PANORAMA DAS PRISÕES NO BRASIL E A (DES) ORDEM PÚBLICA NA PRISÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

June 1, 2017 | Autor: A. Pêcego | Categoria: Direito Processual Penal, Processo Penal
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PANORAMA DAS PRISÕES NO BRASIL E A (DES) ORDEM PÚBLICA NA PRISÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

Antonio José F. de S. Pêcego1

RESUMO: A política da carcerização implodiu as paredes do sistema prisional, apesar de estar falida a prisão desde meados do século XIX. Várias causas vêm se aglutinando e a desordem pública da prisão provisória vem se agravando nas últimas décadas de forma a se tornar a principal causa dessa implosão. O fomento ao movimento punitivo a partir de 1990, decorrente da ineficácia e omissão estatal perante o sistema carcerário, tem ao longo do tempo sido a mola propulsora desse fenômeno. Alia-se a este fato, a resistência inquisitiva ao sistema acusatório e a existência ainda de fundamentos subjetivos decorrente de ditaduras, como a ordem pública, para justificar a decretação da prisão preventiva em plena democracia. Essa mistura faz com que haja um poderoso ingrediente tirano desassociado do caráter processual dessa medida cautelar extrema, principalmente quando o garantidor das liberdades públicas não prega essa sua missão constitucional por ação ou omissão. Essa realidade precisa ser enfrentada e discutida para que possamos concretizar um processo penal garantista preconizado constitucionalmente há mais de vinte e cinco anos, de forma que se possa conduzir o ius puniendi em abstrato do Estado pelos trilhos da democracia e não dos eventuais ainda existentes da tirania em que vigorava o malfadado princípio da culpabilidade.

Palavras-chave: Prisão preventiva. Fundamentos e (des) ordem pública. Causas. Soluções.

ABSTRACT: The policy prison imploded the walls of the prison system, despite being bankrupt the prison since the mid-nineteenth century. Several causes are coalescing and public disorder of provisional detention has worsened in recent decades in order to become the main cause of this implosion. Fostering the punitive movement since 1990, due to the 0inefficiency and failure before the state prison system, has over time been the spring driving this phenomenon. Joins to this fact, the inquisitive resistance adversarial system and the existence even of subjective grounds due to dictatorships, such as public policy, to justify the 1

Mestre em Direito pela UNAERP. Pós-graduado lato sensu em Ciências Penais (UNIDERP/Rede LFG) e em Direito Público (PUCMINAS). Graduado em Direito pela UNESA. Graduando em Filosofia pela UFU. Pesquisador pelo CNPq junto ao Grupo Modernas Tendências Criminais. Professor de Direito Penal e Processo Penal da graduação e pós-graduação da Faculdade Politécnica de Uberlândia. Professor de Processo Penal da graduação do Centro Universitário Barão de Mauá em Ribeirão Preto. Juiz de Direito de Entrância Especial do TJMG. [email protected]

declaration of probation in full democracy. This mix means that there is a powerful ingredient tyrant disassociated from the procedural character of this extreme precautionary measure, especially when the guarantor of civil liberties does not preach that their constitutional mission by act or omission. This reality must be confronted and discussed so that we can implement a recommended guarantees offense proceedings constitutionally for over twentyfive, so that it can drive the ius in puniendi abstract State the track of democracy and not of remaining possible tyranny in force in the ill-fated principle of guilt.

Keywords: Probation. Fundamentals and (de) public order. Causes. Solutions.

INTRODUÇÃO

No período de 12 a 14 de novembro de 2014, tivemos a honra de sermos convidados para participar como debatedor, ao lado do Prof. Dr. Nestor Eduardo Araruna Santiago e do Prof. Me. Guilherme Rodrigues Abrão no painel panorama das prisões e medidas cautelares no Brasil – apresentando resultado da pesquisa de monitoramento, que teve como palestrantes a Profª. Drª. Flaviane de Magalhães Barros e o Prof. Dr. Leonardo Marinho Marques, onde foi apresentado a todos os dados estatísticos alarmantes decorrentes de séria pesquisa capitaneada por esses palestrantes junto ao Poder Judiciário de 2ª Instância por intermédio da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Os números alarmantes de prisões provisórias levaram os debatedores e ouvintes à reflexão sobre as suas causas e intensos posicionamentos, no que, indo além, procuramos neste pequeno ensaio abordar uma das causas que, para nós, é a que mais contribui para o caos que se instalou no sistema criminal há anos, apesar de esforços legislativos esparsos de tentar amenizar a situação, como se deu por último com a Lei n. 12.403/2011. À época da entrada em vigor dessa lei que tratou da prisão processual, medidas cautelares e outras providências, o que mais se ouvia na lide forense é que agora ninguém ia ficar mais preso, o que já demonstrava a cultura reinante até então. O tempo se encarregou de apresentar uma realidade lamentavelmente distinta da comentada à época, o que reclama o seu enfrentamento para se tentar entender até que ponto o fundamento da ordem pública é ou não uma das grandes causas desse caos, sendo que

utilizaremos para tal, o método hipotético-dedutivo como principal, e o histórico-evolutivo como auxiliar.

1 PANORAMA NACIONAL DAS PRISÕES

Para abordar esse aspecto não temos como não lançar mão dos dados estatísticos que o Conselho Nacional de Justiça – CNJ nos traz de junho de 2014, apresentando-nos uma população carcerária de 711.651 presos, desses 41% são provisórios, embora excluam os presos domiciliares que estão aguardando julgamento para registrar como uma população carcerária de presos provisórios de 32%, porém, na verdade, todos os integrantes desse contingente são presos processuais.2 Essa realidade nos assusta se considerarmos que se apresenta passados quase três anos da entrada em vigor da Lei n. 12.403/2011 e que, com isso, passamos a ser o terceiro país no mundo que mais encarcera, ficando atrás apenas da China e EUA, o que aliado ao déficit de vagas no sistema prisional à época dos dados apresentados de 350 mil vagas, nos faz ter a certeza do caos decorrente de um sistema falido há décadas, mais precisamente, desde meados do século XIX, tanto que, em alguns momentos de lucidez, o legislador tem tentado ir de encontro a uma política criminal funcionalista, como ocorreu com a Reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984, a Lei n. 9.099/1995, a Lei n. 9.714/1998 e por último a Lei n. 12.403/2011, que nos trouxeram penas alternativas ou medidas cautelares diversas da prisão. Os dados estatísticos de junho de 2014 nos apresentam o Estado de Sergipe como o que maior quantidade de presos provisórios (76%), sendo que das maiores Unidades da Federação, Minas Gerais superou as demais com 49% de sua população carcerária formada por presos processuais ou provisórios. Diante dessa realidade há de se perguntar onde efetivamente se encontra (m) a (s) causa (s) de tanto encarceramento provisório no país, uma vez que os números crescem vertiginosamente decorrentes de uma política criminal punitivista que alimenta o movimento lei e ordem, surgido na década de 90 do século passado com a Lei dos Crimes Hediondos. 2

BRASIL. CNJ divulga dados estatísticos sobre a nova população carcerária brasileira. Disponível em: . Acesso em: 05 abr. 2015.

Se a contemporânea política criminal que se busca é a da descarcerização e descriminalização com as leis acima citadas, o que não estaria dando certo?

1.1 A Origem

O Estado historicamente sempre foi omisso no que se refere ao sistema prisional, indiferente se o preso era provisório ou definitivo que, na maioria das vezes, dividiam o mesmo espaço num cárcere em que a praxe, em virtude das péssimas instalações, é o tratamento desumano e degradante dos que passam a gozar do status de invisíveis, estes em que grande parte perde para nunca mais encontrar a dignidade da pessoa humana. Alia-se a esse fato o de estarmos vivendo um Estado Democrático de Direito há pouco mais de duas décadas, depois de mais de quinhentos anos de existência turbulenta e opressora em que se pensava que o povo existia em razão do Estado e não o inverso como impera em toda e qualquer democracia. Essa característica passou a fazer parte da cultura brasileira que até bem pouco tempo atrás era alimentada por um estado de exceção em que vigorava o princípio da culpabilidade, não se podendo com isso querer mudar, de um dia para o outro, algo que está enraizado em grande parte da população ou da cultura brasileira desde os primórdios de nossos tempos. Com efeito, o processo é lento e gradual porque a pressão contrária ao novo, à mudança do sistema, é forte ao ponto de fazer com que tenhamos uma importante parcela do Judiciário atrelada a essa cultura antiga que não se ajusta mais ao atual Estado Democrático de Direito em que vigora o princípio da não-culpabilidade e que tem constitucionalmente, na figura do Magistrado, o agente garantidor das liberdades públicas. Ora, nessa linha não podemos ter como causa apenas o aumento da criminalidade que nos assola assustadoramente nas últimas décadas, derivado, dentre outras causas, do alto índice de reincidência em crimes dolosos daqueles que saem do sistema prisional pior do que entraram, mas também do fortalecimento do movimento punitivista em razão da omissão estatal e do fato de que o processo penal não está cumprindo bem o seu papel constitucional atual de ser democrático e garantista, sendo que, em consequência, os dados estatísticos do sistema prisional brasileiro nos apresentam um quadro nada animador.

1.2 Dados Estatísticos do Sistema ao Longo das Últimas Décadas

Se efetivamente tínhamos uma população carcerária em 1990 de 90 mil presos3 e em 2000 passamos a ter de 232.755 mil presos4, há de se considerar que em dez anos tivemos um aumento populacional de 158,6% no sistema prisional, no que podemos atribuir esse percentual exorbitante ao movimento punitivista que se iniciou com a Lei dos Crimes Hediondos de 1990. De 2000 para 2010 tivemos um aumento em 113,2% de presos no sistema, englobados sempre nesses percentuais os definitivos e provisórios.5 Cerca de trinta dias antes da entrada em vigor em 04 de julho de 2011 da Lei n. 12.403/2011, tínhamos uma população carcerária de 513.802 mil presos, sendo que 43,7% (224.646 mil) eram de presos provisórios, contudo, assim que passou a vigorar a lei supracitada, constatamos que embora tenha havido em dezembro do próprio ano um aumento no geral para 514.582 mil presos, houve uma diminuição proporcional no número de presos provisórios que passou a representar 42,1% (217.146 mil) do seu total apurado.6 Entretanto, de dezembro de 2011 até junho de 2014 se registra uma realidade inversa, há aumento de presos provisórios em 34,3% que somados aos presos definitivos perfazem um total de 72,3% em menos de quatro anos. Portanto, o que surgiu com intuito de desafogar o caos do sistema prisional (Lei n. 12.403/2011) e, ainda que por via oblíqua, de se fazer valer substancialmente o princípio constitucional da presunção da inocência em que a prisão é a exceção e não a regra, tem se mostrado ineficaz para conter a ânsia punitiva dos últimos tempos que tem invertido essa máxima, em verdadeiro afronta a essa garantia processual penal constante da Constituição Federal de 1988.

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CONGRESSO EM FOCO: jornalismo para mudar. População carcerária cresce seis vezes em 22 anos. SARDINHA, Edson; COELHO, Mario. 10.01.2014. Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2015. 4 BRASIL. Ministério da Justiça. Sistema Prisional. Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2015. 5 Ibidem. 6 Ibidem.

2 DA PRISÃO PREVENTIVA

A prisão preventiva, no Brasil, na essência é cautelar de natureza processual, portanto provisória, mas também pode ser pré-cautelar em havendo necessidade de se dar na primeira fase da persecução penal. Outrora, quando vigorava o princípio da culpabilidade, como se sabe, a prisão era a regra, tanto que quando ainda em vigor o antigo artigo 594 do CPP7, habitualmente o réu era mantido preso e se fugisse o seu eventual recurso de apelação era julgado deserto, impondo o referido dispositivo que o Magistrado fundamenta-se do porque concederia ao sentenciado o direito de recorrer em liberdade. Houve essa alteração, mas o que mudou de concreto? Pode ter sido revogado o dispositivo, mas a cultura punitivista ainda se mantinha ativa e sempre se encontrou um meio de burlar a garantia constitucional que faz da prisão a exceção para continuar a mantê-la como regra. Essa ação se deu inicialmente pela legalização da prisão por averiguação que passou a ter uma roupagem legal por meio da inconstitucional Lei n. 7.960/1989, mas também por meio de Magistrados descompromissados com sua missão constitucional, mas não com a opinião pública e a vaidade pessoal. Assim, tornam-se, muitos, populistas na medida em que acabam por encarnar a figura do ‘todo salvador’, do justiceiro, daquele comungado com a repressão estatal, como se fosse órgão integrante desse aparato, igualmente há muitos Promotores de Justiça que ainda respiram os ares da época em que eram vistos apenas como órgãos de acusação do Estado por terem uma atuação cega e descompromissada da sua atual função essencial à justiça na democracia vigente, atuando ambos com se a prisão fosse a regra, a tábua da salvação para o aumento da criminalidade. Um dos aspectos que tem sido observado pela doutrina mais atenta é que, na atualidade, a prisão provisória, não raro, vem se tornando na maioria dos casos antecipatória da definitiva, desvirtuando-se totalmente a sua natureza processual e cautelar.

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Revogado pela Lei n. 11.719/2008.

Essa situação surge nas seguintes hipóteses, dentre outras que possam existir: 1) da incompatibilidade do regime prisional fixado na sentença com o status em que o réu se encontra; 2) da falta de bom senso no respeito ao princípio constitucional da razoável duração do processo (CF; art. 5º, LXXVIII) introduzido pela Emenda Constitucional n. 45, de 08 de dezembro de 2004, postergando o feito muitas vezes por prazo desarrazoado àquele inerente a pena do delito praticado, mantendo o réu em regime prisional e prazo desproporcional àquele que viesse a ser condenado; 3) da manutenção indevida do réu preso em regime desproporcional àquele inerente ao crime praticado, deixando de aplicar medidas cautelares diversas; 4) da ausência de fundamentação, mas não de motivação quando da conversão da prisão em flagrante em preventiva, usando velhos chavões que afrontam o disposto no art. 93, IX, da CF; 5) da ausência da necessidade primária de se analisar se estão presentes os requisitos para a conversão da prisão em flagrante em medidas cautelares diversas da prisão, procedendo-se ao inverso ao fazer a análise primeira com relação à prisão preventiva, contrariando o disposto no art. 282, § 6º, do CPP e, 6) da decretação da prisão preventiva de ofício em ambas as fases da persecução penal.

2.1 Pressupostos e/ou Requisitos

Costuma-se falar em requisitos para se englobar os pressupostos e fundamentos dessa prisão provisória, contudo preferimos fazer a necessária distinção uma vez que só se pode fundamentar de forma cautelar uma prisão preventiva se presentes, antes, os pressupostos de fato da prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, nos termos do que dispõe o art. 312 do CPP que Gustavo Badaró denomina de pressupostos positivos em contraposição aos que intitula corretamente de negativos constantes do art. 314 do CPP.8 Para Eugênio Pacelli e Douglas Fischer9 os requisitos seriam de fatos (CPP; art. 312) e de direito (CPP; art. 313), mas de qualquer maneira antes dessa análise conjunta, necessariamente haverão de estarem presentes, como dito inicialmente, os pressupostos da

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BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 974-975. 9 Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 645.

prova da existência do crime e de indícios suficientes de autoria, sem o obstáculo da existência de excludentes da ilicitude do art. 314 do CPP. Parte da doutrina processual penal que se serve da teoria geral do processo, importa das cautelares do processo civil o brocardo fumus boni iuris como sinônimo da prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, contudo comungamos da visão mais moderna de que não há de se falar em fumaça de bom direito em havendo prova da existência de um crime e indícios suficientes de autoria, como bem salienta Aury Lopes Jr., o “fenômeno da prisão cautelar é completamente diverso das medidas cautelares do processo civil”10, se preferindo convencionar pela doutrina mais contemporânea de fumus comissi delicti.11 Paulo Rangel12 aparentemente não faz distinção entre “o periculum in mora (periculum libertatis) e o fumus boni iuris (fumus comissi delicti)” ao tratar dos pressupostos do art. 312 do CPP13, equiparando-as para reservar para a primeira os fundamentos (garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e assegurar a aplicação da lei penal). No mesmo sentido Renato Marcão.14 Para o segundo requisito (fumus boni iuris), faz referência aos pressupostos propriamente ditos (prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria), contudo nos parece salutar a ênfase nesta separação processual sob pena do processo cautelar penal continuar a viver à sombra do processo cautelar civil, pois embora processos, têm finalidades cautelares distintas que reclamam tratamento teorético diverso. Para nós e outros autores, não basta apenas que haja ‘fumaça da prática de um delito’ (fumus comissi delicti) e indícios suficientes de autoria, mas sim, que haja uma alta probabilidade capaz de gerar quase uma certeza de que houve a prática de um crime15, aqui entendido no conceito analítico da teoria tripartida do delito como um fato típico, ilícito e

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LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 10. ed., São Paulo: Saraiva, 2013, p. 832. Cf. PACELLI, Eugênio; COSTA, Domingos Barroso da. Prisão Preventiva e Liberdade Provisória: a reforma da Lei nº 12.403/11. São Paulo: Atlas, 2013, p. 91. No mesmo sentido: BADARÓ, op. cit., p. 974. 12 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 23. ed. atual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 809-810. 13 No mesmo sentido: MARCÃO, Renato. Prisões cautelares, liberdade provisória e medidas cautelares restritivas. 2. Ed. ver e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 140 e 155. 14 Prisões cautelares, liberdade provisória e medidas cautelares restritivas. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 140, 155 e 160. 15 No sentido que haja apenas uma probabilidade razoável: LOPES JR, 2013, p. 833. 11

culpável em que haja, portanto, em consequência, também uma alta probabilidade de se aplicar uma pena àquele que apresenta indícios suficientes de ser o autor do fato.16

2.2 Dos Fundamentos

A prisão preventiva, como o próprio nome indica, não pode se transformar em uma prisão repressiva por absoluta incoerência semântica e de finalidade, esta que só ocorre quando de uma sentença penal condenatória transitada em julgado, até porque a prisão, em especial, a provisória, há de ser a exceção em um processo penal democrático e garantista que tem como um dos seus alicerces o princípio-garantia constitucional da presunção da nãoculpabilidade ou da presunção da inocência. Portanto, qualquer detenção ou encarceramento arbitrário viola frontalmente essa garantia constitucional e internacional, uma vez que prevista no texto constitucional (CF; art. 5º, LVII) e no Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana dos Direitos Humanos de 1969), este que foi incorporado ao ordenamento jurídico pátrio com status de norma materialmente constitucional por meio do Decreto n. 678/1992, com base no disposto no art. 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, a prisão provisória que ganha um status de definitiva viola frontalmente esse princípio que, assim como regras, são normas de observância obrigatória pelos atores jurídicos numa perspectiva deontológica de Dworkin e Habermas que adotamos, mas não teleológica de Alexy por entendermos ser aquela mais garantista e democrática. A prisão preventiva, como já dissemos, tem natureza processual por excelência, ou seja, cautelar e a esse fim deve se dirigir ou se limitar. Se a prisão deve ser a exceção onde vigora o princípio da presunção da inocência, necessariamente temos que tratar nos tópicos seguintes dos fundamentos constantes, em especial, do art. 312 do CPP, para tentarmos identificar o que tem contribuído para um aumento desarrazoado da população carcerária nos últimos tempos.

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Cf. GIACOMOLLI, Nereu José. Prisão, liberdade e as cautelares alternativas ao cárcere. São Paulo, 2013, p. 73.

2.2.1 Necessidade de Assegurar a Aplicação Penal

Fundamento nitidamente cautelar e processual que pode vir a justificar a utilização da medida extrema para impedir que haja riscos à aplicação da lei penal quando se constatar, objetivamente, que o réu se encontra foragido, há probabilidade de fuga do acusado/suspeito do distrito da culpa por residir fora dele, ou mesmo que não haja comprovação de que reside ou tenha domicílio neste ou onde resida efetivamente, ou seja, há um diagnóstico que leva a um prognóstico, embora este possa não vir a ser falho, mas de qualquer maneira há de se ter dados objetivos que recomendem a decretação da prisão provisória até que surjam elementos que não mais a justifiquem.

2.2.2 Conveniência da Instrução Criminal

Outro fundamento de natureza eminentemente cautelar e processual, na medida em que haja dados objetivos que possibilitem mensurar de forma concreta que é conveniente, ou melhor, que é necessária para a instrução criminal que o réu/suspeito seja preso preventivamente17, notadamente se constar dos autos que ele ameaça ou ameaçou de praticar violências contra a (s) testemunha (s) e/ou mesmo a (s) vítima (s), caso viesse (m) em qualquer das fases da persecução penal prestar depoimentos/declarações em seu desfavor, ou mesmo fortes indícios (CPP; art. 239) de que possa a vir a destruir provas imprescindíveis ao caso.

2.2.3 Garantia da Ordem Pública e da Ordem Econômica

2.2.3.1 Ordem pública

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Cf. PACELLI; FISCHER, 2013, p. 647.

Para nós, aí reside o ponto nevrálgico de todo o caos no sistema prisional, notadamente no que se refere à ordem pública diante da sua subjetividade conceitual, sendo a mesma uma das grandes causas do aumento desarrazoado da população carcerária brasileira. Fernando da Costa Tourinho18 leciona: Ordem pública é expressão de conceito indeterminado. Normalmente, entende-se por ordem pública a paz, a tranqüilidade no meio social. [...]. E aí a medida extrema fica ao sabor da maior ou menor sensibilidade do Magistrado, de idéias preconcebidas a respeito de pessoas, de suas concepções religiosas, sociais, morais, políticas, que o fazem guardar tendências que o orientam inconscientemente em suas decisões. [...]. “Ordem pública” é fundamento geralmente invocável, sob diversos pretextos, para se decretar a preventiva, fazendo-se total abstração de que está é uma coação cautelar e, sem cautelaridade, não se admite, à luz da Constituição, prisão provisória.

Forçosamente, há de se admitir que esse fundamento não tem nada de processual ou cautelar no sentido estrito da palavra, mas tem muito num sentido amplo de cautelaridade que abranja um regime ou mesmo forma de governo. O aspecto cautelar também pode residir na preservação da ordem pública, expressão vinculada aos órgãos de repressão do Estado (CF; art. 144, III), porém distante dos atores que têm a missão constitucional de assegurar os direitos humanos fundamentais, capitaneada pela figura única da de garantidor das liberdades públicas. Nesse sentido, Nereu Giacomolli19 observa que nos termos da Constituição Federal de 1988, embora a segurança pública seja um dever do Estado e de responsabilidade de todos, exercida para preservar a ordem pública, a incolumidade das pessoas e do patrimônio é exercida pelas autoridades policiais e não pelas judiciais. É o que se infere do art. 144 da CF. É atribuição da Administração e não do Estado-Juiz. Também, não uma função da mídia e nem o que esta entende por ordem pública.

2.2.3.2 Ordem econômica

No mesmo sentido se encontra a prisão preventiva para garantir a ordem econômica que de nada tem de processual ou cautelar, coisa que inclusive não deveria tratar o direito penal, mas sim o direito administrativo sancionador perante as pessoas jurídicas envolvidas. 18

Manual de Processo Penal. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 613 e 614. O Devido Processo Penal: Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014, p. 373. 19

Tal fundamento foi inserido no art. 312 do CPP pela Lei n. 8.884/94 (Lei Antitruste) com o fim de inibir a prática de crimes contra a ordem econômica e financeira20, sendo que Eugênio Pacelli e Douglas Fischer21 ao abordar a questão sustentam que, em princípio, não vêem como a segregação cautelar de alguém possa garantir a estabilização da economia, no que toca à proteção do mercado consumidor, sempre sujeito às flutuações e manipulações de preços resultantes de operações estratégicas entre grupos e forças produtivas (econômicas). [...]. Melhor que a prisão seria a pronta intervenção no mercado por parte das autoridades econômicas do país.

Os citados processualistas acima entendem possível a utilização desse fundamento para a decretação da preventiva caso “seja absolutamente indispensável para evitar que a pessoa, em liberdade, possa continuar a realizar as mesmas manobras danosas à economia”22, no que para nós, retornaríamos ao âmbito da nefasta presunção da reiteração criminosa como autorizadora da aplicação dessa medida de exceção, com o foco no autor e não no fato, o que, repetimos, não tem nada haver com a natureza processual dessa cautelar e com um direito penal do fato. Essa é a questão, ou seja, a natureza jurídica da cautelar em comento. Se ela é essencialmente processual, então toda medida extrema de limitação da liberdade individual deve se voltar para a necessidade de atender esse aspecto com conotações cautelares, sob pena de estarmos desnaturando-a para atender a um sistema ou interesses desconhecidos e não à necessária cautelaridade que o provimento reclama.

2.2.3.3 Origem da expressão ordem pública

Patrick Mariano Gomes23, em sua dissertação de mestrado na UNB, sob a orientação da Profª. Drª. Ela Wiecko Volkmer de Castilho, ao tratar da influência no direito brasileiro da ordem pública do direito alemão e italiano, aponta a origem da palavra:

20

GIACOMOLLI, 2013, p. 78. Op. cit., p. 652. 22 Id., ibid., loc. cit. 23 GOMES, Patrick Mariano. Discursos sobre a ordem: uma análise do discurso do Supremo Tribunal Federal nas decisões de prisão para garantia da ordem pública. 2013. 210 f. Dissertação (Mestrado em Direito) Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília. 2013. Disponível em: . Acesso em: 20 de abr. 2015, p. 27-28. 21

Na Alemanha, o conceito de ordem pública tem sua origem histórica no estado de exceção e está intimamente ligado ao exercício da política. [...] Quem determinava, portanto, se a ordem pública estava ameaçada era o chefe do poder político. [...]. O uso político do art. 48 da Constituição de Weimar possibilitou prisões em massa de milhares de militantes comunistas, judeus ou daqueles assim considerados como inimigos do estado. Foi com reforma nacional-socialista de 1935 que o processo penal alemão incorporou a permissão para se determinar o encarceramento provisório com fundamento na excitação da opinião pública provocada pelo delito. O contexto histórico do período entre guerras e a situação da Alemanha (que vinha de derrota da primeira das grandes guerras mundiais), exigia que se elegessem os culpados dessa derrota e do infortúnio do povo alemão e que sobre estes recaísse a segregação, o isolamento e o banimento, que só as prisões são capazes de realizar. As reformas legislativas que se sucederam na Alemanha após a II Guerra retiraram do ordenamento legal a possibilidade de se determinar a prisão para garantia da ordem pública. No Brasil, embora o Código de Processo Penal de 1832 já trouxesse o “clamor público” como fundamento para a prisão antes da culpa formada (o que depois veio a ser modificado com a reforma de Francisco Campos), ela estava ligada à prisão em flagrante, ou ao chamado quase flagrante, sendo que foi somente no CPP de 1941, na Era Vargas, que a ordem pública ficou atrelada à prisão preventiva, seis anos, portanto, depois da Alemanha.

De plano, podemos constatar que a ordem pública vai bem com regimes totalitários ou Estados Policiais, assim como tem haver com a necessária atuação da polícia ostensiva e preventiva em qualquer regime de governo ou forma de Estado, mas não com o processo criminal cautelar que pode reclamar a necessidade de se acautelá-lo com a utilização da exceção (prisão provisória), no que podemos afirmar que não se coaduna com um processo penal democrático e garantista inerente ao nosso Estado Democrático de Direito.

2.2.3.3 O fundamento da ordem pública na doutrina e na jurisprudência

De uma maneira geral, ao contrário da jurisprudência, a doutrina não vê com bons olhos a utilização desse fundamento porque permite, pela sua subjetividade conceitual, ser tudo e nada ao mesmo tempo, mas motivo de muitas prisões provisórias desarrazoadas ou desproporcionais, quando não ilegais. Hidejalma Muccio sustenta que a ordem pública “objetiva a preservação de ‘bem jurídico essencial à convivência social, como, por exemplo, a proteção social entre réu perigoso que poderá voltar a delinqüir, a proteção de testemunhas ameaçadas pelo acusado ou à proteção da vítima’”.24

24

Curso de Processo Penal. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011, p. 1185.

Esse discurso vai de encontro ao que sustentamos, até porque é aos órgãos de repressão do Estado que cabe preservar a ordem pública e o respeito aos bens jurídicos essenciais, sendo que da proteção das testemunhas ou vítima ameaçada já deve cuidar o fundamento da conveniência da instrução criminal. Ao direito penal cabe tutelar os bens tidos como essências, como a doutrina mais autorizada vem se posicionando há tempos, intervindo sempre que houver ameaça ou lesão ao mesmo por meio do devido processo penal que tem a função de viabilizar a pretensão do Estado de concretizar o seu ius puniendi e ao mesmo tempo limitá-lo por meio do seu condutor (processo penal) para que não macule os direitos humanos fundamentais na sua ânsia punitiva, até porque numa democracia o Estado existe em razão do povo que detém todo o poder, fazendo parte esse mecanismo da necessária busca pelo equilíbrio na convivência social. A afirmação de que a utilização desse fundamento se justifica pela “proteção social entre réu perigoso que poderá voltar a delinqüir”25, nos traz uma presunção inadmissível decorrente da malfadada periculosidade que não se atrela ao fato, mas ao autor, o que já se encontra ultrapassado há muito em face do moderno direito penal do fato. A jurisprudência das 5ª e 6ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça, à unanimidade, firmou entendimento, em sentido contrário da doutrina, de que se justifica a prisão preventiva quando se dá em razão da periculosidade do agente26, como igualmente vem decidindo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais.27 Sobre a periculosidade do autor, Michel Foucault com propriedade ao fazer importantes considerações sobre as transformações do sistema penal e o surgimento da prisão no início do século XIX, assinala: Toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer. Assim, a grande noção da criminologia e da penalidade em fins do século XIX foi a escandalosa noção, em termos de teoria penal, de periculosidade. A noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus 25

MUCCIO, Hidejalma, 2011, p. 1185. STJ-RHC 54674/SP. 5ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, v.u., j. 24/03/2015, DJe 16/03/2015. No mesmo sentido: STJ-HC 257010/PE. 6ª Turma, Rel. Min. Nefi Cordeiro, v.u., j. 19/03/2015, DJe 27/03/2015. 27 TJMG-HCC 1.0000.15.008316-0/000, Rel. Des. Doorgal Andrada, j. 25/03/2015, pub. 31/03/2015. No mesmo sentido: TJMG-HCC 1.0000.15.012373-5/000, Rel. Des. Walter Luiz, j. 24/03/2015, pub. 31/03/2015. TJMGHCC 1.000.15.005485-6/000, Rel. Des. Catta Preta, j. 19/03/2015, pub. 30/03/2015. 26

atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam.28

Salienta com razão Aury Lopes Jr. que “a prisão para garantia da ordem pública atende a uma dupla natureza: pena antecipada e medida de segurança, já que pretende isolar um sujeito supostamente perigoso”.29 Há de se conter eventuais anseios de atender o clamor público em pleno século XXI, sob pena de retrocedermos aos primórdios dos tempos. Há de se combater os efeitos, mas de nada adianta esse trabalho se as causas não recebem a atenção devida do Estado. Não se pode esquecer jamais que conquistamos a democracia com suor, sangue e lágrimas para que possamos ter, no mínimo, respeitados os nossos direitos fundamentais que só pode se ocorrer por meio de um processo penal democrático e garantista, afinal, a “ausência de um referencial semântico seguro a ‘garantia da ordem pública’ coloca em risco a liberdade individual”.30 O fundamento da ordem pública é utilizado sempre que se quer alguém preso e não há outro, empregando-se as razões mais esdrúxulas e desassociadas da natureza processual da prisão cautelar. Utiliza-se como fundamento o clamor social, a gravidade do crime, periculosidade do agente em face de sua conduta na prática do crime, restabelecer a confiança no Poder Judiciário, assegurar a credibilidade do Judiciário, manter a ordem na sociedade que é abalada pela prática do delito, inclusive quando se considera o crime “gravíssimo, eis noticiado que o assalto foi efetivado mediante o emprego de grave ameaça, exercida com simulação do emprego de arma de fogo”.31 Alexandre Moraes da Rosa sustenta, sob esse aspecto, que inexistindo lei que explique as imputações que ensejam a prisão cautelar por ordem pública, mostra-se ilegal qualquer prisão nela fundamentada. Mesmo assim, com muito contorcionismo, baseados em compreensões que simplesmente ignoram o disposto no art. 282, I, do CPP e o art. 5º da CR/88, continua-se decretando prisão cautelar pela ordem pública. Somente se pode prender cautelarmente para garantia da instrução criminal e aplicação da lei penal. Anote-se que a prisão

28

A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2005, p. 85. Prisões Cautelares. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 111. 30 BADARÓ, 2015, p. 977. 31 TJMG-HCC 1.0000.15.012373-5/000, Rel. Des. Walter Luiz, j. 24/03/2015, pub. 31/03/2015. 29

cautelar deverá ser justificada também na decisão judicial, dado que a presença dos requisitos para condenação em nada se vinculam à antecipação da pena.32

Para nós, não há como a lei descrever objetivamente algo que é subjetivo e desassociado da natureza processual da prisão cautelar porque não encontrará sintonia neste campo, mas sim em outros que não interessam ao processo criminal democrático, por isso mesmo, para os fins cautelares no curso do devido processo legal, esse fundamento nos soa estranho e incompatível com o nosso atual Estado Democrático de Direito, como também entende Aury Lopes Jr.33, portanto, neste ponto, para nós, tal expressão para os fins que se destina é de duvidosa recepcionalidade constitucional, embora haja quem entenda que não há qualquer inconstitucionalidade na expressão ordem pública.34 Gustavo Badaró35 destaca com acerto que: Quando se prende para “garantir a ordem pública”, não se está buscando a conservação de uma situação de fato necessária para assegurar a utilidade e a eficácia de um futuro provimento condenatório. Ao contrário, o que se está pretendendo é a antecipação de alguns efeitos práticos da condenação penal. No caso, privar o acusado de sua liberdade, ainda que juridicamente tal situação não seja definitiva, mas provisória, é uma forma de tutela antecipada, que propicia uma execução penal antecipada.

Não desconhecemos, como nos aponta Aury Lopes Jr.36, Eugênio Pacelli e Domingos Barroso da Costa37, Paulo Rangel38 e Gustavo Badaró39, que inúmeros países europeus prevêem em sua legislação processual penal a possibilidade da prisão provisória com base no fundamento da ordem pública, mas isso não desnatura o nosso entendimento de que se trata de expediente utilizado indevidamente na seara processual e cautelar, portanto, não desnastra a porta da sua não recepcionalidade constitucional pós 05/10/1988. Dessa forma, constatamos que a ordem pública sempre esteve atrelada politicamente à necessidade de serem preservados regimes de exceção, tanto que também é sabido que o Código Rocco italiano, de 1930 teve forte influência sob o nosso Código de Processo Penal de 1941 que entrou em vigor em 01 de janeiro de 1942, em plena vigência da Constituição de 1937 (Polaca) que implantou a ditadura do Estado Novo de Vargas.

32

Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Jurís, 2013, p. 133-134. 33 Prisões Cautelares, 2013, p. 115 34 RANGEL, 2015, p. 810. 35 BADARÓ, 2015, p. 978. 36 Direito Processual Penal, 2013, p. 854 e 855. 37 Op. cit., p. 99 e 100. 38 Op. cit., p. 810. 39 Op. cit., p. 980.

Também se utiliza a motivação do suposto risco de reiteração criminosa para decretar a prisão preventiva com fundamento na ordem pública. Com efeito, em assim agindo estamos fazendo previsão do que é incerto, do amanhã, ou seja, do futuro, algo meio astrológico, o que é incompatível por ser uma presunção de uma possibilidade que a nossa avançada tecnológica atual não permite, sequer, se tornar uma probabilidade. É fazer valer indevidamente na realidade a ficção do filme Minority Report – A Nova Lei. Salienta Aury Lopes Jr. acertadamente que com esse argumento do risco de reiteração delitiva para se decretar a preventiva com base na ordem pública, permite se atender “não ao processo penal, mas sim a uma função de polícia do Estado, completamente alheia ao objeto e fundamento do processo penal”40, em que pese o fato de ser pacífico no Supremo Tribunal Federal o entendimento em contrário “de que a possibilidade objetiva de reiteração criminosa constitui motivação idônea para fixação da custódia cautelar”.41 Entretanto, deve-se salientar que há quem defenda que para impedir a reiteração criminosa se possa lançar mão do disposto no art. 282, I, parte final, do CPP “como disposição geral de manejo das 42

cautelares pessoais, o que inclui a prisão preventiva sem afetar sua excepcionalidade”.

O fundamento de sua utilização decorre da interpretação desenvolvida dos arts. 282, I, in fine, c/c 312, ambos do CPP, para evitar a prática de infrações penais, como sustenta Eugênio Pacelli e Domingos Barroso Costa em um primeiro momento, em resposta à pergunta de “quais seriam as causas suficientes a causar a intranquilidade social, legitimando, assim, a decretação da prisão preventiva para garantia da ordem pública –e, portanto, proteção da comunidade?”.43 O que é intranquilidade social? Quem pode ou tem capacidade de medi-la? A quem cabe a proteção da comunidade? Assim, como ordem pública, a intranquilidade social é um conceito extremamente vago, perigoso e subjetivo que não pode servir de fundamento à medida excepcional da prisão provisória, até porque, repito, não encontra ressonância na natureza processual dessa cautelar.

40

Prisões Cautelares, 2013, p. 115. STF-HC 98437/SP. 1ª Turma, Relª. Minª. Cármen Lúcia, v.u., j. 13/10/2009, DJe 07/05/2010. 42 PACELLI; COSTA, 2013, p. 101. 43 Ibid., p. 101. 41

Para evitar a prática de infrações penais ou mesmo a reiteração criminosa bastaria aplicar as medidas alternativas à prisão (CPP; art. 319) com monitoramento eletrônico, como corretamente sustenta Aury Lopes Jr.44, no que assim, entendemos, estaríamos respeitando na íntegra o princípio fundamental da presunção da inocência (CF; art. 5º, LVII), fazendo da prisão provisória a exceção, até porque o cabimento desta deve ser analisado no momento seguinte as das medidas cautelares diversas (CPP; art. 282, §6º). Entendemos, por último, que tal posicionamento contribuiria em muito para a diminuição da população carcerária brasileira, uma vez que se sabe que desde meados do século XIX o instituto da prisão está falido porque esta tem se mostrado ao longo do tempo apenas fator de segregação social e não de contribuição para a readaptação daquele que ingressa no sistema prisional.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em face do abordado neste ensaio, restou demonstrado que está havendo um crescimento assustador da população carcerária nos últimos anos, bem como que dentre os inúmeros fatores que contribuem para esse fato, está há cultura enraizada de que a prisão é a regra quando ainda vigorava o princípio da culpabilidade. Esse

fator

se

torna

extremamente

perigoso

quando

temos

legisladores

infraconstitucionais e julgadores que ainda o aspirem. O legislador derivado carente de uma visão garantista e democrática que não lhe permite enxergar o sistema processual penal acusatório puro implantado pelo legislador originário, vai remendando de qualquer maneira um código de processo penal criado quando vigorava a tirania, fazendo com que avancemos a passos de cágado para a concretização da nossa realidade processual atual e constitucional. Com isso, perdura ainda equivocadamente nas mãos do Magistrado uma parcela do poder instrutório quando, de ofício, determina a produção de provas antecipadas e pode decretar a prisão preventiva, em que pese o esforço interpretativo da doutrina para limitar esta

44

Direito Processual Penal, 2013, p. 855.

opção à fase processual da persecução penal, evitando-se assim que a garantia da imparcialidade judicial que, na essência, pertence ao jurisdicionado, seja fragilizada. Fundamentos da prisão preventiva como da ordem pública e da ordem econômica que servem para tudo e para nada ao mesmo tempo, são outros fatores que contribuem comprovadamente para o aumento desenfreado da população carcerária, quando atrás está a cultura da culpabilidade naquele que tem a missão de ser o garantidor das liberdades públicas, o que aliado à subjetividade desses fundamentos e a incoerência de serem utilizados para assegurar o provimento cautelar processual, formam um perigoso ingrediente tirano. Essas circunstâncias vêm se agravando e a boa intenção de legisladores divergentes vem sendo burlada por meio daquele que tem a missão de interpretar a lei para aplicá-la ao caso concreto e passa a utilizar, dentre outros, expedientes que dizem respeito a um direito penal autor e não do fato, sempre sob o manto da tirana ordem pública, como o risco de reiteração criminosa ou para evitar a prática de infrações penais para tornar a prisão a regra e não a exceção com base em conjecturas. A persistência dessa cultura e desses efeitos ganhou a partir da Lei dos Crimes Hediondos a nefasta contribuição do movimento punitivista. Esse movimento que surgiu em decorrência da ineficiência e omissão estatal para tratar das penas privativas de liberdade e do sistema prisional, é fortalecido pelo senso comum da opinião pública que sofre com a criminalidade crescente, alimentada por uma mídia compromissada apenas por interesses próprios, bem como por políticos que se utilizam dessa fragilidade e encampam esse movimento em virtude dos seus efeitos simbólicos da falsa sensação de segurança pública e interesses eleitoreiros. Se as políticas criminais da penalização e carcerização fossem as mais acertadas para permitir a diminuição da criminalidade, não estaríamos atualmente entre os três países do mundo que mais encarceram. Sobre esse aspecto, a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos em seu relatório de 2014, salienta que está comprovado estatisticamente que essa política não diminui a criminalidade, atuando em sentido contrário. Necessitamos urgentemente que os juízes tenham real consciência da sua missão constitucional de assegurarem os direitos fundamentais e serem os garantidores das liberdades públicas por excelência, para que, com coragem, por meio de um processo penal garantista

possam limitar a intervenção estatal penal descabida que queira sair dos trilhos democráticos para seguir por aqueles tidos como ainda existentes do totalitarismo do passado. Destarte, na atualidade se deve fazer uma leitura do direito processual penal de cima para baixo e não o inverso, ou seja, da Lei Maior para a Lei Menor de forma a não se servir de todo comando processual que for de encontro daquela, afastando de vez a aplicabilidade dos fundamentos da ordem pública e da ordem econômica para a prisão preventiva ou processual, sob pena de continuarmos a ter dificuldades de materializar a tão sonhada democracia que vive à sombra da ditadura.

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