PANDORA, IOULKA E MARIA: OS DISSABORES DO ARQUÉTIPO.

June 29, 2017 | Autor: Cassio Maia | Categoria: Gender Studies, Languages and Linguistics, Literature, Eroticism, Eroticism In Literature
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PANDORA, IOULKA E MARIA: OS DISSABORES DO ARQUÉTIPO.

Cassio Larotonda Maia



Resumo: o presente diálogo visa compreender e expor as linhas que cosem a
literatura(a arte), as construções míticas e os fatos jornalísticos, a fim
de ensejar uma melhor compreensão da construção social da mulher na
perspectiva masculina. Para isso, no título, representamos os três quadros
desse mosaico a partir da tríade Pandora-Iouka-Maria, em que Pandora
representa a mulher mítica; Iouka, a literária e Maria, a comum. Como
recorte, lançaremos mão de matérias jornalísticas, trechos da construção
mítica ocidental e a obra Lokis sob luz dos teóricos Bram Dijkstra, Maria
Aparecida Baccega, Everardo Rocha, entre outros.

Palavras-chave: literatura, mito, mulher, arquétipos



1 – Pandora, Eva e o arquétipo feminino nos meandros do mito.

O que é o mito? O mito nos circunda, nos circunscreve, nos
inscreve. Somos produtos e produtores desse verbete de plurissignificação
tão presente e definição – por vezes – igualmente ausente. Definido por
alguns como aquilo que não se pode desconstruir, nas suas mais
diferenciadas significações, esse significante caprichoso já provou também
se desconstruir a bel prazer.
Certa feita, versou Nietzsche: "sem o mito, porém, toda cultura
perde sua força natural sadia e criadora: só um horizonte cercado de mitos
encerra em unidade todo um movimento cultural"(1992, p. 135)
Não nos cabe aqui traçar a miríade de sentidos que a palavra possa
ter, em vez disso, estreitaremos nosso entendimento jornadeando na
definição de que o mito é a forma como o ser indivisível, inexato,
incompleto e incontínuo encontrou para se relacionar com a vastidão que o
circunda; ele é, portanto, como enxergamos, compreendemos e nos
manifestamos no mundo tal qual ele se abre em suas vicissitudes. De dentro
para fora e de fora para dentro, não em sua binaridade, mas em seu todo, de
modo que não se pode observar precisamente o que, na construção do mito, é
manifestação de como o mundo se abre ou de como o homem lança seus dilemas
sobre o mundo que se abre. Como uma vitamina em que não se pode mais
separar as frutas ou o leite, eis o mito como produto do interno e do
externo ao homem.
Esse entendimento de mundo que vogamos como sendo parte da
construção mitológica se constrói também na práxis. Sobre a práxis, nos
pauta Karel Kosik(1995, p. 207): "(...)a totalidade do mundo compreende ao
mesmo tempo, como momento da própria totalidade, também o modo pelo qual a
realidade se abre ao homem e o modo pelo qual o homem descobre essa nova
totalidade. "
Ou seja: o mundo se abre em uma realidade determinada, que é única
dada a aleatoriedade geográfica(clima, relevo, vegetação, etc), e como o
homem vai descobrir, explorar e entender essa realidade na prática(outra
vez a não dicotomia do interior e do exterior) será um agente criador do
mito. Assim, completa Maria Aparecida Baccega que

a realidade é exterior ao homem, ela existe fora, enquanto objeto. O
reflexo dessa realidade na linguagem/pensamento não é mero reflexo passivo,
não é reprodução da realidade. É sim o resultado de uma interação ativo-
passivo-ativo entre o homem e a realidade natural ou social. (2007, p. 39):



E acrescenta:

As "coisas" existem independentes de nós – são os objetos. Quando nos
inteiramos com elas através da práxis, o que era objeto passa a ser
produto.(...) Mas o produto nunca pertence a um indivíduo isolado(que não
existe): logo, ao ser apropriado e se tornar produto, o objeto tem sua
existência regulada pelas relações que estabelece com os demais objetos.
(BACCEGA, 2007, P. 39, grifo nosso)


Interessantemente usada, a palavra 'inteirar'(tornar inteiro)
ilustra essa complexa equação do exterior e o interior inteirados em um só
produto substrato: o homem, seu inconsciente e o mito. De forma
curiosamente análoga, a palavra "religião" se revela, etimologicamente,
como a religação, inteiração, do homem com o todo(Deus, deuses, enfim).
Trocando em miúdos, parafraseando Joseph Campbell:

Todas as imagens religiosas ou mitológicas se referem a planos de
consciência, ou campos de experiência, que existem potencialmente no
espírito humano. Essa imagens evocam atitudes e experiências propícias à
meditação sobre o mistério da fonte do seu próprio ser (CAMPBELL, 1990, p.
174-75).


Também o professor Everaldo Rocha nos chama atenção para algumas
de suas definições acerca do mito, aqui escolhidas para ratificar as
explicações: "o mito é produto do inconsciente, (...) capaz de revelar o
pensamento de uma sociedade, (...) ainda mais, é do inconsciente uma forma
de expressão"(ROCHA, 1985, p. 178); corroborando com os dizeres de Baccega,
ele explica, citando Jung, que o mito não é o inconsciente individual, mas
o inconsciente coletivo, que é a camada mais profunda da mente humana, mais
ainda que o inconsciente pessoal. Ele é parte da humanidade, da história do
Homem, com "H" maiúsculo, do patrimônio existencial do ser, que se encontra
presente nas mentes individuais(ROCHA, 1985).
O acadêmico ainda prossegue: "vai ser exatamente neste
inconsciente coletivo que Jung vai achar sua interpretação para o mito. O
inconsciente coletivo manifesta-se em padrões que ele chama, usando uma
expressão de Santo Agostinho, de arquétipos"(ROCHA, 1985, p. 195, grifo
nosso) e mais além: "Ali se origina, ali se manifesta. Reflete-se na
exterioridade cultural, nasce na interioridade psíquica"(ROCHA, 1985, p.
196).
A constante repetição da experiência vai originar o arquétipo e a
inteiração entre o objeto(o outro) e o sujeito na tentativa da apreensão do
real: os símbolos. O simbólico para Lacan(1953) seria o real(impossível)
refratado na ótica da categorização gerada pelo campo da significação. Em
outras palavras, ao tentar categorizar o objeto real sob égide do
significante, lançamos sobre ele dilemas, dando-lhe categoria de
representação baseados em nossos conceitos internos. Daí o arquétipo:
imagens 'primordiais' que permeiam a essência e, no inconsciente, pré-
significam determinada categoria inteligível.
No mito grego, contado pelo poeta Hesíodo na Teogonia(1992), o ser
mulher é inexistente aos homens, criada posteriormente por Zeus como parte
orquestrada do castigo cujo objetivo era tirar-lhes a paz após a
recuperação do fogo arquitetada por Prometeu em socorro aos seus
protegidos. Toda essa contenda, que tem em seus extremos Prometeu e Zeus,
surge por conta da desconfiança desse. Incomodava-o o fato de que os homens
coabitassem no Olimpo junto aos deuses, posto que neles não confiava pelo
fato de não terem sido sua criação.
Zeus, porém, não se deu por vencido unicamente com o advento do
par aos homens - que os sujeitava aos caprichos do desejo, conturbando,
trazendo o nascimento, e consequentemente a morte, ou seja, dando-lhes uma
condição finita -, pedindo então a Hefesto, que já forjara os grilhões que
atavam Prometeu à montanha em que padecia, que delineasse, dessa vez, a
mulher ideal, semelhante às deusas do Olimpo. Nela, porém, haveria palavras
mentirosas e falsidade. Destarte, "esta primeira mulher traz em si, pela
sua aparência, uma natureza divina; pela sua força e pela sua fala, uma
natureza humana; pela sua mentalidade de cão, uma natureza animal"(TORRES,
2009, p. 42). Recebeu de diversos deuses do panteão um dom e pronto: estava
criada Pandora(etimologicamente, a que possui todos os dons).
Hermes daí, a pedido de Zeus, leva Pandora a Epimeteu(irmão de
Prometeu) que, mesmo advertido pelo irmão anteriormente que nada do Rei do
Olimpo aceitasse, esposou-a. Pandora logo abre o presente de núpcias,
também dado por Zeus, libertando todos os males do mundo, exceto a
esperança.
Não muito semelhante na forma, mas sim no conteúdo, o mito judaico-
cristão para a gênese da humanidade traz como protagonistas Adão e Eva, a
partir do qual podemos compreender outros e os mesmos desdobramentos.
Adão torna-se o primeiro ser terreno criado por Deus, a sua imagem
e semelhança. De sua costela Eva é criada. Residem no paraíso até que,
tentada pela serpente, Eva experimenta do fruto do conhecimento do bem e do
mal(comumente representado e concebido como sendo uma maçã), oferecendo em
seguida a Adão. Como consequência, toda humanidade é privada da vida
eterna, surgia a noção do pecado, a necessidade das vestimentas, posto que
se descobriram nus, bem como a expulsão do Paraíso e os dissabores da dor.
Vêm então as dores, os assassínios, a penúria infringida à humanidade.
Há ainda o relato de Lilith, a mulher que rejeitou a ideia de
inferioridade feminina, primeira mulher de Adão, banida do paraíso por
rejeitar a sujeição ao homem. Sua origem é controversa e ganha destaque em
tempos pós-modernos, onde vigoram as lutas feministas. Outras
interpretações ainda entendem-na como a serpente que tenta Eva ao fruto
proibido. Ainda que não mencionada no Antigo Testamento, existem curiosas
brechas que sustentam uma existência anterior, possivelmente extraída. Por
exemplo:

"E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança;
domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais
domésticos, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se arrasta sobre
a terra. E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem
e mulher os criou. E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só;
far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele."(SAGRADA, 1997, p. 4, grifo
nosso)

Entretanto:
far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea. (...) Então, o SENHOR Deus
fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas
costelas, e cerrou a carne em seu lugar. E da costela que o SENHOR Deus
tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é
agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; chamar-se-á varoa,
porquanto do varão foi tomada. Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à
sua mulher, tornando-se os dois uma só carne. (SAGRADA, 1997, p. 5, grifo
nosso)

É possível notar que anteriormente o Livro Sagrado menciona a
criação do homem e da mulher, à frente, da mulher por parte de Adão.
Curiosamente o protagonista diz que chamar-se-á, esta, varoa, sendo
carne da minha carne, criando uma brecha interpretativa que possibilita o
entendimento, a partir do uso do pronome demonstrativo, de que houvera
outra, aquela, que não seria osso dos seus ossos.
Mas... o que há de semelhante e divergente em ambas as narrativas?
Como pudemos notar, nos relatos, a mulher traz determinada "desgraça"
inerente. O que é díspar, no entanto, é como isso se dá. Se no mito grego
ela é necessariamente forjada com o intento de desestabilizar o homem,
tendo assim já no seu arrebol a essência destrutiva e desgraçante, no
judaico-cristão parece-lhe inevitável, porém não intencional. Há, na
mulher, uma tendência inata a destruição. Não fora criada pra isso, mas o
fez, por rebeldia, por ser vítima de sua própria capacidade transgressora e
desrespeitosa, de sua própria inaptidão a ordem e harmonia.

2 – O descompasso entre os gêneros e a História.
"O inferno são os outros"
- Sartre.

Ao iniciarmos com a afirmação do filósofo francês, aqui
oportunamente subvertida a nossos propósitos, aludimos à ideia de que, na
construção social patriarcal(manifestada no mito), a mulher sucede ao
homem. Ele é padrão, ela "o outro". E essa afirmação se mostra presente em
muitas manifestações que representam e manifestam o inteligível e
artístico, não é difícil, por exemplo, perceber que, nos livro didáticos de
língua portuguesa, o pronome masculino costuma anteceder o feminino e
quando há a dupla possibilidade desinencial se assinala o feminino entre
parêntese, como o outro(e.g.: menino(a)). Além disso, é também papel da
mulher, de alguma forma, atentar contra a paz do homem.
De certa forma, restou ao homem ao longo da história dialogar com
o 'outro' como o 'mal'. Assim deu-se com os nativos africanos e americanos,
dá-se hoje nas religiões cristãs ao se referirem às religiões de matriz
africana como 'demoníaca'. O próprio Diabo, originário da palavra
'diabolos' em oposição a 'symbolos', é aquele que se afasta de Deus, o
outro, que não é símbolo, não representa.
De tempos idos aos nossos, a construção social da mulher feita
pelo gênero dominante – e parafraseada pelo próprio gênero feminino – se
deu de uma forma curiosamente pendular: ou a mulher era o símbolo, a santa,
ou o diabo, a vampira, a "puta"... e ainda que tenhamos no entre-lugar
outras definições mais líquidas, nos extremos restam sempre a santa e a
puta. Essa construção está igualmente envencilhada à questão sexual. A
santa, imaculada e, ainda que partícipe de um ato sexual, o faz dentro dos
limites que permite o sacramento; a vampira, súcubo, rouba a energia vital
através de sua predileção pelo sexo.
Essa binaridade fortificou-se, segundo relata Bram Dijkstra(1986)
em seu livro Idols of Perversity, no século XIX, patrocinada pela mente
dualística que lhe era contemporânea.
Segundo o próprio autor supramencionado, a luxúria seminal a que
se entregava a mulher sensual e a sua capacidade de persuasão tornavam-na
uma vampira sedenta por energia vital, não apenas metaforicamente, mas
também miticamente. Sarapintaram a Europa relatos sobre súcubos, novelas,
romances, poemas, romances e contos afins. Não por coincidência, a palavra
súcubo remonta às prostitutas no antigo latim. Era a mímese de uma
realidade criada:

a virgem e a puta, a santa e a vampira - duas designações para uma única
oposição dualística: aquela que se refere à mulher como propriedade
particular do homem, por um lado, e a predadora poligâmica que
indiscriminadamente anseia pela essência seminal por outro lado.(DIJKSTRA,
1986, p. 334, tradução nossa)

Mencionando as palavras do então chefe do departamento de doenças
geniturinárias do Bronx Hospital e autor do guia Married Life and
Happines(publicado já no século XX), William J. Robinson, Dijkstra
prossegue:

esposas que estão satisfeitas com relações ocasionais - não mais do que uma
vez em duas semanas ou dez dias são relativamente razoáveis em suas
demandas e podem ser consideradas normais. Entretanto, aqui está o tipo
oposto de mulher, que é um grande perigo à saúde e até mesmo à própria vida
de seu marido. Eu me refiro ao tipo hiper sensual de mulher, à esposa com
excessiva sexualidade. A ela o termo 'vampira' pode ser aplicado em seu
sentido literal. Assim como uma vampira suga o sangue de suas vítimas em
seu sono enquanto ainda vivos, o mesmo faz a vampira mulher, suga a vida e
exaure a vitalidade de seu parceiro homem - ou vítima. E alguns deles - o
tipo supramencionado- o fazem sem pena ou consideração.(ROBINSON, 1922 apud
DIJKSTRA, 1986, p. 334, tradução nossa).

Essa necessidade vampírica se dava, relatava a ciência, graças a
perda biológica mensal de sangue e a as constantes reincidências de anemia,
que eram agravadas pela sua sujeição às necessidades da carne e que levava
algumas mulheres uma sôfrega necessidade de repô-la a partir do sêmen
masculino (DIJKSTRA, 1986).
A vampira era assim a mensageira da catástrofe, principalmente
para a vítima – o homem que vez por outra trazia também a catástrofe sobre
si.
Na obra do famigerado autor Alexandre Dumas, pai, Les Mohicans de
Paris(DUMAS, BOCAGE, 1881), por exemplo, há a tão igualmente famigerada e
repetida frase "cherchez la femme", extraída de uma outra afirmação maior
que diz: Il y a une femme dans toute les affaires; aussitôt qu'on me fait
un rapport, je dis: 'Cherchez la femme'. Desse modo, o autor, contemporâneo
ao século tratado, reproduz a construção acerca da capacidade destrutiva à
mulher dada e perpetrada. Eis que, se há um problema, a mulher, por
excelência causadora dele, está associada à fonte.
Essas definições maniqueístas acerca do gênero feminino perderam
rigidez com a chegada do século XX, entretanto, não desconstruídas por
completo, permearam ainda a sociedade por um longo tempo e não seria
exagero algum dizer que nos permeiam até hoje. Ainda que as lutas no campo
do feminismo tenham trazido um outro olhar, é possível averiguar na forma
como a sociedade reage a determinadas notícias que o fantasma ainda
espreita, reside e assombra.
Em 2013 uma jovem foi estuprada ao sair de um baile funk,
denunciou o caso à delegacia e o que se sucedeu foi uma onda de comentários
misóginos, atribuindo a culpa de seu revés à própria jovem, alegando que
"se estivesse em uma igreja, e não em um baile funk, isso não teria
acontecido" e que, de certa forma, "ela pediu por isso"
Outro caso dá conta da história de uma jovem que era estuprada
pelo padrasto e, graças a uma denúncia anônima, ele foi descoberto e
confessou, não antes de engravidá-la. A mãe da jovem admitiu saber dos
abusos exercidos pelo cônjuge à filha, mas alegou complacência dado o fato
de que a filha tinha um namorado, era muito namoradeira e já tinha uma vida
sexual ativa.
É mister ressaltar que os comentários estão almiscarados do
fantasma da santa e da puta que eram vogados nos séculos anteriores. Se o
comportamento da primeira fosse a da santa, partícipe da igreja e não a da
vadia, frequentadora de bailes funks, não teria sido estuprada; a segunda,
por sua vez, caso fosse partidária de um comportamento santo e não, tão
jovem, já se permitisse uma vida sexual ativa ou fosse 'namoradeira', nada
justificaria os atos do padrasto – que nesse caso se justificavam pela pura
provocação da jovem em atender seus desejos sexuais com o próprio namorado.

Uma revista popular brasileira, a Superinteressante, no ano de
2015, em resposta a atitudes como essa – que convencionou-se chamar de
'cultura de estupro' -, lançou uma campanha com imagens que aludiam ao fato
de que as mulheres, não obstante a roupa que vistam, a cor do batom que
usem e etc, não são culpadas pelos assédios e intempéries sexuais que
sofrem, diferentemente do que crê o discurso hegemônico e patriarcal em
nossa sociedade.
Tal estrutura binária imposta à condição humana reforça
estereótipos seculares, tornando a mulher o objeto de alteridade do homem
na sua mais cruel acepção. Essa mesma alteridade confere ao outro uma visão
e responsabilidade inumanas. Assim, da santa virginal, exemplo de castidade
etérea até a súcubo, vampira, sedenta pelo líquido seminal, o homem
esquadrinhou o gênero feminino sob a ótica mítica da vicissitude, esse
olhar, por sua vez, vem inerente a um discurso político de poder que
subjuga, que enclausura, sobrepesa.

3 – A literatura como imitatio e Prosper Mérimée.

"A arte imita a vida", diz o dito popular, que não deixa de ser
uma construção mítica em um sentido mais lato dado à palavra – parte do
nosso imaginário. Sabido é que existe uma indivisível relação entre o que
se produz no campo artístico e na vida, em decorrência disso o termo
mimesis(do grego, cujo significado é imitação) é corriqueiramente
empregado. A despeito, Roland Barthes(2000) nos atenta ao perigo de
entender a literatura como um espelho que reflete a sociedade. Segundo o
próprio, a arte literária surge da mesma opacidade viscosa que concebe a
sociedade, não sendo meramente paralela, mas fruto das mesmas vísceras.
Para Antônio Cândido, a arte é vítima e cúmplice ao mesmo tempo,
produto e produtora. Assim o diz:

[...]a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio,
que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os
indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do
mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. Isto decorre
da própria natureza da obra e independe do grau de consciência que possam
ter a respeito os artistas e os receptores de arte.(CÂNDIDO, 1985, p. 29)

O mesmo Cândido afirma que a construção completa da obra se dá a
partir do momento que o leitor nela infere seus conceitos, atribui valor
baseado em suas referências sociais e se deixa ser influenciado(ou não)
pelas possíveis interpretações contidas na obra(1985).
O objeto de estudo literário aqui escolhido é a obra Lokis do
autor francês Prosper Mérimée(1989) – intelectual que viveu essencialmente
no século XIX, cuja obra mais famosa é Carmen, dramaturgo, também
historiador e arqueólogo. Uma de suas últimas estórias, Lokis é permeada
pelo caráter fantástico e mítico e está descrita no capítulo Metamorphosis
of the Vampire, um dos capítulos do livro Idols of Perversity(DIJKSTRA,
1986), que leva o nome em menção ao poema de Charles Baudelaire.
A estória se passa na Lituania, orbitando inicialmente a condessa
Szemioth, conhecida como figura de cera, considerada louca. Ao longo da
narrativa, descobre-se que, pouco antes de seu casamento, fora estuprada
por um urso e em decorrência do episódio traumático enlouquece, tendo desde
o nascimento de seu filho ímpetos de violência inexplicável. O ocorrido,
diz o autor, é ensejado pela insistência da condessa, como é da estirpe das
amazonas lituanas, em ir à caça ao lado do marido em vez de aguardá-lo no
lar – como era de se esperar, a sociedade oitocentista, leitora da obra,
culpabiliza a mulher.
O futuro conde, filho do bestial estupro, já adulto, conhece a
intrigante personagem Ioulka, tentadora e independente. Flerta com o novo
conde que, sem saber de sua própria origem bestial, se deixa seduzir pela
sua aptidão à dança, uma aptidão particular a dançar de pés descalços. O
conde e Iouka casam.
Tendo sua natureza animalesca estimulada pela tentação trazida com
a dança e a esposa, ainda antes do casamento, o cônjuge se mostra
interessado nas histórias acerca dos gaúchos uruguaios, que, de acordo com
o imaginário, se saciam com o sangue dos animais quando há escassez.
Quando na noite de núpcias, ouve-se um barulho abafado e sonoro...
No dia seguinte, já que os recém-casados não se apresentavam aos
convidados, a porta é arrombada e o que se vê é aterrorizante: "Iouka, a
jovem condessa, jazia morta na cama, sua face horrivelmente lacerada, a
garganta cortada e recoberta de sangue. O jovem conde desapareceu e ninguém
soube dele desde então"(DIJKSTRA, 1986, p. 336, tradução nossa).
A narrativa de Prosper Mérimée está repleta dos estereótipos
encontrados no arquétipo feminino. É simples e acessível notar que a
própria condessa não seria estuprada caso não tivesse insistido em ir à
caça com o marido. Fosse ela uma esposa submissa e comportada, o estupro
por parte da besta não teria sido consumado, sua vida não teria se
enviesado na loucura e o trauma. Não há coincidência alguma entre a
narrativa de Mérimée e as acusações à jovem estuprada após deixar um baile
funk("se estivesse na igreja, isso não teria acontecido", disse um dos
acusadores), há, entretanto, um discurso arquetípico manifestado na opinião
e na arte igualmente, um senso comum poderoso.
Também não seria uma inócua coincidência compreender que a
afirmação subentendida e inferível de que a sensualidade e independência
contidas em Ioulka despertaram o animal imanente ao conde e que, dançando
"ao risco de mostrar as próprias pernas"(DIJKSTRA, 1986, p. 335, tradução
nossa), a personagem fadou-se à própria catástrofe estão intimamente
ligadas a ideia de que a jovem abusada pelo padrasto o provocou ao ser
"muito namoradeira" e já ter uma vida sexual ativa, causando assim a
complacência da mãe.
A essas 'afirmações' Bram Dijkstra se refere com determinada
espirituosidade: "that was her fault, of course", "one may assume that, the
blood lust stirred in his veins his luckless lady's primal russalka dance",
"a terminal victims to woman's ability to bring out the beast in man. For
what happened was ultimately all Ioulka's fault"(DIJKSTRA, 1986, p. 336).
É curioso notar – e inferir – o construto de que a mulher, uma vez
que casada, deve limitar-se às grades simbólicas do matrimônio: as paredes.
Como ser cativo, há uma intempérie especialmente fatídica e reservada a
mulher que não respeita as grades matrimoniais. Assim nos corrobora Eliane
Vasconcelos:

A ideologia que a mulher só se realizava no matrimonio fazia com que ela,
mesmo desfrutando de alguma independência ao exercer certas atividades,
abdicasse deste privilégio para tornar-se prisioneira do marido e do lar.
Pressões sociais levavam-na a preferir ser definida em função dele, e não
de si própria. Esta situação de dependência total perdurou até bem pouco
tempo. Era comum a mulher trabalhar enquanto solteira, mas, logo que
arranjasse marido, largava o emprego para cuidar da casa e dos filhos. E
não raro o fazia por imposição de seu novo dono (VASCONCELOS, 1999, p. 98).


Sabendo que a literatura, principalmente a de produção anterior ao
século XX, atendia a uma aristocracia, ou a vigência comportamental de um
grupo intelectual dominante, não é surpresa alguma que a narrativa
corrobore com essa visão. A expressão "A sexualidade masculina, em outras
palavras, não é só analogicamente mas verdadeiramente a essência do poder
literário. A caneta do poeta é, de alguma maneira (muito mais do que
figurativamente), um pênis" (GILBERT e GUBAR, 2000, p. 4) o que define bem
como essa literatura responde não apenas a uma aristocracia, mas igualmente
a um gênero dominante – o homem! - e a alteridade construída em relação à
mulher, bem como a política resultante dessa alteridade. Era a escrita do
homem sobre o outro.
Persuasiva, todavia, é a forma como esse pensamento, essa
ideologia, se disseminou entre as próprias mulheres contemporâneas à obra.
Numa espécie de dilema barroco, as mulheres sofriam os intempestivos
julgamentos e ditames dos homens, bem como terminavam reproduzindo o
discurso prático sobre si, crendo e parafraseando que a mulher vergada à
sua vontade e não à submissão ao homem era, na verdade, vítima de sua
vontade – não dona.
Outro exemplo ilustrado na obra Idols of Perversity(DIJKSTRA,
1986) trata de como, na construção submissiva masculina, a mulher, ao
contrário do homem, não tinha direito de imperar sobre o sexo oposto, na
novela Carmilla(LE FANU, 1992), a protagonista, por ser mulher, não podia,
apesar de vampira, perpetrar seus poderes sobre o sexo oposto, sendo-lhe
permitido apenas o uso contra outras mulheres(DIJKSTRA, 1986).

Considerações finais:

O que restou a mulher foram os sortilégios da existência feminina.
Sortilégios esses construtos de um discurso de poder que transgride as
esferas do político e do social, perpassando e se fortalecendo nos
discursos religiosos, literários; do mito, enfim. A Cartografia dos gêneros
mostrou que o ponto de vista é masculino, sendo a mulher o outro. Dessarte
(?), é o outro o julgado, o submetido. Outro é também o antagonista, o
'diabolum', o inferno. À mulher ainda resta aceitar esses arquétipos e
parafraseá-los, perdida na imensidão diáfana da ignorância que abaliza o
discurso.
Mesmo a luta feminista encontra obstáculos e resistência feminina,
resistência entumescida por alguns exageros – inerentes a conduta humana e
que se fazem presente em todo tipo de discurso, mas que, no caso do
feminismo, recai com o peso da bigorna, a mesma que cobra decoro exagerado
e desqualifica a mulher e não se mostra igualmente peremptória aos homens.
Uma vez que o discurso se inscreve e escreve na esfera mítico
religiosa, literária e social, é uma verdade. Afinal, como disse Joseph
Goebbels: "uma mentira contada mil vezes se torna verdade"(2003, p. 63,
tradução nossa). Desconstruir um paradigma leva tempo, é doloroso e árduo,
requer, muitas vezes, sair de uma zona de conforto que gera, por lógica
conseguinte, um desconforto. Os frutos desse desconforto são a resistência,
a intolerância, entre outros.
A luta feminista, apesar de encontrar entraves plurais, também se
insere na construção mítica, religiosa, literária, artística, política
etc(em alguns desses com mais e menos veemência) a fim de dialogar e
protestar... contrabalancear! Graças aos movimentos contra-hegemônicos, a
"pós-modernidade"(e nós sabemos as controvérsias contidas no rótulo) enseja
um ambiente mais democrático, fértil. Resta ao feminismo projetar nele com
mais veemência suas flores, espinhos, frutos, na busca de uma realidade
mais igualitária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e discurso: história e literatura. 2. ed.
São Paulo: Ática, 2007.

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Martins Fontes, 2000.

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HESÍODO, Teogonia. A origem dos deuses. Tradução de Torrano, Jaa. São
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