PALESTRA REALIZADA NA SEÇÃO MINEIRIANA A Mineiriana e suas mineiridades

May 22, 2017 | Autor: Walderez Ramalho | Categoria: Historia, Minas Gerais, Historiografia, Mineiridade
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PALESTRA REALIZADA NA SEÇÃO MINEIRIANA DA BIBLIOTECA ESTADUAL LUIZ DE BESSA, 03/09/2015. A Mineiriana e suas mineiridades Walderez Simões Costa Ramalho

Introdução Gostaria primeiramente de agradecer o convite que me foi feito pela Eliani para participar desta mesa. Sobretudo porque o tema geral deste evento tem muitas semelhanças com alguns problemas que tenho refletido nos últimos dois anos. A Coleção Mineiriana constitui um acervo de mais de 24 mil itens produzidos em Minas ou sobre Minas. Portanto, constitui uma referência fundamental a todo estudo que tenha Minas Gerais como objeto, nas mais diferentes áreas do conhecimento e das artes. Trata-se, portanto, de uma referência importantíssima para a preservação e fomento à produção cultural mineira. Mas o que vem a ser essa “cultura mineira”, uma expressão que já nos habituamos a utilizar no nosso cotidiano, mas que parece resistir a todo esforço de definição? “De que jeito dizê-la? MINAS: patriazinha. Minas – a gente olha, se lembra, sente, pensa. Minas – a gente não sabe”. Quando falamos em memória e história de Minas Gerais, estamos reforçando um sentimento de pertencimento que dificilmente encontra subsídios na realidade concreta. Pois como já é bastante sabido, Minas Gerais é um dos estados mais diferenciados internamente do Brasil. E isso não apenas entre as sub-regiões, mas também entre classes sociais, gênero, etnia, etc. Mas essa diversidade não invalida por completo a possibilidade de uma memória histórica mineira, tampouco proíbe qualquer sentimento que possa surgir pela evocação do nome. Ela apenas nos mostra que essa memória não é um dado natural, imanente, mas que exigiu

 

grandes

investimentos

políticos,

culturais

e

até

econômicos

para

ser

 

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construído/inventado. Em outras palavras: a memória histórica de Minas Gerais é, ela mesma, construída historicamente. Isso significa que para encararmos a questão da “mineiridade” (tema espinhoso e de difícil abordagem), é fundamental termos no horizonte o caráter plural e móvel da vida social, que cada vez mais demanda espaços de afirmação de suas diferenças sem o constrangimento e a violência do preconceito. O que trago aqui hoje são apenas alguns apontamentos sobre como se deu essa construção histórica do tema da mineiridade. Proponho uma viagem panorâmica pela Coleção Mineiriana, particularmente por uma de suas mais importantes estantes ou fileiras: qual seja, as narrativas de interpretação histórica da mineiridade, que tomaram esse tema como objeto central do seu discurso, que em minha dissertação chamei de historiografia da mineiridade. Essas obras podem ser entendidas como aquilo que Jörn Rüsen denominou as narrativas-mestras de um grupo cultural, isto é, textos que procuram dizer às pessoas quem elas são (indivíduos, grupos, nações) narrando a história de uma maneira que aqueles que querem saber quem são possam aceitar a autoimagem histórica apresentada. Elas funcionam como um meio de orientação na mudança temporal. Esses textos, portanto, são fontes privilegiadas para se compreender como os “mineiros” tem sido imaginados e problematizar os significados mais proeminentes atribuídos a essa referência de identidade. Esse exercício deve contribuir para uma apropriação crítica e reflexiva dessas imagens, ainda presentes e utilizadas para interpelar os sujeitos como “mineiros” – em campanhas eleitorais, por exemplo. No campo da política, o apelo a uma identidade mineira idealizada ainda é utilizada recorrentemente em discursos eleitorais ou comemorativos de alguma data cívica. O momento atual de fortes tensões partidárias (muitas vezes expressadas numa linguagem paradoxalmente apolítica e estranha à imagem tradicionalmente construída sobre Minas) recomenda um cuidado a mais para citar qualquer exemplo. Para tentar diminuir esses riscos, citarei brevemente apenas dois exemplos recentes. O primeiro é um trecho de entrevista concedida por Aécio Neves em 2002, uma semana antes de ser eleito governador do estado: O mineiro é hospitaleiro, conciliador e tem uma visão de pátria talvez maior do que outros estados. Quero incluir entre as características dos mineiros a ousadia. Minas tem que ousar mais, mineiro tem que ousar mais e voltar a ser vanguarda em algumas coisas. Temos que

 

 

3   voltar a exportar nossos talentos para o Brasil e ter um papel definidor na política nacional. Quando falta a presença de Minas nas decisões nacionais, é ruim para Minas, mas é muito pior para o Brasil. O segundo foi retirado do discurso do atual governador de Minas Fernando Pimentel

durante a cerimônia de entrega da Medalha da Inconfidência, no último dia 21 de Abril:

Que o equilíbrio e a moderação presidam sempre os poderes da nossa república: esse o desejo de Minas Gerais, esse o desejo de todos os brasileiros. Reverenciemos nosso mártir, e inspirados no seu exemplo, busquemos a liberdade através da justiça, serena, segura e isenta. Viva o Tiradentes! Viva Minas Gerais! Viva o Brasil! Apesar de pertencerem a partidos opostos, não é difícil perceber a grande similaridade entre as duas imagens apresentadas pelos governadores mineiros. A ênfase no equilíbrio e na conciliação. A centralidade de Minas na vida política nacional. A história como o testemunho fiel da própria imagem apresentada pelo discurso. Essas semelhanças presentes nesses pequenos excertos não são de nenhuma maneira fortuitos. Em poucas palavras e frases curtas, ambos estão travando um diálogo direto com uma longa tradição de se interpretar e representar a identidade histórica de Minas Gerais. Vejamos então algumas dessas narrativas-mestras da mineiridade, e perceber como elas apresentam imagens de Minas que em muito se aproximam dos exemplos citados.

* Uma viagem panorâmica pela historiografia da mineiridade Inicio esta breve viagem no contexto da Primeira República, um momento de mudanças profundas no Brasil e em Minas (mudança de regime político, transferência da capital, fim da escravidão, separação entre Igreja e Estado, etc.). Nesse contexto de experiência acelerada do tempo, vários políticos e intelectuais sentiram a necessidade de afirmar o que era, afinal, o “caráter mineiro” e qual o seu destino. Para tanto, esses homens (em sua quase totalidade brancos, católicos, que ocupavam cargos públicos e geralmente com formação em Direito) voltavam-se para o passado, na crença de que a “tradição herdada” contém a verdade de Minas e deve ser defendido e preservado no presente e futuro.

 

 

4   Diogo de Vasconcellos foi um dos que se dedicaram a definir a identidade do que ele

chamava de “civilização mineira”. Em História Antiga de Minas Gerais (1904) e História Média de Minas Gerais (1918), obras históricas pioneiras desse autor, vemos uma imagem de Minas que, embora envolta em diversos motins e rebeliões, teria como núcleo primordial a valorização da ordem civil e a obediência aos governos, como fatores de garantia do “progresso histórico” e do exercício das liberdades dos indivíduos. Outro intelectual desse período também pintava um quadro semelhante sobre o tipo ideal do mineiro. Nelson de Senna, em seu opúsculo Tradições Mineiras (1909), apresenta um retrato de Minas acentuando certas características como a hospitalidade, a honradez e a sabedoria em exercer as suas liberdades dentro do espírito sereno da Ordem. Ou, como dizia João Pinheiro, do “senso grave da ordem”. Nelson de Senna foi também um grande corógrafo, e escreveu A Terra Mineira (1924/1926), obra em dois volumes que procura definir o quadro geográfico e histórico de formação do “ser mineiro”. Nesses textos, a história de Minas “cientificamente” depurada nas fontes e através de um método rigoroso, comprova a existência de uma tradição de preservar a liberdade dos cidadãos em função do respeito à ordem instituída. Devido a esse equilíbrio original entre Liberdade e Ordem, (obscurecendo a questão da escravidão, por exemplo), Minas adquiriu um aspecto diferenciado do restante do Brasil. É nessa moldura discursiva que a Inconfidência Mineira (menos em Vasconcellos que na obra de Nelson de Senna) era erigida como o grande momento de afirmação do “espírito de Minas”, e Tiradentes, o “Verbo da Liberdade” segundo Nelson de Senna, a encarnação dos valores atribuídos aos “mineiros”. Assim, o aspecto libertário tinha comprometida a sua força criadora, na medida em que ela estava enquadrada pelo discurso de manutenção da ordem instituída – o que corresponde a uma visão conservadora de mundo, além de dirimir a existência de conflitos internos. Sobre a figura da tão propalada “tradicional família mineira”, um autor que contribuiu para a sua fixação no imaginário regional foi Francisco José de Oliveira Vianna. Fluminense de Saquarema, Oliveira Vianna fez uma viagem a diversas cidades mineiras entre 1917 e 1918. Relatou sua viagem num texto clássico, Minas do lume e do pão (1920), onde descreveu as suas impressões sobre a vida cotidiana dos mineiros em busca da sua “essência” ou fundamentação última, que segundo o autor residiria nos ditames da família tradicional, de cunho rural e patriarcal.

 

 

5   “Os mineiros, bem o sei, não se sentem muito lisonjeados quando enaltecemos o seu tradicionalismo: é como se o julgássemos atrasados ou rotineiros. Esquecem que – a grandeza de um povo está na força de persistência dessas tradições familiares e domésticas, que são a expressão mais típica do seu caráter nacional. Mantê-las tanto quanto possível dentro da fatalidade evolutiva da civilização – eis o ideal de um povo consciente da sua personalidade e orgulhoso do seu espírito”. Outra figura central da retórica tradicional da mineiridade são as montanhas mineiras.

Ela aparece em praticamente todas as narrativas-mestras da mineiridade, entre as quais merece destacar o livro de João Camillo de Oliveira Torres, O homem e a montanha (1944), vencedor do “Prêmio Diogo de Vasconcellos” da Academia Mineira de Letras. Nele o autor se propõe a responder qual a influência na formação do “caráter regional” pelo fato de seu território ser montanhoso. Se nesse livro encontramos um estudo calcado no que hoje diríamos “determinismo geográfico” (que aliás desconsidera a topografia multifacetada do estado), encontramos muitas sugestões importantes para o estudo de história social e das ideias em Minas Gerais, o que já vale a pena a leitura. Para João Camillo, as montanhas foram determinantes na formação da cultura mineira, sobretudo porque elas propiciaram um isolamento da região, formando em Minas uma “cultura em conserva” na qual o tempo não atua como fator de mudanças, onde as estruturas de sociabilidade forjadas desde o século XVIII ainda subsistem no presente. Essa cultura em conserva, marcadamente tradicionalista, começava a ser quebrada com o surgimento de novos meios de comunicação (especialmente a estrada de ferro). Nesse contexto, o autor se lançou a escrever sobre essa cultura tradicional, antes que ela se “descaracterizasse” pela modernização do Estado. Trata-se, portanto, de uma espécie de evasão da temporalidade, a negação da mudança, vista como uma ameaça que precisava ser combatida pela defesa das verdadeiras tradições. Uma terceira imagem fortemente cultivada pelo discurso tradicional da mineiridade é a ideia de que Minas seria a síntese do Brasil. A posição central no mapa do país alimentou a construção dessa imagem de Minas como centro de integração nacional, articulando as diferentes regiões do Brasil desde o período minerador pelo comércio, as estradas e os rios que nascem ou passam pelo estado (sobretudo o Rio São Francisco). Vejamos um exemplo retirado do texto Formação histórica de Minas Gerais, de Daniel de Carvalho: “A posição do Estado de Minas no centro do país, a cavaleiro do litoral e dele separado por barreiras difíceis de transpor, traz-lhe uma situação de isolamento e evidentes desvantagens econômicas. Em  

 

6   compensação, deu-lhe o privilégio de poder conservar uma cultura nascida da fusão de elementos do sul e do norte do país, de que resultou tornar-se o mais brasileiro dos nossos estados. O equilíbrio nas ideias e sentimentos domina o planalto mineiro, de onde se pode divisar com imparcialidade e clareza os problemas nacionais”. Por estar no centro do país e numa posição de montanha, o mineiro estaria mais apto

que os demais brasileiros a compreenderem os problemas nacionais. A tradução política dessa construção seria, então, a afirmação de uma certa vocação do mineiro para a atividade política. É um lugar comum do discurso tradicional afirmar que a política é uma vocação natural do mineiro. Os intérpretes buscavam sustentar essa afirmativa buscando exemplos históricos que comprovassem essa caracterização – que não deixam de ser problemáticos. João Camillo e Diogo de Vasconcellos, por exemplo, apresentavam as Câmaras Municipais como a grande expressão dessa vocação, pois se constituíam em espaços de civilidade onde os mineiros aprenderam, desde as suas “origens”, a negociar os seus impasses e a necessidade da ordem para a vida em sociedade. Outros privilegiavam os “grandes nomes” da política regional durante o Império, como fazem, por exemplo, Afonso Arinos de Mello Franco e Gilberto Freyre, que elegiam o panteão da tradição política de Minas Gerais: Bernardo de Vasconcellos (o construtor da ordem), Marquês do Paraná (o conciliador), e Teófilo Otoni (a voz prudente da liberdade). A conciliação na política, simbolizada sobretudo pelo equilíbrio entre Liberdade e Ordem, como já mencionei, era apenas uma expressão de uma marca mais fundamental da mineiridade: a marca do equilíbrio, da sobriedade de espírito, da moderação, prudência, que temperam o idealismo e a aspiração ao universal. A mineiridade seria, em última instância, a capacidade de se chegar a unidades harmônicas e superiores em meio às divergências e alteridades primitivas. Daí a força que o discurso da mineiridade poderia assumir, já que a presença do contraditório não era negada, pois estaria subordinada à unidade de um caráter forte, constante e amplo o suficiente para englobar tais diferenciações. Miran Latif, em seu As Minas Gerais (1936) dizia que a alma mineira é formada pela simbiose de duas estruturas de personalidade opostas, simbolizadas pela figura de Dom Quixote (idealismo e espírito inovador) e Sancho Pança (realismo e ponderação). Para o autor, o maior valor do “espírito de Minas” é o resultado desse equilíbrio entre Quixote e

 

 

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Sancho, que habilitou o homem local [sic] para o exercício e a liderança na política nacional. Um não anula o outro, mas convergem num mesmo espírito coletivo. A diferença não é negada, mas submetida à unidade do “ser regional”. “Mas o que há de realmente apreciável no homem é a simbiose que os mineiros, nas cumeadas das suas “alterosas”, praticaram como verdadeiros equilibristas e sempre possuíram como ninguém. Foi sob este aspecto, tão necessário ao bom andamento dos negócios do governo, que os mineiros se firmaram na política, não apenas da sua província como do país todo”. Outra grande narrativa-mestra da mineiridade que privilegiou essa marca do equilíbrio na confecção do seu retrato foi Voz de Minas (1945), de Alceu Amoroso Lima. Este livro foi muitas vezes visto como a maior referência no assunto, seja como referência autorizada e competente, seja como influente mas equivocada, que precisaria ser desconstruída (como Eduardo Frieiro, que negava a existência de uma mineiridade em Páginas de crítica e Feijão, angu e couve obra clássica sobre a culinária regional). Em sua narrativa, Amoroso Lima compõe um retrato em detalhes sobre o “mineirismo” ou o “modo de ser do mineiro”, que segundo ele seria caracterizado por qualidades como sobriedade, ascetismo, realismo, desconfiado, e profundamente conservador e apegado ao seu passado. Amoroso Lima finalizava o livro apontando qual deve ser a missão de Minas para o Brasil: preservar a unidade e as tradições nacionais como antídoto às vicissitudes da modernidade que então avançava sobre o Brasil, particularmente nos centros mais cosmopolitas do país (Rio de Janeiro e São Paulo). O autor chega a confessar que, se tivesse forças suficientes, fecharia as portas para que a “onda de corrupção” não invadisse Minas Gerais, símbolo e baluarte das tradições nacionais e genuínas. “A Minas cabe, pois, a missão de preservadora do passado, de reformadora das influências cosmopolitas que vão levando o Brasil para o indistinto ou a servidão moral e finalmente de compensadora de todos os desequilíbrios extremistas”. Partindo de uma perspectiva bem menos tradicionalista que Amoroso Lima, o historiador e arquiteto Sylvio de Vasconcellos também destacou a tendência ao equilíbrio do mineiro. Em sua obra Mineiridade: ensaio de caracterização, de 1968, o autor exalta a unidade de Minas, formada pela síntese das diversas influências que estiveram na base de sua formação histórica.

 

 

8   “O antagonismo é permanente, a contradição constante. Todavia, preside a tudo uma unidade indissolúvel que não permite dissociações. Da complexidade extremada resultam sempre soluções unitárias, conjugando divergências. Não há gente submissa e gente rebelde. Obediente e revoltado é a mesma pessoa do povo”. Ainda em Mineiridade: ensaio de caracterização, o autor, em contraste com a maior

parte das narrativas tradicionais da mineiridade, afirma que o mineiro é um ser voltado para o futuro, a modernidade, e é essencialmente democrático e libertário, insubmisso e profundamente avesso à tirania. A Inconfidência e a Revolta de 1720 foram apenas os mais exemplos de um estado de espírito constante. Mas ao mesmo tempo, essa insubmissão e rebeldia da mineiridade era dirigida apenas à dominação metropolitana, e não comprometia a harmonia interna, ela própria marcada pela maior igualdade social. Em relação aos escravos, por exemplo, o autor chega a afirmar que eles se eximiam de fugas ou quilombos, pois eram dignamente tratados pelos senhores, e se uniam a estes contra a opressão portuguesa na região. Mais uma vez, portanto, o aspecto inovador do aspecto libertário e rebelde era escamoteado em nome de uma unidade abstrata, imaginária, e muitas vezes com um tom politicamente conservador. Não por acaso, o discurso tradicional da mineiridade é muitas vezes mobilizado para justificar e legitimar a dominação já constituída, inibindo a crítica ao sistema. A partir da década de 1980, muitos autores passaram a denunciar esse aspecto conservador do discurso tradicional da mineiridade. Nesse contexto, muitos intelectuais se voltaram novamente ao tema da mineiridade, mas dessa vez a partir de uma perspectiva de crítica à memória oficial e tradicionalmente dominante. Otávio Soares Dulci, por exemplo, publicou dois artigos (1984 e 1988) para analisar a mineiridade como uma construção ideológica construída, veiculada e referida primeiramente pelas elites políticas mineiras. Ainda segundo o professor Dulci, o eixo central da ideologia da mineiridade seria a cultura política da conciliação, representada, no seu presente, sobretudo na figura de Tancredo Neves. Na mesma direção, a professora Heloísa Starling, em seu Os senhores das Gerais, analisou como o discurso da mineiridade tradicional foi instrumentalizado pelos grupos políticos civis que estiveram na base do movimento conspiratório que poria fim ao governo Goulart em 1964.

 

 

9   Fernando Correia Dias também se dedicou a escrever sobre o tema, privilegiando

uma abordagem mais cultural e sociológica. Indico para a leitura o livro A imagem de Minas (1971), e o opúsculo Mineiridade: construção e significado atual, publicado pela Biblioteca Luiz de Bessa em 1985. Outros estudos de referência, dos mais abrangentes publicados nos anos mais recentes, são Mitologia da mineiridade, de Maria Arminda Arruda (1990); e Guardiães da Razão: os modernistas mineiros, de Helena Bomeny (1994). Ambos os livros são originariamente as teses de doutoramento das duas autoras em sociologia, a primeira compreendo a mineiridade como uma construção mítica que atravessou toda a história cultural de Minas e do Brasil desde o século XVIII à Nova República; e a segunda situando a centralidade do discurso da mineiridade com os modernistas mineiros, como expressão de uma experiência fundada na institucionalização da República e da mudança da capital para Belo Horizonte.

Considerações finais Ao focalizar a questão não nos fundamentos “essenciais” da identidade regional, mas sim nas intenções, estratégias, construções narrativas e o lugar social dos autores e a carga política dos seus pontos de vista, esses e outros trabalhos mais recentes contribuem para uma apreensão mais crítica do discurso tradicional que, como vimos, ainda se faz presente nos dias atuais. Assim, não se trata de negar completamente o valor histórico dos intérpretes anteriores, como visões totalmente deturpadas e que precisamos negar integralmente para construir a sociedade que nós queremos. Trata-se, antes, de reler criticamente esses textos, localizá-los social e historicamente, compreender criticamente os seus pontos de vista, colocálos em diálogo mútuo. Esse exercício crítico deve interessar não apenas a um estudo estritamente acadêmico (no pior sentido do termo), mas sim num debate mais amplo que suscite a discussão sobre o que imaginariamente temos sido, e o que queremos nos tornar. Sobretudo, é preciso abandonar as facilidades do discurso tradicional das identidades sociais, e valorizar a diversidade do humano, a inclusão e justiça social. Isso significa problematizar as construções anteriores, que contribuíram para a fixação de muitas imagens ainda presentes no imaginário regional. Como já afirmou o professor José Murilo de Carvalho, em um belo texto sobre as “vozes de Minas”, o resultado dessa refiguração imaginária pode, se vier a ser levada a cabo,

 

 

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de início uma cacofonia. Mas talvez essa seja uma condição para que se vá além da Liberdade e da Ordem, acrescentando o valor da justiça social e a valorização das diversidades socioculturais. A Coleção Mineiriana, e a Biblioteca Luiz de Bessa em geral, tem uma função estratégica para contribuir com essa tarefa. Por isso, é necessário defendê-la e valorizar as suas atividades, preservar e ampliar os investimentos destinados, como uma forma de promover os direitos de cidadania em Minas Gerais.

 

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