Panofsky e a tradição da Bildwissenschaft, para lá do cerco ao método iconológico (pp. 454 - 461).

July 19, 2017 | Autor: Maria Coutinho | Categoria: Visual Studies, Iconography, Bildwissenschaft, Erwin Panofsky
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Actas do IV Congresso de História da Arte Portugesa em Homenagem a José-Augusto França

23 NOVEMBRO SESSÃO TEMÁTICA 11 – “VAI E VEM”: QUESTÕES DE CULTURA VISUAL

Panofsky e a tradição da Bildwissenschaft, para lá do cerco ao método iconológico Maria Coutinho Instituto de Estudos Medievais e Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa Apresento um breve comentário a posições e escritos de Erwin Panofsky, sobre fotografia e cinema, que o alinham com a tradição da Bildwissenschaft alemã, isto é, valorizando aspectos da visualidade artística e suas potencialidades não só práticas, como teóricas e críticas; não sem antes discutir algumas das limitações imputadas à metodologia dos três níveis de significado. Ambas as partes confluem para o objectivo comum de apontar linhas de reflexão que permitam suplantar, mesmo que timidamente, o fechamento na proposta de iconografia e iconologia, no caso, a visão de um autor excessivamente focado na legibilidade das obras de arte e, com isso, menos disponível para a transversalidade das questões de cultura visual e suas potencialidades reflexivas. “A História da Arte como Disciplina Humanística”, introdução de O Significado nas Artes Visuais, de 19551, representa o desfecho de uma proposta metodológica enunciada na introdução aos Estudos de Iconologia, de 19392, que, por sua vez, sintetiza (e desenvolve) um artigo publicado ainda na Alemanha, em 1932, na revista Logos, intitulado “Acerca do problema de descrever e interpretar obras das artes visuais”3. Comentarei brevemente este artigo, pensando de que modo lida com as singularidades materiais dos suportes ou encara a visualidade artística submetendo, ou não, o visível a formas de legibilidade, para debater algumas das principais críticas ao seu sistema interpretativo. Que críticas?4 Uma das principais fragilidades apontadas é o facto de a abordagem panofskiana se limitar, não raras vezes, a uma análise iconográfica centrada na tradição pictórica a que uma obra de arte está ligada, convertendo-se num mero exercício de decifração. É relativamente a tais casos que Didi-Huberman assinala que a imagem corre o risco de subsumir na classificação das suas partes, perdendo expressão como um todo, assim se diluindo o que é da ordem do não-visível5. Simultaneamente, esta prática assume com frequência que as imagens foram elaboradas para serem decifradas a partir de 1

Panofsky, Erwin. Meaning in Visual Arts. New York: Doubleday, 1955. Panofsky, Erwin. Studies in Iconology. London: Oxford University Press, 1939. 3 Panofsky, Erwin. “Zum Problem der Beschreibung und Inhaltsdeutung von Werken der bildenden Kunst.” Logos XXI (1932): 103–119. Tradução: Jaś Elsner e Katharina Lorenz sob o título “On the Problem of Describing and Interpreting Works of the Visual Arts.” Critical Inquiry 38 (Spring 2012): 467–82. 4 O espaço de que disponho obriga a conter as referências, deste modo apresentadas sintética e transversalmente; reconheço, por isso, a incompletude a que as voto e a injustiça que cometo ao retirá-las do seu contexto de enunciação (sempre mencionado). Tais apreciações são especialmente válidas para as referências de Keith Moxey, que critica, sobretudo, a prática historiográfica decorrente de interpretações, empobrecidas, dos textos de Panofsky. São-no ainda para as observações de G. Didi-Huberman que, em Devant l’image [consultado na tradução inglesa: Confronting Images], leva a cabo uma profunda reflexão, cujo alcance sai diminuído pelas breves referências seleccionadas. 5 Didi-Huberman, Georges. Confronting Images: Questioning the ends of a certain History of Art. Trad. John Goodman. Pennsylvania: Pennsylvania State University Press, 2005. 2

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convenções simbólicas, iconográficas, ou de textos – fontes, que lhes estejam na origem, introduzindo na análise da imagem a autoridade do texto, do qual é suposto proceder. É neste sentido que, para Hubert Damisch6, a iconografia não concebe a imagem apenas para contemplação e fruição, mas exige leitura, interpretação. O que a torna protagonista de coisas outras, como textos, ideias, e não imagem em si mesma a operar de acordo com um sistema próprio: o “imagético”. Limita-se, deste modo, a não ser mais do que referência imediata à realidade externa, por isso apenas denotativa. Preocupando-se primeiramente com o significante nas imagens, a iconografia reduz o significante plástico a uma questão de tratamento, a uma conotação de estilo. Além disso, esta abordagem restringe-se frequentemente à iconografia, portanto à análise das tradições pictóricas a que uma obra pode estar ligada, negligenciando o projecto iconológico de relacionar essas tradições visuais com circunstâncias culturais complexas. Contudo, tal abordagem, mesmo quando iconológica, pode facilmente redundar em sobreinterpretação ou, alternativamente, gerar uma história da arte contextual que se satisfaz na imbuição da obra no seu tempo histórico, assim desperdiçando o seu potencial inter-relacional7. A este respeito, Didi-Huberman comentará que a iconologia de Panofsky, quando direccionada para a descoberta de analogias intrínsecas, tornase um empreendimento unidireccional, incapaz de equacionar em que medida a imagem opera sobre o mundo, em lugar de apenas o reflectir. Tal empreendimento não é, também, sensível à “vida” das imagens e aos aspectos dinâmicos dos fenómenos culturais, ao contrário do que teria feito Warburg, por exemplo, que pensou a imagem como agente social, estabelecendo uma relação dialógica com o Homem e com a própria História8. Não obstante a validade e pertinência de muitas destas apreciações, julgo que será relevante notar que a problematização crítica (de alguma) da obra de Erwin Panofsky, que se desenvolve a par de um renovado interesse pelo autor9, espelha uma crescente insatisfação com o tipo de interpretação historiográfica resultante da aplicação do seu método, não traduzindo forçosamente, ou em exclusivo, os seus escritos. Deve, por isso, diferenciar-se a proposta metodológica (que não é uma, mas são três, como se referiu) das práticas historiográficas que a(s) têm como fonte e respectivas interpretações de “iconografia” e “iconologia”; daqui que seja redutor considerar a obra de Panofsky à luz da sua influência10. Não sendo objecto deste estudo os modos de fazer história da arte a partir deste autor, centrar-me-ei nos seus escritos para dar continuidade à discussão. O texto de 1932, ao expor os fundamentos iniciais da sua proposta metodológica, revela-se pertinente para rever ou moderar a contundência de algumas das críticas referidas. Quando Panofsky começa a escrever sobre arte, na segunda década do século XX, a história da arte estava dominada por preocupações quase exclusivamente formais11. O formalismo dedicara-se às 6

Damisch, Hubert. “Semiotics and Iconography.” (1975) The Art of Art History: A Critical Anthology. Ed. Donald Preziosy. Oxford: Oxford University Press, 2009: 236. 7 É Keith Moxey quem levanta esta questão, embora reportando-se concretamente ao tipo de interpretação historiográfica do conceito de “iconologia” de Panofsky. Veja-se supra, nota 4. Cf. Moxey, Keith. “Panofsky’s Concept of ‘Iconology’ and the Problem of Interpreting in the History of Art.” New Literary History, Vol. 17, No. 2, Interpretation and Culture (Winter, 1986): 266. 8 Didi-Huberman, Georges. Op. cit.: “Preface to the English Edition: The exorcist”: xv–xxvi. 9 Donald Preziosi aponta duas razões para este interesse: “a burgeoning of attention within the discipline to explicitly theoretical and semiotic questions, and an increasing concern about the disciplinary history of art history. The motivations for these interests are varied, but at base all part of a general reaction within the discipline to the impact of aspects of semiological theory on contemporary disciplinary practice”. Preziosi, Donald. Rethinking Art History: Meditations on a Coy Science. New Haven: Yale University Press, 1989: 111 e nota 142. 10 Veja-se a este respeito Moxey, Keith. Op. cit.: 265–266. 11 Michael Ann Holly, numa obra que dedica a Erwin Panofsky, contesta a ideia de que atribuiria mais importância ao significado, desconsiderando a forma. Reforça os seus argumentos com o obituário que Ernst

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propriedades estéticas do objecto desenraizando-o do seu lugar histórico e envolvimento humano. Assim, consciente do impasse que a história da arte enfrentava, em particular face ao que entendia como as fragilidades do pensamento da Escola de Viena, Panofsky demarca-se do formalismo com um método assente na ideia de que a forma não se significa a si própria. Ernst Gombrich dirá, inclusivamente, que o interesse de Panofsky em trazer a tónica para o conteúdo deve ser visto como uma resposta ao formalismo riegeliano12. Num dos seus primeiros artigos, Panofsky havia já declarado (influenciado por Cassirer, Kant e pela Escola Hermenêutica): “Uma exegese de conteúdo bem-sucedida não só beneficia um ‘entendimento histórico’ de uma obra de arte como também – não irei tão longe como dizendo que intensifica – enriquece e clarifica a ‘experiência estética’ do observador de um modo particular.”13 É em diversas passagens de “Acerca do problema de descrever e interpretar obras das artes visuais”14 que dá conta do seu interesse pelo que é do domínio do pictórico, assim problematizando a ideia de que sobrevalorizaria o significado em detrimento da forma. Alude, por exemplo, ao Nascimento de Cristo dos Evangelhos de Oto III, do século X, para referir que as imagens não devem ser analisadas atentando à perspectiva, pois a sua inexistência seria entendida como falência técnica. Acrescenta que se deve ter presente que os valores representacionais são outros, perdendo validade as actuais regulações espaciais ou naturais. Propõe, portanto, uma abordagem que parta das especificidades pictóricas do objecto, para evitar juízos pautados por convenções e princípios artísticos que lhe sejam extemporâneos. Numa metareflexão pragmática e metodológica, desenvolvida a partir do The Mandrill, de Franz Marc, será o primeiro a reconhecer as limitações do recurso ao método dos três níveis de significado, de forma indistinta ou acrítica, na pintura (sua) contemporânea: “it is not always possible simply to apply them to the artwork in question”15. Compreender a figura implica atender aos princípios da representação expressionista, não havendo uma relação denotativa entre o Mandrill representado e um macaco real. O quadro não denota o mundo, não o representa mesmo sendo representacional, pois a representação opera de acordo com uma lógica pictórica entretanto nomeada expressionismo. Analisar o Mandrill implica reconhecimento dos princípios representacionais em questão, isto é: “an awareness of stylistic form which can only be acquired by a sense of historical situation”16 .Assim se vê reconhecida, embora merecendo discussão, a valência do imagético, regulado pelos valores pictóricos que lhe são constitutivos. Para Panofsky, é a obra que determina que tipo de hermenêutica exige e, ao atentar às suas especificidades representacionais, não perde de vista aquilo que a singulariza como objecto visual – embora, é certo, sujeite a visualidade à interpretação. Mais, indica que a sua proposta de análise deve ser trabalhada como um todo e não espartilhada em três níveis, como habitualmente vemos descrito, e, muito menos, eclipsada pelas fontes literárias – que é, na verdade, uma das críticas mais frequentes. A este respeito diz: “in an enterprise like this – [...] – we must abandon even the knowledge of literary sources, at least in the sense of sources that can be directly related to the relevant work of art. [...] There are no texts [acerca da Melancolia, Dürer] to throw clear light on what it represents in terms of its intrinsic meaning”17. Insiste no abandono do Gombrich publica em 1968, na Burlington Magazine, por ocasião da morte de Panofsky. Gombrich destaca o facto de ter sido a reputação de erudito de grande conhecimento humanístico, como designa, o factor responsável pelo aparecimento do equívoco de que estaria sobretudo interessado em textos que explicassem o significado de símbolos e imagens, e de que não atenderia às qualidades formais da arte. Cf. Holly, M. Ann. Panofsky and the Foundations of Art History. Ithaca: Cornell University Press, 1984: 24 e Gombrich, E.H. “Erwin Panofsky (30th March 1982–14th March 1968).” The Burlington Magazine, Vol. 110, No. 783 (June 1968): 356. 12 Cf. Gombrich, E.H. Op. cit.: 356. 13 Citado a partir de Holly, M. Ann. Op. cit.: 26 e nota 10. 14 Cf. supra, nota 3. 15 Panofsky, Erwin. “On the Problem of Describing and Interpreting Works of the Visual Arts.” Critical Inquiry 38 (Spring 2012): 471. 16 Panofsky, Erwin. Op. cit.: 471. 17 Panofsky, Erwin. Op. cit.: 479.

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conhecimento extrínseco à obra de arte, porque lhe interessa que o que a imagem é não sucumba perante a interpretação excessiva ou explicação textual. Partindo do exemplo de Judite com a cabeça de Holofernes de Francesco Maffei, elabora acerca das potencialidades do diálogo do visual face à transformação de motivos e assuntos entre obras, oferecendo uma visão mais dinâmica do que a que geralmente lhe é reconhecida. Acresce que a noção de estilo contribui para a classificação da obra, mas a obra age sobre essa mesma história da transmissão, acrescentando-a e renovando-a, numa relação – afinal – dialógica e não exclusivamente como reflexo do mundo. Panofsky desenvolve, também neste texto, um engenhoso diálogo filosófico com o livro de Heidegger sobre Kant acerca do problema da interpretação, reivindicando, porém, limites internos que a façam escapar à arbitrariedade. Se, no texto de 1955, manifestará uma espécie de crença nas capacidades do historiador da arte como agente do processo interpretativo, aqui caracteriza-o como por demais subjectivo. Note-se que a publicação do texto na Logos, uma revista de filosofia, põe, desde logo, em evidência a articulação entre a história da arte e o pensamento sobre imagem, conceptualizado e filosófico, observável também ao longo do texto. A prática iconográfica/iconológica tem perdido relevância crítica justamente por excluir esta reflexão teórica, matricial na primeira proposta de Panofsky. Não obstante as diferenças entre si, é certo que tanto o texto de 39 como o de 55 são menos eloquentes sob este ponto de vista. Remeto, neste particular, para os estudos de Jaś Elsner e Katharina Lorenz que sugerem que a simplificação da proposta de 39 – que vai implicar na final, de 55 – se deve não só ao facto de ter resultado de palestras dadas no Bryn Mawr College, em 1937-1938, a alunos recéminiciados no tema, como ainda a razões políticas, de reacção à ascensão do III Reich18. II. Em Bild-Anthropologie19, Hans Belting refere que a história da arte falhou como Bildwissenschaft, porque nunca confrontou os media modernos; a iconologia ter-se-ia tornado essa Bildwissenschaft se Panofsky não tivesse encapsulado o método nos estudos da alegoria renascentista. Esta posição, problemática quanto ao “desempenho” de Panofsky, indicia, de acordo com Horst Bredekamp, uma visão que se foi progressivamente generalizando20. E permite, em todo o caso, enunciar a estreita associação entre os desenvolvimentos da disciplina na Áustria e Alemanha de 1900, e um interesse generalizado no estudo sobre as imagens, em vários suportes artísticos, compreendendo para tal o envolvimento da história, mas também da filosofia, implicando, desde início, preocupações epistemológicas. É, ainda, esclarecedora quanto ao debate e às dificuldades conceptuais que persistem na ligação entre história da arte e estudos visuais, no caso alemão Bildwissenschaft, e ao papel de Erwin Panofsky nessa tradição de ciência histórica das imagens ou, na visão de Belting, falta dele – matéria relevante para vencer o seu fechamento na iconografia e iconologia, embora careça de discussão mais alargada do que a que se oferece. Face à emergência e desenvolvimento das técnicas de reprodução visual, e da introdução da fotografia e slide nas universidades alemãs, estala o “Facsimile Debate”: discussão em torno da legitimidade estética e pedagógica das reproduções de escultura. Este debate, depois de uma exposição em Hannover21, galga para polémica sobre a pertinência da fotografia como novo suporte 18

Cf. Elsner, Jaś; Lorenz, Katharina. “The Genesis of Iconology.” Critical Inquiry, Vol. 38, No. 3 (Spring 2012): 489–490. 19 Belting, Hans. Bild-Antrophologie Entwürfe für eine Bildwissenschaft. Munique, 2001: 15; 17. 20 Bredekamp, Horst. “A Neglected Tradition? Art History as Bildwissenschaft”. Critical Inquiry, Vol. 29, No. 3 (Spring 2003): 418–428. 21 “Original und Reproduktion”, título da exposição levada a cabo em Hannover, apresentava originais, reproduções e falsificações lado a lado, indistintamente, tendo iludido connoisseurs da época. Cf. Luke, Megan

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de reprodução e representação e suas consequências na arte22. Max Sauerlandt, então director do Museu de Hamburgo, emite folhetins com a sua opinião, apelando ao círculo académico para uma tomada de posição pública. É assim que o jornal Der Kreis acaba por publicar 13 artigos sobre o tema; o de Panofsky, por ser demasiado longo, conquista um número à parte23. Aqui24, Panofsky argumenta que a fotografia é mais do que a duplicação de um objecto, reclamando as particularidades materiais das reproduções e, a partir destas, os seus próprios critérios estéticos, irredutíveis, pois, aos em causa nas obras de arte25. Dirá que, tanto os apoiantes como os que contestam a reprodução em facsímile, incorrem em injustiça ao assumir que esta procura substituir directamente o original. Para Panofsky, a experiência estética de uma reprodução em fac-símile, ou de gramofone, não procura rivalizar com a experiência do original (Originalerlebnis), mas deve ser percebida em diferença, em confronto com o original. A histeria em torno da fotografia centrava-se na incapacidade em reconhecer a sua autenticidade pictórica como predicada numa assunção falsa, isto é, entendendo que a fotografia ambicionava o lugar da pintura. Sugere, então, um afastamento desta ideia de substituição para ir de encontro à especificidade do medium26. Numa nota apensa ao texto para o Der Kreis, dirigindo-se a Sauerlandt, que defendia que as fotografias de obras de arte traíam as idiossincrasias de uma dada época ou artista, dirá que o que está em causa é uma completa recriação pessoal; o fotógrafo não é menos “livre” do que o pintor no que diz respeito ao recorte, distância, orientação pictórica, focagem, luz.27 De acordo com Bredekamp, tanto Jacob Burckhardt, como Heinrich Wölfflin, Aby Warburg, Erwin Panofsky, entre outros, têm em comum o facto de estimarem fotografias e slides como originais em si mesmos, de os terem como tópico de reflexão crítica e de os valorizarem como instrumentos de pesquisa de excelência28. É, de resto, neste sentido que Bredekamp dirá que a história da arte se foi progressivamente tornando em Bildwissenschaft29, sendo inequívoco o lugar de Panosfky. A ligação da história da arte ao conhecimento e reflexão sobre as imagens neste autor passa, pois e como vimos, pelos escritos sobre arte, sobre fotografia e slides, mas também pelo cinema, como adiante se exporá. Aponto, de passagem, que este interesse é, até, visível nos textos sobre arte, onde compara, por exemplo, a oficina de Dürer ao atelier da Walt Disney, ou analisa retratos de acordo com categorias cinematográficas30. A 16 de Novembro de 1936, o New York Herald Tribune publica: “Films are treated as real art by lecturer at Metropolitan”. Na notícia podia ler-se: “For the first time in the history of the Metropolitan Museum of Art the motion picture was considered as an art during R. “The photographic reproduction of space. Wölfflin, Panofsky, Krakauer.” RES: Anthropologie and Aesthetics. 57/58 (Spring/Autumn 2010): 340. 22 Tal emergência e desenvolvimento das técnicas de reprodução visual desencadeara já uma acérrima oposição por parte de artistas, críticos de arte, entre outros. Cf. Bredekamp, Horst. Op. cit.: 420, em particular nota 6. Veja-se também Luke, Megan R. Op. cit.: 340 e notas 4, 5 e 6. 23 Der Kreis 7. 1930: 3–16. 24 Título original: Original und Faksimilereproduktion, Sonderdruck. Texto publicado e traduzido para o inglês em: RES Anthropologie and Aesthetics. 57/58 (Spring/Autumn 2010): 331–338. 25 Cf. Luke, Megan R. Op. cit.: 339–340. 26 Cf. Luke, Megan R. Op. cit.: 340. 27 Cf. Luke, Megan R. Op. cit.: 340. 28 Cf. Bredekamp, Horst. Op. cit.: 422. 29 Cf. Ibidem: 425–426. 30 Cf. Ibidem: 422. Curiosamente, em 1946, Panofsky empreenderá o movimento inverso. No texto sobre cinema que adiante se retoma, usa o trabalho artístico de Dürer, recorrendo nomeadamente a aspectos plásticos para dar conta das singularidades expressivas das referências de representação no cinema mudo e sonoro. Bredekamp refere ainda que Panofsky, numa carta à esposa Dora Panofsky, compara a Greta Garbo a Dürer, dizendo que nos filmes mudos desenvolvera um estilo similar à mestria de Dürer na gravura (copper plate print). Mas quando falava comportava-se, de acordo com Panofsky, como uma gravura de aguarela (watercolor etching) feita por Rembrandt. Cf. Ibidem: 425.

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a lecture there yesterday afternoon by Dr. Erwin Panofsky.”31 O que leva um académico de renome ao seio da cultura popular, proferindo uma palestra intitulada “The Motion Picture as an Art”32? Panofsky, apreciador e consumidor de cinema, envolve-se com Alfred Barr (recém-designado director do MOMA) no estabelecimento de um novo campo que resultará na famosa MOMA Film Library. Mais tarde apresenta um texto, “On Movies”, em Princeton, com o propósito de apoiar a iniciativa e dar-lhe suporte académico e, em 1936, publica-o no Departamental Bulletin. Ao levar o assunto do cinema como arte a Princeton, e não só, Panofsky imprimiu um cunho intelectual (ligado à história da arte) e cultural (de certa forma continental), ao empreendimento pioneiro do MOMA de estabelecer um centro de estudos, de arquivo, e de preservação da história do cinema. “On Movies” é publicado em 1947 numa edição desenvolvida: “Style and Medium in the Motion Pictures”33 e é, até hoje, considerado um dos textos fundacionais da história crítica e teórica do cinema. Neste artigo, demonstra uma vez mais o seu interesse no que reconhece como único e próprio ao cinema: “These unique and specific possibilities can be defined as dynamization of space and, accordingly, spatialization of time.” Prossegue elaborando acerca dessas especificidades como som, luz, magnificação, etc. e, conceptualmente, sobre espaço e tempo. Contudo, apesar de todo o interesse na materialidade, não será art for the sake of art. Para Panofsky, o cinema como medium artístico só é relevante na sociedade em que se encontra. Importa para o cinema o contexto social do seu aparecimento e desenvolvimento (folk art), pois defende que será a única arte a acontecer from the bottom to the top, em lugar do inverso, envolvendo e implicando alterações na sociedade. Panofsky não perde de vista uma dimensão simultaneamente antropológica e sociológica do cinema, colocando no centro do seu interesse o potencial comunicacional (e social) que dele dimana. Dirá, por isso, que esta é uma das únicas artes visuais inteiramente vivas, visto que procede dessa ligação: “Today there is no denying that narrative films are not only ‘art’ – not often good art, to be sure, but this applies to other media as well – but also, besides architecture, cartooning and ‘commercial design’, the only visual art entirely alive.”34 O que não impede, claro, que leia as formas de contar histórias como alegorias – iconograficamente. Todavia, funda essa necessidade tipológica no seio da eficácia comunicacional. Para ele, a representação (acting) no cinema mudo assenta em personagens tipo que protagonizam gestos exagerados. No entanto, esse conjunto de operações convencionadas, cuja lógica fora definida internamente respondendo só ao que é do domínio do cinema – do mesmo modo implica, note-se, o desmembrar da relação natural (mimética) entre o assunto e o representado –, serve um propósito comunicacional. De início, diz, é necessário criar legibilidade, quando a audiência se familiariza, o cinema abdica dessa tipificação. Exemplo esclarecedor, de resto, quanto ao potencial dinâmico dos fenómenos culturais e suas implicações sociais e históricas. Creio, enfim, ser possível reconhecer nos escritos sobre slides, fotografia ou cinema, e no estudo fundacional da iconografia/iconologia, uma preocupação com a materialidade e, mais extensivamente, com a visualidade, que problematiza a ideia da completa subsunção das singularidades imagéticas a um significado. No artigo “Acerca do problema de descrever e interpretar obras das artes visuais”, é o próprio Panofsky quem procura salvaguardar as qualidades e características visuais constitutivas das obras de arte face à autoridade do texto, ou a convenções

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Levin, Thomas Y. “Iconology at the Movies: Panofsky’s Film Theory.” The Yale Journal of Criticism, Vol. 9, No. 1 (Spring 1996): 27–55. 32 Questão primeiramente colocada por Thomas Levin, veja-se supra, nota 29. 33 Horst Bredekamp considera esta versão desenvolvida do texto uma resposta amigável, mas profundamente discordante, ao texto de Walter Benjamin: “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica”. A ser assim, tratar-se-á de um singular exemplo (talvez o mais antigo) da recepção deste autor antes da década de 1960. Bredekamp, Horst. Op. cit.: 427. 34 Panofsky, Erwin. “Style and Medium in The Motion Pictures.” Ed. Braudy, Leo, Cohen, Marshall. Film Theory and Criticism: Introductory Readings. London: Oxford University Press, 1974: 152.

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(decorrentes de uma perspectiva judicativa da forma), que perturbem a sua legibilidade – embora esta, sim, não seja posta de parte. Não defendo, de todo, que haja linhas sistémicas e coerentes na obra de Panofsky que contrariem as críticas de que tem sido alvo, muitas das quais relevantes e fecundas. No entanto, para debater as falências da análise panofskiana é preciso ir mais além da introdução dos Estudos de Iconologia ou do Significado nas Artes Visuais. A discussão beneficiaria de uma recuperação de outros textos que redigiu e que, como vimos, revelam uma figura que se inscreve sem esforço numa linha de ciência de conhecimento e reflexão sobre a imagem (Bildwissenschaft); e, por outra parte, de um estudo compreensivo e transversal das duas versões do texto sobre iconografia/iconologia e do texto “A História da Arte como Disciplina Humanística” (como não se fez aqui), para pensar nas suas sucessivas modulações, supressões e aditamentos, no crescente tom normativo, nas razões de tudo isto e respectivas consequências historiográficas. Finalmente, penso que parte da natureza problemática da sua obra também radica no estreitamento progressivo da leitura de uma produção que é, na verdade, vasta e plural, mas sobretudo no empobrecimento do exercício de um método (aplicado amiúde sob a crença de fórmula de sucesso que garante a priori a análise e entendimento de uma obra de arte, independentemente da época, independentemente das características), que deve muito mais à prática historiográfica do que propriamente a Erwin Panofsky.

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