Carlisle, Pennsylvania, 1879 apud BLAKE, 2010.

51

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

público, a academia e os indígenas. Não obstante as décadas que passam, perdura o juízo, ora expresso, ora dissimulado, que a comunicação igualitária e dialógica entre múltiplos protagonistas seja um propósito desejável, porém de improvável efetivação. A sociedade moderna incorporou e difundiu (inclusive no meio indígena) a ideia de que o protagonismo nas relações sociais precisa ser necessariamente centrado em apenas uma pessoa ou instituição. Depois de observar o mundo político, a arte, o esporte, a religião etc. tem-se como demasiado difícil aceitar a possibilidade do protagonismo coletivo, compartilhado ou plural. Afinal, o que seríamos sem nossos “astros”, “estrelas”, “musas”, “gurus” e tantos outros “ídolos”. No debate sobre a descolonização das escolas indígenas, é preciso alterar essa relação assimétrica que perdura há séculos e que habita o imaginário dos membros do poder público, da academia e do próprio movimento indígena, em que cada um dos pólos se pretende o principal protagonista (the main player). Não é suficiente que um dos atores sociais expresse a sua “anuência” ou que se lhe seja assegurada a “audiência”. É preciso que todos sejam protagonistas; que possam convocar e serem convocados; liderar e aceitar a liderança, propor, discordar, enfim, estabelecer um diálogo qualificado que se materialize em políticas, programas e ações concretas. Sem esse reconhecimento impresso e expresso, não há descolonização escolar que se sustente. Nesse sentido, não basta o propósito de interlocução entre antropólogos, educadores, poder público e comunidades indígenas. Só a sua práxis efetiva e concreta resultará na superação da lógica excludente, elitista, opressora e subalternizante que caracterizam as relações de colonialidade. Não basta titular os professores: é preciso que construam sua identidade docente. Em muitas escolas indígenas, a identidade do professor se confunde com a identidade da instituição. Poderíamos sugerir que essa percepção ôntica, se funda em diversos aspectos, dentre eles o domínio de um conhecimento especializado, o contato com o saber escrito, a ocupação preponderante naquele âmbito etc. Em muitas aldeias de Mato Grosso, a escola se caracteriza como uma instituição recente e o professor como um novo ator social. Ambos se expõem como num jogo de espelhos: ora o professor parece sua escola, ora a escola parece seu professor. Entretanto, se existe o professor da escola indígena (e vice-versa) é porque, de algum modo, foram instituídos como 52

ESCOLAS INDÍGENAS EM MATO GROSSO: INICIATIVAS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO SABER

tais. Quem os instituiu? Em que bases filosóficas, metodológicas, políticas, culturais, linguísticas etc. foram concebidos e formados? De um modo geral, essas questões estão equacionadas de forma bastante objetivas em Mato Grosso. Tivemos (e ainda temos) bons programas de formação de nível médio e um programa pioneiro de ensino superior desenvolvido pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) em parceria com outras instituições. Por eles passaram mais de mil estudantes que se formaram professores e atuam (ou não) nas escolas das aldeias. Concluída a etapa de formação, deu-se a missão por cumprida. Foram preparadas as certificações, o poder público e as comunidades lhes proporcionam uma magnífica festa e, no dia seguinte, todos retomam suas rotinas. O ritual de passagem se esgotou nesses atos e a vida continuou, como dantes! Os recém-titulados passam a atuar nas escolas como se formados estivessem: prenhes de saberes, de prestígio e… de dúvidas! Ninguém mais se preocupou em acompanhar a construção da sua profissionalidade docente. Não se sabe como estão atuando, com que materiais, estratégias, conteúdos, avaliações… Afinal, o que mais poderíamos esperar de um modelo colonizador senão a sua legitimação e reprodução? Ao dizer “já titulei vocês, agora, se virem”, o Estado nacional e as instituições formadoras eximem-se da responsabilidade de acompanhar os neófitos no seu fazer quotidiano. Ao invés disso, lhes impõe um pacote de diretrizes, normas, referenciais etc. de natureza genérica que padronizam as condutas e embotam o surgimento de iniciativas criativas e inovadoras. Porquanto, a descolonialização da escola supõe a formação de professores em programas específicos e com qualidade, mas precisa ir além. Os programas de formação precisam deixar de ser apenas um ritual de passagem e se transformar em espaços de construção da profissionalidade docente. Precisam ter início, desenvolvimento, continuidade e diferentes formas de acompanhamento. A simples alocação massiva de professores indígenas nas aldeias, ainda que oriundos de excelentes programas, não enseja a descolonização da escola. Ao contrário, pode representar o seu fortalecimento, desta feita, legitimado por líderes das próprias comunidades. Não basta contratar os professores formados: é preciso discutir os termos da sua ‘fidelidade’. Alguém poderia sugerir conceitos mais estranhos às sociedades indígenas do que os adotados nos serviços públicos contemporâneos? O que representaria, por exemplo, para esses povos milenares as noções de concurso, vaga, lotação, remoção, efetividade, progressão, licença ou aposentadoria, entre outros? Pois bem, ao inserir nas escolas indígenas essas 53

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

noções de forma generalizada, estamos configurando o seu formato e seu modo de funcionamento de acordo com os parâmetros históricos das nossas escolas. Seriam esses os parâmetros que caracterizam uma escola específica, diferenciada e descolonizada? Ante aos fatos, os professores indígenas e gestores públicos são levados a acreditar que se trata de um dilema insolúvel. Por um lado, precisam conciliar os ‘direitos dos trabalhadores indígenas’ com os ‘deveres dos servidores públicos’; por outro, precisam manter a fidelidade à cultura indígena e, ao mesmo tempo, construir uma escola delimitada pelo marco nacional. Como se percebe, essa “equação” precisa ser precedida de uma reflexão sobre a possibilidade objetiva de uma dupla fidelidade. O professor é, a um só tempo, membro de uma sociedade com regras específicas e cidadão de um estado nacional com normas gerais. No âmbito de um Estado democrático e pluralista, a conciliação dessa dupla fidelidade ocorre por meio de negociações legitimadas pelas partes. Essa é uma lacuna que precisa ser dirimida, com urgência, na realidade específica de Mato Grosso. Não basta contratar ou nomear professores indígenas, é preciso estabelecer os contornos específicos das suas relações com o Estado nacional, com as respectivas comunidades e com sua categoria profissional (sindicato, associação etc.). Sem equacionar essas diferentes expectativas e identidades o alcance de descolonização da escola será bem restrito. Não basta elaborar projetos pedagógicos: é preciso que floresçam no ‘chão da aldeia’. Ao propormos essa questão como estratégica para a superação do ranço colonial das escolas indígenas, gostaríamos de refletir sobre o significado da expressão “processos pedagógicos próprios”, adotada na legislação, como forma de valorização cultural. Ao fazê-lo, revelamos a frustração de não tê-la ainda encontrado detalhada em nenhum documento oficial, nem, tampouco, em outras produções sobre o tema. Seria mais um clichê incorporado ao discurso renovador; um propósito desejado e não realizado? “Processos pedagógicos próprios”! Estariam relacionados ao modo peculiar com que cada povo educa seus membros? Certamente que sim! O que não está esclarecido é como esses procedimentos próprios da educação indígena adentrariam a escola e se expressariam na forma de educação escolar. Adotaria o professor indígena a mesma conduta de uma mãe, pai, ancião, pajé, rezador, ervateiro, cantor, líder, caçador, colhedor 54

ESCOLAS INDÍGENAS EM MATO GROSSO: INICIATIVAS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO SABER

de mel, pescador etc. para ensinar seus alunos? A resposta parece ser, novamente, sim! A questão a ser colocada é da possibilidade real desse novo “super herói” fazê-lo de forma satisfatória com o domínio de conhecimentos que dispõe. Quem o formou para tanto? De onde derivariam tamanho domínio? Não seria temerário esperar que tal prodígio ocorresse? Talvez, resida aí a escassez de experiências bem sucedidas nesse sentido. Talvez, seja essa a razão de tal propósito constar formalizado em quase todos os PPPs (Projetos Políticos e Pedagógicos), mas ainda não encontrar materialidade no “chão da aldeia”. Superar a escola colonial é fazer com que os “processos pedagógicos próprios” sejam sua expressão maior: sejam seu fundamento, seu chão e seu teto. E esse desafio cabe especialmente aos professores indígenas e às respectivas comunidades. Ninguém melhor que os membros das comunidades educativas específicas para protagonizarem esse desafio. Obviamente, podem contar com o apoio e participação do poder público e das instituições formadoras, porém, nesse caso, como atores coadjuvantes. Escola descolonizada é aquela que se difundiu e frutificou tendo como referência a pedagogia própria do seu povo. Não basta consolidar o espaço escolar: é preciso associá-lo aos meios virtuais e às mídias modernas. Algumas sociedades indígenas conheceram o vídeo antes do papel. Essa constatação, quase inusitada, relativiza, sobremaneira, a percepção indígena da escola, se comparada à história da sociedade moderna. O imaginário edificado há séculos sobre a “cultura do papel” nem chegou a se consolidar no interior de muitas aldeias e foi substituído por outras formas de aprendizado muito mais interessantes, dinâmicas e universais. Hoje, os meios de comunicação e de aprendizagem virtuais são uma realidade inexorável em quase todas as comunidades. Se considerarmos as culturas com pouca inserção no frenético mundo das “titulações” e “certificações” acadêmicas, perceberemos que o espaço institucional reservado à escola, seu status, prestígio e significado estão sendo relativizados. A escola indígena, recentemente instalada, disputa tempos e espaços com a televisão e suas novelas, futebol e desenhos; com a agilidade da internet e suas redes sociais; com os telefones celulares com sua comunicação on line. A maravilhosa virtualidade do mundo globalizado seduz muito mais do que a escola. Ou, dito de outra forma: o clique aqui informa e educa 55

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

muito mais do que o escute aqui, e carrega a vantagem se ser mais colorido, criativo, célere, encantador… Diferentemente do que ocorre na nossa sociedade, cuja organização reservou à escola um espaço relevante, as sociedades indígenas pouco dela precisaram ao longo dos séculos e pouco aproveitarão antes que seja substituída por outras instituições mais adequadas ou sedutoras. Porquanto, pensar na superação da escola colonial, supõe a sua “modernização” e associação a outros meios de (in)formação mais úteis, práticos e desejados, sem perder de vista as suas respectivas matrizes colonizadoras. Não bastam currículos escolares adequados: é preciso desenvolver políticas públicas convergentes com os interesses e necessidades indígenas. Depois de superados todos esses obstáculos, restam as demandas que se espraiam para além do âmbito escolar. Em Mato Grosso e em outros estados vizinhos, a pergunta inevitável é como descolonizar a escola indígena se a marca da região é a colonização permissiva? Aqui, não se trata apenas dos ideários coloniais, mas da sua materialização expressa nas rodovias, ferrovias, hidroelétricas, silos, desmatamento, agrotóxicos, rebanhos etc. que afetam, diretamente, as sociedades indígenas. Como há de se falar de escolas indígenas descolonizadas, sem associá-las aos temas ambientais, à gestão territorial, à utilização dos recursos naturais, à saúde, alimentação, enfim, aos desmandos econômicos e políticos que afetam o quotidiano desses povos e comunidades? É bem verdade que o poder público tem procurado amenizar esse quadro negativo por meio do “pacote de bondades” composto por cestas, vales, tíquetes, bolsas, aposentadorias etc. cuja eficácia limita-se a uma “cortina de fumaça”. Nesse sentido, não diferem das políticas sociais destinadas aos demais segmentos “em situação de vulnerabilidade”. Agregam-se a elas, os projetos econômicos financiados em áreas indígenas por órgão da cooperação internacional (PNUD, Governo Britânico, BIRD, Banco Mundial etc.), e teremos um desenho aproximado da denominada catequese moderna. Ao aderirem ao modelo de desenvolvimento ancorado em recursos públicos e projetos externos, as comunidades indígenas aderem, compulsoriamente, a um ‘pacote’ de medidas e restrições similares às outrora impostas pelas agências religiosas. Se as antigas escolas das missões ensejavam a conversão indígena a um deus-criador, os recursos 56

ESCOLAS INDÍGENAS EM MATO GROSSO: INICIATIVAS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO SABER

externos ensejam sua conversão a um deus-consumidor. Ambas as formas de ‘catequese’ são colonialistas e transformas os indígenas neófitos dependentes. Porquanto, a descolonização das escolas indígenas não será possível apenas com medidas intraescolares. O atual modelo de ocupação, desordenado e permissivo, é um afronte aos propósitos de uma escola descolonizada.

Considerações Finais Do que foi argumentado até aqui, podemos depreender que a reinvenção da Escola Indígena está conjugada à superação de dificuldades intra e extraescolares, sem as quais a descolonização terá pouco alcance. Como elemento externo às culturas indígenas, nascida do projeto colonial, a escola apresenta possibilidades tanto para promover a autonomia societária quanto para engendrar a sua dependência, uma vez que disponibiliza conteúdos energéticos (recursos, salários, equipamentos, etc.), organizativos (novas funções, instalações etc.) e informativos (novos conhecimentos) até então indisponíveis. Desde esta perspectiva, a escola indígena descolonizada, segundo o nosso imaginário, será aquela que, incorporada às comunidades, propiciará as condições materiais, a organização e as informações necessárias para atender suas necessidades específicas. Ou, dito de outra forma: serão aquelas que conseguirem exercer o controle sobre seus recursos, sobre seu “formato” e sobre os saberes a ela confiados. Sob essa percepção, no âmbito intraescolar, a comunidade educativa, o poder público e as agências formadoras precisam manter um diálogo qualificado e tomar decisões sobre o acesso, administração e aplicação dos recursos externos; sobre as formas de organização curricular e sobre as estratégias de formação continuada. No âmbito extra-escoltar, a descolonização das escolas indígenas vem associada a medidas voltadas à consolidação da autonomia indígena por meio da implantação de políticas públicas que viabilizem as condições de existência dos povos e de suas culturas, conforme estabelecido na Carta Magna brasileira. Uma vez assegurado o direito a que cada sociedade desenvolva o seu projeto de vida e de futuro, a escola indígena, juntamente com outras instituições modernas, poderão se transformar em importantes ferramentas para uma existência segura, pacífica e feliz.

57

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Referências Bibliográficas BATALLA, Guillermo Bonfil. Pensar nuestra cultura. Ciudad de México: Alianza Editorial, 1992. __________. México profundo - una civilización negada. Ciudad de México: Editorial Grijalbo, 1989. __________. La teoría del control cultural en el estudio de procesos étnicos. Ciudad de México: Papeles de la Casa Chata n. 3, 1987. __________. Do indigenismo da revolução à antropologia crítica. In JUNQUEIRA & CARVALHO (Orgs.). Antropologia e indigenismo na América Latina. S. Paulo: Cortez, 1981. BICUDO, Maria Aparecida et SILVA JUNIOR, Celestino Alves da (orgs). Formação do educador - dever do Estado, tarefa da Universidade. Vols. 2 e 3. S. Paulo: Editora Unesp, 1996. BLAKE, Carol. Escolarizando o mundo: o último fardo do homem branco. Produção e direção de Carol Blake. Estados Unidos, Índia, 2010. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=6t_ HN95-Urs. Acesso em 15 ago. 2013. BRAND, Antonio. O impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani; os difíceis caminhos da Palavra. Tese de doutorado, Porto Alegre: PUC/RS, 1998. __________. Autonomia e globalização, temas fundamentais no debate sobre educação escolar indígena no contexto do Mercosul. Dourados (MS): Conferência no “Primeiro Encontro de Educação Escolar Indígena da América Latina”, 1998b. CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. S. Paulo: Paz e Terra, 2000. CIMI. Um diálogo com Paulo Freire sobre educação indígena. Cuiabá: CIMI – Regional de Mato Grosso, 1982. CLASTRES, Pierre. Sociedade contra o estado. Pesquisas de antropologia política. Tad. de Theo Santiago, Rio de Janeiro : Francisco Alves. 1988.

58

ESCOLAS INDÍGENAS EM MATO GROSSO: INICIATIVAS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO SABER

DIAS DA SILVA, Rosa Helena. A autonomia como valor e a articulação de possibilidades: um estudo do movimento dos professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, a partir dos seus encontros anuais. Tese de doutoramento, S. Paulo: Programa de Pós-Graduação em Educação, USP, 1997. FRANCHETTO, Bruna. O papel da educação escolar no processo de domesticação das línguas indígenas pela escrita. Mesa Redonda “Populações indígenas educação e cidadania”. São Luiz: 47ª SBPC, julho de 1995. GIDDENS, Anthony. Política, sociologia e teoria social. São Paulo: Unesp, 1998. GOODY, Jack. A lógica da escrita e a organização da sociedade. Lisboa: Edições 70, 1986. GRIZZI, D. & SILVA, A. A filosofia e a pedagogia da educação indígena; um resumo dos debates. In MEC. Diretrizes para a política nacional de educação escolar indígena. Cadernos de educação básica, série institucional, vol. 2. Brasília: MEC, 1993. GRUPIONI, Luís Donisete. De alternativo a oficial: sobre a (im) possibilidade da educação escolar indígena no Brasil. 10º COLE, Campinas: Unicamp, 1995. GUIMARÃES, Susana M. G. Aquisição da escrita e diversidade cultura: a prática de professores Xerente. Dissertação de mestrado, Brasília: UnB, 1996. JUNG, Ingrid, 1992. Conflicto cultural y educación: el proyecto de educación bilíngüe Puno/Perú. Quito: EDI/GTZ/Abya-Yala. JUNQUEIRA, Carmem et CARVALHO, Edgard (Orgs). Antropologia e indigenismo na América Latina. S. Paulo: Cortez Editora, 1981. LANDER, Edgardo (org.) Colonialidade do saber eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. LEÓN-PORTILLA, Miguel. A conquista da América Latina vista pelos índios. Petrópolis: Vozes, 1991. MAHER, Tereza L. C. M. Ser professor sendo índio: questões da língua(gem) e identidade. Tese de Doutoramento, Campinas: Unicamp, 1996. 59

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

MARTINEZ, Rodrigo. La educación como identificación cultural. Quito: Abya-Yala/SEIC, 1994. MATURANA, Humberto. Transdiciplinaridade e cognição. In Educação e Transdisciplinaridade. S. Paulo: Augôsto MIS/UNESCO, 1999. MEC. Diretrizes para a política nacional de educação escolar indígena. Cadernos de educação básica, série institucional, vol. 2. Brasília: MEC, 1993. __________. Plano decenal de educação para todos - 1993-2003. Brasília: MEC, 1994. __________. Em Aberto. Experiências e desafios na formação de professores indígenas no Brasil. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. Brasília: MEC/INEP, 2003. MUÑOZ, Héctor. “Política pública y educación indígena escolarizada en América Latina”. In: SECCHI, D. (org). Ameríndia – tecendo os caminhos da educação escolar indígena. Cuiabá: SEDUC/CEI/MT/ CAIEMT, 1998. MUÑOS, Héctor & LEWIN, Pedro. El significado de la diversidad lingüística y cultural. México: UNAM, UNAH, 1990. OIT (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO). Pueblos indígenas y tribales: guía para la aplicación del convenio núm. 169 de la OIT. Genebra: OIT, 1996. OLIVEIRA FILHO João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”: situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Rio de Janeiro: MANA, Vol. 4, nº 1, pp. 47-77. 1998. OLSON, David. O mundo do papel - as implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. S. Paulo: Ática Editora, 1997. QUIJANO, Aníbal. Modernidad, identidad y utopia en América Latina. Lima: Sociedad y Política Ediciones, 1998. QUIJANO, Aníbal. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Revista Novos Rumos, São Paulo: Instituto Astrojildo Pereira, ano 17. n. 34.p. 4-28, 2002. RIBEIRO, Darcy. As Américas e a civilização. Petrópolis: Vozes, 1977.

60

ESCOLAS INDÍGENAS EM MATO GROSSO: INICIATIVAS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO SABER

SECCHI, Darci. Professor indígena: a formação docente como estratégia de controle da educação escolar indígena em Mato Grosso. Tese de doutoramento. S. Paulo: PEPG PUC/SP. 2002. SECCHI, Darci et FURTADO, Terezinha. Coletânea de educação escolar indígena. UdUFMT: Cuiabá, 2009. SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidades terminais: as transformações na política da pedagogia e na pedagogia da política. Petrópolis: Vozes, 1996. SILVA, Márcio F. da. A conquista da escola. Educação escolar e movimento de professores indígenas no Brasil. In Em Aberto. Brasília: MEC/INEP, 1994. ___________. Educação e sociedades indígenas; subsídios aos projetos demonstrativos para populações indígenas. S. Paulo: FFLHC – USP, 1999. TERENA, Marcos. Cidadãos da selva: a história contada pelo outro lado. Rio de Janeiro: Gráfica JB, 1992. TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros - a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. __________. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1984. TORRES, Maristela. Interculturalidade e educação: um olhar sobre as relações interétnicas entre alunos Iny e a comunidade escolar na região do Araguaia. Cuiabá: EdUFMT, 2007. (Coleção Educação e Relações Raciais). UNIVERSIDAD de Cuenca. Licenciatura Andina en Educación Intercultural e Bilingüe: deseño curricular para la formación de formadores. Quito: EB-GTZ/DINEIB – UNICEF-UNESCO, 1997. WALSH, Catarine. Interculturalidad y colonialidad del poder. un pensamiento y posicionamiento “otro” desde la diferencia colonial. In: CASTRO-GÓMEZ, S. y GROSFOGUEL, R. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. 61

UMA EXPERIÊNCIA GRATIFICANTE: EDUCAÇÃO E PERCEPÇÃO AMBIENTAL ENTRE ...

UMA EXPERIÊNCIA GRATIFICANTE: EDUCAÇÃO E PERCEPÇÃO AMBIENTAL ENTRE ESTUDANTES INDÍGENAS Germano Guarim Neto1 Elias Januário2 Resumo: A experiência vivenciada durante a socialização e reflexão sobre os Fundamentos da Educação Ambiental com estudantes indígenas representantes de diferentes etnias no Curso de Licenciatura para Professores Indígenas da Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus de Barra do Bugres, a partir de atividades diretamente relacionadas com o conhecimento da biodiversidade, é narrada e comentada pelos autores no intuito de contribuir com a temática voltada para um público alvo específico. A intensidade das experiências é mostrada e a sensibilidade das propostas desenvolvidas em sala de aula mostraram que os estudantes indígenas, como era de esperar, têm um universo amplo a respeito do meio ambiente e seus pressupostos oriundo de gerações pretéritas, entendendo e reconhecendo a importância do conhecimento dos mesmos e as respectivas percepções sobre o ambiente em que vivem. Palavras-chave: Educação e percepção ambiental. Educação Escolar Indígena. Ensino de Ciências. Abstract: (A rewarding experience: education and environmental perception among indigenous students) - The lived experience during socialization and reflection on the Fundamentals of Environmental Education with representatives of different ethnic groups in the Degree Course for Indigenous Teachers University of Mato Grosso state, Campus of Barra do Bugres with indigenous students from activities directly related with knowledge of biodiversity is narrated and commented by the authors in order to contribute to the subject faces a specific target audience. The intensity of the experiments is shown and the sensitivity of the proposals developed in the classroom showed that indigenous students, as expected, have a broad universe about the environment and its assumptions come from preterit generations understanding and recognizing the importance of knowledge them and their perceptions of the environment in which they live. Keywords: Education and environmental perception. Indigenous School Education. Science Teaching. 1 Instituto de Biociências. Departamento de Botânica e Ecologia. Universidade Federal de Mato Grosso. 78060-900 – Cuiabá – MT. [email protected] 2 Antropólogo, Historiador, Professor Aposentado pela UNEMAT e Presidente do Instituto Merireu. [email protected]

63

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Introdução A Educação Ambiental apresenta faces e nuances significativas no contexto da inserção de pessoas nas questões direta e indiretamente relacionadas ao meio ambiente e seus pressupostos. Por outro lado a Educação Escolar Indígena fornece fortes elementos é uma área bastante instigante e que propicia momentos de ricos para se aprofundar nas necessárias reflexões sobre a formação de Professores indígenas, a atuar nas suas aldeias. Autores como Paes (2002) e Souza (2003) salientam aspectos interessantes sobre a temática considerando povos indígenas, assim como Santos; Carneiro-Tomazello (2005) discutem a Educação Ambiental para índios abordando a temática em um contexto indagativo se realmente é uma educação necessária. Por outro lado, Gavazzi (2001) considera relevantes situações a respeito da educação intercultural e os professores indígenas. Esta abordagem foi muito significativa para o contexto das nossas inserções entre os estudantes participantes da Disciplina Fundamentos da Educação Ambiental e. Guarim Neto; Januário (2010), em uma primeira aproximação com esta temática mostram a experiência dialógica da Educação Ambiental e etnias indígenas e por outro lado, Ferrara (1993) aborda e discute de modo geral pontos reflexivos da percepção ambiental. Guerrero (2004) refere-se à importancia da educação ambiental e as culturas locais em um mundo já globalizado. Nessa Disciplina compartilhada a ementa sugerida contemplava conteúdo diversificado (GUARIM NETO; JANUÁRIO, 2010) voltados para variados temas e entre eles o Etnoconhecimento: saber tradicional, saber local e os elos com a Educação e Percepção ambiental. Os pressupostos das percepções de Merleau-Ponty (2006) foram substanciais para a nossa interlocução com os estudantes assim como as indicações contidas em Morin (2004) e referidas em Vieira et al. (2012). Então, isto posto procedeu-se ao desenvolvimento do conteúdo previsto utilizando aulas teóricas, aulas práticas, produção de listas e de textos, apresentação de seminários, depoimentos orais, discussões em grupos, exposição dos trabalhos. Assim, o objetivo geral da Disciplina foi o de desenvolver atividades teóricas e práticas considerando a Educação Ambiental como o elo entre os saberes ambientais e culturais, por meio da percepção que é inerente a cada ser humano, em seu espaço e em seu tempo.

64

UMA EXPERIÊNCIA GRATIFICANTE: EDUCAÇÃO E PERCEPÇÃO AMBIENTAL ENTRE ...

Metodologia A Disciplina Fundamentos da Educação Ambiental foi ministrada no período de 19 a 23 de janeiro de 2009 com carga horária de 40 horas-aula. O universo de estudantes, homens e mulheres indígenas estava constituído por 43 membros representando as etnias Aweti, Bororo, Tapirapé, Paresi, Terêna, Umutina, Xavante, Mebêngôkre, Kayabi, Zoró, Apiaká. Dessa forma a socialização plena do conteúdo foi feita por meio de diferentes técnicas, cujas atividades ora consideradas nesta comunicação são apresentadas e destacadas a seguir: - Preparação de um texto: na minha percepção quais são os elementos indicadores para a Educação Ambiental? - Preparação de uma lista com 30 ou mais componentes do meio ambiente onde vivo (as plantas e os bichos de nossas aldeias e/ou de nosso conhecimento). - Preparação de outra lista, considerando outros elementos da natureza também percebidos. Vale salientar que estas atividades foram efetivadas em sala de aula e compartilhadas entre todos os estudantes da Disciplina, com apresentação individual, em grupo ou por meio de exposição de cartazes previamente preparados e afixados em local de destaque.

O que nos deixaram os estudantes: um aprendizado a) Sobre os textos retirados do material produzido pelos estudantes abordando as percepções e interpretações pessoais sobre a Educação e Percepção Ambiental, Meio Ambiente e seus pressupostos: “Somos uns dos mais precisam da preservação do meio ambiente para ter uma vida saudável” (Nilce, Terena). “Existem os problemas ambientais nas reservas indígenas” (Basílio, Xavante). “Se um dia acabar flora e fauna, os que vierem depois de nós, as novas gerações, não verão a natureza” (Vanderlei, Paresi). “No meu ponto de vista um dos maiores praticantes e preservadores do meio ambiente são as com unidades indígenas porque retiram da natureza só o que precisam para alimentos” (Micael, Terena).

65

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

“Etnias indígenas sofrem com os avanços do desmatamento e da poluição” (Juscinei, Bororo). “O meio ambiente existe em todo lugar, mas formas diferentes, uns conservados outros mudados, alterados do seu natural” (Eziel, Bororo). “Quando falarmos de meio ambiente estamos falando de tudo aquilo que nos pertence. Exemplos: o ser humano, a natureza, a água, o solo e outros que compõem o meio ambiente” (Rosiney, Umutina). “Mas quando o meio ambiente é degradado não tem um ambiente bom para os animais viverem e se reproduzir” (Arlindo, Kayabi). “Pois temos que preservar o nosso meio ambiente para que possa gerar uma boa qualidade de vida” (Koria, Tapirapé). “O lixo que a gente joga em qualquer parte da nossa aldeia prejudica a saúde e faz mal a saúde” (Edmilson, Zoró).

b) Sobre as plantas (parte da biodiversidade revelada): entre as plantas que foram listadas aparecem tanto as nativas como as exóticas: jabuticaba, piqui, pitomba, caju, manga, pariri, buriti, açaí, goiaba, jutaí, jatobá, bocaiúva, taperebá, siriguela, coco-da- Bahia, jaca, murici, mamão, banana, mandioca, melancia, milho, laranja, poça, amoreira, laranjalima, limão, tamarindo, acerola, abacaxi, amora, pitanga, maracujá, cana, mangaba, bacaba, marmelada, aroeira, figueira, louro, cumbaru, ximbuva, lixeira, cedro, carvão, tarumã, angico, peroba, ipê, jenipapo, ata-do-mato, tucum, castanha, goiaba-do-mato, mogno, oiti, urucum, inajá, ingá, uxi, cacau, amendoim, copaíba, itauba, angelim, imbira, timbó, bambu, babaçu, seringueira, amescla, champanhe, cambará, garapeira, batata, milho, cará, melancia entre outras. Este elenco de plantas mostra a riqueza do conhecimento indígena sobre plantas e suas utilizações. c) Sobre os animais (parte da biodiversidade revelada): foram relacionados animais como anta, onça, capivara, papagaio, arara, pato, macaco, cachorro, tatu, galinha, mutum, jacaré, cobra, borboleta, escorpião, paca, aranha, porco, peixe, jabuti, ema, anta, siriema, tamanduá, lobo-guará, lobinho, gavião, raposa, queixada, jaguatirica, caetitu, periquito, perdiz, jacó, nambu, coruja, tucano, sabiá, pato, beija-flor, curiango, pica-pau, jabuti, pacu, traíra, lambari, tucunaré, jaraqui, curimbatá, pintado, dourado, 66

UMA EXPERIÊNCIA GRATIFICANTE: EDUCAÇÃO E PERCEPÇÃO AMBIENTAL ENTRE ...

bagre, peixe-elétrico, pirarucu, pirara, boto, sucuri, tartaruga, veado, quati, garça, tuiuiú, urubu, jaó e outros. Aqui também a riqueza do conhecimento é revelada. d) Sobre outros elementos da natureza percebidos: foram evidenciados os rios, matas, córregos, solo, pedras, clima, lago, cerrado, canoas, casas e festas tradicionais, pesca, artesanato, rochas além de outros elementos introduzidos como viaturas, moto, igreja, posto de saúde, futebol, energia elétrica e etc. Como afirmam Guarim Neto; Januário (2010) “a riqueza do etnoconhecimento estava ali estampada, apesar das pequenas listas preparadas. O saber tradicional exposto revelava a expressão maior da riqueza dos povos indígenas....”

Comentários Finais O conhecimento ambiental indígena ora divulgado parcialmente está impregnado de contribuições ancestrais que se perpetuam e atingem os nossos dias, revelando um universo importante e que deve ser valorizado, respeitado, mantido e preservado. Nesse universo figuram tanto elementos do componente biótico como do abiótico, permeado por uma cultura milenar. Significados vários são atribuídos aos elementos do meio ambiente, entretanto é muito claro que os estudantes que participaram da pesquisa têm a noção exata do que é um ambiente ainda “limpo” e aquele já poluído como destacaram em vários depoimentos colhidos. É inegável a marca que esta experiência nos deixa, tornando-nos até mais atentos e ainda mais sensibilizados com as causas e questões ambietais, culturais, sociais, educativas e biológicas em geral.

Agradecimentos Os autores externam seus agradecimentos à valorosa e eficiente equipe do Curso de Licenciatura para Professores Indígenas da Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus de Barra do Bugres pela atenção e colaboração. Aos nossos Estudantes Indígenas que prontamente atenderam ao chamamento e participaram com prazer das atividades. Gratos pelo aprendizado mútuo. 67

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Referências FERRARA, D’A. L. Olhar periférico – informação, linguagem e percepção ambiental. São Paulo: EDUSP, 1993. GAVAZZI, R. A. Às margens do rio: educação intercultural e professores indígenas. Revista do Departamento de Geografia, v. 14, pp.33-38, 2001. GUARIM NETO, G.; JANUÁRIO, E. Diálogos da Educação Ambiental: uma experiência com etnias indígenas. Cadernos de Educação Escolar Indígena, v.8, n.1, pp.76-92, 2010. GUERRERO, O. M. B. La importancia de la educación ambiental y las culturas locales en un mundo globalizado. Ambiente e Educação, v.9, pp.29-37, 2004. MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006. MORIN, E. Saberes globais e saberes locais: o olhar transdisciplinar. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. PAES, M. H. R. A questão da língua na escola indígena em aldeias Paresi de Tangará da Serra-MT. Revista Brasileira de Educação, 2002. SANTOS, E. T. C. dos; CARNEIRO-TOMAZELLO, M. G. Educação Ambiental para índios: uma educação necessária? Enseñanza de las Ciências, VII Congreso. No. Extra: pp.1-5, 2005. SOUZA, H. C. Educação superior para indígenas no Brasil (mapeamento provisório). Relatório... IES/2003/ed/pi/13. Tangará da Serra: Mato Grosso, Brasil, 2003. VIEIRA, F. C. B. ; KALHIL, J. B.; RUIZ, M. A. Percepção ambiental: contribuições e práticas indígenas para o ensino de ciências no baixo Rio Negro. Revista Científica ANAP Brasil, v. 5, n. 5, p. 59-68, 2012.

68

PALAVRAS –BO EM KARAJÁ: COMO TRANSMUTAR ANÁLISES LINGUÍSTICAS FORMAIS EM ...

PALAVRAS –BO EM KARAJÁ: COMO TRANSMUTAR ANÁLISES LINGUÍSTICAS FORMAIS EM MATERIAL PEDAGÓGICO Cristiane Oliveira da Silva1 Luiz Alexandre Mattos do Amaral2 Marcus Maia3 Resumo: O artigo apresenta um exemplo de procedimento no âmbito do Projeto de Documentação Linguística (PRODOCLIN -Museu do Índio/ UNESCO) em que se traduzem, em conjunto com professores e pesquisadores indígenas, análises linguísticas formais existentes   sobre construções e palavras interrogativas na língua indígena brasileira Karajá (tronco MacroJê), em material pedagógico relevante para o ensino de língua, seguindo metodologia específica (Murphy, 2004; Alonso Raya et al, 2008). Palavras-chave: Linguística Aplicada, Gramática pedagógica, língua Karajá, construções interrogativas   Abstract: This article presents how formal linguistic analyses of interrogative constructions and WH-words in the Brazilian indigenous language Karaja (Macro-Je stock) can be translated into relevant pedagogical materials for language teaching, following a specfic applied linguistics methodology (cf. Murphy, 2004; Alonso Raya et al, 2008). This methodology is currently in use in the Linguistic Documentation Project (PRODOCLIN - The Indian Museum/UNESCO) and involves the active participation of indigenous teachers and consultants.  Keywords: Applied Linguistics, Pedagogical Grammar, Karaja language, interrogative constructions

Introdução O desenvolvimento de materiais pedagógicos para o ensino de língua materna costuma ser uma das principais solicitações de professores e alunos das escolas indígenas do Brasil. A elaboração de materiais específicos para o ensino de línguas indígenas é uma tarefa complexa e dispendiosa que requer que se superem barreiras: (i) geográficas, dada à dimensão 1 Doutoranda em Linguística pela UFRJ, Coordenadora do Projeto Gramática Pedagógica do Karajá, Bolsista do CNPq 2 Prof. Dr. de Linguística no Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Massachusetts Amherst (UMass) - [email protected] 3 Prof. Associado IV de Linguística do Departamento de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Coordenador do Programa de Pós-graduação em Linguística da Faculdade de Letras da UFRJ e Pesquisador do CNPq - [email protected]

69

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

do território brasileiro e ao difícil acesso a muitas das terras indígenas por parte dos linguistas e educadores; (ii) orçamentárias, pois requer um planejamento detalhado que inclua viagens a campo, treinamento de pessoal, recursos gráficos e de distribuição; (iii) da escassez de estudos linguísticos adequados, uma vez que há em torno de 180 línguas indígenas, pertencentes a diferentes troncos e famílias, em sua maioria ainda insuficientemente descritas e analisadas; (iv) da limitação das práticas pedagógicas e da linguística aplicada, pois, embora algumas línguas já disponham de artigos científicos relevantes, analisando questões linguísticas e educacionais, ainda há um abismo considerável entre o que é produzido no âmbito acadêmico e o que daí se transpõe em materiais que possam, efetivamente, auxiliar o trabalho dos professores de língua das aldeias. No presente artigo, explicitaremos como traduzimos, em conjunto com professores e pesquisadores indígenas, análises linguísticas formais existentes sobre construções e palavras interrogativas na língua indígena brasileira Karajá (tronco Macro-Jê), em material pedagógico relevante para o ensino de língua, seguindo uma metodologia específica, adotada por linguistas aplicados (Murphy, 2004; Alonso Raya et al, 2008). Para tal, apresentaremos a metodologia utilizada para a confecção das unidades preliminares, que integrarão a primeira Gramática Pedagógica da Língua Karajá, focando na unidade “aõbo~anobo” (o que), integrante da seção da gramática sobre “Palavras Interrogativas”. Este trabalho está inserido no Projeto de Documentação de Línguas indígenas Brasileiras (PRODOCLIN), ora em curso no Museu do Índio (FUNAI-RJ), cuja etapa de produção de gramáticas pedagógicas para línguas indígenas contempla, no momento, cinco etnias, a saber, Karajá, Wapichana, Paresi, Ikpeng e Kawaiwete. O PRODOCLIN é um projeto de documentação linguística, financiado pela UNESCO e pela FUNAI, que teve início no ano de 2009, tendo passado, desde então, por três etapas: (i) coleta de material (áudio e vídeo de diferentes gêneros de fala, além da aplicação de questionários sociolinguísticos nas aldeias); (ii) documentação linguística (organização dos materiais coletados por meio de softwares específicos como ELAN, TRANSCRIBER e IMDI); (iii) produção de material (projeto piloto de dicionário enciclopédico, gramática descritiva, plataformas de mídias digitais/sociais). O projeto encontra-se, agora, exatamente em sua quarta etapa: a produção de gramáticas pedagógicas. Para esta fase, é fundamental aproveitarem-se os bancos de dados, resultantes das etapas prévias do Projeto, para se fazer, junto com os professores indígenas, uma releitura desses materiais, a fim de que possam vir a ser utilizados em ambiente escolar, auxiliando as práticas pedagógicas que enfoquem o uso da língua materna. Um dos objetivos do projeto é o de promover o desenvolvimento de um conhecimento reflexivo de estruturas linguísticas, que auxilie o aprimoramento de habilidades de expressão oral 70

PALAVRAS –BO EM KARAJÁ: COMO TRANSMUTAR ANÁLISES LINGUÍSTICAS FORMAIS EM ...

e escrita, estimulando alunos e professores a utilizarem suas línguas nativas em contextos hoje dominados pela língua nacional. O projeto de Gramáticas Pedagógicas em Línguas Indígenas tem previsão de conclusão no segundo semestre de 2015 e as cinco gramáticas produzidas devem ser lançadas em 2016.

Fundamentos teóricos e metodológicos para a criação de uma Gramática Pedagógica Muitos pesquisadores da área de linguística aplicada já têm chamado a atenção para a pertinência de se estabelecerem conexões mais claras entre as formas linguísticas trabalhadas em sala de aula e seus usos em contextos comunicativos (Willis and Willis, 1996; Gass and Mackey, 2007; entre outros), evitando-se assim metodologias que fazem uso excessivo de metalinguagem técnica, desconectada do uso linguístico. O excesso de informação gramatical formal nas aulas de língua parece não ser eficiente nem para o processo de letramento, nem para a aquisição bilíngue (Antunes, 2007; Waal, 2009). Por esse motivo, diversos pesquisadores que trabalham com instrução gramatical apontam que o ensino de línguas deve focalizar primordialmente o uso da língua destacando uma dada forma linguística (input enhancement, cf. VanPatten, 2007) e objetivando, dessa forma, alcançar uma reflexão profunda da estrutura gramatical apresentada por meio de práticas interativas dentro e fora da sala de aula (Swain, 2005), podendo, assim, criar oportunidades para um manejo mais consciente dos temas gramaticais dentro de atos comunicativos . Com base nesses pressupostos teóricos, a equipe do PRODOCLIN iniciou, em 2013, a quarta etapa do programa, cujo objetivo é, justamente, a aplicação de metodologias recentes, como as que aqui esboçamos, para a confecção de gramáticas pedagógicas, adaptando-as ao ensino de primeira e de segunda línguas, em áreas indígenas brasileiras, tendo em vista os diferentes contextos multilíngues de cada uma das cinco etnias integrantes desta iniciativa pioneira. Busca-se, então, desenvolver um trabalho que insira e apoie os professores de língua das aldeias, levando-os a refletir, junto com os linguistas e antropólogos da equipe, sobre as estruturas linguísticas abordadas nas gramáticas. Mais do que um material que facilitará o ensino em sala de aula, a produção dessas gramáticas pedagógicas tem o potencial de vir a auxiliar também no desenvolvimento de programas de língua materna com conteúdos pertinentes para cada ciclo escolar, ainda inexistentes, por exemplo, nas escolas da etnia Karajá, de acordo com o que se levantou através do questionário sociolinguístico-educacional aplicado em várias aldeias, por pesquisadores indígenas do projeto, em 2013. No caso da Gramática Pedagógica, seu uso impactará primeiramente a instrução de 71

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

língua materna, no segundo ciclo do ensino fundamental e no ensino médio, contribuindo, também, de modo importante, para a manutenção das línguas indígenas nos sistemas escolares das comunidades. Em última análise, este é um trabalho que se pretende que possa somar esforços para a preservação e para a revitalização linguística e cultural desses povos, em sentido mais amplo. No âmbito do PRODOCLIN, professores indígenas e linguistas vêm interagindo produtivamente para confeccionar as unidades das gramáticas, usando uma abordagem pedagógica comumente explorada em materiais didáticos para o ensino de língua, como em Murphy (2004) e Alonso Raya et al (2008). O processo de produção das unidades foi estabelecido pelo consultor geral do projeto, Prof. Luiz Amaral (UMass), e consiste em uma sequência de sete etapas: (i) isolar uma forma gramatical específica, (ii) criar uma longa lista de exemplos usando esta forma; (iii) agrupar os exemplos mais prototípicos de uso; (iv) criar contextos comunicativos (histórias, diálogos, descrições) nos quais apareça a forma a ser estudada; (v) realçar e explicar o uso da forma gramatical na língua alvo evitando a terminologia técnica usada por pesquisadores acadêmicos; (vi) descrever outros exemplos de uso para que o leitor atente para os diferentes contextos de expressão da forma; (vii) preparar exercícios para uma prática contextualizada. Esta metodologia de trabalho foi utilizada pioneiramente em uma língua indígena brasileira durante a oficina piloto para elaboração da primeira gramática da língua Karajá, que será descrita na seção 2 abaixo4.

Mãos à obra: Oficina piloto para elaboração da primeira Gramática pedagógica da Língua Karajá A construção das unidades preliminares aconteceu durante oficina experimental realizada em campo na aldeia Hawalò de 10 a 12 de julho de 2012. Nesta ocasião, convidamos os professores de língua das aldeias Hawalò, JK, Btoiry e Krehawa e contamos com a presença de oito professores nativos. A oficina foi ministrada pelo professor Luiz Amaral em parceria com os membros da equipe Karajá, a saber, Cristiane Oliveira, Chang Whan e Marcus Maia. Com três dias de duração, a oficina foi divida entre as seguintes etapas: Dia 1: Apresentação do projeto; questões pedagógicas e tipos de gramática 4 Além da oficina piloto Karajá, a metodologia aqui descrita também foi usada em uma oficina Wapichana que ocorreu em Roraima em 2012. Após essas duas oficinas, O PRODOCLIN promoveu a primeira Oficina de Confecção de Gramáticas Pedagógicas em Línguas Indígenas em Saquarema-RJ, em julho de 2013. Em julho de 2014, acontece a segunda oficina do projeto.

72

PALAVRAS –BO EM KARAJÁ: COMO TRANSMUTAR ANÁLISES LINGUÍSTICAS FORMAIS EM ...

Dia 2: Como montar uma gramática pedagógica e propostas de unidades Dia 3: Desenvolvimento e apresentação das unidades preliminares No segundo dia de oficina, apresentamos aos professores uma proposta de organização para a elaboração da Gramática, que consiste em agruparem-se unidades em seções. As unidades são formadas basicamente pela exploração de uma forma gramatical por meio de três instâncias metodológicas: apresentação, contextualização e prática. As seções são o agrupamento das unidades de natureza gramatical semelhante, por exemplo: verbos, nomes, modificadores dos verbos, modificadores dos nomes, posposições. No que tange ao PRODOCLIN, cada uma das cinco línguas abordadas apresenta propriedades particulares que irão guiar a organização das seções resultando, ao fim do projeto, em gramáticas pedagógicas com índices distintos, mas que seguem um mesmo princípio metodológico. Sob a orientação e supervisão da equipe, 8 unidades foram desenvolvidas pelos participantes, na oficina Karajá: posposição ò; posposição -rbi; tempo futuro dos verbos -kre; tempo passado dos verbos –re; prefixos marcadores de pessoa (regular); prefixos marcadores de pessoa (irregular); palavra interrogativa aõbo~anobo; palavra interrogativa mobo. Os professores trabalharam em duplas e desenvolveram, para cada unidade, a apresentação e a contextualização dos tópicos gramaticais escolhidos em forma de diálogos e/ou pequenos textos acompanhados de ilustrações. Os exercícios foram elaborados, seguindo-se uma progressão no grau de dificuldade, dos mais controlados aos mais livres. Após a preparação das unidades, que seguiram as sete etapas básicas descritas na seção anterior, os materiais resultantes foram apresentados pelas duplas ao grupo de trabalho, que contribuiu com comentários e sugestões. Para entendermos como as descrições formais da língua foram “traduzidas” em uma abordagem pedagógica, apresentaremos, na próxima seção, a análise da palavra aõbo e de outras palavras interrogativas em Karajá, para, em seguida, demonstrar como a unidade da gramática pedagógica apresenta esse material.

Descrição do uso da palavra aõbo em Karajá5 Existem, pelo menos, dois tipos de construções interrogativas nas línguas: as perguntas cuja resposta pode ser um “sim” ou um “não” e as perguntas com palavras interrogativas, que não podem ter como resposta 5 Esta seção baseia-se, fundamentalmente, nas análises desenvolvidas em Maia et alii (2000) e em Maia (2010) .

73

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

apenas um “sim” ou um “não”, mas que requerem alguma informação sobre os participantes do evento ou sobre suas circunstâncias. Na língua Karajá, as perguntas do tipo sim/não são identificadas pela palavra aõbo, que aparece sempre como segundo constituinte da oração. Compare, por exemplo, a frase declarativa em (1), com a frase interrogativa sim/não, em (2): Declarativa

Interrogativa

a-biòwa orera-my robira ahu-ki

a-biòwa aõbo orera-my robira ahu-ki?

2-amigo jacaré-Posp ver lago-em “teu amigo viu um jacaré no lago”

2-amigo INT jacaré-Posp ver lago-em “teu amigo viu um jacaré no lago?”

As duas frases são quase idênticas, diferindo apenas pela presença da palavra aõbo, na frase interrogativa. Assim, quando queremos fazer uma pergunta do tipo sim/não em Karajá, basta colocarmos em segunda posição de constituinte, na frase declarativa, a palavra aõbo. Observe que a palavra aõbo pode ser decomposta em duas partes ou morfemas: aõ + bo. O morfema aõ aparece em outras palavras, tais como aõna “coisa”, aõni “espírito, tipo de coisa”. O morfema –bo também aparece em outras palavras interrogativas, em Karajá, justamente aquelas que usamos em construções para fazer o segundo tipo de pergunta de que falamos acima: as interrogativas que não podem ser respondidas com “sim”ou com “não”, mas que requerem que se dê uma informação como resposta. Nesse caso, a palavra interrogativa aparece, geralmente, em primeira posição na frase. Os exemplos a seguir ilustram duas perguntas interrogativas desse tipo:



(3)Interrogativa de coisa não humana:

(4) Interrogativa de pessoa:

aõbo haloè rirubunyra ahu-ki?

mõbo haloè rirubunyra ahu-ki?

O que onça matou lago-em

Quem onça matou lago-em

“O que a onça matou no lago?”

“Quem a onça matou no lago?”

Qual a diferença entre as interrogativas (3) e (4)? As duas perguntas só diferem pela palavra interrogativa, no início das frases. A resposta para a pergunta (3) poderia ser, por exemplo, õri inatxi “duas antas”, mas a pergunta (4) teria que ser respondida, por exemplo, por ixyju inatxi “dois índios bravos” ou por um nome de pessoa. Isso ocorre porque a palavra interrogativa mõbo, além de conter a partícula interrogativa -bo, é também formada pelo morfema mõ, que indica pessoa. O quadro abaixo apresenta um conjunto de palavras interrogativas ou palavras -BO em Karajá. Note 74

PALAVRAS –BO EM KARAJÁ: COMO TRANSMUTAR ANÁLISES LINGUÍSTICAS FORMAIS EM ...

que, na composição interna de várias delas, pode-se identificar claramente, não só o traço –BO, interrogativo QU6, mas também os morfemas que indicam, coisa, pessoa, lugar, tempo:

aõ-bo coisa-QU “o que”

mõ-bo pessoa-QU quem”

ti-ki-bo lugar-QU “onde”

ti-u-bo tempo-QU “quando”

Quadro 1 - Palavras BO de composição transparente em Karajá

Em outras palavras interrogativas –BO, os morfemas constituintes não são tão claramente identificáveis, tais como timybo “como”, tiwàsebo “quantos” ou aõherekibo “por que”, mas, o morfema –BO está sempre presente. Para concluir esta seção do artigo, que apresenta a análise das palavras –BO, em Karajá, queremos chamar a atenção do leitor para duas questões: 1. Pode-se utilizar a palavra aõbo que marca as interrogativas sim/ não concomitantemente com as palavras interrogativas -BO, em interrogativas informacionais? 2. Como as palavras interrogativas -BO se compõem com posposicões, formando constituintes equivalentes a sintagmas preposicionais do português como “para que”, “com que”, “de que”, etc? Para responder a primeira questão, vamos inicialmente comparar duas frases em Karajá, como (5) e (6): (5) Kai aõbo temyta?

(6) Aõbo kai temyta?

você INT pegou

o que você pegou

“Você pegou?”

“O que você pegou?”

Note que a resposta à frase (5) poderia ser kohe “sim” ou kõre “não”, referindo-se, por exemplo a algum peixe, em uma pescaria. Já, na frase (6), a resposta poderia ser, por exemplo hariwa sohoji “um pacu”, não cabendo responder com sim ou não. A frase (5) é um outro exemplo de construção 6 Note que o equivalente em português das palavras interrogativas BO do Karajá, são as palavras QU (que, qual, quem, quando, porque, etc.), assim como em inglês essas palavras são chamadas de palavras WH (what, which, who, when, why, etc.).

75

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

interrogativa do tipo sim/não, enquanto a frase (6) ilustra outra interrogativa informacional, como já vimos acima. A questão que os linguistas tem procurado investigar em muitas línguas é se seria possível usar a partícula interrogativa sim/não, também em construções interrogativas informacionais. Em Karajá, isso não parece possível, pois os falantes de Karajá julgam uma construção com esse acúmulo, como agramatical:





(7) * Aõbo kai aõbo temyta? o que você INT pegou “O que você pegou?”

O Karajá segue um princípio universal de economia, ou seja, um princípio que está presente em todas as línguas, evitando o exagero de recursos gramaticais desnecessários. Em todas as línguas, as frases devem ser identificadas, de alguma forma, quanto ao seu tipo ou força, se são interrogativas, declarativas, relativas, etc. Entretanto, conforme proposto pelo linguista Noam Chomsky (1991), que estuda as propriedades universais da linguagem, as línguas seguem um Princípio de Economia da Derivação que, neste caso, bloqueia o uso da partícula interrogativa sim/não junto com a palavra interrogativa informacional BO, que já tipifica, posicionada no início da frase, a sua força interrogativa. A segunda questão que abordaremos, para concluir esta seção, diz respeito ao fato de que as palavras interrogativas têm uma estrutura interna facilmente decomponível, como ilustrado no quadro 1. Sendo uma língua aglutinativa, o Karajá permite isolar os morfemas constituintes das palavras muito claramente, em contraste com o português que, sendo fusional, nem sempre apresenta recorte tão claro, como se pode constatar, comparando as palavras QU do português com seus equivalentes em Karajá, tais como, por exemplo, aõ-bo “que” ou mõ-bo “quem”. Esta propriedade de decomponibilidade morfológica dos constituintes interrogativos presente em Karajá permite a incorporação de nomes no interior das palavras interrogativas, para formar perguntas como as ilustradas abaixo:

(8) aõ-utura-bo kai temyta? coisa-peixe-QU você pegou? “Que peixe você pegou?” (9) mõ-utura-bo kaa rare? pessoa-peixe-QU este ser “de quem é este peixe?” 76

PALAVRAS –BO EM KARAJÁ: COMO TRANSMUTAR ANÁLISES LINGUÍSTICAS FORMAIS EM ...

Finalmente, observe-se que esta incorporação de elementos no interior do vocábulo interrogativo, em Karajá, também se extende às posposições. Quando a regência verbal prevê a presença desses elementos na frase, os mesmo também são incorporados ao interior dos vocábulos -BO, conforme ilustrado a seguir: (10) mõ-wyna-bo kai tohonyte kau? pessoa-e-QU você sair ontem “com quem você saiu ontem?” (11) mõ-dee-bo tii kua wyhy riwahinyra? pessoa-para-QU ele esta flecha dar “Para quem ele deu esta flecha?” (12) mõ-rbi-bo kai kaa may temyta? pessoa-de-QU você esta faca pegar “de quem você pegou esta faca?” (13) aõ-di-bo juwata temyta? coisa-com-QU piranha pegar “com que (você) pegou a piranha?” Se um sintagma nominal quantificado é argumento de um verbo que requer partícula posposicional, tanto o nome quanto a partícula são infixados na palavra interrogativa. Exemplos dessas estruturas se seguem: (14) aõ-ijyy-my-bo kai telyyta kau? coisa-história-Posp-QU você contar ontem “Que história você contou ontem?” (15) mõ-hawyy-dee-bo kai may tewahinyta? pessoa-mulher-para-QU você faca deu “Para que mulher você deu a faca?” Na próxima seção, apresentaremos trechos da unidade em execução aõbo~anobo (o que) a fim de exemplificar a metodologia discutida nas seções 1 e 2, além de mostrar como podemos transmutar descrições/análises linguísticas utilizando termos técnicos, como visto nesta seção, em material pedagógico de qualidade com base em metodologia de ponta desenvolvida especialmente para o ensino gramatical e comumente empregada em aulas de língua em diferentes países. 77

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Transformando a descrição linguística em descrição pedagógica. Nesta seção, apresentamos a unidade preliminar da palavra aõbo~anobo, descrita na seção anterior deste trabalho. A unidade está dividida em apresentação, contextualização e prática (Teòsana, Iòbitidỹỹna, Dèosana). Como visto anteriormente na seção acima, a palavra aõbo pode ser utilizada também para formar perguntas do tipo sim/não. Portanto, nesta unidade há dois conjuntos de apresentação e contextualização, uma para cada modalidade de uso. Visto que esta é uma unidade preliminar elaborada em um oficina piloto, este material carece, ainda, de revisão e ampliação, que englobe o uso consistente da nova ortografia convencionada pelos professores Karajá. É necessário também incluir mais contextos com a variante feminina da língua (anobo), além de desenvolver uma terceira parte, dedicada ao uso da palavra aõbo em sintagmas complexos, como aqueles analisados na seção 3 do presente artigo, itens 8-15, (e.g. aõ-uturabo “qual peixe”). As unidades também contam com ilustrações elaboradas pelos professores de Artes que, futuramente, serão refinadas por meio de design gráfico. Seguem, abaixo, trechos da unidade em questão: Deòsina - Apresentação A primeira seção das unidades se chama “Teòsina” (apresentação). Para a unidade aõbo~anobo, os professores criaram dois diálogos simples destacando o uso da palavra interrogativas para fazer perguntas sobre coisas.

78

[ - O que você pegou?]

[ - Peguei tucunaré.]

PALAVRAS –BO EM KARAJÁ: COMO TRANSMUTAR ANÁLISES LINGUÍSTICAS FORMAIS EM ...

[ - O que vai comer hoje?]

[ - Vou comer carne de vaca.]

Iòbitidỹỹna - Contextualização A segunda parte da unidade, contextualização, é chamada “Iòbitidỹỹna”, palavra que designa explicação. Nesta unidade, os professores construíram mais frases de exemplos de uso, uma breve explicação do uso da palavra aõbo/anobo e um diálogo em que o aluno deverá sublinhar a palavra aõbo chamando atenção, desta forma, para o uso da palavra interrogativa em início de perguntas. Aõbo raibòòrèri? Myriwè raibòòrèri. [O que está subindo?] [ Piabanha está subindo.]

79

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Aõbo ròhònyrèri? Ijareheni ròhònyrèri. [o que esta dançando?] [ijareheni está dançando.] Kaki iny “aõbo” lỹỹraxi-ò riuhèmyhyre, iny aõ rierykre-my, kadi “aõbo” lỹỹraxi orarùki roimyhỹre, idi lỹỹraxi-ki iny widèè aõ riòbitinymyhỹre. [Aqui “aõbo” é usada para fazer pergunta, geralmente para saber alguma coisa, e “aõbo” quase sempre aparece no início da pergunta, neste (tipo de) pergunta.] Ijyy-di mariakre tule biwerurànykre tibo rybè “aõbo”, riuhereri: [Leia o texto abaixo e circule a palavra aõbo]

-Waha! - Awire, wariòre! - Aõbo kau tèwinytemyhȳ? - Dikary myriwe rèwaxinymyra, bodòlèkè tule. - Aõbo nadi riròra? - Tii bodòlèkè riròra. - Aõbo rumy teijetemyhȳ? - Urile ijorosa wna rariaremyhȳ.

80

PALAVRAS –BO EM KARAJÁ: COMO TRANSMUTAR ANÁLISES LINGUÍSTICAS FORMAIS EM ...

Leia a história e circule a palavra “aõbo” abaixo: - - - - - - - -

Meu pai! Oi, meu filho. O que você estava fazendo ontem? Eu estava pescando piabinha e pirarucu. O que minha mãe comeu? Ela comeu pirarucu. O que você estava fazendo de noite? Eu estava passeando com o cachorro.

Dèosina II – Apresentação II Como visto na seção “sintaxe das palavras bo”, aõbo também pode ser utilizado para fazer perguntas do tipo sim/não. Neste caso, aparece como um item de segunda posição sintática. Apresentamos esta modalidade de uso na mesma unidade mostrando, assim, que o contraste entre os dois usos desta palavra é motivado apenas pelo lugar que aõbo ocupa na sentença.

[ - Você vai caçar?]

[ - Não, eu não vou.]

Iòbitidỹỹna II – Contextualização II Ahabu ijorosa soèmy rirora. Tii aõbo ideõre? Kohè, ijorosa ideõre. [O cachorro do seu marido come muito. Ele é gordo? Sim, ele é gordo.] 81

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Kai aõbo rumy atximyhȳ kuaki? Kõre. Diary rumy atximyhȳ hetoki [Você estava lá fora na noite passada? Não, eu estava em casa.] “aõbo-my” rybèna sõere, tahè sohojile kaki reuhèrènyra “kõre-kohè”, riuhèmyhỹrele irawyònamy. Kièmy “aõbo”sõèmy lỹỹraxi-ki rauhèmyhỹre. Existe várias maneiras de usar “aõbo” porém a que usamos aqui (em segunda posição) é somente para perguntas cuja resposta seja “sim ou não”.

Ijyy-di mariakre tule biwerurànykre tibo rybè “aõbo”, riuhereri: [Leia o texto abaixo e circule a palavra aõbo] Mobo kaa weriri rèwinyra? -Awire, Tewaxixe! -Awire sohè, wabikoa. - Kohalue aõbo kaa weriri rèwinyra? - Kohè, Tii kaa weriri rèwinyra. - Biiii! Kaa Weriri tyhy iruxirare!

[Quem fez este cesto?] [-Tudo bom, Tewaxixe! -Tudo bom, meu amigo. - Foi o Kohalue quem fez este cesto? - Sim, ele fez este cesto - Uau! Esse cesto é muito bonito!]

Dèosana - Exercícios A parte dedicada aos exercícios é chamada “Dèosana”, palavra que designa perguntas. Os professores foram instruídos a criar exercícios variados com diversos itens de prática, contendo desde exercícios mais controlados, como preencher lacuna e múltipla escolha (exercícios 1 e 2) até práticas livres como responder/criar perguntas e textos (exercícios 3, 4 e 5). Note que o exercício 5 procura incentivar a expressão oral na língua, preocupação constante deste projeto, que busca promover, a partir de abordagens comunicativas, uma reflexão linguística mais consciente por parte dos alunos e professores que venham a utilizar este material.

82

PALAVRAS –BO EM KARAJÁ: COMO TRANSMUTAR ANÁLISES LINGUÍSTICAS FORMAIS EM ...

1. Rybè sohoji birtinykre, tibo òbitimy roikre-ò. [risque uma frase que esteja correta]. ( ) Kai riumy aõbo makre? [você caçar vai?]. ( x ) Riumy kai aõbo makre? [caçar você vai?]. ( ) Kai aõbo riumy makre? [você vai caçar?]. 2. Rybè sohoji birtinykre, tibo òbitimy roikre-ò. [risque uma frase que esteja correta]. ( x ) Kai aõbo tori riòrètate? ( ) Aõbo kai tori riòrètate? Kohè, diarȳ tori waha-di rare. [Você é filho de não-índio? Sim, meu pai é tori]. 3. “Aõbo” biuhe-my lỹỹraxi rybè biwinykre: [Faça frases utilizando “aõbo” nas perguntas:] - Aõbo kai birokre?[o que você vai comer?] - Otuni arirokre. [vou comer a tartaruga.] 4. Biwinykre tkitbyle rybè “aõbo” biuhe-my: [escreva pergunta “aõbo” para as frases abaixo:] Wabiòwa bèra-ò rara.[meu amigo foi ao rio.] Wabiòwa aõbo bèra-ò rara? [meu amigo foi ao rio?] 5. Lỹỹraxi biwinykre asỹre-my mahadu-õ-ò. Mohotinykre dèbòò inataõ reurò-my lỹỹraxi-di “aõbo” biuhe-my biwinykre irawo-ò. Tule biwinykre irawyòdỹỹna-txi kai teata. [Faça perguntas para alguém da sua família. Pense em oito perguntas utilizando “aõbo” e escreva abaixo. Escreva também as respostas que conseguiu.] Lỹỹraxi: [pergunta] Irawyòdỹỹna : [resposta]

Aõbo kai tewinymyhỹte? [O que você está fazendo?] Wabyyre rewinymyhỹre. [Estou fazendo a minha esteira.] 83

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Considerações finais Neste trabalho, procuramos demonstrar como podemos elaborar uma gramática pedagógica que apresente tópicos gramaticais a serem discutidos em aulas de língua materna nas escolas das aldeias. Para tal, primeiramente explicitamos a metodologia utilizada para a elaboração de seções da primeira gramática pedagógica da língua Karajá. A abordagem aqui utilizada chama atenção para a conexão existente entre uma determinada forma gramatical e seu uso em atos comunicativos, visando estimular uma reflexão mais consciente das estruturas gramaticais apresentadas, o que pode vir a favorecer o uso oral e escrito da língua nativa em ambientes diversos, principalmente aqueles nos quais as línguas indígenas brasileiras estejam recém-inseridas. Para exemplificar, apresentamos trechos da unidade em andamento, aõbo~anobo (o que), cuja metodologia, ainda que possa basear-se em análises formais, deve, no entanto, evitar a terminologia técnica própria dos estudos acadêmicos. Pode-se observar a diferença entre as duas abordagens ao se comparar as seções 3 e 4, que apresentam, fundamentalmente, o mesmo tópico gramatical, por meio de dados semelhantes e abordagens distintas. Por fim, acreditamos que a elaboração de materiais para o ensino de língua materna nas aldeias, segundo a metodologia aqui apresentada, permite contribuir para fortalecer as políticas de preservação e revitalização linguística e cultural dos povos indígenas, impactando positivamente as dinâmicas socioeducacionais desses povos, geralmente modeladas pelas práticas da sociedade majoritária envolvente.

Referências Alonso Raya, Rosario et al.(2008). Gramática básica del estudiante de español (2nd ed.). New Jersey: Pearson: Prentice Hall. Antunes, I. C. (2007). Muito Além da Gramática: Por um ensino sem pedras no caminho. Belo Horizonte - MG: Parábola. Chomsky, N. (1991). Some Notes on Economy of Derivation and Representation. In R. Freidin (ed.), Principles and Parameters in Comparative Syntax. Cambridge, MA: The MIT Press, 1991. Gass, S. & A. Mackey (2007). Input, Interaction, and Output in Second Language Acquisition. In B. VanPatten & J. Williams (eds.), Theories in Second Language Acquisition, Mahwah, NJ: Routledge, pp. 175–199. 84

PALAVRAS –BO EM KARAJÁ: COMO TRANSMUTAR ANÁLISES LINGUÍSTICAS FORMAIS EM ...

Maia, M. A. R.(2010) . The structure of CP in Karaja. In: Camacho, José; Gutiérrez-Bravo, Rodrigo; Sánchez, Liliana. (Org.). Information Structure in Indigenous Languages of the Americas: Syntactic Approaches. : Mouton De Gruyter, p. 185-208. Maia, M. A. R. ; Salanova, A. P. ; Lanes, E. J.(2000) . La Sintaxis de las interrogativas en Karajá, Kayapó y Manxineri. In: Hein van der Voort; Simon van de Kerke. (Org.). Essays on Indigenous Languages of Lowland South America. Leiden: CNWS Publications, 2000, v. 1, p. 297308. Murphy, R. (2004). English Grammar in Use. Cambridge, UK: Cambridge University Press. Swain, M. (2005). The output hypothesis: Theory and research. In E. Hinkel (ed.), Handbook on research in second language learning and teaching, Mahwah, NJ: Lawrence Elrbaum Associates. VanPatten, B. (2007). Input Processing in Adult Second Language Acquisition. In B. VanPatten & J. Williams (eds.), Theories in Second Language Acquisition, Mahwah, NJ: Routledge, p.115-136. Waal, D. (2009). Gramática e o Ensino da Líıngua Portuguesa. In IX Congresso Nacional de Educação - EDUCERE - III ESBP. Curitiba PR: PUCPR, pp. 983–994. Willis, J. & D. Willis (1996). Challenges and Change in Language Teaching. Oxford:UK: Heinmann.______. (1997).

85

EDUCAÇÃO INFANTIL INDÍGENA E EDUCAÇÃO ESCOLAR INFANTIL INDÍGENA ...

EDUCAÇÃO INFANTIL INDÍGENA E EDUCAÇÃO ESCOLAR INFANTIL INDÍGENA: SABERES E FAZERES INDÍGENAS E INSTITUCIONALIZAÇÃO Filadelfo de Oliveira Neto1

Resumo: Este artigo traz uma concisa reflexão sobre a Resolução 05 de 17 de dezembro de 2009, que dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação escolar infantil, mais precisamente sobre a apreensão que essa temática causa quando trata da Educação Escolar Indígena Infantil e, a presumível contradição dessa com a educação infantil indígena repassada entre as gerações nas diversas etnias pelas famílias, madrinhas, avós mães, desde a gestação. Palavras - chave: Educação Infantil Indígena, Educação Escolar Infantil Indígena, Saberes e fazeres indígenas. Abstract: This article provides a concise reflection on Resolution 05 of December 17, 2009 that provides for the National Curriculum Guidelines for childhood education, more precisely on the apprehension that this theme is because when the School Education Indigenous Children and the presumed this contradiction with the indigenous early childhood education passed between generations by families in different ethnic groups, godmothers, grandmothers mothers from the womb. Keywords: Indigenous Children’s Education, Early Childhood Education School Indigenous knowledge and indigenous doings.

Considerações Introdutórias A Educação Indígena sempre existiu, embora o homem branco, não índio tenha chegado aqui na nossa terra e instituído a sua educação formal, as populações indígenas brasileiras só conseguiram chegar até aqui graças à sabedoria milenar autóctone que foi apreendida e transmitida entre as suas etnias e, essa Educação, é iniciada ainda na infância, com nossos bebês ainda no ventre materno e crianças indígenas através de gerações pelas lideranças tradicionais, avós, avôs pais, mães, madrinhas, padrinhos e outros, ou seja, sempre tivemos também a Educação Infantil Indígena, o Estado chega apenas para institucionalizá-la. 1 Professor Especialista em Educação Escolar Indígena. Presidente do Conselho de Educação Escolar Indígena – CEEI/MT

87

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

A Resolução 05/2009/CNE tem caráter mandatório e aponta o bebê e a criança (zero a cinco anos) como sujeito de direito na Educação Infantil, sua aplicação, traz a conscientização das diversidades educacionais das populações em especial das tribais, e pode-se tornar um exercício de Direitos Humanos, principalmente porque põe em tela a necessidade de se reconhecer os povos: tradicionais, sem terra e principalmente os indígenas, nosso objeto aqui.

A Implementação da Resolução 05 De 17 de Dezembro De 2012: Celeuma no Segmento Indígena Publicada em 17 de dezembro de 2009, a Resolução 05 fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil e, traz importante argumento para se garantir educação infantil pública, que respeitem nossos saberes e fazeres, inclusive nossa religiosidade, gratuita, com qualidade social e, reconhecedora das diversidades educacionais de nosso país. Com a publicação da Resolução 05/2009 criou-se uma apreensão no movimento indígena quanto à implementação da Educação Escolar Infantil Indígena, pela possível perda de nossa autonomia, pois a Resolução que dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil explicita que esta é oferecida em ambientes não domésticos, regulados por órgão competente. Art. 5º A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, é oferecida em creches e pré-escolas, as quais se caracterizam como espaços institucionais não domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente do sistema de ensino e submetidos a controle social.

Somos mais de 200 Etnias neste país, falamos variadas línguas maternas, além da língua portuguesa. Como um órgão estatal, ou particular que, na sua grande maioria não conhece nossas manifestações religiosas, linguísticas e culturais, poderia supervisioná-las, avaliando-as como certa ou errada na educação de nossos bebês e crianças? Como institucionalizar e garantir a autonomia dos povos indígenas na escolha de sua tradição de educar? 88

EDUCAÇÃO INFANTIL INDÍGENA E EDUCAÇÃO ESCOLAR INFANTIL INDÍGENA ...

Artigo 8º X - a dignidade da criança como pessoa humana e a proteção contra qualquer forma de violência – física ou simbólica – e negligência no interior da instituição ou praticadas pela família, prevendo os encaminhamentos de violações para instâncias competentes. § 2º Garantida a autonomia dos povos indígenas na escolha dos modos de educação de suas crianças de 0 a 5 anos de idade, as propostas pedagógicas para os povos que optarem pela Educação Infantil devem: (Negritei). I - proporcionar uma relação viva com os conhecimentos, crenças, valores, concepções de mundo e as memórias de seu povo;

Considerações Finais O movimento indígena deve estar atento para não deixar que só os nãos indígenas continuem a legislar e executar a educação sem perpassar pela vontade e autonomia do próprio segmento. Ademais a Resolução Nº 5, de 22 de Junho de 2012 que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica, prevê a participação das famílias, dos sábios e, preceitua em seu artigo 8º §1º que a Educação Escolar Indígena Infantil é um direito dos povos indígenas [...] A Educação Infantil pode ser também uma opção de cada comunidade indígena que tem a prerrogativa de, [...] decidir sobre a implantação ou não da mesma, bem como sobre a idade de matrícula de suas crianças na escola. A I conferência Nacional de Educação Escolar Indígena – I CONEEI/2009 também baliza que o aprendizado das crianças indígenas deve iniciar em casa, com suas famílias e com os mais velhos na aldeia e que a estes cabe ensinar seus costumes e tradições para seus filhos, e ainda, que deve ser garantido às comunidades indígenas o direito de não ser implantada a educação infantil, àquelas que não queiram esse nível de ensino. A apreensão de perder nossa autonomia, nossas tradições milenares nos saberes e fazeres indígenas nos coloca em posição de defesa tamanha que, às vezes, não queremos nem mesmo discutir a Educação Escolar Indígena no segmento. É legítima essa prevenção, todavia a Educação Escolar Infantil é um dos temas mais aventados no âmbito governamental e, portanto o movimento precisa refletir e discutir sobre o tema, ainda que, após a reflexão escolha não ofertar.

89

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Referências Bibliográficas Resolução Nº 5, de 17 de Dezembro de 2012/MEC que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. MEC: DF, 2012. Resolução Nº 5, de 22 de Junho de 2012/MEC que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica. MEC: DF, 2012. Documento Final da I Conferência de Educação Escolar Indígena. Luziânia/GO, 16 a 20 de novembro de 2009. SILVA, Aracy Lopes da; e GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (Org.). A Temática Indígena na Escola. MEC/MARI/UNESCO, 1995.

90

“REAL” EDUCAÇÃO NA ETNIA ENAWENÊ-NAWÊ

“REAL” EDUCAÇÃO NA ETNIA ENAWENÊ-NAWÊ Fabrício Alves Estephanio de Moura1 Aumeri Carlos Bampi2 Waldir José Gaspar3 Resumo: O capítulo apresenta os aspectos educativos gerais desenvolvidos junto à etnia Enawenê-Nawê. Desde 1974, quando houve o primeiro contato, observam-se algumas tentativas para inserção de processos educativos diversos, inclusive com a participação da SEDUC do Mato Grosso a partir de 2013. Entretanto, a própria autonomia do grupo em seu território tradicional, bem como diferentes fatores consequentes das transformações no entorno de suas terras, contribuíram para reafirmar a importância da preservação da educação tradicional na formação do jovem na aldeia. Palavras-Chave: Educação Indígena, Educação Tradicional, Educação dos Enawenê-Nawê. Abstract: The chapter presents the educational  aspects developed together with the Enawenê-Nawê ethny. Since 1974, when there was the first contact, some attempts to insert the several educational processes were observed, including the participation of SEDUC of Mato Grosso from 2013. However, the autonomy of the group  in their traditional territory, as well as other factors which were consequent to the transformations in the surroundings of their land, have contributed to the importance of the preservation of the traditional education to the growth of the youngster in their native village. Keywords: Indigenous Education, Traditional Education, Education of Enawenê-Nawê.

Introdução Tratar de educação é sempre envolver o humano bio-culturalmente construído dentro de uma dada sociedade localizada num tempo e num espaço específicos. Contudo, quando se abordam questões da educação é sempre importante observar que os grupos humanos e as sociedades são diversos e que embora possuam identidade, enquanto língua, cultura e comportamento constituem ampla diversidade no mundo. 1 Mestre em Ciências Ambientais pelo PPGCA da UNEMAT 2 Prof. Dr. do PPGCA da UNEMAT 3 Prof. Dr. da UFSCAR, UNINOVE e FEBASP, [email protected]

91

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

No caso da etnia indígena Enawenê-Nawê, povo que vive as margens do Rio Iquê no noroeste do Estado do Mato Grosso, o que se pode colocar é que similarmente a outros grupos humanos que não tiveram constante contato com a sociedade urbano-industrial, fazem sua educação não separada do viver, característica também atribuída a outros grupos indígenas do país e mesmo de outras partes do mundo. Muito embora é preciso destacar que por diversos momentos recentes foram feitas tentativas externas no sentido de inserir os processos de alfabetização, matemática, questões básicas de saúde, embora não constituíssem alfabetização. Mais recentemente (2013/2014) foram realizadas tentativas de escolarização formal através da educação de jovens e adultos, mas não de forma contínua. No aspecto educativo, portanto, ainda vivenciam os membros da cultura o ensinar-aprender sem ter hora específica, situação também possível dada a característica de estabelecimento da sociedade numa única aldeia e que seu grupo populacional excede a pouco mais de 600 membros, entre velhos, adultos e crianças que vivem de forma isolada. O ritmo da educação segue o ritmo da vida. Entretanto, a sociedade e educação Enawenê-Nawê não pode ser considerada uma sociedade com educação simplista, quer em sua forma de organização, ainda que habite uma única aldeia, quer em termos de conhecimento sobre sua realidade (território – ambiente – cultura). Em especial merece destaque o ensinar próprio que constituem sobre o contexto e ambiente que vivem de alta biodiversidade, pois possuem nome e interpretação para todos os elementos que os rodeiam, bem como à toponímia do território do qual fazem, como demonstram os diversos estudos a eles relacionados, uso. Possuem seus membros profundos conhecimentos da realidade da biodiversidade local, de seu território e modo de vida que tal situação também se faz sentir na questão linguística. Neste quesito a etnia mantém de forma primordial a educação de suas crianças na própria língua (tronco Aruak), bem como mantém os mesmos uma estrutura estável de comunidade. Daí ser possível considerar que a própria tarefa de educar que se manifesta no ensinar conhecimentos, comportamentos, valores e a forma de lidar com a própria realidade que lhes envolve (territorialmente, biologicamente e culturalmente) se faça dentro de uma relação complexa que envolve língua, cultura, conhecimentos sobre o mundo (o que são as coisas, o que é o seu mundo – através de sua cosmologia) e mesmo ensinar em valores para a existência e convivência em comunidade.

Educação na aldeia 92

Até um passado recente, os Enawenê-Nawê, nunca tiveram uma educação formal (escolarização) dentro das características das sociedades

“REAL” EDUCAÇÃO NA ETNIA ENAWENÊ-NAWÊ

ocidentais, embora foram realizadas algumas tentativas. O seu aprendizado sempre se deu na prática cotidiana, onde as crianças e jovens acompanham os pais ou a comunidade adulta em suas atividades rotineiras e dessa forma aprendem os ofícios necessários da vida indígena. O aprendizado segue o ritmo da vida nas circunstâncias pelas quais passam os membros da comunidade. Há por parte das gerações mais novas o olhar, o escutar e o fazer conjunto como formas de construção do conhecimento e de compartilhamento do mesmo. No aspecto educativo sua cultura segue rituais específicos de passagem da infância para a vida adulta. Para a formação do menino-homem e para a formação da menina-mulher estabelecem momentos pontuais como o rito de passagem, a partir do qual os meninos passam a ser responsáveis pela formação do seu roçado, tendo o compromisso de prover sua nova família com alimentos produzidos por ele. As meninas, após a primeira menstruação, ficam reclusas em um compartimento dentro de casa durante alguns meses. Nesse período recebem um conjunto de lições domésticas de sua mãe e tias, de como cuidar de uma família. Ressalta-se que neste período dos rituais de passagens tanto masculino quanto feminino são reforçados valores comuns à vida em comunidade que, de certa forma, orientam tanto o menino quanto à menina a formas de comportamento regradas pelo povo. No tocante a educação escolar ou mesmo educação formal foram realizadas diversas proposições e tentativas junto à etnia no sentido externointerno. A partir de 1995 a Operação Amazônia Nativa (OPAN) iniciou um trabalho de alfabetização na língua materna com os Enawenê-Nawê. Segundo Zorthea (2006), eles ficaram muito entusiasmados com a novidade e nessa época muitos aprenderam a ler e escrever, entretanto não havia local ou espaço estipulado para as lições conforme exemplificado na Figura 1.

Figura 1: Tentativa de ensino na língua materna pela Equipe da OPAN. Fonte: Katia Zorthêa, 2006.

93

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Outro trabalho da OPAN que teve um cunho educacional foi o fundo de troca, realizado entre 1998 a 2004. O fundo de troca tinha o objetivo de fornecer os produtos externos que haviam sido incorporados na sociedade Enawenê-Nawê. Esses produtos baseavam-se principalmente em ferramentas (machado, enxada, foice, facão) e material de pesca (anzol, chumbada e linha), que eram trocados por algum objeto produzido pelos Enawenê-Nawê, na maioria das vezes algum artesanato. Além de suprir a necessidade dos Enawenê-Nawê para obter produtos industrializados, o fundo de troca também auxiliava em lições de matemática e comércio. Assim, havia uma relação que comparava o valor dos seus artesanatos (Figura 2) com os principais produtos que eles desejavam. Dessa forma, garantia-se o acesso deles a esses produtos de forma sustentável e sem assistencialismo. O artesanato era levado da aldeia e comercializado pela equipe da OPAN; com o dinheiro da venda, compravam-se os produtos solicitados e que eram levados aos Enawenê-Nawê. Com isso, eles sabiam o valor dos produtos, sem a necessidade de colocação de preço, ao mesmo tempo que se familiarizavam com os números e as operações matemáticas de soma, subtração, multiplicação e divisão.

Figura 2: Artesanato utilizado para troca com produtos manufaturados. Fonte: Katia Zorthêa, 2006.

Helena Wait4, enfermeira inglesa, realizou um trabalho de formação de agentes indígenas de saúde pela OPAN, ensinando alguns Enawenê-Nawê a dosar quantidades de remédios e ministrar medicamentos alopáticos, além de ensinar a medir temperatura e reconhecer alguns sintomas de doenças. 4 Informação dos autores.

94

“REAL” EDUCAÇÃO NA ETNIA ENAWENÊ-NAWÊ

Também ensinou sobre esterilização, como forma de prevenir disseminação de microrganismos patológicos. Agda Detogni e Floriano Junior (DETOGNI, 2007) realizaram um trabalho de educação em saúde bucal, entre 1995 e 2005, onde o objetivo era melhorar as condições de saúde bucal dos Enawenê-Nawê (Fifura 3), pois perdiam (e ainda perdem) os dentes muito jovens. O trabalho era voltado principalmente para se criar o hábito escovar os dentes, cuidar da higiene das gengivas e aplicar flúor.

Figura 3: Educação da saúde bucal Fonte: Agda Detoni, 1995.

Posteriormente o trabalho de educação da OPAN foi conduzido por Andréa Jakubasko, que optou por uma linha histórico-política e geográfica, ao invés de trabalhar com alfabetização, apresentando aos Enawenê-Nawê um panorama nacional e internacional de organização social, política e econômica. Utilizou de recursos visuais, como revistas e jornais da atualidade onde explicava sobre guerras, eleições, crises econômicas, sistema carcerário, indústrias, comércio internacional, bem como os resultados desastrosos e as consequências da sociedade de consumo moderna (JAKUBASZKO, 2003). Depois de Andréa Jakubasko, quem deu continuidade ao trabalho de educação foi Ubiray Rezende, que deu ênfase em fonética e fonologia com o objetivo principal de apresentar uma descrição sucinta da escrita que foi elaborada para a língua Enawenê-nawê (Figura 4), baseada em estudos realizados pelas equipes da OPAN em anos anteriores a 1998 e aplicados na organização de uma versão teste do Vocabulário Enawenê-Português / Português-Enawenê, nesse mesmo ano (REZENDE, 2003) 95

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Figura 4: Estudo da fonética e da fonologia Fonte: Katia Zorthêa, 2006.

Mais recentemente, Juliana Almeida assumiu o trabalho de educação pela OPAN com a introdução do espaço escolar, com o intuito de ministrar aulas aos Enawenê-Nawê. Porém, naquela época, o trabalho não foi adiante, pois os Enawenê-Nawê já estavam sofrendo os impactos das construções das Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH’s) do complexo Juruena, desviando a atenção da comunidade para outra realidade. A partir de 2013, uma vez superado o desgaste gerado pelos critérios para aceitação do processo de compensação financeira pela construção e operação das PCH’s no entorno da Terra Indígena dos Enawenê-Nawê, a Secretaria de Estado de Educação do Mato Grosso (SEDUC) implantou na aldeia um embrião do modelo de alfabetização. Chamado de sala de extensão do CEJA Alternativo do município de Juína, a SEDUC construiu uma sala de aula em madeira, coberta com telhas de cimento amianto e mantém, até o presente (09/2014), alternadamente, de acordo com o calendário de festas da aldeia, professores não indígenas para alfabetizar os homens adultos. Propostas de escolarização de mulheres e crianças estão previstas para início em 2015.

Considerações Mesmo com a inserção de diversas tentativas de letramento e por último de escolarização, registra-se que o processo educativo nesta etnia segue um compasso onde a educação é tratada sempre no sentido amplo de vivência da própria cultura. Não possuem momentos específicos do dia 96

“REAL” EDUCAÇÃO NA ETNIA ENAWENÊ-NAWÊ

que são destinados apenas para aprender, pois o ensino e aprendizagem acontecem constantemente no convívio cotidiano. O convívio é educativo, quer seja no sentido do ensino-aprendizagem da língua, quer na formação corporal e da motricidade, ou mesmo de se estabelecer as habilidades e técnicas para a vida indígena (saber o uso de plantas, conhecimento de animais, peixes, alimentos, como fazer uma canoa, como pescar, etc.) quanto por inserir um conjunto de valores que dão coesão à comunidade a partir de sua cosmologia e modo de existência que visam tornar os novos membros “verdadeiros” Enawenê-Nawê. A ação educativa parece difusa, mas é uma constante na convivência entre os membros da etnia constituindo uma verdadeira aldeia educativa.

Referências DETOGNI, A. M. Práticas e perfil em saúde bucal: o caso EnaweneNawe, MT, no período 1995-2005. Dissertação apresentada a Universidade Federal de Mato Grosso – Instituto de Saúde Coletiva, Cuiabá, 2007. JAKUBASZKO, A. Imagens da alteridade: um estudo da experiência histórica dos Enawenê-Nawê. Dissertação apresentada a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2003. REZENDE, U.M.N. Fonética e Fonologia da Língua Enawenê-Nawê (Aruak): uma primeira abordagem. Dissertação apresentada ao Departamento de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003. ZORTHÊA, K.S. Daraiti Alã: Escrita Alfabética entre os EnawenêNawê [dissertação de mestrado]. Cuiabá: Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso; 2006.

97

DIÁLOGO INTERCIENTÍFICO NA COMUNIDADE DO CEDRO: REFLEXÕES PARA EDUCAÇÃO ....

DIÁLOGO INTERCIENTÍFICO NA COMUNIDADE DO CEDRO: REFLEXÕES PARA EDUCAÇÃO AMBIENTAL Fernando Thiago1 Elias Januário2 Germano Guarim Neto3 Resumo: Este artigo tem por objetivo construir proposições de educação, sendo uma delas para utilização dos conhecimentos tradicionais da Comunidade Quilombola do Cedro, localizada no município de MineirosGO, como tema transversal para o ensino formal abrangendo temas como educação ambiental, comunidades tradicionais e plantas medicinais a partir de um método transdisciplinar de trabalho. A outra proposição de educação tem como objetivo contribuir para a resolução do problema relativo ao crescente desinteresse dos jovens da Comunidade do Cedro em aprender os conhecimentos tradicionais sobre plantas medicinais. Esta última proposição foi baseada no sistema educativo tradicional, visando motivar os jovens a se envolverem nas ações de manutenção deste conhecimento, com vistas à sustentabilidade cultural e dos recursos vegetais utilizados pela comunidade. Ambas as propostas foram construídas a partir de um diálogo intercientífico, valorizando tanto o conhecimento científico acadêmico quanto o conhecimento popular ou tradicional. Palavras-chave: Quilombolas, Conhecimento tradicional, Diálogo intercientífico, Educação Ambiental. Abstract: This article aims to construct propositions education, one being for the use of traditional knowledge of the Cedro Quilombo Community, located in the city of Mineiros, Brazil, as cross-subject to formal education covering topics such as environmental education, communities and traditional medicinal plants from a transdisciplinary working method. The other proposition education aims to contribute to the solution of the problem concerning the declining interest of young people in of the Cedro Community in learning traditional knowledge of medicinal plants. This last proposition was based on the traditional education system, aiming to motivate young people to engage in actions to maintain this knowledge, with a view to cultural sustainability and plant resources used by the community. Both proposals were constructed from a dialogue between science, valuing 1 Doutorando em Administração pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul. Técnico da Universidade do Estado de Mato Grosso, [email protected]. 2 Antropólogo, Historiador, Professor Aposentado pela UNEMAT, Presidente do Instituto Merireu, [email protected]. 3 Instituto de Biociências. Departamento de Botânica e Ecologia. Universidade Federal de Mato Grosso, [email protected].

99

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

both academic scientific knowledge as popular or traditional knowledge. Keywords: Quilombo Community, Traditional knowledge, Interscientific dialogue, Environmental Education.

Introdução

Atualmente o mundo passa por uma crise socioambiental consequente do modelo de consumo adotado principalmente pelas sociedades não tradicionais que acabaram trazendo prejuízos à qualidade ambiental. Neste contexto, “mudanças profundas nos modos de produção e consumo, bem como nos valores e culturas hegemônicas, são urgentes” (VITORASSI; CASALE; ALBERTON, 2009, p. 1). Os problemas emergentes ocasionados por esta crise socioambiental, levam a sociedade a indicar a Educação Ambiental como uma prática social que poderá ajudar na resolução destes problemas (GUIMARÃES et al., 2009). Diante disto, é necessária uma articulação com a produção de sentidos sobre a Educação Ambiental, combinado com o engajamento dos diversos sistemas de conhecimento, capacitação de profissionais e comunidades inseridos numa perspectiva interdisciplinar. A produção do conhecimento deve envolver as inter-relações entre o meio natural e social, com o desafio de constituir uma educação ambiental que seja crítica e inovadora nos três níveis: formal, não formal e informal4, observando a constituição de um novo perfil de desenvolvimento com ênfase na sustentabilidade socioambiental (JACOBI, 2003). Os processos educativos em comunidades tradicionais utilizam em sua grande maioria o nível de educação informal para as trocas de conhecimentos sobre o meio ambiente, no caso da comunidade do Cedro, estes conhecimentos são passados de forma vertical em nível informal. O nível informal de educação se constitui principalmente pela falta de planejamento e programação previamente estruturada, sendo aplicada de acordo com as necessidades e sensibilidade dos responsáveis por esta tarefa e dotados de conhecimentos profundos, inclusive os referentes às relações entre a sociedade e o meio ambiente. A forma vertical é aquele em que os membros da comunidade transmitem esses conhecimentos de geração para geração. 4 O “nível informal” não está no texto do Jacobi (2003), contudo vale acrescentar visando englobar todos os níveis contidos no 2º princípio do Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, aprovado durante o Fórum das ONGs e Movimentos Sociais que aconteceu paralelo à Rio 92.

100

DIÁLOGO INTERCIENTÍFICO NA COMUNIDADE DO CEDRO: REFLEXÕES PARA EDUCAÇÃO ....

Neste sentido, é que comunidades como a do Cedro nos oferecem informações valiosas que podem contribuir com resoluções de problemas ambientais que o mundo atualmente enfrenta. Assim, temos a oportunidade de participar do que Little (2002) propôs como um diálogo intercientífico, onde não há uma simples apropriação unilateral do conhecimento, seja por parte das comunidades tradicionais ou por parte da nossa ciência oficial (legalmente instituída). Neste sentido, Diegues (2000) indica que a manutenção da diversidade biológica está diretamente relacionada com a manutenção da diversidade cultural. Para este autor, as populações tradicionais devem ser coautoras das inovações científicas pesquisadas junto a estas comunidades, integrando a visão do cientista natural e do especialista local. Santos (2007) enfoca a necessidade de romper com as barreiras entre o conhecimento científico e o conhecimento tradicional, possibilitando a valorização necessárias aos conhecimentos tradicionais (ou populares) e seu inter-relacionamento com o conhecimento científico, convergindo numa estrutura de conhecimento denominada por ele como “Ecologia de Saberes”. Entretanto, o modelo de geração de conhecimento que fundamentou as primeiras escolas científicas brasileiras e ainda culturalmente permeia em parte das universidades e instituições científicas, desconsidera a geração do conhecimento advindo das populações tradicionais, onde o saber é construído durante séculos de experimentações empíricas. Este fato ocasionou o desaparecimento de grande parte do saber local. Segundo Shiva (2002), este processo inicia-se simplesmente não vendo este saber local ao considerar o conhecimento ocidental como única forma de fazer ciência, tratando como “anticientífico” os conhecimentos dos povos tradicionais. Isto proporcionou que os processos de globalização impusessem a razão instrumental da ciência ocidental, construindo o modelo de desenvolvimento econômico, social e ambiental que trouxe a destruição de florestas nativas, tidas como “ervas daninhas” e a eliminação total ou parcial da cultura de comunidades tradicionais (SHIVA, 2002). Neste sentido, observamos que a comunidade do Cedro está passando por um processo de ressignificação cultural, especialmente em relação ao conhecimento tradicional sobre plantas medicinais, devido à adequação da aplicação deste conhecimento para atender às normas legais sobre fitoterápicos vigentes no país. (THIAGO e JANUÁRIO, 2010). Diante disto, há necessidade de trabalhos que valorizem o conhecimento tradicional da comunidade.

101

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Com isso, o objetivo deste artigo5 é apresentar proposições de Educação Ambiental que atenda as necessidades pertinentes aos problemas ambientais identificados pela comunidade ao mesmo tempo em que pretende subtrair dos conhecimentos tradicionais informações para serem utilizadas em frentes de educação ambiental, especialmente no ensino formalizado, permitindo então, um diálogo intercientífico ou de saberes.

Bases da Educação Ambiental, alicerce do diálogo intercientífico Como instrumentalização do processo de aprendizagem sobre o meio ambiente, utilizaremos a abordagem da educação ambiental crítica, que segundo Carvalho (2004, p. 19), tem por objetivo a construção de valores e atitudes, contribuindo para a formação de um sujeito ecológico, de forma que os “grupos sociais sejam capazes de identificar, problematizar e agir em relação às questões socioambientais tendo como horizonte uma ética preocupada com a justiça ambiental”. Conforme Loureiro (2004, p. 73) o aspecto crítico deste processo tem por objetivo a superação das relações sociais vigentes, buscando uma ruptura com os padrões dominadores da sociedade moderna. Neste sentido, a ética ecológica visa não somente privilegiar apenas um dos aspectos que fazem parte de nossa espécie, como o ético, o estético, o sensível, o prático, o comportamental, o político ou o econômico, ou seja, “separar o social do ecológico e o todo das partes”, apresentando uma visão reducionista sobre as complexas relações socioambientais. Para a ruptura destes padrões dominadores a educação ambiental deve partir de uma abordagem social e histórica. Social no sentido de que, segundo Sanchez; Monteiro e Monteiro (2010), cada comunidade possui entendimentos e formas singulares de se relacionar com o “meio ambiente”, aspectos estes que não podem ser desprezados. Histórico no sentido de que toda a cultura social é constituída pelos processos históricos e, como este processo proporcionou os diversos problemas ambientais que afligem o planeta, vislumbra-se a necessidade de se aplicar um olhar crítico sobre as decisões ocorridas durante a história da sociedade dominante, para então promover as mudanças necessárias tanto nas ações diretamente relacionadas com o manejo dos recursos naturais como nos processos educativos. 5 Este artigo é parte do projeto de pesquisa de dissertação intitulado “Comunidade

Quilombola do Cedro, Mineiros-GO: Etnobotânica e Educação Ambiental” vinculada ao Programa de Ciências Ambientais da Universidade do Estado de Mato Grosso e com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

102

DIÁLOGO INTERCIENTÍFICO NA COMUNIDADE DO CEDRO: REFLEXÕES PARA EDUCAÇÃO ....

Neste sentido, Capra (1982) enfatiza a necessidade de recuperação de uma “harmonia ambiental”, estabelecendo novas formas de se relacionar com o planeta, cuja base se estabelece no direito à vida de todos os seres que o habitam e, assim, permitir-nos reconquistar sua essência espiritual. Esta forma de relacionamento com o planeta parte do que Santos (2007) denominou de pensamento pós-abissal. De acordo com este autor o pensamento abissal é baseado no racionalismo instrumental que dita os procedimentos da ciência moderna como um grande abismo que divide o conhecimento produzido pela ciência ocidental e os conhecimentos não científicos. Segundo Sanchez; Monteiro e Monteiro (2010, p. 386) esta “racionalidade teria reduzido a multiplicidade do mundo”. Assim, muito dos conhecimentos tradicionais foram simplesmente desvalorizados e perdidos. Segundo Shiva (2002) o que ocorre é um processo de desconsideração do saber local ao considerar o conhecimento ocidental como único conhecimento científico aceitável, ou seja, uma monocultura de conhecimento. Segundo Loureiro e Cunha (2008), o atual modelo da sociedade dominante é caracterizado pelo autocentramento partindo de um enfoque atomístico que reforça as relações utilitárias a serviço do Capital, que de forma reducionista “coisifica a natureza”. Segundo Morin (1997) o modelo de construção do conhecimento científico está alicerçado no paradigma da simplificação, caracterizado pela separação e redução das partes para se entender o todo. O questionamento deste modelo torna-se necessário, visto que o mesmo não está conseguindo resolver esta crise. É nesta perspectiva que, segundo Leff (2003, p. 16), “o risco ecológico questiona o conhecimento do mundo”. Para tanto o pensamento pós-abissal tem por objetivo criar esta ruptura no sistema científico moderno e proporcionar uma “ecologia de saberes” onde “o confronto e o diálogo entre os saberes é um confronto e diálogo entre diferentes processos através dos quais práticas diferentemente ignorantes se transformam em práticas diferentemente sábias” (SANTOS, 2002, p. 250). Com isso, poderá proporcionar um melhor entendimento da complexidade ambiental que, segundo Morin (1997), deve ir além do pensamento reducionista cartesiano que ignora o todo em favor das partes como também ir além do pensamento holístico que ignora as partes em favor do todo. Observa-se que esta forma de ver e viver o mundo é bem peculiar à maioria das comunidades tradicionais. Diante disto, esta abordagem vem de encontro com a valorização dos saberes locais, que segundo Sanchez; Monteiro e Monteiro (2010), passa pela importância de se escutar estas comunidades, e de se valorizar os conhecimentos tradicionais nos termos 103

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

estabelecidos no Tratado de Educação Ambiental para as Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global elaborado durante o fórum das organizações não governamentais paralelamente à Eco 92 (FÓRUM GLOBAL 92, 2005). Contudo, a valorização dos conhecimentos locais é um dos pontos de mudanças, ainda temos a necessidade da desconstrução e reconstrução do modelo educacional vigente. Neste sentido, Floriani (2010, p. 44) aponta que: A complexidade ambiental está convocada a refletir sobre a natureza do ser, do saber e do conhecer; sobre a fertilização de conhecimentos na interdisciplinaridade e na transdisciplinaridade; sobre o diálogo de saberes, a subjetividade, o confronto entre o racional e o ético, o formal e o substantivo. Ainda, esta nova forma de articular conhecimento e ação, oriunda de uma práxis cognitiva e política, necessita de uma pedagogia do ambiente e de um ambiente da pedagogia, para afirmar e reafirmar seu engajamento com a sustentabilidade da vida e com a equidade social.

Assim, a complexidade não é uma resposta, esta se configura como um problema, um desafio (MORIN, 2005, apud FLORIANI, 2010), para repensarmos as ações ambientais e o papel da educação ambiental e superar o pensamento fatalista exemplificado por Guerra et al. (2010, p. 91) pelo questionamento comumente anunciado: “o que posso fazer se sempre foi assim?” Neste sentido, a Educação Ambiental Crítica objetiva transformar a realidade social e proporcionar igualdade de condições de uso dos recursos ambientais, tornando cada cidadão ambientalmente emancipado, nos moldes da educação proposta de Freire (1987), uma vez que substitui a educação que se preocupa em apenas reproduzir conhecimentos e formar mão de obra qualificada (GUIMARÃES, 2004), mantendo então as condições sociais onde “as pessoas devem se conformar com a vida que tem e aprender os conteúdos transmitidos mecanicamente” (TEROSSI; SANTANA, 2010, p. 344). A pedagogia freiriana abre o caminho para libertar os oprimidos de suas prisões sociais, políticas e ambientais, proporcionando um ensino com enfoque nos problemas e realidades da comunidade local, com métodos que envolvam a ação coletiva na resolução destes problemas (TEROSSI; SANTANA, 2010).

104

DIÁLOGO INTERCIENTÍFICO NA COMUNIDADE DO CEDRO: REFLEXÕES PARA EDUCAÇÃO ....

Guimarães (2004, p. 31) corrobora com estas questões quando afirma que as ações pedagógicas de Educação Ambiental devem “superar a mera transmissão de conhecimentos ecologicamente corretos, assim como as ações de sensibilização, envolvendo afetivamente os educandos com a causa ambiental”. Segundo Tuan (1980, p. 129), os laços afetivos com a natureza, denominados de “topofilia”, tornam-se um dos estímulos à preservação destes ambientes afetivamente identificados pelos sujeitos locais. Neste caso, “o meio ambiente pode não ser a causa direta da topofilia, mas fornece o estímulo sensorial que, ao agir como imagem percebida, dá forma às nossas alegrias e ideais”. Diante disso, o processo educativo dialógico visa empoderar os sujeitos oprimidos conscientizando-os das relações sociais de dominação para então transformar esta realidade. Na educação formal e na ciência moderna, estes saber ambiental amplia os “sentidos internos de cada saber disciplinar das ciências, obrigando-as a se abrirem às novas racionalidades socioambientais emergentes” e que, diante de fenômenos complexos e interligados, emerge necessidade de uma análise metodológica envolvendo diversos saberes disciplinares, com atividades multi ou interdisciplinares; ou de um diálogo entre saberes científicos e nãocientíficos, com atividades transdisciplinares (FLORIANI, 2010, p. 44). Sanchez; Monteiro e Monteiro (2010), apresentam que para alcançar uma visão mais abrangente de um determinado problema, a integração recíproca de várias disciplinas e campos de conhecimento capazes de romper seus códigos e estruturas internas, tornam-se demasiadamente importantes neste processo. Em relação à interdisciplinaridade esta se constitui com linguagens partilhadas, pluralidades dos saberes, trocas de experiências e parcerias. Os processos educativos cujas metodologias possuem um enfoque participativo, segundo Loureiro (2004, p. 71), “são as mais propícias ao fazer educativo ambiental”, devido a interação entre diferentes stakeholders na gestão do espaço comum e do futuro da coletividade. Assim, estes processos transdisciplinares propiciam a participação coletiva (LOUREIRO, 2004), a valorização das singularidades locais (LEFF, 2003; SHIVA, 2002; DIEGUES, 2000) fomentam o diálogo intercientífico (LITTLE, 2002; LEFF, 2003), para, então, produzirem práticas sustentáveis, conscientes e democráticas. Diversas críticas apontam a educação como instrumento salvador para resolver os problemas ambientais e que, muitas vezes, são descarregadas no ensino formalizado para crianças e adolescentes como assuntos transversais, que neste caso, está pretensiosamente revertendo os papéis 105

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

onde crianças/adolescentes responsabilizam-se em educar ambientalmente os adultos. Contudo, não podemos desconsiderar também que a Educação Ambiental constitui-se como uma das ferramentas e possibilidades importantes, figurando-se entre tantas outras (TEROSSI; SANTANA, 2010). Face aos conhecimentos peculiares da Comunidade do Cedro sobre a flora medicinal, algumas dificuldades para a manutenção deste aspecto da cultura tradicional apresentadas pela comunidade e questões pertinentes à sustentabilidade de algumas espécies e populações da flora utilizada, iniciaremos um exercício para a construção de um diálogo intercientífico, visando atender demandas específicas da Comunidade do Cedro, como também discutir como os conhecimentos da comunidade podem contribuir no ensino formal no contexto ambiental.

O saber local de plantas medicinais como tema transversal de Educação Ambiental A utilização de plantas medicinais na comunidade do Cedro configura-se como um dos aspectos da cultura cedrina cujos conhecimentos permearam as diversas gerações da comunidade, fazendo com que estes recursos naturais, tidos como importantes, fossem preservados (THIAGO, 2011). Diante disto, estes conhecimentos e manejo peculiar da comunidade sobre a utilização da flora medicinal, podem ser utilizados como tema de propostas de Educação Ambiental com vistas à sustentabilidade das espécies utilizadas, objetivando sensibilizar os educandos sobre a importância dos recursos vegetais, suas populações e demais espécies pertencentes ao respectivo ecossistema. Neste sentido, a utilização dos conhecimentos tradicionais como instrumentos de Educação Ambiental passa pela valorização das “informações que são veiculadas na informalidade das ações do cotidiano” (GUARIM NETO, 2006, p. 74). No espaço formal de ensino, como universidades e escolas, estes conhecimentos podem ser utilizados como tema transversal, permitindo a participação de diversas disciplinas, em processos inter ou transdisciplinares, na construção do conhecimento e formação crítica dos estudantes. De acordo com Betoni e Fernandes Júnior (2008, p. 464), para os estudantes, “existe um alto grau de desvinculação entre a atividade científica e a vida cotidiana. Em geral, entre eles não há consciência a respeito da medida em que a atividade científico-tecnológica participa e afeta nossa realidade diária”. Neste sentido, atividades vinculadas com as práticas de 106

DIÁLOGO INTERCIENTÍFICO NA COMUNIDADE DO CEDRO: REFLEXÕES PARA EDUCAÇÃO ....

campo, podem promover maior motivação dos estudantes nos processos de aprendizagem. Esta forma de trabalhar os conhecimentos pertinentes à educação ambiental vem de encontro com as recomendações nº 1 e 2 da 1ª Conferência Internacional sobre Educação Ambiental realizada em 1977 em Tbilisi que, entre outros aspectos, exara que a Educação Ambiental deve ser trabalhada pela articulação de diversas disciplinas através de uma perspectiva interdisciplinar, globalizadora e equilibrada. O quinto princípio do Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global define que a “educação deve envolver uma perspectiva holística, enfocando a relação entre o ser humano, a natureza e o universo de forma interdisciplinar” (FÓRUM GLOBAL 92, 1992). A Política Nacional de Educação Ambiental, aprovada pela Lei 9.795 de 27 de abril de 1999, principia em seu artigo quarto que a educação ambiental deve ser embasada no “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, na perspectiva da inter, multi ou transdisciplinaridade” (BRASIL, 1999). Neste sentido, a criação de situações de estudo para se trabalhar o tema transversal sobre a flora medicinal, poderá proporcionar esta perspectiva transdisciplinar, possibilitando, a superação e a fragmentação dos conteúdos disciplinares a partir de uma situação real, articulando os conceitos das diversas disciplinas metodologicamente sistematizadas entre o saber prático local e o conhecimento teórico. Assim, a situação de estudos visa desenvolver um clima de significação, a partir de uma visão complexa do ambiente, interessantemente propício para a aprendizagem dos estudantes (HAMES; FRISON; ARAÚJO, 2009; COSTA et al., 2005). Para tanto, se exige um acerto nos planos de ensino e cronogramas entre os professores a fim de viabilizar o trabalho participativo. Também, a instituição de ensino deve prever em seu projeto político pedagógico tempo, espaço e horário dos professores para a realização destas atividades (BRASIL, 2006). O desenvolvimento de conceitos e aplicações das disciplinas devem ser trabalhadas interdisciplinarmente e transdisciplinarmente para este caso, devido a participação dos membros da comunidade na construção e discussão dos conhecimentos. Assim, o processo educacional crítico, complexo e emancipador permite uma análise mais profunda do contexto ambiental circundante aos recursos vegetais. Esta abordagem é possibilitada por trabalhar com disciplinas e cursos de diversas áreas do conhecimento e pelas problemáticas vivenciadas pela comunidade e apresentada aos professores, técnicos e estudantes. 107

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

A partir destas discussões, apresentaremos sugestões de atividades a serem executadas para a construção e planejamento da situação de estudos sobre plantas medicinais destacadas pela Comunidade do Cedro: a) Planejamento coletivo Nesta fase, os professores e assessores pedagógicos se reúnem para definirem os temas e respectivas atividades a serem trabalhados dentro da situação de estudos, inclusive com a participação de alguns membros-chave da Comunidade do Cedro. Se possível, sugerimos que a reunião seja feita na Comunidade permitindo um maior entendimento da complexidade e contato com o ambiente. Após a definição dos temas e atividades poderá ser realizada a sincronização dos planos de ensino, ajuste nos cronogramas das atividades das disciplinas e escolha ou preparação de recursos didáticos. Nesta etapa é importante salientar que, segundo Hames; Frison e Araújo (2009, p. 11), em trabalhos diferenciados é importante que os conteúdos e conceitos sejam trabalhados de forma contextualizada e interrelacionada. “A contextualização amplia a possibilidade de abstração e constituição de novos significados conceituais”, ainda, segundo estas autoras, “o uso do tema no curso disciplinar deve facilitar o entendimento dos conceitos das disciplinas envolvidas e contribuírem para o desenvolvimento de uma consciência ambiental”. b) Atividades preparatórias em sala de aula Definidas os temas e as atividades a serem executadas, os professores poderão trabalhar os conceitos a serem abordados nestas atividades. Os estudantes deverão se sensibilizar de conceitos sobre comunidades tradicionais, diversidade cultural, educação ambiental, sustentabilidade e biodiversidade, caso estes não estejam previstos no planejamento das disciplinas. c) Atividades de Campo Após a preparação em sala de aula, poderão ser realizadas as atividades de campo, onde os alunos poderão imergir, mesmo que superficialmente, no universo da Comunidade para poderem entender e praticar os conceitos disciplinares, a visão complexa das relações interdisciplinares e a importância da visão transdisciplinar. 108

DIÁLOGO INTERCIENTÍFICO NA COMUNIDADE DO CEDRO: REFLEXÕES PARA EDUCAÇÃO ....

O contato direto dos educandos com o ambiente de estudo possibilita um nível de significação mais aprofundado dos conceitos através de uma praxis pedagógica que possibilita, entre outros, o estreitamento de laços afetivos com a comunidade e o ambiente envolvido gerando topofilia segundo Tuan (1980). d) Discussão em sala de aula Além de discutir os conceitos, esta atividade pauta-se pela consolidação de uma sensibilização ambiental. Por exemplo, conforme os estudantes passam a perceber que a utilização de plantas medicinais pela comunidade contribuíram para a preservação destes recursos vegetais, é possibilitada a formação da consciência ambiental sobre as responsabilidades quanto à manutenção de comunidades tradicionais e do patrimônio cultural envolvido, como também da utilização caseira de plantas medicinais. Para tanto, o papel dos professores é de fundamental importância como mediador do processo de ensino-aprendizagem, sendo um profissional responsável pelas interações das significações partilhadas (HAMES; FRISON; ARAÚJO, 2009). Segundo Perrenoud (1998): Hoje, parece claro que ensinar não consiste mais em dar boas lições, mas em fazer aprender, colocando os alunos em situação que os mobilizem e os estimulem em sua zona de desenvolvimento proximal, permitindolhes dar um sentido ao trabalho e ao saber.

Diante disso, o exercício da reflexão sobre este tema transversal contribui para a conscientização e mudança de atitudes nas relações sociedade humana/natureza com base na Educação Ambiental desde a formação inicial e continuada dos professores até a participação dos estudantes e comunidade envolvida, permitindo se desenvolver um saber mais complexo e contextualizado com vistas à sustentabilidade socioambiental.

Educação ambiental como instrumento de valorização do etnoconhecimento da Comunidade do Cedro. Dentre as plantas medicinais destacadas pela Comunidade do Cedro e apresentadas por Thiago (2011), 20,4% destas espécies os cedrinhos utilizam somente as raízes, caule, entrecasca e/ou casca para o preparo de medicamentos naturais, consequentemente, estas espécies sofrem 109

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

individualmente maior risco no momento da extração da parte utilizada para remédio. A princípio cabe-nos discutir uma proposta para que a Comunidade do Cedro viabilize métodos de proteção e cuidados com estas espécies ou até mesmo outras formas de fazer o remédio utilizando diferentes partes como folhas, flores e frutos quando for possível, ou mesmo utilizando outra espécie que trate a mesma afecção/doença e que não utilize destas partes para compor o remédio. Porém, antes da discussão sobre as proposições de Educação Ambiental para a Comunidade do Cedro para trabalhar estas questões, necessário se faz apresentar algumas considerações a respeito da vivência da Comunidade com estes recursos vegetais. Conforme evidenciado, a utilização das espécies medicinais pela comunidade fez com que estas espécies tidas como importantes, fossem preservadas, apesar da constante diminuição de áreas nativas durante as últimas décadas, especialmente para implantação de sistemas monoculturais e/ou criação de animais em larga escala. Ainda assim, a comunidade aprendeu a cultivar 18,4% das espécies destacadas consideradas difíceis de serem conseguidas no ambiente natural, apresentando um processo de adaptação da realidade imposta pelo atual modelo de desenvolvimento econômico. Outra questão a ser considerada é que quando há necessidade de extrair plantas inteiras, os raizeiros da comunidade só o fazem se houver outros exemplares da mesma espécie perto ou próximas da planta a ser extraída. Para a extração de caule, casca e entrecasca, são retirados alguns galhos das plantas e raramente a casca e entrecasca são retiradas do tronco principal das árvores, isto só acontece quando as árvores são muito altas dificultando o acesso os galhos menores. Enfim, há uma preocupação e ações da comunidade com vistas à manutenção destas espécies na paisagem natural enraizada nos conhecimentos tradicionais e nas normas culturais da comunidade. Diante disto, considera-se que um Programa de Educação Ambiental para tratar de assuntos sobre relacionamento ser humano/natureza na Comunidade do Cedro deve ser fundamentado em processos de reflexão para não se tornar mais um conhecimento imposto na comunidade como também para não ser um programa que pretende audaciosamente sensibilizar ambientalmente uma comunidade que, a princípio, já atende este quesito e que inclusive, seus conhecimentos e atitudes podem fundamentar programas de educação ambiental conforme discutido no subtítulo anterior.

110

DIÁLOGO INTERCIENTÍFICO NA COMUNIDADE DO CEDRO: REFLEXÕES PARA EDUCAÇÃO ....

Segundo Fisher (2009, p. 372): A clássica perspectiva de diagnosticar para intervir ou de avaliar uma determinada prática social para corrigila à luz de um modelo, fonte teórica ou procedimento metodológico de interação com as populações investigadas está presente na maioria dos trabalhos e, com isso, fica comprometida, em parte, a reflexividade em nome da “intervenção”.

Neste sentido, é que entendemos que uma intervenção educativa na comunidade no sentido de “conscientizá-los” da necessidade de parar de utilizar algumas partes ou a planta como um todo, poderá provocar desinteresse da comunidade por estas espécies e, consequentemente, a planta poderá perder a proteção da comunidade, reduzindo a diversidade destas plantas no ambiente da comunidade. Apesar de não ter sido verificado no estudo de Thiago (2011), existe probabilidade de estas 20,4% das plantas serem importantes instrumentos de trocas e socialização entre as pessoas da comunidade. Contudo, podemos considerar que se a espécie não for mais importante para a comunidade, outras espécies ou objetos poderão substituí-las para este fim, com mais ou menos eficiência, mas não suficientemente menos importante para ser esta uma consideração descartada. Diante destas considerações é que contribuir no sentido acima exposto poderá trazer consequências contrárias aos nossos objetivos. Contudo, identificamos uma problemática que podemos participar nas discussões sem maiores preocupações, principalmente as de cunho ético-filosóficas. Durante as explorações científicas na Comunidade do Cedro identificamos que existe certo desinteresse dos mais jovens pelos conhecimentos tradicionais sobre plantas medicinais, que se consolidado poderá colocar em risco a manutenção da cultura local e da paisagem envolvida. Atualmente as facilidades de se obter medicamentos alopáticos, na maioria das vezes em unidades de saúde pública, e além de outros fatores que chamam a atenção, tem sido apontado pelos mais velhos como motivador de desinteresse dos mais jovens em conhecer sobre a medicina natural local, aspecto importante da cultura cedrina. Assim, buscaremos bases, como exercício, para a construção de uma proposta educativa com objetivo de motivar os jovens a valorizar e participar do processo educacional tradicional. Neste sentido, não nos cabe ensiná-los a manejar as plantas medicinais, visto que não se tornaria um processo sustentável e que não teríamos todo o conhecimento necessário para tanto, mas incentivar os jovens a procurar os mais velhos para obter os 111

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

conhecimentos, assim como mostrar a importância deles como portadores destes conhecimentos para as gerações futuras. Nos ensinamentos de Freire (1996) observa-se a importância de se escutar o outro como processo dialético para discussão da realidade, visando a emancipação dos oprimidos e, assim, poder projetar possíveis mudanças nas relações entre humanos e natureza com vistas à sustentabilidade: [...] o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando dos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. (FREIRE, 1996, p.71).

Considerando estes termos é que partimos do processo de escuta para entender qual o melhor método, ou o método que mais se aproxima do ideal, a ser aplicado para atingirmos o objetivo proposto. Primeiramente observamos que a figura do pesquisador no campo por si só contribui com o objetivo. No caso desta pesquisa, um dos jovens da comunidade acompanhou-nos durante a coleta das plantas e algumas entrevistas. Ao observar o pesquisador coletando as amostras e entrevistando principalmente as pessoas que tinham o conhecimento sobre a flora medicinal, proporcionou a ele uma visão, antes não percebida, sobre a importância das espécies medicinais, dos portadores dos conhecimentos sobre as plantas e suas histórias de vida e de trabalho na comunidade, motivando-o a querer aprender cada vez mais sobre o assunto. Depois disso e discutindo a questão do desinteresse com alguns dos membros da comunidade, chegamos ao entendimento de que uma das metodologias a ser aplicada é a realização de vários “dias-de-campo” no ambiente natural e nas hortas domésticas e do Laboratório, envolvendo os jovens e os mais velhos que conhecem sobre plantas medicinais para interagirem. A imersão no ambiente natural proporciona a interação entre ser humano e meio ambiente, que segundo Guarim Neto (2006) oferece indicadores efetivos para a Educação Ambiental, propicia à sensibilização dos envolvidos. Assim, as atividades planejadas são: (1) identificação das plantas no ambiente natural: objetiva os jovens conhecerem as espécies utilizadas e os métodos de busca das plantas;

112

DIÁLOGO INTERCIENTÍFICO NA COMUNIDADE DO CEDRO: REFLEXÕES PARA EDUCAÇÃO ....

(2) coleta de plantas que serão utilizadas: objetiva os jovens conhecerem e praticarem os métodos de coletas das plantas ou parte das plantas a serem utilizadas, o excedente poderá ser utilizado pelo laboratório; (3) preparação dos remédios: visa os jovens conhecerem e praticarem a preparação dos remédios, entendendo tanto os procedimentos como os ingredientes materiais ou espirituais utilizados; (4) distribuição dos remédios entre os participantes: objetiva proporcionar uma retribuição pelo trabalho; (5) outras atividades que surgirem no decorrer da proposta; e (6) conversas, discussões, socialização de causos, histórias sobre o tema e outros assuntos, como última etapa do curso. Os instrumentos utilizados com fins educativos são os tradicionais: a prática e transmissão oral dos conhecimentos. Esta decisão foi tomada visando uma religação com os métodos tradicionais ora em desuso nas relações educativas entre jovens e adultos, além de permitir uma participação mais efetiva das pessoas mais velhas que poderiam ficar inibidas ao trabalhar com materiais didáticos e/ou com o rigor de um planejamento prévio. Esta proposta se formata pela realização muito próxima dos processos educativos tradicionais elucidados pela comunidade, ainda assim, não terá a liberdade e espontaneidade que estes processos os têm no formato original, especialmente devido à programação prévia, mesmo que extremamente flexível, e a interferência do pesquisador, mesmo que suas funções sejam apenas de observador. Contudo, a participação do pesquisador em Educação Ambiental se faz na indicação da nomenclatura científica das espécies e na explanação final, com objetivo de destacar a importância da comunidade na preservação da diversidade biológica utilizada pela comunidade. Diante disto e, contrário à pretensão de induzir conhecimentos descontextualizados na comunidade, esperamos que esta proposta contribua no sentido de motivar os jovens a participarem das tradições culturais que envolvem os conhecimentos sobre a flora medicinal, com possibilidades à sustentabilidade cultural ao passo que estes jovens, mais tarde assumindo as funções dos mais velhos, perpetuem estes conhecimentos nas próximas gerações.

Considerações Finais Diante da ocorrência de um processo de ressignificação do conhecimento tradicional sobre plantas medicinais que, no médio e longo prazo, pode ou não se sobrepor ao conhecimento tradicional na medida 113

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

em que um conhecimento se torne mais importante que o outro para a comunidade. Neste sentido, consideramos que intervenções/induções externas à comunidade em favor ou não da manutenção ou modificação do conhecimento tradicional devem surgir das necessidades identificadas pela própria comunidade, principiadas pelo processo de escuta do outro tanto discutido por Paulo Freire, inclusive com o pleno respeito caso a decisão da comunidade seja pelas alterações que a sociedade moderna proporciona em seus conhecimentos e cultura. Para tanto, entendemos que uma proposta com objetivo de “conscientizar o outro” (FISHER, 2009) a partir de uma visão ainda limitada sobre a complexidade que envolve a comunidade do Cedro pode refletir negativamente, inclusive para a flora medicinal utilizada. Assim, apresentamos uma proposta embasada nos preceitos da educação ambiental crítica, com vistas à resolução do problema identificado pela comunidade, da falta de interesse dos mais jovens em aprender os conhecimentos sobre as plantas medicinais. Embasado pelos processos de escuta é que diagnosticamos, de forma participativa com a comunidade, que este problema interfere na manutenção do conhecimento tradicional sobre plantas medicinais à medida que este conhecimento não é mais repassado para as gerações futuras. Vale ressaltar que a proposta apresentada na seção anterior é fruto de conversas e discussões com vistas à busca da metodologia mais adequada para este objetivo. Diante disto é que apresentamos a proposta de Educação Ambiental baseado nas metodologias do ensino tradicional, onde concordamos com a aplicação da atividade denominada “dia-de-campo” por quantas vezes forem necessárias mediante anuência da comunidade. Apresentamos também uma proposta para utilizar os conhecimentos tradicionais da comunidade em proposições de Educação Ambiental no ensino formal, com objetivo de participar de um início de um diálogo de saberes. Neste contexto e considerando toda a problemática ambiental causada pelo modelo social dominante, torna-se cada vez mais necessário a formação de sujeitos conscientes e capazes de produzir ações e atitudes para promover as modificações necessárias nas relações ser humano/natureza. Fisher (2009, p. 376) traz ainda que “estamos em uma nova conjuntura, em que a limitação de um modelo predatório de exploração da natureza está colocando a todos nós numa tarefa original e criativa no modo de pensar”. Neste sentido, diversos trabalhos indicam o processo educativo crítico como uma das possibilidades frente a estes desafios, onde o diálogo intercientífico se faz essencial. 114

DIÁLOGO INTERCIENTÍFICO NA COMUNIDADE DO CEDRO: REFLEXÕES PARA EDUCAÇÃO ....

Como contribuição deste desafio, desenvolvemos uma proposição a partir de um exercício mesmo que inicial, para a constituição de um diálogo entre saber local e conhecimento científico oficial, tendo como base a flora medicinal destacada pela Comunidade do Cedro a ser aplicada como tema transversal no ensino formalizado. Com isso, a proposição poderá evidenciar a importância dos conhecimentos e práticas tradicionais na manutenção da biodiversidade. Além, o trabalho participativo o qual inclui também membros da comunidade nas discussões e formatação das atividades educativas, proporciona uma construção transdisciplinar destas atividades. Diante disso, pudemos participar de um exercício teórico que pode ser aplicado. Como vimos, tratar-se da discussão sobre um ambiente complexo, onde utilizamos uma abordagem educacional crítica considerando os aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos inseridos dentro de um contexto específico. Ainda, estas proposições poderão ser ou foram elaboradas dentro de um processo participativo, ora pelos anseios dos professores e instituições que poderão utilizar os conhecimentos tradicionais no ensino formal, ora pelas discussões, problemas e os anseios da Comunidade do Cedro.

Referências BETONI, J. E. C.; FERNANDES JÚNIOR, A. Elaboração e Aplicação de Recurso Didático Voltado ao Ensino Fundamental: Desmitificando a Microbiologia. In: PINHO, H. Z. de; SAGLIETTI, J. R. C. (Org.) Núcleo de Ensino da UNESP – Artigos de Projetos Realizados em 2006. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2008. BRASIL. LEI nº 9.795, de 27 de abril de 1999. Dispõe sobre a educação ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências. 1999. ______, Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Orientações Curriculares para o Ensino Médio - Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias. V. 2, 135p, 2006. CAPRA, F. O Ponto de Mutação: A Ciência, a Sociedade e a Cultura Emergente. 25. ed. São Paulo: Cultrix, 1982. CARVALHO, I. C. M. de. Educação Ambiental Crítica: Nomes e Endereçamentos da Educação. In: LAYRARGUES, P. P. (coord.). Identidades da Educação Brasileira. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2004. 115

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

COSTA, A. G. et al. Situação de Estudo como Proposta Desafiadora para a Educação Básica. Anais do IV Encontro Ibero-americano de Coletivos Escolares e Redes de Professores que Fazem Investigação na Escola. Lageado: UNIVATES, 2005. DIEGUES, A. C. Etnoconservação na natureza: enfoques alternativos. In DIEGUES, A.C. (org.). Etnoconservação, novos rumos para a conservação da natureza nos trópicos. 2 ed. São Paulo: HUCITEC, 2000. FISHER, N. B. Educação Não-escolar de Adultos e Educação Ambiental: um Balanço da Produção de Conhecimentos. Revista Brasileira de Educação, v. 14, n. 41, maio-agosto, 2009. FLORIANI, D. Diversidade Cultural, Desafios Educacionais e Sistemas Cognitivos: para Pensar uma Modernidade em crise. Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental, Rio Grande do Sul, v. especial, setembro de 2010. FÓRUM GLOBAL 92 das ONGs. Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global. In: Programa nacional de educação ambiental – ProNEA. Anexo 1. Ministério do Meio Ambiente, Diretoria de Educação Ambiental; Ministério da Educação. Coordenação Geral de Educação Ambiental. - 3. ed - Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2005. FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. ______. Pedagogia do Oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. GUARIM NETO, G. O Saber Tradicional do Pantaneiro: as Plantas Medicinais e a Educação Ambiental. Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental, Rio Grande do Sul, v. 7, julho a dezembro de 2006. GUERRA, A. F. S. et al. Mudanças Climáticas, Mudanças Globais: Desafios para a Educação. Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental, Rio Grande do Sul, v. especial, setembro de 2010. GUIMARÃES, M. Educação Ambiental Crítica. In: LAYRARGUES, P. P. (coord.). Identidades da Educação Brasileira. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2004. GUIMARÃES, M. et al. Educadores ambientais nas escolas: as redes como estratégia. Cad. CEDES,  Campinas,  v. 29,  n. 77, jan/Abr, 2009, p. 49-62. 116

DIÁLOGO INTERCIENTÍFICO NA COMUNIDADE DO CEDRO: REFLEXÕES PARA EDUCAÇÃO ....

HAMES, C; FRISON, M. D.; ARAÚJO, M. C. P. de. A Educação Ambiental como Articuladora na Produção de Saberes e no Desenvolvimento da Consciência Ambiental. Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental, Rio Grande do Sul. V. 23, julho a dezembro de 2009. JACOBI, P. Educação Ambiental, Cidadania e Sustentabilidade. Cadernos de Pesquisa, n.118, p.189-205, março, 2003. LEFF, E. Pensar a complexidade ambiental. In: LEFF, E. (Org.). A complexidade ambiental. São Paulo: Cortez, 2003. LITTLE, P. E. Etnoecologia e direito dos povos: elementos de uma nova ação indigenista. In: LIMA, A. C de S.; BARROSO-HOFFMANN, M. (Orgs.) Etnodesenvolvimento e políticas públicas: bases para uma nova política indigenista. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2002. LOUREIRO, C. F. B. Educação Ambiental Transformadora. In: LAYRARGUES, P. P. (coord.). Identidades da Educação Brasileira. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2004. LOUREIRO, C. F. B.; CUNHA, C. C. Educação Ambiental e Gestão Participativa de Unidades de Conservação: Elementos para se Pensar Sustentabilidade Democrática. Ambiente & Sociedade. Campinas, v. XI, no. 2, Julho/Dezembro, 2008. MORIN, E. Complexidade e ética da solidariedade. In: CASTRO, G. de; CARVALHO, E. de A.; ALMEIDA, M. C. de (Coords.). Ensaios de Complexidade. Porto Alegre: Sulina, 1997. PERRENOUD, P. Formação Contínua e Obrigatoriedade de Competências na Profissão de Professor. São Paulo: Ideias, 1998. Disponível em: http://www.unige.ch/fapse/SSE/teachers/perrenoud/php_ main/php_1998/1998_48.html.Acessado em 03 jan. 2011. SANCHEZ, C.; MONTEIRO, B.; MONTEIRO, R. Na trilha das pedras: algumas considerações sobre as Metodologias de educação ambiental e o processo de escuta. Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental, Rio Grande do Sul. Vol. 24. Janeiro a Julho de 2010. SANTOS, B. de S. Para Além do Pensamento Abissal: Das Linhas Globais a uma Ecologia de Saberes. Novos Estudos. 2007. Disponível em:< http://www.scielo.br/pdf/nec/n79/04.pdf>. Acesso em: 02 dez. 2009. SHIVA, V. Monoculturas da mente. São Paulo: Ed. Global, 2002. 117

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

TEROSSI, M. J.; SANTANA, L. C. Educação Ambiental no Brasil: Fontes Epistemológicas e Tendências Pedagógicas. Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental, Rio Grande do Sul, Vol. 24. Janeiro a Julho de 2010. THIAGO, F.; JANUÁRIO, E. R. S. Etnoconhecimento de Plantas Medicinais na Comunidade Quilombola do Cedro, Mineiros-GO. In: III WORKSHOP DOS GRUPOS DE PESQUISA E DA PÓS-GRADUAÇÃO DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO - UNEMAT, 2010, Cáceres. Anais do III Workshop dos Grupos de Pesquisa e da Pós-Graduação da Universidade do Estado de Mato Grosso UNEMAT, Cáceres: UNEMAT, 2010. Disponível em: http://www2. unemat.br/prppg/jornada2010/Resumos_workshop/122871291679120.pdf. Acesso em: 03 jan. 2014. ______. A Comunidade Quilombola do Cedro, Mineiros-GO: Etnobotânica e Educação Ambiental. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais) – Universidade do Estado de Mato Grosso, Cáceres, 2011. TUAN. Y. F. Topofilia, um Estudo da Percepção, Atitudes e Valores do Meio Ambiente. São Paulo: Difel, 1980. VITORASSI, S., CASALE, V.; ALBERTON, L. Programa de Educação Ambiental da Itaipu Binacional: em Busca da Sustentabilidade. In: Anais do VI Congresso Iberoamericano de Educación Ambiental. San Clemente del Tuyú. Argentina, 2009.

118

AGRICULTURA INDÍGENA: O CONHECIMENTO TRADICIONAL NO PREPARO DA ROÇA ...

AGRICULTURA INDÍGENA: O CONHECIMENTO TRADICIONAL NO PREPARO DA ROÇA TAPIRAPÉ Polyana Rafaela Ramos1 Elias Januário2 Xario’i Carlos Tapirapé3

Resumo: A agricultura indígena pode ser considerada como um excelente meio disseminador de conhecimentos entre as gerações em uma determinada comunidade, englobando desde a forma como se trabalha o solo até a produção de alimentos em equilíbrio com o meio ambiente. A roça indígena Tapirapé apresenta características peculiares na maneira como esse povo consegue, a partir de seus saberes locais, extrair da natureza produtos que são utilizados em sua dieta alimentar com o menor impacto possível. O manejo das espécies é ensinado de pai para filho, aliando sustentabilidade, preservação e segurança alimentar. Entre os Tapirapé a decisão do local onde será feita a nova roça é atribuição dos mais velhos, que escolhem áreas tendo por base o conhecimento adquirido com os antepassados, onde o solo apresente boas condições de fertilidade, normalmente indicada pela presença de matéria orgânica. As observações revelam que para garantir que haja material a ser decomposto e esse solo permaneça constantemente produtivo, esse povo utiliza diversas técnicas que aprenderam a partir da relação com a natureza e com os mais velhos. Palavras-chave: Produção sustentável. Etnoconhecimento. Agricultura indígena. Abstract: The Indian agriculture can be considered as an excellent means of disseminating knowledge between generations in a given community, encompassing everything from the way we work the soil to food production in balance with the environment. The indigenous garden Tapirapé presents some peculiarities in the way that people get from their local knowledge, extract of nature products which are used in your diet with the least possible impact. The species management is taught from father to son, combining sustainability, preservation and food security. Among Tapirapé the decision of where the new garden will be taken is function of the elders, who choose areas based on the knowledge gained from the ancestors, where the ground has good fertility conditions, usually indicated by the presence of organic 1 Mestre em Ciências Ambientais pela Universidade do Estado de Mato Grosso, Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia – Campus Confresa, polyana.ramos@cfs. ifmt.edu.br 2 Antropólogo, Historiador, Professor aposentado pela UNEMAT, presidente do Instituto Merireu, [email protected] 3 Docente, Escola Estadual Indígena Tapi’itãwa – Confresa-MT, [email protected]

119

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

matter. The observations reveal that to ensure that there is material to be decomposed and that the soil remains constantly productive, these people use various techniques they have learned from the relationship with nature and with their elders. Keywords: Sustainable production. Ethnoknowledge. Indigenous agriculture.

Introdução Estima-se que no Brasil vivem hoje 896,9 mil indígenas, moradores de 505 Terras Indígenas reconhecidas e distribuídos em 305 etnias, falantes de 274 línguas (IBGE, 2010). O povo Tapirapé que também se autodenomina Apyãwa, segundo Baldus (1970) tem sua origem atribuída na região do baixo Tocantins, passando na segunda metade do século VIII a viver às margens do rio Tapirapé. De acordo com Paula (2012), atualmente vivem em duas áreas indígenas situadas no nordeste do Estado: Terra Indígena Urubu Branco, onde estão localizadas seis aldeias e Área Indígena Tapirapé-Karajá, onde há uma aldeia, na qual a maior parte da população se identifica como Apyãwa (Tapirapé) e algumas famílias pertencentes ao povo Iny (Karajá), havendo também outras aldeias onde moram homens Apyãwa casados com mulheres Iny. Segundo Boef et al., (2007), a agricultura é um modo humano de usar os recursos biológicos, físicos e naturais para se alimentar, curar, construir abrigo, produzir fibras e gerar renda. As fontes de subsistência do povo Tapirapé provem da caça, pesca, coleta, agricultura e ultimamente houve a introdução de produtos industrializados. Os Tapirapé mantêm a prática de cultivo das lavouras, sendo os tubérculos a principal fonte de carboidrato. Segundo Wagley (1988) essa etnia era, fundamentalmente em ordem de importância, em primeiro lugar, horticultores, em segundo caçadores e pescadores e, finalmente, coletores. Embora alguns produtos que antigamente eram plantados nas roças e hoje já se compra na cidade, muitas famílias continuam a fazer as roças todos os anos. Nelas plantam diversidade de cultivares como abóbora, melancia, mandioca, banana, cará, batata doce, amendoim, milho, entre outras. A manutenção da cultura de fazer a roça anualmente é importante não só pelo fato de garantir alimentos tradicionais para o povo Tapirapé, mas também pelo papel que assume perante a comunidade, pois os ensinamentos sobre os cuidados com a terra são passados de pai para filho, entre as 120

AGRICULTURA INDÍGENA: O CONHECIMENTO TRADICIONAL NO PREPARO DA ROÇA ...

gerações, auxiliando na preservação da cultura e na formação do jovem, conforme pode ser visto no relato a seguir: “Trabalho junto com meu pai! Tem vez que trabalho pro meu sogro também por respeito e porque faz parte da cultura. Assim o jovem também vai com os pais, avós na roça, vão aprender as regras de fazer uma roça. Tá aprendendo com os mais velhos, para cuidar dos filhos e da esposa.” (Indígena Tapirapé, 2012)

Ao longo dos anos, a partir do contato com os não índios, muitos aspectos da cultura Tapirapé passou, e continua passando por uma série de ressignificações, e com a agricultura, isso não foi diferente. Porém mesmo com as dificuldades que foram surgindo no desenvolvimento das práticas agrícolas, esse povo não deixou de cultivar seus alimentos tradicionais, havendo muita sabedoria entre os mais velhos da aldeia, que justamente por sua experiência e conhecimento são os responsáveis por conduzir as atividades da roça no ano.

Características da agricultura indígena Um fato que sempre chamou a atenção de alguns estudiosos é a relação existente entre os indígenas e a natureza na aquisição de alimentos por meio de extrativismo, caça, pesca e agricultura. A forma como os grupos étnicos tradicionais praticam a agricultura chama especial atenção e tem sido utilizada como fonte para novas técnicas e práticas em prol da conservação, manejo e recuperação de ambientes de produção. Uma prova disso é a ascensão da Agroecologia como disciplina. Segundo Altieri (2002) foi a partir da observação e de estudos dos sistemas indígenas que se obteve grande parte da matéria-prima para o desenvolvimento de hipóteses e sistemas alternativos de produção agroecológica. Segundo Alves (2001) a agricultura indígena apresenta como características principais o domínio de sistemas sofisticados de produção que incluem desde conhecimentos de calendários agrícolas baseados na astrologia, formas peculiares baseados no conhecimento empírico de seleção e manejo dos solos e diversificação de culturas. Segundo Beltz (2012) o manejo indígena das roças de algumas etnias do Estado do Mato Grosso, possuem alguns pontos indispensáveis que demonstram a sustentabilidade desses sistemas, principalmente os que mantêm a sustentabilidade ambiental do local. A agricultura indígena pode ser entendida como de subsistência; porém é necessário que seja abolido o pré conceito estabelecido pelo 121

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

capitalismo acerca deste modelo agrícola, que o relaciona com algo pejorativo. É difícil definir o termo, mas Santos (2011) o conceitua como uma agricultura assentada em atividades exclusivamente manuais com o objetivo da autossuficiência do agricultor e sua família, sendo praticada de forma extensiva com a predominância da policultura que é uma maneira empregada para se obter a máxima produtividade possível. Nesta técnica, os instrumentos utilizados são mais “rudimentares”. Há pouco ou nenhum uso de insumos e de implementos de fora da propriedade, sendo este um trabalho mais artesanal, com mão de obra familiar. Entre os indígenas, há predominância deste policultivo, (o que, juntamente com outros fatores, pode ser caracterizado como agricultura de subsistência), garantindo diversidade de alimentos e suprimentos nutricionais em todas as épocas do ano. Dentre os manejos observados entre os povos indígenas Beltz (2012) ressalta ainda que o sistema tradicional de roças indígenas apresentam fortes indicativos de sustentabilidade, uma vez que esta forma de cultivo vai ao encontro do conceito de sustentabilidade. Tal pensamento demonstra que cada vez mais essa relação harmônica dos indígenas com a natureza pode ser de extrema importância nesse cenário de crise ambiental em que se encontra a humanidade, oferecendo subsídios que direcionem as demais sociedades para uma vida mais sustentável.

O preparo da roça Tapirapé O modelo de agricultura praticado pelos Tapirapé da aldeia Tapi’itãwa segue um padrão de agricultura itinerante, porém com menor mobilidade, em função da redução de terras apropriadas ao cultivo em seu território, causado pela invasão do não índio. Acredita-se que essa forma de cultivo seja uma das formas mais antiga de exploração da terra. De acordo com Noda (1994) o uso do termo agricultura itinerante tem sua origem do inglês shiffing cultivation e tem sido usado para designar a técnica de pousio. Este tipo de agricultura envolve uma alternância entre períodos de cultivo e longos períodos de pousio, que duram até que a floresta se reconstitua. Em uma sequência típica, a floresta é cortada e queimada para limpar a terra e produzir as cinzas que servem como fertilizante para o solo (REIJNTJES et al., 1994). Em diferentes povos indígenas a prática da roça de coivara ainda é muito utilizada, e entre os Tapirapé não é diferente. As etapas de preparo da roça do ano iniciam-se com a brocação (ato de retirar os brotos nas árvores de menor porte e fazer um anelamento nas maiores, que consiste de um corte na circunferência do tronco interrompendo a circulação de seiva, a fim de 122

AGRICULTURA INDÍGENA: O CONHECIMENTO TRADICIONAL NO PREPARO DA ROÇA ...

secarem e morrerem aos poucos); derrubada e queima da mata nativa do local escolhido para plantio. A esse respeito, detalha Wagley (1988): “Os Tapirapé empegavam o conhecido método da derrubada, queima e coivara. Todo ano, na estação seca, uma nova área da floresta era abatida para a formação dos roçados. Primeiro, os arbustos e as pequenas árvores eram derrubadas e empilhadas. Só então as árvores maiores eram abatidas. Fazia-se um grande esforço para que as árvores de maior porte caíssem atravessadas umas sobre as outras, e , para facilitar a queima, os galhos maiores eram removidos e colocados nas pilhas das pequenas árvores e arbustos. Depois de abatidas, as árvores e os arbustos ficavam secando até fins de outubro e começo de novembro. Finalmente procedia-se à queimada; quanto mais secas as árvores e arbustos, melhor a queima. Mas, se se deixava passar muito tempo e caíssem as fortes chuvas, frustrava-se a queima, deixando paus intactos e um emaranhado de galhos. Depois da queima procedia-se à coivara, isto é, alguns galhos e arbustos apenas chamuscados eram empilhados novamente e queimados, e os troncos caídos, podiam ser rearrumados para dar mais espaço. Porém, as roças Tapirapé nunca estavam limpas. Pelo contrário eram uma confusão de troncos meio carbonizados” (Wagley, 1988, p. 74)

Atualmente, pouco se modificou do sistema observado pelo etnógrafo. Houveram algumas mudanças/adaptações quanto as épocas da realização de cada etapa. De acordo com ensinamentos do povo Tapirapé, a roça deve começar a ser feita quando o cajá estiver com flor. “O cajá (akaxã) é a fruta predileta do jabuti. Para o povo Tapirapé o cajá é uma espécie de fruto muito importante. Quando o cajazeiro começa a dar frutos, os grandes lavradores Tapirapé procuram demarcar o chão, onde querem fazer sua roça” (Depoimento Tapirapé – Acervo Joana Saira/UNEMAT, 2009)

Após a escolha do local onde será feita a roça, iniciam-se os processos de preparo inicial. O anelamento é feito por meio de um corte em toda a circunferência da árvore, atingindo os vasos floemáticos e xilemáticos. Dessa forma, interrompe-se a passagem de seiva e nutrientes, causando a morte da planta. Após a brocação, os Tapirapé preparam-se para a derrubada, ao qual ocorre geralmente em junho e julho, para que dê tempo de estarem 123

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

bem secas, quando for à época da queima. Antigamente a derrubada era feita utilizando somente machados e facões, atualmente é possível observar que além destas ferramentas, já se utiliza a motosserra, embora em menores proporções em Tapi’itãwa. A derrubada das árvores é uma das atividades que integram o ritual de preparo das roças. Baldus (1970) descreveu presenciar gritos alegres que soavam e gargalhadas que se faziam ouvir por todos os lados, como se esse povo realizasse um jogo bem divertido. O fato é explicado por Januário et al. (2009), ao relatar que na prática, ao derrubar uma árvore esse povo sempre grita, pois esse ato representa o grito da vitória sobre a árvore, principalmente quando esta é grande. Como se trata de uma derrubada segundo um ritual Tapirapé, entre os lavradores que preparavam a roça, há o cuidado em fazer a limpeza somente na área necessária ao cultivo dos alimentos. Na figura 01 é possível visualizar as delimitações entre a vegetação seca e ao fundo a mata nativa, que serve como barreira de proteção as plantas que serão cultivadas.

Figura 01: Área onde foi derrubada a vegetação para estabelecimento da roça. Aldeia Tapi’itãwa, 2012. Foto: RAMOS.

A queima da vegetação é realizada pelos mais velhos da aldeia que identificam a melhor época e dia para realizarem o trabalho. Para isto, são feitas observações sobre a velocidade e direção do vento, pois dessa forma, pode-se controlar o fogo e queimar somente o que é desejado. 124

AGRICULTURA INDÍGENA: O CONHECIMENTO TRADICIONAL NO PREPARO DA ROÇA ...

No processo histórico da humanidade, o fogo, desde sua descoberta, desempenha importante papel em várias atividades primordiais à sobrevivência de espécies animais e vegetais. A relação dos povos indígenas com o fogo é de domínio e uso tradicional em equilíbrio com o ambiente, havendo uma relação de respeito a este elemento considerado sagrado. Muitas etnias utilizam o fogo como aliado em várias atividades como a caça e a limpeza das áreas onde serão feitas as roças. Leonel (2000) relata que o uso do fogo na agricultura é muito antigo e entre os povos indígenas o cuidado com o fogo aparece inclusive no ato de atribuir-se aos anciãos a tarefa de decidir a época de queimar, logo, queima-se somente a partir de um conhecimento acumulado, da sabedoria. A periodicidade das derrubadas depende das condições de solo e das áreas disponíveis para a realização da roça do ano. Segundo Santos (2011) normalmente ocorre a realização de novas derrubadas nesta etnia entre 03 e 04 anos, podendo variar de acordo com o tipo de solo e o nível de fertilidade observado. Esse processo decorre também com o decréscimo da produção e o aparecimento de infestações de plantas daninhas. Entre os Tapirapé o ritual da queima é assim descrito: “Quando o vento começa, o dono da roça prepara o seu material “chamador de vento” (arawaja). Arawaja é feito com rabo de arara vermelha com cabo de taquari. Na queimada também realizamos um ritual que chama o vento. A queimada da roça é sempre realizada a partir do meio dia. Essa queimada é feita da seguinte maneira, o dono da roça faz uma tocha, com a qual ele vai queimando. Essa pessoa vai queimando a roça dando a volta toda na roça, eles vai gritando até terminar [ ...]. Após queimar, só no outro dia, os donos vão olhar como é que ficou... Se a roça não queimou direito, aí no outro dia fazemos a coivara, até ficar limpa. Se a roça queimar bem, aí não precisa coivarar ” (Januário et al., 2009, p.131). “Através da lua o povo Tapirapé sabe o tempo certo de fazer a queimada. Quando a cigarra começa a cantar mostra que tá na hora de queimar e daqui uns dias a chuva vai começar “(Indígena Tapirapé, 2012)

Outro fato interessante sobre a queimada entre os mais sábios da aldeia Tapirapé é que a mesma geralmente é feita após a primeira chuva, pois assim, diminuem as possibilidades do fogo se espalhar e causar problemas. Conforme figura 02, onde com olhar mais atento, percebe-se ao 125

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

fundo a presença de uma mata que não foi atingida pelo fogo, confirmando com isso a habilidade de controle de espaço que necessita ser queimado para a formação da roça.

Figura 02: Área da roça após a queimada. Aldeia Tapi’ítãwa, 2012. Foto: RAMOS.

Na região do médio norte Araguaia, entre os meses de agosto e setembro é comum a ocorrência de rajadas de ventos fortes. Assim, nesta época muitos pecuaristas aproveitam para fazer a renovação dos pastos e abertura de novas áreas. Utilizam as queimadas, sem levar em consideração as condições ambientais da região neste período, e a utilização de técnicas específicas para o controle do espaço a ser queimado, diferentemente do procedimento que pode ser observado nas roças Tapirapé. Com a área queimada é feita a demarcação de onde será plantada a roça de cada família, cujo tamanho dependerá do número de componentes da mesma que irão trabalhar nela. Segundo Santos (2011) trabalhando com a aldeia Sapeva (vizinha à Tapi’itãwa), a área média de produção de uma roça Tapirapé se encontra entre um e dois hectares. Porém foi observado no decorrer da pesquisa, de acordo com relatos dos mais idosos, que as áreas têm diminuído em função da maioria dos jovens não demonstrarem interesse em cultivar os alimentos indígenas. De acordo com Januário e Silva (2011) o povo Tapirapé antigamente não usava o metro como unidade de medida de sua roça, mas usava alguns 126

AGRICULTURA INDÍGENA: O CONHECIMENTO TRADICIONAL NO PREPARO DA ROÇA ...

conhecimentos tradicionais para trabalhar na roça e saber a medida. Eles cortavam uma vara para colocar na ponta da roça e marcavam os lados direito e esquerdo, sendo colocada uma vara em cada lado. Depois disso iniciavam a roçada em linha reta onde tinha feito às demarcações, calculando assim o tamanho de sua roça. Durante a coleta de dados no desenvolvimento da pesquisa foi observado que para realizar a separação das áreas de cada família, foi utilizado como referência uma embira (cipó ou fibra de casca de determinadas espécies de árvores) de aproximadamente dois metros. O que também foi relatado por Januário e Silva (2011) quando dizem que a forma como os mais velhos utilizavam para determinar o tamanho da roça sempre foi o uso de um pauzinho e a embira de dois metros. Para a demarcação dos limites físicos e visuais destas áreas são utilizadas estacas de taquara com uma sacola plástica na ponta, com o objetivo de delimitar o fim de uma roça e o início de outra, o que antigamente era feito utilizando-se grandes troncos caídos.

Formação da roça Tapirapé Entre os Tapirapé pode haver dois tipos de roças: a comunitária e a familiar. Antes de iniciar o preparo do local de plantio, a comunidade reúnese e decide quais as famílias que irão fazer lavoura naquele ano. A roça comunitária, também chamada de Maxirõ ou Apachirú é realizada em forma de mutirão, e todos (independente do sexo) devem ajudar no cultivo dos alimentos. Quando na época da colheita, os produtos são divididos igualmente entre as famílias que trabalharam. Segundo Januário et al. (2009), quando é feita a opção pela comunidade em fazer a Maxirõ, há a realização de um grande ritual, onde os homens vão à roça e marcam com as mulheres a hora da chegada (geralmente antes do por do sol). Assim, elas levam comidas como cauim, peixe, carne, produtos da roça e até enfeites, pois os homens chegam dançando e com fome. Quando terminam de comer, as mulheres passam urucum no pé e na tamakora (braçadeira feita com linha de algodão). Depois os homens vão para a Takãra (Casa dos Homens) dançando e acontece a corrida (que é um preparo físico dos jovens para serem bons corredores). Esse ritual somente é feito quando se decide por fazer a lavoura com todos da comunidade participando, ou seja, a roça comunitária como é chamada. Em seus relatos Wagley (1988) afirma que entre 1939 e 1940 já observava que a limpeza das roças transformara-se em uma tarefa mais 127

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

individual que coletiva, ao contrário do que foi observado pelas Irmãzinhas de Jesus no ano de 1953. “Segunda-feira (24 de agosto de 1953): Logo depois (de chegarem da pescaria), os homens se reúnem na takãra e decidem que todos irão hoje queimar as roças novas... Cada um leva um bambú com uma pena enorme fincada na ponta, para ver a direção do vento e botar fogo no lugar certo” (Diário das Irmãzinhas de Jesus, 2002, p.132)

A roça familiar (mais usual entre os Tapirapé da aldeia Tapi’itãwa) é feita todos os anos por algumas famílias. Segundo a comunidade, “não pode deixar de cultivar espécies de plantas de índio, porque os alimentos dos brancos estão fazendo mal.” Conforme afirmam os Tapirapé, a roça familiar passou a predominar as modalidades de cultivo, devido à falta de interesse dos jovens em aprender sobre os ensinamentos agrícolas de seu povo. Dessa forma, são poucas as famílias que ainda permanecem com esta tradição.

Considerações Finais Entre os Tapirapé as pessoas mais idosas são consideradas portadoras de grande sabedoria, cabendo a elas a condução de todos os processos de preparo e cultivo da roça. O sistema agrícola é composto por um modelo de agricultura itinerante de coivara, onde o solo permanece em pousio por pelo menos cinco anos antes de ser trabalhado novamente para cultivo. O respeito a essa técnica garante a fertilidade e prima pela recuperação das espécies vegetais locais, sendo a biodiversidade mantida e melhorada, o que é um dos princípios da sustentabilidade da roça indígena. Dentro dessa perspectiva, sabe-se que a sobrevivência dos Tapirapé está diretamente vinculada à própria conservação da natureza, em espaços adequados, viabilizando a manutenção de suas aprendizagens passadas através das gerações. É possível perceber que mesmo com as mudanças ocorridas ao longo dos anos com as formas de praticar a agricultura, a etnia Tapirapé mantém viva a tradição de fazer a roça conforme os costumes desse povo. Acreditam que enquanto existirem famílias que fazem suas roças todos os anos, levam seus filhos para aprenderem desde criança os cuidados com as plantas, épocas, rituais e forma correta de manejo e preparo da terra; as roças, o artesanato a identidade e cultura desse povo serão sempre mantidos. 128

AGRICULTURA INDÍGENA: O CONHECIMENTO TRADICIONAL NO PREPARO DA ROÇA ...

Referências ALTIERI, M. A. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável. Guaíba: Editora Agropecuária, 2002. ALVES, R.N.B. Caracterização da Agricultura Indígena e sua influência na produção familiar da Amazônia. Belém: Embrapa Amazônia Oriental, 2001. BALDUS, H. Tapirapé – Tribo Tupi no Brasil Central. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970. BELTZ, L. Roças Indígenas no Estado de Mato Grosso: Educação Ambiental e Sustentabilidade entre os estudantes da Faculdade Indígena Intercultural. 2012. 102f. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós Graduação em Ciências Ambientais). Universidade do Estado de Mato Grosso, Cáceres-MT, 2012. BOEF, W.S. THIJSSEN, M.H.; OGLIARI, J.B.; STHAPIT, B.R. Biodiversidade e agricultores: fortalecendo o manejo comunitário. Porto Alegre L&PM, 2007. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010. Disponível em: http://www.indigenas.ibge.gov.br/ images/indigenas/estudos/indigenas-censo2010.pdf . Acesso em: 08 abr 2012. IRMAZINHAS DE JESUS. O renascer do povo Tapirapé. Diário das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucald. São Paulo: Editora Salesiana, 2002. JANUÁRIO, E. et al. Roça Indígena. Barra do Bugres/MT: Unemat, 2009. JANUÁRIO, E.; SILVA, F.S. (Org.) Roças – Série práticas Interculturais. v.16. Cáceres: Ed. Unemat, 2011. LEONEL, M. O uso do fogo: o manejo indígena e a piromania da monocultura. Estudos Avançados, v. 14, São Paulo, n. 40, p. 231-240, set. 2000. NODA, S.N. Homem e natureza. As agriculturas familiares nas várzeas do Estado do Amazonas. FUA/INPA/EMBRAPA/IBAMA/GTZ/Fundação Oswaldo Cruz, s/d: 40. 129

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

PAULA, E.D. Eventos de fala entre os Apyãwa (Tapirapé) na perspectiva da etnossintaxe: singularidades em textos orais e escritos. Tese (Doutorado). Goiânia: UFG, 2012. REIJNTJES, C.; HAVERKORT, B.; WATERS-BAYER, A. Agricultura para o futuro: uma introdução à agricultura sustentável e de baixo uso de insumos externos. Rio de Janeiro: AS-PTA, 1994. SANTOS, A.R. Análise Socioeconômica da Agricultura de Subsistência: São João, Cabaceiras do Piaui. 2011. 58 f. Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura Plena em Geografia. Universidade Estado do Piauí, Barras. WAGLEY, C. Lágrimas de Boas Vindas – os índios Tapirapé do Brasil Central. Belo Horizonte, Itatiaia/EDUSP, 1988.

130

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.