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May 29, 2017 | Autor: V. Ghisloti Iared | Categoria: Environmental Education, Post-Human, Aesthetics and Ethics
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Descrição do Produto

PANORAMA DAS POLÍTICAS CULTURAIS E AMBIENTAIS NO BRASIL (VOLUME 2)

© LapCAB 2016 Preparação dos originais: CirKula Editora Projeto gráfico: CirKula Editora Diagramação: Mauro Meirelles Capa: Luciana Hoppe CirKula / LapCAB / SobreNaturezas Todos os direitos reservados ao LapCAB. Apoio e Financiamento: CAPES/FAPERGS/UNISINOS/PUCRS/CIRKULA Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P194

Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil / José Rogério Lopes ... [et al.] organizadores; Admilson Renato da Silva ... [et al.] autores do primeiro volume; Adriana Sartório Ricco, Juliana Teixeira Lima ... [et al.] autores do segundo volume. – 1.ed. – Porto Alegre: CirKula, 2016. 2 v. ISBN: 978-85-67442-69-3 1.Cultura – Brasil. 2. Política cultural. 3. Política ambiental. 4. Meio ambiente – Brasil. I. Lopes, José Rogério. II. Silva, Admilson Renato da. III. Ricco, Adriana Sartório. IV. Lima, Juliana Teixeira. CDU: 316.7(81)

(Bibliotecária responsável: Jacira Gil Bernardes - CRB 10/463)

A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui-se em violação de direitos autorais nos termos da Lei 9.610/98.

Editora CirKula Rua Ramis Galvão, 133 - Passo d’Areia Porto Alegre - RS - CEP: 91340-270 e-mail: [email protected] Loja Virtual: www.cirkula.com.br

PANORAMA DAS POLÍTICAS CULTURAIS E AMBIENTAIS NO BRASIL (VOLUME 2)

José Rogério Lopes Adimilson Renato da Silva Anelise Fabiana Paiva Schierholt Mauro Meirelles (Organizadores)

Porto Alegre 2016

Conselho editorial César Alessandro Sagrillo Figueiredo José Rogério Lopes Jussara Reis Prá Luciana Hoppe Mauro Meirelles Simone Sperhacke Conselho CientífiCo Alejandro Frigerio (Argentina) - Doutor em Antropologia pela Universidade da Califórnia, Pesquisador do CONICET e Professor da Universidade Católica Argentina. André Corten (Canadá) - Doutor em Sciences Politiques et Sociales pela Universidade de Louvain e Professor de Ciência Política da Universidade de Quebec em Montreal (UQAM). André Luiz da Silva (Brasil) - Doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Humano da Universidade de Taubaté. Antonio David Cattani (Brasil) - Doutor pela Universidade de Paris I - PanthéonSorbonne, Pós-Doutor pela Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales e Professor Titular de Sociologia da UFRGS. Arnaud Sales (Canadá) - Doutor d’État pela Universidade de Paris VII e Professor Titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Montreal. Cíntia Inês Boll (Brasil) - Doutora em Educação e professora no Departamento de Estudos Especializados na Faculdade de Educação da UFRGS. Daniel Gustavo Mocelin (Brasil) - Doutor em Sociologia e Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Dominique Maingueneau (França) - Doutor em Linguística e Professor na Universidade de Paris IV Paris-Sorbonne. Estela Maris Giordani (Brasil) - Doutora em Educação, Professora Associada da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e pesquisadora da Antonio Meneghetti Faculdade (AMF). Hilario Wynarczyk (Argentina) - Doutor em Sociologia e Professor Titular da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM). José Rogério Lopes (Brasil) - Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Professor Titular II do PPG em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

Ileizi Luciana Fiorelli Silva (Brasil) - Doutora em Sociologia pela FFLCH- USP e professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Leandro Raizer (Brasil) - Doutor em Sociologia e Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Luís Fernando Santos Corrêa da Silva (Brasil) - Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Ciências Humanas da UFFS. Lygia Costa (Brasil) - Pós-doutora pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ e professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Marcelo Tadvald (Brasil) - Doutor em Antropologia Social, Pesquisador do Núcelo de Estudos da Religião (NER/UFRGS) e Bolsista PNPD da UFRGS. Maria Regina Momesso (Brasil) - Doutora em Letras e Linguística e Professora da Universidade do Estado de São Paulo (UNESP). Marie Jane Soares Carvalho (Brasil) - Doutora em Educação, Pós-Doutora pela UNED/Madrid e Professora Associada da UFRGS. Mauro Meirelles (Brasil) - Doutor em Antropologia Social e Pesquisador ligado ao Laboratório Virtual e Interativo de Ciências Sociais (LAVIECS/UFRGS), PósDoutorando em Ciências da Unisinos e Pesquisador do LapCAB/Unisinos. Simone L. Sperhacke (Brasil) - Doutoranda em Design pela UFRGS. Mestre em Design e Tecnologia e graduada em Desenho Industrial. Silvio Roberto Taffarel (Brasil) - Doutor em Engenharia e professor do Programa de Pós-Graduação em Avaliação de Impactos Ambientais em Mineração do Unilasalle. Stefania Capone (França) – Doutora em Etnologia pela Universidade de Paris XNanterre e Professora da Universidade de Paris X-Nanterre. Thiago Ingrassia Pereira (Brasil) - Doutor em Educação e Professor do Programa de Pós-Graduação Profissional em Educação da UFFS. Wrana Panizzi (Brasil) - Doutora em Urbanisme et Amenagement pela Universite de Paris XII (Paris-Val-de-Marne) e em Science Sociale pela Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) e, também, Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Zilá Bernd (Brasil) - Doutora em Letras e Professora do Mestrado em Memória Social e Bens Culturais do Unilasalle.

sumário 11

ApresentAção

15

Adriana Sartório Ricco Juliana Teixeira Lima legado Cultural da imigração italiana no espírito santo a partir da oCupação territorial nos séCulos XiX e XX

37

Ana Cristina Rocha Silva Elivaldo Serrão Custódio o programa estadual

de

preservação

do

patrimônio arama-

queológiCo e a proteção do meio ambiente Cultural no pá

61

Anne Pinto Brandalise merCado de seguros ambientais e sua legitimação: Contribuições na busCa por um desenvolvimento sustentável e Justiça ambiental

79

Carla Souza de Camargo Cosmologia e ação polítiCa indígena frente à transposição do são franCisCo no sertão de itapariCa

103

Dauto J. da Silveira território de pesCa do baiXo vale do itaJaí e tiJuCas: organização polítiCa autônoma e ConsCiênCia CrítiCa

131

Leonardo Beroldt Patrícia Binkowski Aline Reis Calvo Hernandez Rosmarie Reinhr fortaleCimento do desenvolvimento territorial no estado do rs: desenvolvimento rural, Conflitualidades e eduCação ambiental nos Campos de Cima da serra

153

Miguel de Nazaré Brito Picanço na roça, na mesa, na vida: uma viagem sobre as rotas da mandioCa ao fazer-se beiJu em araí

175

Rita Paradeda Muhle Taís Cristine Ernst Frizzo quando a natureza afasta o humano

189

Rodrigo Marques Leistner quando o “brinquedo ribeirinho” vira “arte de aeroporto”: tensionamentos entre os valores Comunitários e a lógiCa de merCado entre os artesãos de brinquedo de

abaetetuba, pa 209

miriti,

Silas Dorival de Oliveira Carlos Alberto Máximo Pimenta Douglas dos Santos Lemos Lima Adilson da Silva Mello em disCussão o artesanato de maria da fé: Cultura loCal e CoeXistênCia de novas perspeCtivas de geração de renda

227

Ana Estela Vaz Xavier Centralidade e revitalização do merCado de pelotas/rs

247

Valéria Ghisloti Iared o engaJamento na investigação Como proCesso de Criação de sentido da própria pesquisadora

263

sobre os Autores

apresentação Os dois volumes deste Panorama das Políticas Culturais e Ambientais no Brasil resultam de uma rede de investigações e pesquisadores constituída em torno de um projeto de âmbito nacional, desenvolvido pelo Laboratório de Políticas Culturais e Ambientais no Brasil: gestão e inovação"- LaPCAB1. Aqui, buscou-se reunir algumas elaborações sobre os resultados das investigações realizadas no escopo do projeto e relacionadas com as questões em pauta na realização do Seminário Nacional de Políticas Culturais e Ambientais, ocorrido em julho de 2016, na Unisinos. O projeto do Lapcab prevê investigar as trajetórias e práticas de coletividades e comunidades de atores produtores de bens identitários, ou de marcação social, que se reconhecem em um contexto ambiental determinado e que utilizam, nas suas atividades, tecnologias patrimoniais que integram as percepções locais de cultura e ambiente. Esse processo de integração das percepções de cultura e ambiente baseia-se na concepção de que as tecnologias produzem agências sobre as ações e interações dos humanos entre si, e entre humanos e não-humanos, constituindo redes que caracterizam coletividades sociotécnicas. O escopo atual das investigações realizadas no projeto inclui trinta e três coletividades e comunidades, situadas em dezessete estados e nas cinco regiões do país, que foram e são estudadas por vinte e dois pesquisadores de instituições universitárias e de pesquisa nacionais. Desde o início das investigações, até este ano de 2016, o projeto passou por fases distintas. A primeira fase foi caracterizada pela formação da rede de pesquisadores, em março de 2012, organizada em torno de parcerias estabelecidas sobre dados de pesquisas situadas em casos isolados, mas que mostravam potenciais de correspondência entre si, considerando os critérios definidos acima. À medida em que a rede foi se configurando (na origem, com dez pesquisadores) e os critérios de 1 O Lapcab é coordenado desde o PPG Ciências Sociais Unisinos e possui uma página de divulgação de seus trabalhos no Facebook: www.facebook.com/lapcab. Apresentação 11

caracterização dos casos se definindo com mais clareza, outros pesquisadores foram se integrando à mesma, ampliando a identificação de coletividades e comunidades que atendiam aos seus propósitos. A segunda fase do projeto desenvolveu-se de final de 2012 até setembro de 2014, já com a configuração atual dos casos e da rede de investigações. Nesse período, os pesquisadores realizaram incursões etnográficas nas coletividades e comunidades selecionadas, produzindo relatórios que foram compartilhados entre os mesmos, através de um grupo criado no provedor Dropbox. Simultaneamente, a equipe coordenadora do projeto, na Unisinos, sistematizou os dados dos relatórios, de forma e estabelecer correspondências homólogas entre os fenômenos estudados, assim como reconheceu algumas questões epistêmicas que permitiram elaborar hipóteses para estudos comparativos entre os casos. Dessa segunda fase, vários artigos foram elaborados sobre análises situacionais dos casos e publicados em periódicos nacionais. Dessas elaborações, damos destaque aos dossiês “Sociabilidades, cultura e meio ambiente”, e “Diversidade Cultural e os dilemas para as Políticas Culturais e Ambientais”, publicados nas revistas Estudos de Sociologia (Vol. 1, nº 20, 2014) e Ciências Sociais Unisinos (Vol. 50, nº 3, 2014). Outros estudos e textos elaborados nessa fase foram apresentados em eventos científicos diversos, pelos pesquisadores da rede. O volume de elaborações sobre os casos investigados no projeto permitiu amadurecer as questões epistêmicas de pesquisa e passamos a uma terceira fase, na qual buscamos aprofundar as hipóteses de estudo em torno da experiência de produção de bens identitários de dez coletividades e comunidades, mantendo a proporcionalidade das mesmas pelas regiões do país. Essa fase se desenvolve desde final de 2014, com novas incursões etnográficas nestas coletividades e comunidades, com previsão de encerramento em maio de 2017. Diante dos dados produzidos nessa trajetória de investigações, os pesquisadores do LaPCAB se propuseram a realização de um Seminário Nacional de Políticas Culturais e Ambientais, em co-promoção com o Grupo de Estudos SobreNaturezas, constituído de pesquisadores parceiros da PUC-RS e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O propósito do Seminário foi realizar uma discussão coletiva dos casos investigados pelo LaPCAB e pelo SobreNaturezas. Ao assumir esse empreendimento, optamos por sugerir grupos de trabalho no 12 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

seminário, de forma a acolher outros estudos realizados por pesquisadores de fora da rede, visando ampliar a interlocução sobre cinco temáticas propostas para debate: Tecnologias de patrimonialização cultural e agenciamentos comunitários; Práticas culturais, meio-ambiente e esfera pública; Biodiversidade, territorialidades e bens identitários; Práticas e Aprendizagens Ambientais e Culturais; e Usos da memória e educação patrimonial. O conjunto de inscrições no Seminário resultou em sessenta e cinco pesquisadores reunidos, desde bolsistas de Iniciação Científica, passando por mestrandos, mestres, doutorandos e doutores, com trabalhos advindos de dez estados do país, em um verdadeiro panorama das políticas em discussão. Assim, considerando o limite de recursos que dispúnhamos para a presente publicação, selecionamos aqui os trabalhos completos apresentados no Seminário que melhor representam as temáticas propostas e os debates realizados. Desde já, agradecemos aos autores as contribuições que deram ao Seminário e esperamos que essa coletânea de estudos permita indagações e novas interlocuções acerca das problemáticas que se propôs discutir. Por fim, reforçamos que essa rede de pesquisas e a realização do Seminário só se tornaram viáveis pelos financiamentos que o LaPCAB obteve, através da CAPES e da FAPERGS, instituições às quais agradecemos. Agradecemos também ao apoio do PPG Ciências Sociais-Unisinos, à parceria do Grupo de Pesquisa SobreNaturezas, aos pesquisadores da rede do LaPCAB e, finalmente, à CirKula Editora, pela colaboração na produção e publicação desta coletânea. São Leopoldo, 23 de agosto de 2016. Os Organizadores

Apresentação 13

legado Cultural da imigração italiana no espírito santo a partir da oCupação territorial nos séCulos XiX e XX AdriAnA sArtório ricco JuliAnA teixeirA limA Introdução Constituindo o maior grupo étnico europeu a compor a formação do povo capixaba, a grande imigração italiana no Espírito Santo aconteceu entre 1874 e 1914. O sociólogo Renzo Grosselli apresenta dados atuais de que o Espírito Santo é o estado com o maior percentual de população de ascendência italiana. “Dispõe-se de resultados de pesquisas que indicam uma cifra ligeiramente inferior a 50% à população capixaba de ascendência italiana. Outras apontam 65%, contra, por exemplo, os 60% de Santa Catarina, menos de 40% do Paraná, 30% de São Paulo e 22% do Rio Grande do Sul” (Francescetto, 2014: 19). Há no Espírito Santo atual, mais de dois milhões e seiscentos mil habitantes, dentre os quais a maioria carrega não só o nome, mas também a cultura italiana. No que falam, no que fazem, no que pensam, no que celebram, no que constroem, no que produzem, manifestam indiscutíveis marcas de uma Itália que não é nem brasileira, nem mais europeia. Isto é o que podemos dizer: desenvolveu-se a consciência de uma identidade que se pode chamar de ítalo-capixaba (Busatto, 2010: 12).

À despeito de se tentar afirmar a existência de uma “italianidade capixaba”, assim discutida por Dadalto (2007), este estudo objetivou apresentar o legado da cultura desse grupo protagonista do processo de formação e desenvolvimento do território do Espírito Santo, configurando-se em uma identidade étnica muito particular. Esse volume migratório deixou traços e marcas muito fortes na construção da identidade de uma sociedade e no comportamento dos capixabas. Para atingir a esse objetivo, é preciso identificar no passado os registros desse patrimônio e como eles sobreviveram ao tempo e hoje Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 15

se apresentam nos traços da presença ítalo-descendente em comunidades tradicionais de municípios considerados principais remanescentes dessa cultura. É inegável que o grande afluxo migratório de italianos para o Espírito Santo principiou a criação de uma territorialidade ítalo-descendente que, no decorrer das décadas, se tornou importante expressão cultural representativa do patrimônio e da identidade, de considerável valor histórico e cultural no Brasil. Não se pode deixar de ressaltar que a cultura herdada no decorrer das décadas tende a sofrer modificações, inclusive, pelo contato com outras práticas culturais e pelo desenvolvimento da sociedade no tempo e no espaço em cada lugar. Entretanto, são vários os traços da cultura ítalo-descendente que permanecem existindo desde práticas, saberes e técnicas, tais como a culinária, a religiosidade, os dialetos, as práticas de lazer, as músicas, as danças, as festividades, até as construções e inúmeras obras materiais que foram incorporadas como próprias pelas sociedades de cada lugar. Tal estudo se justifica na medida em que busca reunir registros sobre a imigração italiana no Espírito Santo realçando seu legado cultural de bens materiais e imateriais. A preocupação que move as pesquisadoras é a necessidade de considerar a identidade das populações locais como bem patrimonial e como elemento de risco no planejamento de políticas públicas. Como procedimento metodológico, trata-se de uma pesquisa exploratório-descritiva, de base bibliográfica e documental, seguida de coleta de dados em campo nos principais municípios considerados remanescentes da cultura italiana no Espírito Santo, utilizando-se da técnica da história oral e de registros imagéticos da realidade pesquisada. Dos núcleos a receberem imigrantes italianos, aqueles que tiveram maior incidência foram a Colônia de Rio Novo, Núcleo Timbuy, Núcleo Santa Cruz, Colônia Castello, Núcleo Acioli de Vasconcelos, Núcleo Demétrio Ribeiro, Núcleo Antônio Prado, Núcleo Costa Pereira e Núcleo Moniz Freire. A partir desse critério foram demarcados os municípios remanescentes dessas colônias circunscritos na abrangência geográfica dessa pesquisa, quais sejam, Rio Novo do Sul, Santa Teresa, Ibiraçu, Alfredo Chaves, João Neiva, Linhares, Colatina e Cachoeiro de Itapemirim, além de Venda Nova do Imigrante, que embora não esteja identificada como uma das colônias italianas no histórico existente, foi fundada por italianos por volta de 1891, conservando fortes traços culturais por seus descendentes. 16 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

A prática de coleta de dados em campo costuma ser muito enriquecedora no sentido de produzir informações onde as mesmas ainda não tenham sido produzidas ou que estejam desatualizadas ou que ainda sejam discutíveis. É o caso da pesquisa em questão, cuja necessidade de coleta de dados por meio da história oral se faz indispensável para registro da memória dos descendentes dos últimos imigrantes italianos autênticos e toda sua herança de hábitos, costumes e tradições. Ressalta-se que este é um recorte de pesquisa mais ampla cuja coleta de dados em campo está em curso, visando analisar os usos e as possibilidades de potencialização do legado da cultura italiana para aproveitamento na atividade turística no Estado do Espírito Santo a partir da identificação do patrimônio material e imaterial reconhecidos como registro memorial das comunidades tradicionais existentes no estado. O trabalho e a vida social: o modus vivendi italiano É no sentido de comunidade que o cotidiano dos italianos no Brasil e mais especificamente no Espírito Santo é apresentado aqui. Segundo Ricco (2009) é o cotidiano vivido tanto no presente como no passado que vai determinar sua ordem constitutiva, sua organização e seu funcionamento como comunidade, sintetizando o processo dialético das interações sociais vividas por seus membros. Esse cotidiano se concretiza nos hábitos, nos costumes, no modo de vida, nas tradições e nas crenças compartilhadas pelo grupo. Se tratando de modus vivendi, para explicá-la Bordieu (2000) definiu habitus como sendo um sistema de disposições partilhadas por indivíduos, que os permite se orientarem em seu espaço social e adotarem práticas que estão de acordo com sua vinculação social, guiados por esquemas inconscientes de percepção, de pensamento e de ação. Os hábitos característicos do modo de vida é o que nos dá a percepção de unidade e coesão social, o que passaremos a ver a seguir. O grande fluxo imigratório para o Espírito Santo teve início em 1874 com a expedição Tabachi e com a fundação da Colônia Nova Trento, em Santa Cruz (Ibiraçu), ao norte de Vitória e sua posterior transferência para as colônias mantidas pelo governo: Rio Novo, Santa Leopoldina e Núcleo Timbuí, em Santa Teresa. Ao todo, foram 388 camponeses - trentinos e vênetos - que embarcaram no navio à vela “La Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 17

Sofia” e chegaram à capital Vitória em busca de novas oportunidades (Nagar, 1995; Busatto, 1998). A vinda desses imigrantes teve como objetivo primordial a colonização e o povoamento do imenso vazio demográfico que caracterizava o território do Espírito Santo no século XIX. Assim, a imigração italiana no Espírito Santo teve uma dinâmica especial na ocupação territorial e na formação da pequena propriedade cafeeira voltada para o mercado externo. Não é possível ter com precisão o número de imigrantes italianos no Brasil e no Espírito Santo, pois os dados citados pelos pesquisadores de referência são aproximados. Durante os primeiros anos de imigração em massa para o Brasil, ou seja, no século XIX, os cônsules da época estimavam entre 40 e 50 mil a entrada de italianos no Estado. Nos estudos de Rocha constam 36,7 mil de entrantes estimados. Sabe-se, com precisão, que o maior fluxo foi entre 1893-1896 com 12.722 imigrantes registrados. Somente no ano de 1895, ingressaram no Espírito Santo 4.575 imigrantes italianos (Paula, 2013). Colbari (1997) considera que a marca do espírito empreendedor do imigrante italiano revelou-se no desbravamento de matas e formação de lavouras, na construção de estradas, escolas, capelas e cemitérios, na constituição de povoados que depois se transformaram em vilas. As famílias de origem italiana construíram uma racionalidade que distribuía os filhos na propriedade, nos estudos e nas atividades urbanas, como assalariados ou como autônomos. Segundo Castiglioni (1998), o tipo representativo do migrante que veio para o Espírito Santo apresenta características diferentes do migrante típico italiano em virtude da grande pobreza que se abateu sobre a Itália no século XIX: eram, em sua maioria, homens casados de idade madura, pouco instruídos, agricultores e que vinham com toda sua família. No Brasil, as famílias de camponeses italianos viam nos filhos uma fonte de riqueza, uma força de trabalho jovem capaz de dar uma condição de vida melhor a seus pais, e depois, a si próprios. Agostino Bonella, imigrante italiano que vive na região de Alfredo Chaves, diz: “Tenho 15 filhos. Todos os italianos tinham muitos filhos. Os filhos cresciam sem nada. Não custava nada”1. O relator lembra que nem 1 Conversação gravada com Agostino Bonella, Nova Mantua (Alfredo Chaves) cit. 1986. In: Grosseli (2008: 487). 18 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

mesmo as roupas dos meninos e das meninas eram diferentes. Os camisões e vestidos eram passados de um irmão a outro, tudo muito simples, de pouco custo. Seguindo um modelo patriarcal, o principal provedor era o pai. Cabia à ele autoridade sobre a esposa, os filhos e agregados. As famílias eram grandes e a emancipação dos filhos acontecia quando os mesmos se casavam, todavia estes filhos nem sempre saíam das propriedades dos pais. A mãe, figura de grande importância e respeito no núcleo familiar, era responsável pela educação e pelos cuidados com os filhos. A educação escolar vinha através de aulas dadas por professores contratados pelas próprias famílias, e atingia-se o nível básico de escolaridade. Alguns filhos e filhas eram encaminhados a conventos e seminários, diminuindo assim a pressão sobre a terra. Nem sempre retornavam como sacerdotes, mas retornavam com uma bagagem cultural suficiente para ajudá-los contra as artimanhas dos comerciantes - ameaça constante aos colonos. Nas observações de Colbari (1998), a igreja foi o pilar central na formação dos povoados. Muitas delas construídas pelos imigrantes, orientados por sua racionalidade, que a consideravam indispensável ao seu bem estar físico e moral. Práticas coletivas de reza do terço, ladainhas, leitura do Evangelho, o ritual da missa eram ações que fortaleciam a integração e a coesão social. Era a ocasião de vestir a roupa de domingo. Tinha-se uma preocupação muito grande com o ensino do catecismo. Dentro da igreja mulheres se sentavam de um lado e os homens do outro; o carnaval era visto como pecado e exigia-se abstinência sexual durante a Semana Santa. Todos esses costumes representavam a junção entre religião e padrões rígidos de moral. A religião, a língua de origem, a comida eram preservadas como forma de preservação cultural, estimulando a solidariedade e a resistência do grupo. “A religião era o centro de valores morais que irradiavam para a comunidade o ideal de disciplina, moralidade e ajuda mútua” (Colbari, 1997: 9). Zanini (2007: 9) diz que “a sociabilidade daqueles colonos era limitada às festas religiosas, à missa dominical, quando se reuniam na igreja e, em seguida, na bodega, na qual compravam artigos que não produziam para o sustento familiar”. Práticas religiosas como o casamento e o batismo criavam vínculos de parentesco. Dali surgiam os compadres e comadres, personagens que reafirmavam toda a identidade cultural daquele povo, promovendo a Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 19

convivência comunitária e solidária entre o grupo. A religião foi para o imigrante italiano a base, o alicerce, o ponto de apoio para lutar e sobreviver diante de tantas adversidades e dificuldades a qual passaram. Para Piccin (2009) foi a válvula propulsora que deu força e coragem; representou o elo que permitiu a integração destes imigrantes e os ajudou a permanecer no Brasil lutando por uma vida melhor. Através da religião e da integração que ela trazia que surgiam ações de ajuda mútua e de momentos saudosos, quando se lembravam daqueles familiares que deixaram na Itália em busca de uma vida melhor na América. Esses fatos contribuíram para o surgimento de uma identidade cultural pessoal. Erthal (2005: 94) mostra que “o imigrante italiano, que geralmente era do meio agrário, possuía o fator religioso como o mais relevante em sua vida, pois era o principal suporte que o impelia de lutar frente às inúmeras dificuldades vividas”. As difíceis condições de vida relatadas pelos imigrantes descreviam como era o cotidiano de trabalho deles: o trabalho pesado iniciava-se na madrugada e se estendia até o por do sol. Plantava-se café, milho, feijão, e para que conseguissem manter suas famílias, se viam obrigados a trabalhar em outras propriedades até que os cafezais começassem a produzir. Uma vez formado o cafezal, as atividades aumentavam e toda a família, inclusive mulheres e filhos, era mobilizada (Colbari, 1997). Tinha dois tipos de agricultura: aquela de sustentação, com arroz, milho, feijão, batata, galinha, porco, vaca e aquela pra venda, que era o café pra ganhar dinheiro. Então em ocasião de um vizinho, por uma questão de desarranjo financeiro ou doença ele atrasava na colheita do café, aqueles vizinhos que já tinham terminado de fazer a sua colheita, se uniam pra fazer um “ajuntamento” pra ajudar o vizinho2.

Os mutirões e práticas de ajuda mútua que aconteciam nas comunidades italianas eram fundamentados no espírito de cooperação e prestância. Não se olhava somente o lado material, o de construir casas, igrejas e escolas, mas sim, tinham o intuito de prestar um benefício ao 2 Antônio Ângelo Zurlo, 82 anos, filho de pais italianos trentinos. O pai chegou ao Espírito Santo pelo veleiro La Sofia em 17/02/1874. Foi presidente do Círcolo Trentino di Santa Teresa por mais de 10 anos como mestre do dialeto Talian. Em entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em 26 jan. 2016. 20 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

outro ou ao bem comum. Essa preservação da identidade sócio cultural e do grupo familiar através do trabalho constante, obsessivo, garantiu que esses grupos fossem inseridos no âmbito econômico e social da região (Colbari, 1997). A identidade do Capixaba e o legado da Cultura Italiana Na visão de diferentes autores que pesquisam e escreveram sobre a identidade capixaba, tais como Medeiros (1997), Herscovici (2001), Vilaça (2003), Dadalto (2007), dentre outros, o Espírito Santo possui a diversidade como identidade. Este fato é explicado, quando a partir de meados do século XIX se estendendo até o início do século XX, um grande fluxo de imigrantes estrangeiros de diferentes etnias chega ao Espírito Santo para povoar suas terras: portugueses, alemães, pomeranos, italianos, poloneses, suíços, árabes, turcos, libaneses. Encontram aqui negros africanos e índios pertencentes ao tronco Tupi, além de brasileiros vindos de estados vizinhos. Ou seja, a miscigenação provocada pela integração e convivência entre povos de culturas diferentes legou ao Espírito Santo uma identidade híbrida e plural. No entanto, fato é que, o Espírito Santo é um dos estados brasileiros em que a incidência de descendentes de imigrantes italianos é mais acentuada. Segundo José da Silva está catalogada, nos registros de imigrantes do Arquivo Público do estado do Espírito Santo, a entrada de 36.666 cidadãos italianos, 8.283 germânicos, eslavos e pomeranos, além de 8.843 ibéricos, franceses, portugueses e libaneses no estado durante os séculos XIX e XX. Grosselli ressalta que “o Espírito Santo foi a Província imperial que recebeu a primeira remessa importante de imigrantes italianos, aquela que deu início ao que os historiadores definiram como o fluxo emigratório italiano em massa para o Brasil” e se constitui atualmente no maior grupo étnico europeu a compor a formação do povo capixaba3. Para melhor descrever o que se constitui como identidade italiana no Espírito Santo, importante é a análise dos traços considerados de maior resistência cultural de qualquer povo, ou seja, aspectos como origem geográfica e suas raízes, o significado do trabalho, as relações familiares e de parentesco, a religiosidade, a língua e suas formas de expressão remanescentes, bem como o nível de coesão social e solidariedade do grupo, o que confere o sentido de comunidade. 3 In Franceschetto (2014: 14-19). Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 21

Entende-se que todo grupo é dotado de uma identidade que corresponde à sua definição social, que permite situá-lo no conjunto social. Sendo assim, ela é inclusão à medida que identifica o grupo cujos membros se assemelham sob certo ponto de vista. Nessa linha de entendimento, Castells conceitua identidade como sendo, [...] a fonte de significado e experiência de um povo. No que diz respeito a atores sociais, entendo por identidade o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual (ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado (2001: 22).

Neste sentido, Ricco (2009: 87) destaca que o conjunto de bens tangíveis e intangíveis “representa a identidade de um povo, que se expressa na língua, na crença, nas práticas cotidianas, na memória e no imaginário coletivo”. Daure e Coulon (2009) reforçam afirmando que o passado e seus valores transitam de uma geração para outra através da oralidade, cuja linguagem reforça o sentimento de pertencimento e a construção identitária dos indivíduos. Sendo assim, as análises empíricas e de discurso a partir da história oral constituem o caminho para entender as vivências do cotidiano e seus significados enquanto legado de gerações anteriores. A partir da vivência das pesquisadoras em comunidades tradicionais remanescentes da cultura italiana, por meio da observação participante, os aspectos considerados essenciais para a identificação da identidade grupal são apresentados na tentativa de trazer à percepção do leitor, da forma mais fiel possível, a unidade da configuração cultural dos ítalo-descendentes no Espírito Santo. É o que trata esse texto. Em sua grande maioria, os imigrantes italianos que vieram para o Espírito Santo eram trentinos e vênetos (em maior proporção originária do Vêneto). A região de Trentino Alto Adige se localiza na divisa com a Àustria, no extremo norte da Itália. Os trentinos, também conhecidos como tiroleses, até 1918 pertenciam ao Império Austro-húngaro (antigo estado do Tirol). Após a I Guerra Mundial, o Estado do Tirol foi dividido em dois, formando então dois países: Áustria e Itália. Geográfica e politicamente, Áustria e Itália são separadas, mas a cultura, o modo de ser daquele povo resultou numa identidade ítalo22 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

-germânica4. Mais contritos, de poucas palavras, muito trabalhadores, organizados, honestos e de poucas relações, os trentinos carregam consigo aspectos culturais típicos da cultura alemã. Em pesquisa de campo ao município de Santa Teresa (originariamente Núcleo Timbuy, fundado em 1872 por imigrantes exclusivamente italianos), onde a maioria dos descendentes é constituída de trentinos, é possível observar uma organização social bastante coesa. Criou-se o Circolo Trentino de Santa Teresa, afiliados à Associazione Trentini nel Mondo (ONLUS), uma organização autônoma e não governamental que tem o intuito de fomentar, estreitar os laços entre os descendentes tiroleses e trentinos através de ações socioculturais, perpetuando os vínculos com a região de Trentino Alto Adige. Hoje em dia, os descendentes trentinos, através dos Circoli Trentini, procuram recuperar sua identidade e estreitar os laços com a terra de seus avós e bisavós. Cada vez mais aumenta o número de descendentes interessados em conhecer o Trentino e, quando possível, visitá-lo. Esse processo de busca da identidade tem sido muito produtivo, gerando parcerias culturais e comerciais entre o Brasil e o Trentino, além de reconhecimento de parentescos entre brasileiros e trentinos (COMUNITÀ TRENTINA DEL BRASILE)5.

Neste município, segundo dados do consulado italiano no Espírito Santo, 90% da população, em 2010, era formada por descendentes de italianos e é considerada como a primeira cidade de colonização italiana no Brasil6. A língua italiana oficial foi instituída nas escolas da rede municipal por meio de lei, em 2008, como disciplina obrigatória a partir do ensino fundamental. O “italiano” de Santa Teresa fala baixo, pausadamente e de forma direta. Extremamente educados e solícitos, se mostram muito orgulhosos ao contarem a história de seus “nonos” e todas as provações que passaram. Em seu costume gastronômico, estão bons vinhos, queijos e boa comida italiana, tudo em doses moderadas. São engajados no processo de perpetuação da cultura, promovendo ações culturais. Valori4 Disponível em . Acesso em 18 mai. 2016. 5 Disponível em < http://www.trentini.com.br/>. Acesso em 18 mai. 2016. 6 Segundo matéria veiculada no jornal A Tribuna de 04 de março de 2010 (Grosselli, 1991). Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 23

zam muito o estudo e passaram para seus filhos a cultura do trabalho árduo. Viviane Mattiello Stanger, bisneta de italianos, fala com orgulho sobre a herança de seus antepassados: La gioia di vivere e lavorare , di andare oltre. Sono arrivati qui dove non aveva niente, e da um momento al’altro anno trasformato tutto. Superar le sfide e le avversità, questa è la eredità. Ci anno insegnato a lavorare, i valori dela vita, ci anno insegnato a mangiare bene com la loro cucina. La religione, il lavoro e la unione dela famiglia sono i tre principal patrimoni che ci anno lasciato7.

Na arquitetura, suas casas são sempre bem conservadas e limpas, geralmente casas grandes de dois andares ou mais e jardins, estrutura bastante similar a de vilarejos das cidades da Itália. Nas palavras de Muniz (2008: 131-132), É possível perceber a reprodução em terras capixabas de uma cidade e organização territorial que lembra muito a terra natal dos imigrantes que fundaram Santa Teresa. Esta organização é reflexo da tentativa de manter a identidade italiana e um artifício que pode ter sido utilizado para aumentar o sentimento de pertencimento no novo território. Esta arquitetura traz as lembranças das terras de origem e mantém viva e presente a história da imigração neste município.

Já o Vêneto localiza-se a nordeste da Itália em uma região de planície, de perfil “campagnola” (campesina). O território do Vêneto se formou a partir de correntes migratórias dentro da própria Europa. Esses imigrantes trouxeram consigo aspectos, traços de várias etnias, transformando o povo vêneto numa população híbrida8. São alegres, amantes do trabalho, gostam de trabalhar a terra, são desbravadores, destemidos e extremamente religiosos. Come-se bem e abundantemente. A cultura do trabalho é passada de geração em geração. Os filhos vão crescendo 7 “A alegria de viver, a vontade de trabalhar, de se superar. Chegaram aqui e não encontraram nada e de repente transformaram tudo. A superação dos desafios, isso é a herança. Eles ensinaram a gente trabalhar, os valores da vida, ensinaram a comer bem com a culinária deles. A religião, o trabalho, a união da família são as três heranças principais que nos deixaram” (tradução nossa). Viviane Mattiello Stanger, 40 anos, bisneta de italianos. Proprietária da Cantina Mattiello em Santa Teresa, onde produzem vinhos e produtos típicos da culinária italiana. Em entrevista concedida à Juliana Teixeira Lima no idioma italiano em 25 jan. 2016. 8 Disponível em . Acesso em 20 maio de 2016. 24 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

e trabalhando junto com os pais nos negócios da família. Estão sempre inovando e buscando novos conhecimentos e horizontes, são aventureiros, se arriscam muitas vezes pelo desconhecido, confiando e baseando-se em sua capacidade de trabalho. No município de Venda Nova do Imigrante, fundada por italianos de maioria vêneta por volta de 1891, até a década de 1940, todos os habitantes da localidade eram descendentes de italianos, e só falavam a língua vêneta. Expressivos, falantes, festeiros, trabalhadores, orgulhosos da própria origem, os “italianos” de Venda Nova do Imigrante fazem questão de relatar traços de suas raízes. Se cantava muito, o pessoal mais velho cantava muito, gostava de tocar sanfona. Até hoje permanece isso. Tinha esse costume de danças, era muito baile que faziam [...]. Convidava orquestra, aquela porção de gente que tocava violão, sanfona, pandeiro [...]. E mangiare, la polenta é sempre presente. É uma coisa que veio da Itália. [...]. Ah eu tenho muito orgulho da minha cultura!9.

Em Alfredo Chaves, região aonde foi fundada uma das primeiras colônias italianas, a Colônia Castello, em 1879, também de maioria vêneta, observa-se na fala de seus descendentes as mesmas tradições: A minha família preservou muito a língua, a cultura. Eu aprendi a falar dialeto vêneto em casa. A gente cultiva essas tradições, canta as canções italianas no dialeto trentino e vêneto, mas aqui em Alfredo Chaves a maioria é vêneto. Jogamos bocha, carta, jogamos muito mora, que é característico das regiões de plantio de uva. Fazemos o maior esforço para não deixar perder a tradição do dialeto em casa com os nossos filhos10.

As casas são sempre grandes e muito limpas. Geralmente em lotes grandes, onde ao redor estão os outros parentes. Trazem consigo a cultura de morar todos perto, “um no quintal do outro”. A arquitetura é diferente da de Santa Teresa. Trazem a leveza das casas venetas, “case di 9 Cacilda Caliman Lourenção, 79 anos, descendente de imigrantes italianos, sócia – proprietária do Sítio Lourenção em Venda Nova do Imigrante, famoso pela produção artesanal do Socol e pelos produtos típicos da região que são vendidos em seu agriturismo. Em entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em 29 jan. 2016. 10 Leandro Fardin, 47 anos, bisneto de italianos. Presidente da Associação Vêneta de Alfredo Chaves (AVÊNETA) e cultiva uva. Em entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em 18 jun. 2016. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 25

campagna e di mare”, de um andar somente, com muitas janelas e áreas de convivência, como varandas muito extensas. Ainda hoje essa diferença cultural entre trentinos e vênetos se faz presente entre os imigrantes que vieram para ao Espírito Santo. Se é possível fazer uma analogia dos Vênetos e Trentinos, se faz assim: os vênetos são a emoção, os trentinos a razão. Essa coesão social verificada especificamente no hábito dos parentes se agregarem em vilas pode ser assim explicada por Dadalto (2007: 65): Os imigrantes italianos viveram desde sua integração no Espírito Santo sob o regime patriarcal e, de modo geral, os filhos só se emancipavam depois de casados. Embora filho emancipado quase sempre recebesse um pequeno pedaço de terra desmembrado da propriedade familiar, todos continuavam trabalhando juntos na mesma gleba, e também próximos à casa patriarcal eram construídas as das novas famílias agregadas.

Em outro artigo de Dadalto (2008: 152), a autora traz relatos históricos que contribuem para a compreensão do senso de comunidade existente entre os italianos e seus descendentes: As colônias, pequenas aglomerações na qual residiam entre 170 e 200 pessoas, em geral, eram autossuficientes e se mantinham com pequena diversificação de atividades profissionais. Naqueles espaços, o cotidiano tendia à experiência das próprias famílias, com acanhados contatos com outras comunidades, conservando, assim, hábitos coletivos entre gerações. Além disso, por meio das práticas religiosas, os vínculos de compadrio e de parentesco eram instituídos ou reforçados, e, intensificava-se a vida comunitária contribuindo para a reafirmação da identidade cultural.

Em Venda Nova do Imigrante observa-se uma organização social baseada no voluntariado. As famílias trabalham muito em parceira. Em 1979, o descendente de italianos Padre Cleto Caliman organizou a primeira Festa da Polenta de Venda Nova, com degustação de polenta e pratos típicos. A festa foi crescendo e em 1991 se criou a Associação Festa da Polenta (AFEPOL), uma organização sem fins lucrativos que reverte toda a renda arrecadada na festa às entidades filantrópicas da cidade. A festa é realizada sob a organização de aproximadamente 1.200 voluntários e seu principal objetivo é resgatar e perpetuar a cultura do imigrante italiano que ali chegou. Essa característica do povo italiano como a prática de aju26 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

da mutua e voluntariado está muito presente nas famílias vendanovenses. Cacilda Caliman Lourenção confirma esse fato em seu relato, em italiano: Loro avevano uma grande cosa quando sono arrivati qui. Allora, quando uma si ammalava tutti andavano ad aiutare nei campi. Ecco perché fino ad oggi Venda Nova ha questo potenziale nel volontariato. Qui cè la cultural del volontariato, ci sono molti lavori volontari11.

No seu histórico de fundação, Venda Nova do Imigrante foi construída em parte pela força de trabalho comunitário a partir da construção da primeira escola em 1922, a instalação da linha telefônica em 1925, criação de cooperativa agrária em 1927 e com a construção dos primeiros 20 km de estrada em regime de mutirão. De fato, o regime de mutirão era algo comum na construção de casas, igrejas, escolas e estradas em grande parte dos núcleos coloniais que se estabeleceram no Espírito Santo. Os entrevistados sempre se referem ao espírito comunitário como forte laço entre os descendentes, aspecto bastante significativo na construção da identidade coletiva. Esse conjunto de símbolos e significados é assim atribuído por pessoas que tendem a agrupar-se em organizações comunitárias que, ao longo do tempo geram um sentimento de pertença e, em muitos casos, uma identidade cultural comunal. No sentido do pertencimento social, há um anseio de adesão a princípios e visões de mundo comuns por parte da comunidade, o que faz com que seus membros se sintam participantes de um espaço-tempo comum. Inclusão e pertencimento são os eixos para a construção da coesão social e da identidade cultural (Ricco, 2009: 88).

No entanto, essa coesão não é característica observada em todas as comunidades de ítalo-descendentes. Demétrio Ribeiro, distrito de João Neiva, um dos primeiros núcleos a receber italianos (1891) ainda preserva o patrimônio dos casarões do século XIX, a cultura e a memória dos imigrantes. Mas, relatos de moradores dão conta de que essa unidade está se perdendo com o tempo, com a introdução de novos hábitos das atuais gerações e com o êxodo de seus descendentes em virtude da estagnação daquele vilarejo: 11 “Eles tinham uma grande coisa quando eles vieram pra cá. Então, quando um ficava doente, todos “ia” ajudar na roça. Por isso que Venda Nova tem um grande potencial, que eu digo assim, que até hoje permanece, é o costume de voluntários. Venda Nova tem muito trabalho voluntário” (tradução nossa). Cacilda Caliman Lourenção, op. cit. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 27

Antigamente era assim, se tinha uma pessoa doente na família, uma doença gravíssima, todo mundo sabia. Hoje em dia morre na sua porta e você não sabe de que coisa a pessoa morreu. Então hoje tá muito diferente. Nos tempos passados, quando uma pessoa estava doente, todo mundo ia ajudar, ia visitar, agora ninguém quer saber de ninguém, tá muito difícil. [...] As famílias, um ajudava o outro na roça. Nós “ia” pra roça “panhar” café, colher milho, plantar feijão e arroz com lama até na canela. Um ajudava o outro, e ajudava, e ajudava. Hoje em dia acabou comadre, acabou ajuda, acabou tudo, acabou tudo12.

Isso é explicado por Haesbaert (2007), para quem a coesão social é determinada pelo espaço aonde um grupo constrói seus (multi) territórios, integrando sua experiência cultural, econômica e política. Quando esse espaço deixa de ser o “lugar”, ou seja, o território da comunidade e, neste caso, das atuais gerações de descendentes, a quem cabe à dinâmica de construção e ressignificação dos valores de identidade grupal, a unidade que dá coesão ao grupo também vai se perdendo. Para Castells (2001), “as pessoas se socializam e interagem em seu ambiente local, seja ele a vila, a cidade, o subúrbio, formando redes sociais entre seus vizinhos.” Esta deve ser a forma prática de participação ativa dos membros de uma comunidade, quando assim é denominada. De outro modo, quando ocorre a perda de vínculos entre esses atores sociais e o isolamento crescente do indivíduo, a comunidade passa a assumir características de sociedade, cujos interesses são outros. O significado do trabalho é outro aspecto essencial quando se fala em valores e características de grupos sociais. No caso dos descendentes de italianos, o trabalho se constitui como uma “marca” de sua identidade coletiva ou sua maior riqueza. Conforme Dadalto (2007) relata, todos os membros da família participavam da labuta diária, sem diferenciação de idade ou gênero, iniciando e concluindo cotidianamente com a luz do dia. Para superar as dificuldades, os imigrantes utilizavam todo potencial de trabalho da família, geralmente numerosa, que vivia na mesma propriedade e ia expandindo-a, antes de dividi-la en12 Auxiliadora Depiantti Delunardo, 77 anos, descendente de imigrantes italianos por parte de pai e mãe, ex- professora de escola rural, proprietária de pequeno sítio na zona rural da comunidade de Demétrio Ribeiro, distrito de João Neiva / ES. Notória personagem da comunidade, muito engajada em movimentos religiosos. Em entrevista concedida a Adriana Sartório Ricco em 21 mai. 2016. 28 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

tre os homens. Dessa forma, concentrava-se mão-de-obra, que permitia maior divisão do trabalho e um aproveitamento melhor da produção em família (Dadalto, 2007: 65).

Ainda hoje, observa-se em comunidades tradicionais dos municípios remanescentes da cultura italiana como Santa Teresa, Alfredo Chaves, João Neiva e Venda Nova do Imigrante, a permanência da pequena propriedade familiar policultora conduzida pelo trabalho em família, como uma característica própria desse imigrante. Steven Romanha Fontana descreve o que para ele retrata a riqueza cultural dos italianos: Olha, o que eu aprendi desde cedo com os meus pais e avós foi a cultura italiana do trabalho. Igual aqui na minha cantina. Eu ajudo meus pais desde criança, sou a terceira geração na linha de descendência neste sítio. Meu bisavô comprou o sítio e começou. Tem essa cultura do trabalho né. É muito importante!13

Maria Lúcia Altoé retrata em poucas palavras a essência do povo italiano: “O trabalho, a batalha, a garra! Eles tinham força de vontade. A gente aproveitava tudo e conseguia fazer artesanato para vender. Nós somos muito simples, mas nós fazemos tudo”14. João Maggioni observa essa característica dos italianos mais antigos: “Italiano não dava muito valor ao estudo. Eles só pensavam em trabalhar, trabalhar, trabalhar, não ligava pra estudo. Eu quis estudar meus filhos”15. Muitas famílias investem no estudo dos filhos fora para que depois retornem com uma bagagem suficiente para gerir os negócios da família. Nas palavras de Dona Lila Depiantti, “tudo depende do trabalho, se você trabalha você tem as coisas, se você não trabalha não consegue nada”16. 13 Steven Romanha Fontana, bisneto de imigrante italiano de Santa Teresa. Administrador e gerente da Cantina Romanha, uma vinícola de agriturismo localizada no Circuito Caravaggio, já institucionalizado no segmento de agriturismo. Em entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em 25 jan. 2016. 14 Maria Lúcia Altoé, neta de imigrantes italianos e proprietária do agriturismo Tia Cila em Venda Nova do Imigrante, onde fabricam e revendem produtos típicos da culinária italiana. Em entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em 30 jan. 2016. 15 João Maggioni, 92 anos, filho de imigrantes italianos, é o último “pracinha” da Segunda Guerra Mundial ainda vivo da cidade de Baixo Guandu – ES. Entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em 11 jun. 2016. 16 Auxiliadora Depiantti Delunardo, op. cit. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 29

Nas palavras de Antônio Ângelo Zurlo, o que representa o principal patrimônio herdado por seus antepassados se resume na simplicidade, no espírito de luta, trabalho e no respeito. “É uma coisa que está dentro de cada um, é como se cada um fosse uma estátua que preserva esses princípios da convivência fraterna. Aprendi isso com eles”17. Outro entrevistado, Frei José Corteletti, diz: “Um princípio da italianidade, uma herança muito forte [...] é um tripé próprio que o italiano trouxe para o Espírito Santo, que é a religiosidade, a família e a força do trabalho”18. A religiosidade baseada na fé católica é característica muito marcante em todas as comunidades de ítalo-descendentes. Maria Eliza Sossai lembra com alegria sua juventude, onde a religiosidade e o profano das festas eram sempre presentes: Di domenica si andava in chiesa a pregare. Tutti i giorni a casa si “diceva” il rosario. Da piccolla mio padre insegnava il “Padre Nostro”. Quando i miei figli eranno piccolli, mettevo la cella nell cavalo e sopra i miei tre bambine, ben vestiti e scalzi. Io tiravo le redini fino in chiesa. Quando arrivavo, gli mettevo su le scarpe per stare belli e far bella figura. [...] Quando uno si sposava c’era sempre festa, si ballava, si ballava! Si suonava la fisarmonica. Mio marito faceva ballo a casa ,com’era bello!19

O entretenimento e a religiosidade eram quase uma coisa só, muito presentes nas comunidades italianas desde o princípio da colonização. Em entrevista, Leodina Marconcini relembra alguns fatos:

17 Antônio Ângelo Zurlo, op. cit. 18 Antônio José Corteletti, conhecido como Frei José, 82 anos, descendente de imigrantes italianos. Reside em Santa Teresa, pessoa de notória importância para a cidade. Foi professor do Colégio dos Padres de Santa Teresa e professor universitário. Padre na cidade e missionário católico em várias localidades do Brasil e da Itália. Em entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em 26 jan. 2016. 19 “Aos domingos íamos à igreja rezar. Em casa, todos os dias se rezava o terço. Meu pai ensinava o “Pai Nosso” já de pequena. Quando os meus filhos eram pequenos, eu colocava a cela no cavalo e por cima meus três filhos, bem vestidos e descalços. Eu mesma puxava as rédeas até a igreja. Quando chegava, calçava eles pra ficar bonito e fazer presença. [...] Quando uma pessoa se casava sempre tinha festa, se dançava, se dançava! Tocava-se sanfona. Meu marido fazia bailes em casa, como era bonito!” (tradução nossa). Maria Eliza Sossai, 93 anos, filha de imigrantes italianos. Seu marido era o banqueteiro de casamento mais famoso de Venda Nova do imigrante. Em entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em 29 jan. 2016. 30 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

O divertimento era um divertimento “bão”. Aí nóis ia em festa e reza em tudo quanto é lugar que tinha aqui. Sábado à tarde, depois da reza, dia de “San Jon” nóis fazia a fogueira e dançava a noite inteira, todas as roça descia pra cá. Tocavam acordeon bonito de se ver. Ai que delícia aquela vida! Quando nascia os filhos, o padre vinha com dois três dias e já batizava. Desde que eu nasci, minha irmã me ensinou rezar o terço e até hoje todos os dias, eu não deixo de rezar o terço20.

A população local preserva seus traços histórico-culturais em manifestações folclóricas, muitas vezes vinculadas à devoção a algum santo do cânone cristão. Desta forma, a mistura sagrado e profano marca as festas devocionais brasileiras, especialmente nas cidades interioranas. A combinação entre culto religioso e festejos profanos, num mesmo ambiente de devoção, demonstra traços da identidade adotada em comunidades tradicionais (Ricco, 2009). Atualmente aos domingos, na Paróquia São Pedro Apóstolo em Venda Nova do Imigrante, acontece a famosa “Missa das Dez”, que na realidade começa às 9:00h. É o ponto de encontro das famílias vendanovenses. Ali fazem bingos, leilões com produtos produzidos nas pequenas propriedades agrícolas do entorno, venda de polenta frita, queijos e vinhos, tudo ao som da concertina e das músicas italianas da época dos “nono”. Em ocasiões especiais, o coral Santa Cecília se apresenta com suas canções tipicamente italianas no palco ao lado do bar da igreja. É um acontecimento ímpar, onde interação e o orgulho de ser imigrante se faz presente muito nitidamente. A religião é um dos elementos de identidade cultural, por isso, o desafio da etnia se desenvolveu também pela experiência religiosa e por suas tradições. A força da religiosidade expressa por meio do catolicismo, presente na região de Colonização Italiana, tem a ver com a presença da igreja desde a formação dos núcleos coloniais, bem como com o papel que a religião desempenhou na integração cultural dos grupos imigrantes. A prática religiosa foi elemento aglutinador das diferenças culturais trazidas por esses europeus, na medida em que mantiveram seus costumes, tradições e dialetos na nova pátria. A integração se deu em vários locais, principalmente na organização social (Gironi e Herédia, 2007: 118). 20 Leodina Bressamim Marconcini, 80 anos, filha de italianos vênetos. Agricultora na comunidade de Mundo Novo, em Rio Novo do Sul. Em entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em 27 jan. 2016. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 31

Todos esses elementos trazidos da pátria hoje imaginada resistem ao tempo como forma de subsidiar a existência desse povo que, por pertencimento, se orgulha ao relembrá-los e vivenciá-los. A memória desses descendentes é também uma “determinada experiência de vida capaz de transformar outras experiências, a partir de resíduos deixados anteriormente”. Concretiza-se e se alimenta “em representações, rituais, textos e comemorações” (Santos, 2003: 25-26). Estas são as referências da memória social dos moradores das diversas comunidades estudadas aqui e que contribuem para configurar sua identidade. Considerações Finais Trentinos e Vênetos chegaram ao Espírito Santo com a esperança e a missão de “fazer a América”. Trouxeram em sua bagagem o espírito de luta, a força do trabalho, o conhecimento das técnicas de produção, a ética nas relações sociais e de mercado e muita coragem. Engenhosos, trabalhadores, empreendedores, povo de vida simples e de muita fé, sabiam poupar e gerenciar a organização familiar numerosa com muita expertise. Sua sustentação vinha da igreja e dos grupos de parentesco. Esses predicados eram responsáveis por toda a dinâmica de organização e estratégias de sobrevivência dos grupos. Entre seus descendentes observa-se o legado que permanece: a interação e a troca por meio da forte coesão social verificada em comunidades tradicionais, o trabalho como valor, a religiosidade como elemento aglutinador, o lazer vinculado à religião e aos costumes locais como forma de sociabilidade, a resistência da pequena propriedade familiar, a gastronomia, os resquícios da língua, a arquitetura remanescente. Esse conjunto de valores, hábitos e tradições e sua manutenção nas atuais gerações contribuem para a autoafirmação e distinção do grupo social, que na alteridade confirma sua identidade coletiva, muitas vezes de forma inconsciente, pois como afirma Bourdieu (2000) “são guiados por esquemas inconscientes de percepção, de pensamento e de ação”. Conforme constata Grosselli, já estamos na quinta ou sexta geração de imigrantes italianos cujo processo de aculturação e assimilação se concluiu combinando elementos culturais do país de origem e da região que os acolheu. Dada à miscigenação do povo brasileiro e mais especificamente do capixaba, muitos desses descendentes também se miscigenaram e adquiriram hábitos e tradições de outras etnias a partir das diversas 32 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

interações sociais e familiares com diferentes povos que participaram da colonização do solo espírito-santense, pois como visto no decorrer do trabalho, o Espírito Santo é dotado de uma cultura híbrida e plural. No entanto, as comunidades com culturas possuidoras de coesão interna têm menos probabilidade de desagregação de valores e sentidos quando em contato com grupos de forte influência externa. Esses descendentes vivenciam um cotidiano permeado por relações sociais baseadas em ações e sentidos comuns, que, na alteridade, passam por processos de aprendizagem, enriquecimento e até de fortalecimento cultural. Nas palavras de Busatto (1998: 311) “Mantém-se quase que inalterados os múltiplos traços de uma cultura que não morreu: a cultura italiana. O aglomerado de etnias num mesmo local não as apagou como podem pensar. Não as empobreceu. Tais culturas enriquecem as relações humanas”.

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Entrevistas ALTOÉ, Maria Lúcia. História e cultura dos Ítalo-descendentes no Espírito Santo. Entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em Venda Nova do Imigrante em 30 jan. 2016. DELUNARDO, Auxiliadora Depiantti. História e cultura dos Ítalo-descendentes no Espírito Santo. Entrevista concedida a Adriana Sartório Ricco em Demétrio Ribeiro em 21 mai. 2016. CORTELETTI, Antônio José. História e cultura dos Ítalo-descendentes no Espírito Santo. Entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em Santa Teresa em 26 jan. 2016. FARDIN, Leandro. História e cultura dos Ítalo-descendentes no Espírito Santo. Entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em Alfredo Chaves em 18 jun. 2016. FONTANA, Steven Romanha. História e cultura dos Ítalo-descendentes no Espírito Santo. Entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em santa Teresa em 25 jan. 2016. LOURENÇÃO, Cacilda Caliman. História e cultura dos Ítalo-descendentes no Espírito Santo. Entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em Venda Nova do Imigrante em 29 jan. 2016. MAGGIONI, João. História e cultura dos Ítalo-descendentes no Espírito Santo. Entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em Baixo Guandu em 11 jun. 2016. MARCONCINI, Leodina Bressamim. História e cultura dos Ítalo-descendentes no Espírito Santo. Entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima na localidade Mundo Novo, Rio Novo do Sul em 27 jan. 2016. SOSSAI, Maria Eliza. História e cultura dos Ítalo-descendentes no Espírito Santo. Entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em Venda Nova do Imigrante em 29 jan. 2016. STANGER, Viviane Mattiello. História e cultura dos Ítalo-descendentes no Espírito Santo. Entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em Santa Teresa em 25 jan. 2016. ZURLO, Antônio Ângelo. História e cultura dos Ítalo-descendentes no Espírito Santo. Entrevista concedida a Juliana Teixeira Lima em Santa Teresa em 26 jan. 2016.

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o programa estadual de preservação do patrimônio arqueológiCo e a proteção do meio ambiente Cultural no amapá

AnA cristinA rochA silvA elivAldo serrão custódio Introdução As décadas posteriores à Constituição Federal de 1988 (CF/1988) apresentam um renascimento das políticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Desafiadas a solidificar os princípios modernizadores da referida carta magna que garantem o acesso e usufruto dos bens culturais a todos, tais políticas vêm se dedicando, segundo análises de Paula Porta (2012), a formular diretrizes e instrumentos que possibilitem a inserção dos bens culturais na pauta das políticas voltadas ao desenvolvimento do país. Nesse contexto, o maior desafio é a facilitação da participação da sociedade na gestão dos recursos culturais, a fim da efetividade da função social do patrimônio e de seu potencial como gerador de desenvolvimento qualificado. Localizado no extremo norte do Brasil, o estado do Amapá apresenta uma vasta herança cultural. A diversidade dessa herança está expressa nas quatro principais fases arqueológicas identificadas no estado, a saber: Aruã, Maracá, Mazagão e Aristé (conhecida localmente como Cunani). Cada uma dessas fases corresponde a uma sequência de desenvolvimento cultural e cronológico na região. Unanimemente caracterizado como rico, diversificado e de extrema beleza plástica, o patrimônio cultural arqueológico contido em território amapaense vem despertando a atenção de especialistas desde fins do século XIX (Nunes Filho, 2005). Nessa lógica, pioneiros como Goeldi (em 1895), Penna (em 1872), Nimuendaju (em 1915) e Hilbert (em 1953) estão entre os pesquisadores que já desenvolveram estudos no estado. Apesar da riqueza, diversidade e singularidade plástica Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 37

indicada pelo meio especializado, até o início do século XXI, os bens arqueológicos locais não possuíam estratégias de gestão condizentes com sua condição de bem de “proteção qualificada”, tal como ensina Inês Virgínia Soares (2007). Essa ausência de gestão, naquele momento, colocava o patrimônio arqueológico em condição de vulnerabilidade. Como resposta a esse problema público, uma parceria entre o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN1) e o Governo do Estado do Amapá (GEA) criou o Programa Estadual de Preservação do Patrimônio Arqueológico do Estado do Amapá (PEPPARQEAP). Assim, no panorama da gestão arqueológica amapaense, os reflexos do renascimento das políticas de preservação do patrimônio cultural a nível nacional começam a surgir e instrumentos de ordem legal passam a condicionar as estratégias de proteção. Pensado por Maria Lúcia Pardi e Odete Silveira (2005), o PEPPARQEAP objetivava implementar as atividades de pesquisa, identificação, documentação, proteção e difusão do patrimônio arqueológico do Amapá. O caráter público e a participação da coletividade, em evidência nas diretrizes de preservação da política cultural nacional, marcam o plano de ação do programa. Em função desse contexto, as estratégias de ação do mesmo previam, em especial, o desenvolvimento de gestões compartilhadas com responsáveis regionais, a fim de que as propostas de encaminhamento possuíssem a eficiência e legitimidade adequada, estando embasadas ao máximo nos recursos locais (Pardi e Silveira, 2005). Na véspera de completar dez anos de implantação do programa, o estudo aqui apresentado objetiva analisar os resultados do programa e de seus reflexos para a proteção, valorização e fruição do patrimônio arqueológico no estado do Amapá. Ao planejar a gestão compartilhada desse patrimônio e priorizar estratégias de ação dentro das realidades locais, o PEPPARQEAP apresentou-se como um instrumento diferenciado para a preservação, valorização e difusão do patrimônio arqueológico. Diferentemente de modelos desconectados da realidade regional, o programa sinalizava possuir potencial suficiente para fazer com que as comunidades locais pudessem conhecer, assimilar e usufruir seu patrimônio cultural, tornando-o fonte de desenvolvimento e coesão social. 1 Tutor legal do patrimônio arqueológico no Brasil. 38 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Logo, ao apresentar uma análise dos resultados desse programa, esse trabalho espera desenhar um quadro com as dificuldades e avanços no panorama da preservação do patrimônio arqueológico no Amapá, no período de 2005 a 2013. A delimitação espaço-temporal foi proposta para estar de acordo com o momento de criação do programa e o devido tempo necessário para a apresentação dos primeiros resultados. Criação e objetivos do Programa Estadual de Preservação A nova dinâmica da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil valoriza a inserção de comunidades locais no processo de gerenciamento dos recursos culturais. Políticas públicas executadas nesses moldes fortalecem a função social do patrimônio e criam laços identitários que transformam a sociedade na principal defensora dos bens culturais. Fundado nesses princípios, o Programa Estadual de Preservação do Patrimônio Arqueológico do Estado do Amapá (PEPPARQEAP), criado em 2005, foi uma política pública de enfrentamento à condição de vulnerabilidade em que se encontrava o patrimônio arqueológico amapaense, no início da primeira década do século XXI. As linhas que seguem pretendem destacar os motivos que justificaram a criação do PEPPARQEAP, suas estratégias, resultados e reflexos desses para a proteção e fruição dos bens arqueológicos no Amapá. De acordo com Pardi e Silveira (2005: 1), o surgimento do PEPPARQEAP foi provocado pelo Programa Estadual de Gerenciamento Costeiro (GERCO-AP) que, no ano de 2001, enviou ao IPHAN mais de 85 informações dando conta da existência de vestígios arqueológicos no setor Estuarino do Amapá2. Após o recebimento das informações repassadas pelo GERCO-AP, a 2ª Superintendência Regional do IPHAN, por meio de sua Gerência de Arqueologia, organizou a realização de expedições in loco para a averiguação das informações e tomada de providências a fim de fomentar e consolidar a preservação do patrimônio arqueológico existente no estado. Nessa empreitada, foram visitadas seis localidades interioranas: Arquipélago do Bailique; Região do Lago Pracuúba; Região de Cutias; Região do Pacuí; Santa Luzia do Pacuí e São Joaquim do Pacuí. Em síntese, as expedições resultaram em: 2 Esse setor compreende a região entre a margem direita do rio Araguari e o rio Vila Nova. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 39

[...] dezenas de informações, registrados mais de 25 sítios novos, alguns recadastramentos, uma Ocorrência Arqueológica e algumas peças resgatadas ou recebidas em guarda [...] 22 sítios unicomponenciais, 9 pré-coloniais, um sítio de contato, 3 históricos, 9 cerâmicos a céu aberto, 9 sítios habitação, 1 com amoladores fixos, 2 aterros, 24 em superfície, 21 em profundidade, 4 com líticos políticos, 1 com lítico lascado e 2 com gravuras (Pardi e Silveira, 2005: 11-12).

Segundo Pardi e Silveira (2005: 12), após as expedições, as pesquisas empíricas e os vários contatos realizados nas viagens de campo fizeram a equipe concluir que, no mínimo, cinco aspectos eram explícitos: 1º) o patrimônio arqueológico encontrado no Amapá “é extraordinariamente rico e expressivo, do ponto de vista quantitativo e qualitativo”; 2º) a abundância de vestígios e a beleza plástica desses fomentava a escavação irregular, a circulação de peças, o comércio formal e informal, provocando, assim, a destruição rápida dos sítios; 3º) a realização de pesquisa acadêmica era rara, feita em áreas concentradas e de forma esporádica; 4º) inexistia qualquer tipo de trabalho de gestão por parte dos municípios ou do estado. Fato que, inclusive, ignorava a responsabilidade legal atribuída pela legislação brasileira a esses dois entes federativos; 5º) todos os tipos de impactos possíveis estavam sendo “implantados livremente, sem fiscalização das obras ou qualquer exigência dos órgãos ambientais nos termos de referência”. Esses aspectos se davam em decorrência do simples desconhecimento das questões ligadas à gestão dos recursos arqueológicos e, consequentemente, da falta de estruturas para a implantação e manutenção dessa gestão. Além disso, desconhecia-se a expressividade da herança cultural dos bens arqueológicos e suas estratégias de manejo, o que, por sua vez, se revertia no prejuízo cultural e econômico das comunidades locais e da sociedade como um todo (Pardi e Silveira, 2005: 12-13). A situação descrita revela que, naquele contexto, era clara a ausência de qualquer política pública direcionada à gestão do patrimônio arqueológico existente em território amapaense. O patrimônio cultural é tratado pela legislação brasileira como um bem transindividual difuso, aspecto esse que o define como um bem pertencente à toda a coletividade (Soares, 2007). Considerando essa condição, a vulnerabilidade em que se encontrava o patrimônio arqueológico local colocava o Amapá diante de uma problemática pública. Na tentativa de enfrentar essa problemática, uma parceria entre o IPHAN 40 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

e GEA estabeleceu a criação do Programa Estadual de Preservação do Patrimônio Arqueológico do Estado do Amapá (PEPPARQEAP). O PEPPARQEAP foi normatizado pelo Decreto nº 1508, de 08 de março de 2005. Dentre as estratégias de ação do programa estavam a elaboração de um diagnóstico situacional da gestão e a análise dos documentos legais, administrativos e científicos em torno do tema e rastreamento de fontes potenciais de recursos públicos e privados. Reforça-se que essas ações deveriam sempre considerar as necessidades de todos os macroprocessos de preservação, a saber: identificação, documentação, proteção e difusão. O conceito de preservação utilizado no âmbito do PEPPARQEAP a entendia como “um conjunto de ações desenvolvidas em função do marco legal, para identificar, documentar, pesquisar, proteger e difundir o patrimônio arqueológico” (Pardi e Silveira, 2005: 15). Entre as metas almejadas estava o desenvolvimento de trabalhos com cunho social e ligados ao campo das políticas públicas. No que concerne à gestão, foram planejadas a adoção de práticas que valorizassem a gestão compartilhada. Para que isso fosse possível, o programa previu a criação de uma Comissão Gestora Regional e Estadual, a ser composta por: um Conselho Gestor com função consultiva e deliberativa, formado pela Regional do IPHAN no Amapá, GEA, prefeituras municipais e sociedade civil organizada; uma secretaria de apoio operacional; uma gerência executiva de execução técnica operacional do gerenciamento do patrimônio arqueológico, com função executiva; além do setor privado e organizações não governamentais. A criação dessa Comissão Gestora visava a reunião de técnicos do executivo com a sociedade civil organizada e o setor privado, de forma a possibilitar uma atuação conjunta de forma permanente. A frase A comunidade é a melhor guardiã de seu patrimônio, cunhada por Aloísio Magalhães, seria a diretriz maior do projeto em questão. Essa compreensão ratificou a necessidade de participação da comunidade nas ações do PEPPARQEAP. As demais diretrizes definidas foram: Compatibilizar preservação do patrimônio arqueológico com o desenvolvimento sócio-econômico-cultural econômico, em benefício do cidadão; estabelecer políticas preventivas de preservação do patrimônio arqueológico; testar e manter o contínuo aperfeiçoamento dos modelos de preservação do patrimônio estadual, que observem as diferenças regionais, mantendo as diretrizes nacionais; buscar sempre a cooperação em lugar da comPanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 41

petição, com base na clara definição de atribuições e divisão de trabalhos e recursos; envolver ações de educação patrimonial e o cidadão nas ações de gestão, garantindo o uso de instrumentos avaliativos para a melhor retro-alimentação do processo (Pardi e Silveira, 2005: 17).

No processo de planejamento do PEPPARQEAP, a junção do potencial arqueológico do Amapá, seu grau de conservação e a receptividade por parte das instituições locais abriu possibilidades para se pensar em uma abordagem de gestão mais aprofundada. Nesse sentido, em dezembro de 2003, foi assinado um Termo de Cooperação interinstitucional envolvendo: o Museu Joaquim Caetano, a FUNDECAP, a Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia (SETEC), o IEPA e a UNIFAP, com a interveniência do IPHAN. Esse instrumento objetivava o estabelecimento de condições de mútua cooperação técnica para a execução de ações que implementassem a gestão, identificação, pesquisa, preservação e a promoção do patrimônio arqueológico. O Termo de Cooperação definiu uma função específica para cada uma das instituições envolvidas. À FUNDECAP (atual SECULT) coube se estruturar para desenvolver um sistema de monitoramento e fiscalização em apoio às políticas de gestão do estado. À SETEC cabia a edição de políticas para fomento da pesquisa científica neste setor, assim como o zelo pela qualidade da produção. O IEPA criou um centro de pesquisas para absorver pessoal especializado para criar e manter atualizados os instrumentos técnico-científicos de apoio ao desenvolvimento das políticas públicas, assim como atender a demanda estadual. À UNIFAP caberia atuar na área de formação de pessoal especializado, educação patrimonial e pesquisas acadêmicas. Com recursos financeiros do programa e colaboração técnica e logística do IPHAN, a UNIFAP também passaria a ofertar um curso de pós-graduação em Arqueologia com especialização em Gestão do Patrimônio Arqueológico, por meio do curso de História e do então recém-criado Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas do Amapá (CEPAP). Planejadas e reunidas as condições necessárias para a devida gestão do patrimônio arqueológico, a partir de 08 de março de 2005, data em que foi publicado o decreto de criação do PEPPARQEAP (Decreto nº 1508/2005), estava dado o pontapé para a execução do Programa Estadual de Preservação do Patrimônio Arqueológico do Estado do Amapá. 42 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Resultados do Programa Estadual de Preservação Passada quase uma década da criação do PEPPARQEAP, o objetivo traçado para a pesquisa aqui apresentada foi a análise dos resultados do programa e de seus reflexos para a proteção, valorização e fruição dos bens arqueológicos no estado do Amapá. A delimitação espaço-temporal do estudo (2005-2013) foi planejada para estar em harmonia com a data de publicação do Decreto que garantiu a validade legal do programa (Decreto nº 1508/2005) e o tempo necessário para a apresentação dos primeiros resultados. Vislumbrando o objetivo, executou-se pesquisa de natureza teórica, onde os dados foram tratados de forma quali-quantitativa. Para isso, houve a necessidade de uma pesquisa bibliográfica, documental e de campo, com a utilização de entrevistas semiestruturadas e não estruturadas sobre as ações direcionadas ao cumprimento dos objetivos do programa por parte das instituições nele envolvidas, assim como sobre a percepção de personagens importantes no contexto do estudo. Conforme o art. 6º do Decreto nº 1508/2005, todos os resultados dos trabalhos e das pesquisas desenvolvidas no âmbito do PEPPARQEAP deveriam ser encaminhados para o IPHAN/AP e à Gerência do “Projeto Pesquisa Arqueológica” do IEPA. Logo, informações coletadas nessas instituições e/ou publicadas por elas foram as principais fontes das análises realizadas nas páginas que seguem. A partir dessas análises, esse estudo revelou mudanças e permanências no cenário da gestão dos recursos arqueológicos no Amapá. A fim da sistematização dos resultados, os aspectos concernentes à revelação desse cenário foram organizados em quatro itens: I) as instituições de pesquisa; II) a guarda museológica; III) a formação de pessoal especializado e IV) a proteção dos sítios e o desenvolvimento qualitativo das comunidades. I – As instituições de pesquisa A partir das ações previstas no PEPPARQEAP, o Amapá ganhou, através do Subprograma de Pesquisa Arqueológica (previsto no art. 4º do Decreto nº 1508/2005), o Núcleo de Pesquisa Arqueológica do IEPA. Esse Núcleo de Pesquisa passou a funcionar logo após o lançamento do Decreto nº 1508/2005, que conferiu validade legal ao programa aqui analisado. Na fase inicial de funcionamento, os pesquisadores do núcleo Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 43

dispunham de apenas um computador e uma sala compartilhada com outro centro de pesquisa. Com o início do desenvolvimento dos projetos de pesquisa, a estrutura do local foi, paulatinamente, sendo melhorada e ampliada. No ano de 2006, a partir da visibilidade do primeiro projeto de pesquisa3, o centro ganhou investimentos do GEA e um dos prédios do IEPA foi reformado para a implantação do Laboratório de Arqueologia. A reforma ofertou ao Laboratório três grandes salas para abrigar a reserva técnica, o laboratório de análise e um escritório. Além de permitir a iniciação de um programa de formação de recursos humanos com discentes de cursos de graduação envolvidos na iniciação científica, o novo espaço também possibilitou o início da realização de pesquisas preventivas em projetos de engenharia. Tais pesquisas vêm prevenindo maiores impactos no patrimônio arqueológico do estado, bem como vêm ampliando significativamente o banco de dados arqueológicos no Amapá (IEPA, 2012: 7-8). Em 2009, através de recursos advindos de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) negociado pelo Ministério Público Estadual e de um recurso complementar do GEA, o Núcleo de Pesquisa Arqueológica do IEPA passou por uma nova reforma. A obra resultou na estrutura em que o Núcleo opera na atualidade. Na reforma, foi possível a criação de uma reserva técnica que foge dos moldes tradicionais e permite uma maior integração da população que visita o lugar (IEPA, 2012: 9). A estrutura da qual o IEPA dispõe hoje vem permitindo um maior conhecimento da pré-história do estado do Amapá. Os projetos de pesquisa desenvolvidos na instituição caracterizam-se em dois tipos: arqueologia acadêmica4 e arqueologia preventiva5. Os trabalhos ligados à arqueologia preventiva concentram o maior foco de atividade do Núcleo de pesquisa do IEPA. O suporte ofertado pela instituição a esses trabalhos vem possibilitando a instalação de projetos de desenvolvimento ligados ao: GEA, prefeituras municipais, UNIFAP, IPHAN e iniciativa privada (IEPA, 2012: 15). Para além da pesquisa, o Núcleo também trabalha no sentido de difundir os resultados dessas. Nessa direção, a instituição já realizou palestras e oficinas em várias localida3 Denominado Projeto de Investigação Arqueológica na Bacia do Rio Calçoene. 4 Cuja motivação para a pesquisa de uma área arqueológica surge de problemática de pesquisa específica. 5 Aquela que visa o estudo arqueológico de áreas a serem impactadas pela implantação de projetos de engenharia. 44 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

des do estado do Amapá. Essas ações buscam atingir públicos maiores para, assim, ampliar o alcance da arqueologia. Outra instituição de pesquisa a ser destacada é o Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas do Amapá (CEPAP). Embora o surgimento desse centro não tenha decorrido do PEPPARQEAP, as pesquisas desenvolvidas pela instituição e a contribuição dela para a preservação e maior conhecimento do patrimônio arqueológico do Amapá não permitiu que o CEPAP fosse desconsiderado nesse estudo. Fundado em 2004, através da Resolução nº 05/2004 do CONSU-UNIFAP, o CEPAP faz parte da coordenação do curso de graduação em História da Universidade Federal do Amapá. Suas atividades estão voltadas para o fortalecimento da UNIFAP como instituição preocupada com o tripé “ensino, pesquisa e extensão”. Desde a sua fundação, o CEPAP tinha uma estrutura limitada que funcionava de forma adaptada em um espaço construído para ser uma sala de aula. Nessas condições, o CEPAP conseguia atender somente aos alunos da graduação. A partir de 13 de novembro de 2012, o CEPAP é contemplado com um prédio novo e próprio, construído especificamente para atender as necessidades da realização de pesquisas arqueológicas. Com a inauguração do novo espaço, o centro pôde estender suas ações para o nível de pós-graduação e agregar mais alunos em sua rotina. Além de fortalecer o ensino, a pesquisa e a extensão, as novas dependências do CEPAP ofertam um melhor suporte logístico para atender e qualificar a mão-de-obra dos alunos da graduação em História da UNIFAP. Assim como o Núcleo de Pesquisa Arqueológica do IEPA, o CEPAP desenvolve projetos ligados à arqueologia acadêmica e preventiva. Também há predominância dos trabalhos voltados à arqueologia preventiva. Antes da criação do PEPPARQEAP, as pesquisas arqueológicas no Amapá eram raras, realizadas esporadicamente e em áreas concentradas. Nesse contexto, a ausência de centros de pesquisas locais fazia com que a grande maioria das pesquisas desenvolvidas no estado fossem lideradas por equipes vindas de estados brasileiros (IEPA, 2012: 3). O crescimento e fortalecimento das duas instituições destacadas modificou esse cenário. Como exposto no Gráfico 1, adiante, no ano de 2005, o Cadastro Nacional dos Sítios Arqueológicos (CNSA) registrava a existência de 116 sítios identificados no Amapá. Em 2012, esse número cresceu para 251 (IEPA, 2012: 27). Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 45

Gráfico 1: Sítios Arqueológicos do Amapá cadastrados no CNSA.

Fonte: Elaborado a partir de dados do IEPA (2012).

Vale acrescentar que, a partir de informações coletadas no IPHAN/AP, a quantia de 251 sítios não representa mais o total real de sítios arqueológicos identificados no Amapá. Devido a problemas logísticos internos do IPHAN, nos últimos anos, o CNSA não vem dando conta do processo de registro de novos sítios. De acordo com Djalma Guimarães Santiago6, técnico efetivo do IPHAN/AP, até o ano de 2014, a estimativa é de que mais de 400 sítios já tenham sido identificados em todo o estado. II – A guarda museológica No período que antecedeu a criação do PEPPARQEAP, o protagonismo de pesquisas arqueológicas lideradas por pesquisadores externos ao Amapá resultava na saída dos bens arqueológicos amapaenses para outros estados brasileiros. Somada a essa realidade, estava a desativação do Museu Histórico Joaquim Caetano que, até então, era a única instituição a abrigar material arqueológico em território amapaense. Com a desativação do lugar, era inevitável a saída de peças arqueológicas para instituições Brasil afora e a consequente sensação de distanciamento ou perda desse patrimônio, apesar de o mesmo, em muitos casos, ser confiado às instituições de pesquisas já consagradas, como o Museu Emilio Goeldi, no Pará. 6 Em entrevista concedida à Ana Cristina Rocha Silva, em 28 de janeiro de 2014, no IPHAN/AP. 46 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

No decorrer dessa pesquisa, foi constatada uma modificação importante no cenário descrito acima. Com a criação e fortalecimento das instituições de pesquisa elencadas no item anterior (IEPA e CEPAP), elas passaram a ter, através de portarias publicadas no Diário Oficial da União, a autorização do IPHAN para a guarda do material coletado nas pesquisas de campo em suas reservas técnicas. A partir de então, salvo casos excepcionais, os bens arqueológicos do Amapá deixaram de ser enviados a outros estados. Contribuindo para a melhoria dessa nova realidade, em março de 2009, após 10 anos desativado, o Museu Histórico Joaquim Caetano, localizado na capital Macapá, foi reformado e devolvido à sociedade amapaense. Tornou-se, assim, mais um espaço para a guarda e/ou exposição do patrimônio arqueológico local. Com a utilização das reservas técnicas do IEPA, CEPAP e do Museu Joaquim Caetano, ao contrário da realidade observada anteriormente, o Amapá passou a possuir lugar adequado para a guarda de peças arqueológicas resgatadas em pesquisas executadas dentro de seu território. É válido informar que, hoje, o espaço do Museu Joaquim Caetano está esgotado e, por conta disso, o lugar não está apto para receber novas peças. Atualmente, somente o IEPA e o CEPAP possuem a anuência do IPHAN para a guarda em tela. Isso, porém, não vem impedindo que outras unidades museológicas do estado possam agir em benefício da fruição do seu rico patrimônio arqueológico. Em Oiapoque, por exemplo, o Museu Kuahí inaugurou, em abril de 2013, a exposição intitulada Uma ponte sobre o rio Oiapoque. Sob a curadoria do arqueólogo francês Dr. Gerald Migeon, a exposição foi elaborada no ano de 2011, em meio às atividades de difusão da obra da ponte Binacional sobre o rio Oiapoque. Enfatizando a arqueologia e a história da região, a exposição expressa que as ligações entre as duas margens do rio não são exclusivas do tempo atual. As peças arqueológicas da exposição constituem-se em símbolos de uma ligação mais pretérita entre uma margem e outra. Além do Museu Kuahí, o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE), criado em 2007 e também vinculado à SECULT, é outro espaço dedicado à fruição do patrimônio arqueológico do estado. Diferentemente dos casos já expostos, o MAE não possui sede própria e hoje funciona de forma improvisada na antiga “Casa do Índio”7. Apesar de 7 Localizada na Rua São José, em frente à Praça Barão do Rio Branco, na cidade de Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 47

ser denominado “Museu de Arqueologia e Etnologia”, o MAE não possui coleções arqueológicas para exposição e nem reserva técnica. No local são encontradas apenas algumas réplicas das urnas Maracá e Aristé. III – A formação de pessoal especializado No contexto de criação do PEPPARQEAP, uma das problemáticas de gestão era a carência de arqueólogos no Amapá. Naquele período, Edinaldo Pinheiro Nunes Filho, vinculado ao então recém-criado CEPAP, era o único arqueólogo residente e com atuação efetiva no estado (Pardi e Silveira, 2005: 19). Uma das estratégias do programa para suprir essa carência foi o planejamento de um curso de Especialização em Gestão do Patrimônio Arqueológico. O curso ocorreria por meio de uma parceria entre o IPHAN, o curso de graduação em História da UNIFAP e o CEPAP. Através dessa parceria, a UNIFAP atuaria na formação especializada de pessoal, educação patrimonial e desenvolvimento de pesquisas acadêmicas. A pesquisa revelou que a parceria planejada não se efetivou. Embora a UNIFAP dispusesse de um curso de graduação em História, vinculado a um centro de pesquisas arqueológicas (CEPAP), a especialização planejada acabou ficando no papel. No ano de 2010, a Universidade Estadual do Amapá (UEAP) divulgou edital de seleção para um curso de pós-graduação na área. O processo seletivo foi regido pelo Edital nº 003/2010-UEAP e ofertou 30 vagas. Denominado Especialização em Patrimônio Arqueológico da Amazônia, o curso teve início no primeiro semestre de 2010 e inaugurou as atividades de pós-graduação da UEAP. Essa especialização foi ofertada via parceria entre IEPA, IPHAN/ AP, UEAP e Ministério Público Estadual do Amapá (através da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente). Mariana Petry Cabral (arqueóloga vinculada ao Núcleo de Pesquisa Arqueológica do IEPA) assumiu a coordenação do curso. Segundo o Edital nº 003/2010-UEAP, a oferta da especialização visava fornecer aos alunos uma formação geral em arqueologia e história indígena, com foco na região amazônica, buscando fortalecer a capacitação de recursos humanos e a sensibilização de agentes locais para a valorização, proteção e estudo do patrimônio arqueológico. Macapá, capital do Amapá. 48 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

O apoio financeiro das instituições parceiras possibilitou a vinda de diferentes profissionais ligados a universidades e institutos de pesquisa de várias partes do Brasil e do exterior. Formada a primeira turma da especialização, apesar da clara necessidade de formação contínua de profissionais voltados à gestão do patrimônio arqueológico no Amapá, a UEAP não mais lançou edital para a composição de uma segunda turma. Dados obtidos junto ao IPHAN/AP explicam que, para o curso ter sido novamente ofertado, a UEAP exigiu condições específicas. Uma dessas condições prévias é que a coordenação do curso da especialização Latu Sensu fosse assumida por um membro interno da UEAP, e que o corpo docente da instituição passasse a ter atuação mais efetiva nela. Como a UEAP não dispunha de um corpo docente que atendesse as especificidades do curso, a proposta não agradou as instituições parceiras (IPHAN e IEPA) e elas avaliaram que o cumprimento das exigências comprometeria a estruturação pedagógica planejada para a pós-graduação. Por conta do contexto descrito, a Especialização em Patrimônio Arqueológico da Amazônia deixou de ser ofertada pela UEAP. Com o fim da oferta da especialização, atualmente, as únicas instituições locais voltadas à qualificação de mão-de-obra para a gestão do patrimônio arqueológico são: o IEPA (por meio do seu Núcleo de Pesquisa Arqueológica) e a UNIFAP (por meio do CEPAP). Ao integrar alunos oriundos de cursos de graduação e pós-graduação na rotina de suas atividades de pesquisa, os dois centros ofertam aos discentes um arcabouço teórico-metodológico importante. Porém, devido às exigências legais que regem a gestão dos bens arqueológicos no Brasil, é válido esclarecer que, para um profissional liderar uma pesquisa arqueológica atualmente, ele deve possuir a formação específica em Arqueologia e comprovar ao IPHAN, no mínimo, cinco anos de experiência junto à execução de pesquisas arqueológicas. Assim, salvo àqueles que já buscaram a formação exigida na área, estão inaptos para liderar uma pesquisa arqueológica não só os alunos que concluíram a Especialização em Patrimônio Arqueológico da Amazônia, ofertada pela UEAP em 2010, como também os alunos qualificados pelo CEPAP e IEPA. Devido à ausência de um curso de graduação ou pós-graduação específico em Arqueologia no Amapá, para os que desejam formação na área, não há outra opção a não ser a busca por qualificação em outras unidades da federação. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 49

IV – A proteção dos sítios e o desenvolvimento qualitativo das comunidades A frase "A comunidade é a melhor guardiã de seu patrimônio", escrita por Aluísio de Magalhães, estabeleceu a diretriz maior a ser considerada no PEPPARQEAP. Essa diretriz visualizava, principalmente, a compatibilização da preservação do patrimônio arqueológico com o desenvolvimento sócio-econômico-cultural de comunidades locais (Pardi e Silveira, 2005: 17). A criação de uma gerência regional ou estadual, que unisse técnicos do executivo com a sociedade civil organizada e o setor privado foi a estratégia planejada para que as comunidades locais pudessem ser inseridas no processo de gestão proposto. Não foram encontrados nesse estudo dados que confirmassem a criação dessa gerência. Apesar disso, em meio às pesquisas, constatou-se, no IPHAN/AP, a existência de dois projetos alicerçados na diretriz indicada pela frase de Aluísio de Magalhães, são eles: o Parque Arqueológico de Maracá (no município de Mazagão) e o Parque Arqueológico do Solstício (no município de Calçoene). Sob o nome de Projeto básico e especificações técnicas de sítios arqueológicos na Amazônia: musealização, educação e turismo, elaborado por Figueiredo et al (2009) e com o apoio do IPHAN, o projeto de criação dos dois parques visa não somente a criação de infraestrutura adequada nos sítios e seu entorno, como também um conjunto de ações capaz de estimular os visitantes a conhecer, valorizar e preservar os vestígios materiais deixados por antigas civilizações que habitaram a região no passado. O projeto inicial esclarece que a musealização/socialização do Parque Arqueológico de Maracá, em Mazagão, abrange um total de três sítios localizados na comunidade de Laranjal do Maracá. Os dois primeiros sítios se chamam Abrigo do Tracuá e Buracão do Laranjal e possuem pinturas rupestres. O terceiro se trata de um sítio cemitério pertencente à cultura Maracá denominado Gruta do Veado. O objetivo maior do Parque Arqueológico de Maracá é proporcionar ao visitante a possibilidade de visitar os sítios arqueológicos do Buracão do Laranjal, Abrigo do Tracuá e Gruta do Veado com acesso controlado e criar um Centro Cultural para dinamizar a visitação aos sítios, contribuindo, dessa forma, para a preservação dos mesmos. O público alvo a ser alcançado pelo Parque engloba: a população do entorno da sede do município de Mazagão e de Macapá; as escolas municipais e estaduais; turistas regionais, nacionais e internacionais. 50 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Localizado na Vila de Maracá, o Centro Cultural Maracá pretende ser um espaço cultural para o desenvolvimento de atividades de educação patrimonial envolvendo as escolas. No Centro serão geridas as visitas das exposições permanentes e da visitação ao Buracão. O local também irá gerir a visitação até a Gruta do Veado (ainda com urnas). Essa visitação, de acordo com o projeto, será operacionalizada pela comunidade do Laranjal do Maracá. O Centro funcionará como um local de acolhimento, com banheiros e lojinhas com produtos artesanais, livros e revistas. Pensando na dinamização da economia da vila, o projeto não prevê lanchonete no Centro, assim, os visitantes serão condicionados a utilizar os serviços ofertados pelos moradores locais. As ações de educação patrimonial propostas para Maracá perseguem a premissa de que “o estabelecimento de parcerias com as comunidades locais, visando à preservação e à gestão do patrimônio arqueológico local implica, necessariamente, a construção de relações de confiança” (Figueiredo et al, 2009: 67). A partir disso, o Centro Cultural Maracá não foi pensado como um produto do centro a ser implantado e sim como um vetor “na consolidação de um projeto turístico de base comunitária, considerando as comunidades locais e os impactos a elas causados” (Figueiredo et al, 2009: 67). Criado no mesmo contexto do Parque Arqueológico do Maracá, o Parque Arqueológico do Solstício, em Calçoene, apresenta as mesmas estratégias do modelo descrito anteriormente. As estruturas megalíticas do lugar (comparadas ao Stonehenge na Inglaterra) vêm chamando a atenção nos meios de comunicação e atraindo a atenção de turistas brasileiros e estrangeiros. A beleza natural do sítio e sua localização física são fatores positivos frente ao potencial turístico do lugar. A visualização desse potencial inspirou a criação do projeto que agrega a construção de um Museu, na cidade de Calçoene, e uma estrutura moderna composta por passarelas, nas quais os visitantes terão acesso às rochas megalíticas sem tocá-las, evitando, assim, impactos sobre o sítio. Orçado em cinco (5) milhões de reais, o projeto almeja o fortalecimento de um turismo de base comunitária, onde a comunidade local possa se apropriar dos bens arqueológicos. A criação dos dois parques elencados infere a solidificação das diretrizes lançadas, em 2005, no PEPPARQEAP. Contudo, embora os projetos planejados para ambos estejam profundamente alicerçados nessas diretrizes, hoje, eles encontram-se parados na Agência de Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 51

Desenvolvimento do Amapá (ADAP). Parafraseando as palavras de Fonseca (2005: 74), ao estarem presos em alguma pilha de processos, até então, os esforços empreendidos no planejamento dos projetos não passam de “meras declarações de boas intenções”. Assim, enquanto os ganhos sociais, culturais e econômicos decorrentes da solidificação de tais projetos não chegam a realidade observada nas comunidades envoltas a esses sítios arqueológicos imprime contextos de abandono e negligência do direito de acesso e usufruto dos bens culturais previsto pelo art. 215 da CF/1988. Em se tratando do contexto da localidade de Maracá, no município de Mazagão, ao investigar como se dá a relação entre a política de gestão do patrimônio arqueológico com as comunidades locais daquela região, Campos (2010: 36) aponta a ausência de uma política de gestão. O único instrumento identificado pelo autor para gerir os bens arqueológicos na região são as autorizações de pesquisa dadas pelo IPHAN. Em sua maioria, essas autorizações se restringem a realizar prospecções. Campos (2010) revela, ainda, ser inexistente a interação das comunidades no processo de gestão dos recursos arqueológicos. Ele explica que, apesar de a maioria das famílias consideradas em seu estudo estarem assentadas sobre sítios ou no entorno deles, 60% delas desconhecem as pesquisas realizadas no lugar. Para agravar o quadro descrito, o estudo do autor indica que 52,78% das famílias entrevistadas não sabem da existência de sítios arqueológicos e 68, 52% nunca tiveram acesso a eles. Para Campos (2010: 43), esses resultados evidenciam “a ausência de uma ação efetiva do Estado, por meio de projetos voltados para uma relação mais próxima dos moradores” com os bens arqueológicos. Os problemas relacionados à gestão dos recursos arqueológicos não são exclusivos da região pesquisada por Campos (2010). No decorrer dessa pesquisa, por duas vezes, se tentou chegar ao sítio megalítico de Calçoene. Por conta das condições da via que dá acesso ao lugar, as duas tentativas foram fracassadas. No período chuvoso, o atoleiro e a falta de manutenção da estrada impedem o acesso de carros pequenos e sem tração nas quatro rodas. Após a segunda tentativa frustrada de se chegar ao sítio, optou-se por procurar o guarda-parque do sítio, o senhor Lailson Camelo da Silva (popularmente conhecido como Garrafinha), de 62 anos. O 52 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

diálogo estabelecido com ele revelou não apenas um trabalho individual de dedicação à proteção do sítio megalítico de Calçoene, como também indicou problemas pontuais referentes à manutenção do lugar. Perguntado sobre o apoio das esferas públicas para a execução dessa manutenção, o guarda-parque falou: Hoje [...] eu protejo aquele sítio [...] porque eu tô afastado do sítio8, mas ele continua na minha responsabilidade [...] eu faço qualquer coisa pelo sítio porque quanto mais eu tivesse ajuda pra proteger, melhor era. O Estado me contratou [...] aí eu tenho esse salário do contrato administrativo e o IEPA me dá, aqui e acolá, quando eu vou lá e perturbo um pouco, vem o combustível. A prefeita aqui três, quatro mês também me dá uma ajuda em combustível porque eu gasto muita gasolina com a roçagem, porque o capim todo lá foi de planta e o quipu é um capim que [...] não aguenta um mês, em menos de um mês eu compro de rolo de fio, com meu dinheiro pra proteger. Eu tenho o apoio, agora não é aquele apoio que eu esperava porque, hoje, eu digo o seguinte: eu tô saindo de lá porque eu tive um derrame e o derrame ele vem lhe avisar que qualquer momento ele pode lhe dar de novo, e aí o que acontece? O ramal ficou ruim, não teve recuperação o ano passado no ramal e eu fui obrigado a vir pra cá porque um carrinho desse pequeno ele vai me levar lá por cinquenta reais, mas um carro com tração ele vai por oitenta, por cem e eu ganho mil e cem reais, e aí não tem condições deu manter o sítio, mas lá, durante eu tá lá, é tudo limpinho, eu tenho comunicação lá que o meu telefone pega antena, a antena tá lá em cima, mas eu comprei com o meu dinheiro [...] aí de qualquer maneira tem comunicação comigo. Tenho antena parabólica, tudo é de lá do sítio, porque eu tinha minhas coisinha, mas é assim, não era pra mim comprar, era pra algum órgão montar porque a casa lá do sítio é boa (Silva, 2014).

As dificuldades em conseguir combustível para a execução da capina do sítio, as condições do ramal de acesso a ele, além do esforço em manter o local comunicável são problemas presentes na fala de seu Garrafinha. Tais problemas provocaram reflexões pontuais nos pesquisadores. Entre elas, destaca-se: embora o sítio megalítico de Calçoene seja um local com elevado potencial para a execução de um turismo sustentável e voltado ao desenvolvimento qualitativo da comunidade, a 8 Na data de realização da entrevista, o entrevistado estava se recuperando de um Acidente Vascular Cerebral que sofreu dentro do sítio. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 53

fala do entrevistado revela a frágil logística de manutenção do sítio, o que, consequentemente, se reflete nas dificuldades de acesso e usufruto do local por parte da sociedade. O cenário descrito pelo entrevistado, inevitavelmente, trouxe à lembrança as palavras de Bastos (2002: 131), às quais afirmam que “o Estado não transfere o poder a comunidades locais ou grupos de interesses, os quais são burocraticamente desencorajados a atuar no campo da arqueologia”. Perguntado sobre a criação e andamento do projeto que visa transformar o local em um Parque Arqueológico, novamente, o entrevistado ratifica o pensamento do autor supracitado revelando que: Isso eles me falaram no início do ano e, logo eu adoeci e eles só me dizem que o projeto está andando, mas até hoje, não tem nada feito [...] uma pena [...] o que eu tinha de ajudar o estado eu já ajudei, que foi: achar sítio, achar vasos, eu achei vasos, achar um peixe, um peixe de pedra fui eu que achei [...] eu fui lá depois de doente e quando eu fui no sítio que eu vi um metro de cerrado rente à casa, eu fiquei triste. Aí eu fui lá bater em Macapá e disse: – ou nós vamo fazer alguma coisa, ou vamo cuidar do que tá lá! Eu vim atrás de combustível ou dinheiro que eu vou limpar o sítio! – Não tem dinheiro! –Tá, então eu quero combustível. Aí me deram 50 litros de gasolina, eu vim pra cá, paguei carro, não me deram carro porque não tinha óleo, eu fui pro sítio, limpei tudinho e agora o cerrado já tá vindo de novo [...] e chegou o ponto que eu não aguento mais [...] a minha luta era ficar no sítio [...] aí eu fui lá agora pedir da Secretária: – Secretária eu quero combustível pra roçar o sítio [...]! Ela disse: – Se o senhor me pedir uma caixa de fósforo, eu vou lhe dar um palito, em 20 de janeiro, eu lhe dou outro palito e , em fevereiro, eu lhe dou a caixa (Silva, 2014).

Após essa fala, fica claro que o casamento entre a proteção de sítios arqueológicos com desenvolvimento qualitativo de comunidades locais, planejado no momento de criação do PEPPARQEAP, é uma realidade distante de ser concretizada no Amapá. Todos os exemplos elencados nessa seção ratificam a fragilidade da gestão dos recursos arqueológicos no Amapá e indicam que a frase A comunidade é a melhor guardiã de seu patrimônio não conseguiu se solidificar em práticas reais, mesmo sendo a principal diretriz do 54 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

PEPPARQEAP. A ausência de efetividade de estratégias importantes desse programa resultou na permanência de problemas observados ainda na fase de criação do mesmo. O distanciamento da sociedade no processo de gestão dos recursos arqueológicos é uma dessas permanências. Esse distanciamento centraliza a gestão no Estado e impede que a sociedade possa conhecer, assimilar e usufruir o seu patrimônio arqueológico, tal como defende Regina Coeli da Silva (2007). Considerações finais O PEPPARQEAP foi desafiado a instaurar no Amapá as bases para o cumprimento dos dispositivos legais que regem o patrimônio arqueológico no Brasil e atribuem aos três entes federativos, com a colaboração da comunidade, o dever de proteger e promover os bens arqueológicos (art. 23 da CF/ 1988). Além do desafio de ordem legal, o programa vislumbrava aproximar-se das diretrizes lançadas pela política de preservação do patrimônio cultural orientada pela União, a partir da primeira década do século XXI. Fundadas na participação social e na efetivação da função social do patrimônio, tais diretrizes encaram o patrimônio cultural como gerador de desenvolvimento qualificado. Isso fez com que a inclusão da sociedade no processo de gestão do patrimônio arqueológico se tornasse, na avaliação dos autores, o grande desafio do PEPPARQEAP. Após nove anos da criação do programa, os resultados dessa pesquisa revelaram modificações importantes no quadro da gestão dos recursos arqueológicos do Amapá. Também indicaram permanências. As principais alterações dizem respeito à pesquisa. A criação do Núcleo de Pesquisa Arqueológica do IEPA, fortaleceu e intensificou a pesquisa científica no estado. De 2005 até 2013, o número de sítios arqueológicos identificados e pesquisados no Amapá aumentou consideravelmente. Isso permitiu um maior conhecimento da pré-história da região e tirou de equipes externas ao Amapá o protagonismo nos estudos arqueológicos do estado. Vale reforçar que esse cenário não foi desenhado apenas pelas ações do Núcleo de Pesquisa Arqueológica do IEPA, ao atuar desde 2004, o CEPAP tem participação importante para o incremento das pesquisas arqueológicas no estado. Constatada a prevalência da arqueologia preventiva nos dois centros, não há como negar que o aumento na identificação de sítios arqueológicos se deve aos trabalhos voltados à arqueologia preventiva. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 55

Esses estudos são os grandes responsáveis pelo aumento progressivo de sítios identificados no estado. Tal fato indicou outra modificação no quadro da gestão dos recursos arqueológicos. Diferentemente do contexto descrito por Pardi e Silveira (2005: 12), onde todos os tipos de impactos eram implantados livremente, a atuação do IEPA e CEPAP permitiu que empreendimentos de engenharia pudessem providenciar seus estudos de impacto ambiental sem, para isso, ter que recorrer à instituições de pesquisas de fora do estado. Assim, os impactos sobre os bens arqueológicos em grandes empreendimentos passaram a ser minimizados. Os reflexos da atuação dessas duas instituições não acabam aí. Ao serem portariadas pelo IPHAN para a execução de pesquisas, elas também recebem a anuência para efetuar a guarda do material coletado em campo, de forma que esse material deixa de ser enviado para fora do estado. Logo, de 2005 a 2013, a atuação do IEPA, do CEPAP e a reativação do Museu Joaquim Caetano vem permitindo, paulatinamente, o fortalecimento da guarda museológica do patrimônio arqueológico dentro do estado do Amapá. Em se tratando da formação de mão-de-obra especializada, o não cumprimento do acordo de parceria com a UNIFAP para a oferta da especialização em Gestão do Patrimônio Arqueológico significou, na avaliação dos autores, a desconsideração do interesse público imbricado no patrimônio arqueológico. Segundo Fogolari (2009: 10), as políticas públicas conduzidas pelo Estado não devem se resumir pelo simples controle de instituições governamentais como o IPHAN. O autor defende que, acima de qualquer outra coisa, as políticas culturais devem incentivar a responsabilidade civil e subjetiva, e a presença do Estado na gestão do patrimônio cultural deve se dar da forma mais democrática possível. Por ser a única instituição no Amapá a possuir um curso de graduação em História vinculado a um centro de pesquisas arqueológicas (CEPAP), avalia-se que, em observância ao interesse público e ao espírito democrático das políticas culturais, a UNIFAP seria a parceira mais acertada para a efetivação de um programa de especialização na área de arqueologia. Além de não impedir que outros parceiros pudessem ter sido agregados, uma parceria com a instituição evitaria, por exemplo, os problemas encontrados no curso de Especialização em Patrimônio Arqueológico da Amazônia, ofertado pela UEAP no ano 56 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

de 2010, onde a inexistência de um corpo docente vinculado com a instituição e alinhado às especificidades do curso inviabilizou a continuidade de oferta da especialização. A ausência de mão-de-obra especializada era uma das problemáticas a ser enfrentada pelo PEPPARQEAP, mesmo que a parceria com a UNIFAP não tenha dado certo, outras iniciativas surgiram a fim de minimizar o problema. A especialização ofertada pela UEAP foi uma delas. Além disso, a qualificação teórico-metodológica transmitida pelo IEPA e CEPAP aos seus bolsistas deve ser considerada. Atualmente, porém, o IPHAN tem sido bastante rígido na liberação de portarias de autorização para a execução de pesquisas arqueológicas. Assim, para alguém estar autorizado a liderar uma pesquisa arqueológica, essa rigidez exige a formação em arqueologia, acompanhada de uma experiência de cinco anos. Dessa forma, quem não tem a formação específica em arqueologia, não pode liderar uma pesquisa. Como a oferta dessa formação não existe no Amapá, se avaliou que o avanço nesse aspecto foi insuficiente para suprir as necessidades do estado. Para os pesquisadores, a compatibilização da preservação do patrimônio arqueológico com o desenvolvimento sócio-econômico-cultural de comunidades locais se apresentou como o grande desafio do PEPPARQEAP. Ao considerar a participação da sociedade, o programa se mostrou como uma política pública diferenciada, com potencial suficiente para executar a preservação e fruição do patrimônio arqueológico dentro das diretrizes centrais da contemporânea Política Nacional do Patrimônio Cultural. Apesar de toda potencialidade, o PEPPARQEAP não conseguiu obter reflexo na realidade das comunidades locais que estão no entorno dos principais sítios arqueológicos do Amapá. Impossibilitadas de participar na gestão dos bens arqueológicos, essas comunidades permanecem alheias a um processo que, por lei, deveria considerá-las. Dessa forma, a proteção dos sítios aliada ao desenvolvimento da sociedade permanece sendo um desafio para a realidade amapaense. No estado como um todo, inúmeros são os exemplos de sítios que se encontram abandonados e sem uso social. Além de indicar que a competência de proteção conferida aos três entes federativos, com a colaboração da comunidade, não está sendo cumprida, o estado de abandono desses sítios deixa implícito alguns aspectos da gestão do patrimônio arqueológico no Amapá, são eles: as limitações das ações Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 57

de fiscalização e proteção por parte do IPHAN; a ausência de sinergia entre as instituições públicas que lidam com o patrimônio arqueológico no Amapá e a inexistência de ações mais incisivas em prol desse patrimônio por parte do poder público. A junção desses aspectos impossibilita o desenvolvimento qualificado fundado no aproveitamento dos recursos arqueológicos.

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merCado de seguros ambientais e sua legitimação: Contribuições na busCa por um desenvolvimento sustentável e Justiça ambiental Anne pinto brAndAlise Introdução O tema aqui proposto é uma reflexão inicial que visa investigar o surgimento e o crescimento dos mercados de Seguros Ambientais no Brasil, em especial o mercado no Estado do Rio Grande do Sul. De modo geral, nossa pesquisa pretende questionar de que forma este mercado se legitima, via a formação de práticas de prevenção e precaução de danos e em contrapartida, o quanto a prática securitária pode reduzir o bem ambiental a um valor monetário legitimado pelos discursos dos ideários de Desenvolvimento Sustentável e de Justiça Ambiental. Entende-se aqui o bem ambiental, conforme a proteção dada pela Constituição Federal, no seu artigo 225, o qual determina como o “meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida” (Brasil, 1988). Esta definição do bem é uma classificação de macrobem, por suas características de bem incorpóreo e imaterial, bem autônomo, difuso e de interesse público, insuscetível de apropriação exclusiva e indivisível. No entanto podemos também considerar o bem ambiental sob a perspectiva de microbem, considerando os elementos corpóreos que o compõe, o abuso do microbem configura degradação ambiental e pode configurar o dano a coletividade. (Leite 2003: 242-243) Essa comunicação pretende apresentar o mapeamento inicial do campo via uma perspectiva das teorias e instrumentos legais que nos conduzem a investigação proposta, em uma análise inicial dos referenciais e subtemas que ilustram o campo que pretendemos investigar. No Brasil o mercado de Seguros especificamente os referentes a atividades de risco ambiental, tem, de acordo com Polido (2015), quaPanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 61

tro estágios simbólicos, representativos do desenvolvimento do mercado. O primeiro em 1978, quando a Federação Nacional das empresas de Seguros e de Capitalização, desenvolveu um modelo de Seguro de Responsabilidade Civil Geral, com Condições Especiais para o Seguro de Riscos de Poluição do Meio Ambiente, em 1991, o Instituto de Resseguro do Brasil criou o Grupo de trabalho para elaboração de cláusulas especificas de condições gerais para o Seguro de Responsabilidade Civil Poluição Ambiental, em 2003 a Federação Nacional das empresas de Seguros e de Capitalização elaborou novo modelo de seguro ambiental, mas ainda sob os contornos estreitos da Responsabilidade Civil e só em 2004 a Seguradora AIG lançou no Brasil, um produto com modelo de apólices americanas, chamado de Responsabilidade por Danos de Poluição Ambiental e então se tem início de fato a comercialização desta espécie especifica de seguros no país. (Polido, 2015: 35-36). Observamos aqui a menção ao instituto da Responsabilidade Civil, o qual tem relevância em comparação com a Responsabilidade Civil por Dano Ambiental, sendo importante o discernimento acerca de ambas em razão das suas consequências ao sistema de proteção. Esta questão será abordada com mais profundidade quando do estudo da tutela legal do Meio Ambiente. No Estado do Rio Grande do Sul, não temos dados sobre a contratação desta espécie de Seguros, sendo que nos interessa elaborar uma análise de como se desenvolve aqui este mercado e como ele estaria ligado com a implementação de práticas que se insiram em um modelo de Desenvolvimento Sustentável. Uma hipótese que trabalhamos é a evolução deste mercado estar ligada a própria evolução da responsabilização legal ambiental, por isso incorporamos a perspectiva do Direito Ambiental como forma de instrumentalizar o estudo da legislação. A tutela do Meio Ambiente em nosso sistema legal se calça no princípio do Poluidor Pagador e impõe penalidades e processos de responsabilização sobre três esferas a partir do evento danoso, sejam elas: administrativa, civil e penal. O Princípio do Poluidor-Pagador foi recepcionado pela Constituição Federal no seu art. 225, parágrafo 3º, que prescreve: As atividades e condutas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, às sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados (Brasil, 1988). 62 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Considerando-se o atual modelo de desenvolvimento econômico, amplia-se sobremaneira a geração de riscos, de danos e de impactos negativos ao Meio Ambiente e a saúde da população, convertendo-se parte destes resultados em ações judiciais ou processos administrativos por infrações ou crimes ambientais, o que exige um controle maior do uso de recursos ambientais e a necessidade de se precaver quanto a possíveis processos, tanto a partir de medidas de redução dos riscos, como no sentido de contratar seguradoras que possam cobrir eventuais prejuízos financeiros a partir da aplicação de multas ou obrigações de reparar o dano. No entanto, se observa que há uma série de limitações e fragilidades nos órgãos de proteção ambiental, deficiências de ordem financeira, com carência de recursos e instrumentos de trabalho, pesquisa, perícia, carência de profissionais qualificados para matérias específicas, conflitos de competência e diante das dificuldades enfrentadas nota-se um movimento na tentativa de tais órgãos eximirem-se da responsabilidade de agentes de Estado para proteção do Meio Ambiente. Entre estas ações citamos um atual movimento de licenciamento a partir de ato declaratório para determinados tipos de empreendimentos. Como se o empreendedor se responsabilizasse pelos riscos individualmente. Salientamos que tal prática, ou nenhuma outra, conforme o nosso atual sistema legal, exime o Estado de sua corresponsabilidade quando anui com o licenciamento de atividades poluidoras. Outra questão são projetos de lei que visam abreviar ou retirar a exigência dos procedimentos de Estudos de Impactos Ambientais, sob o argumento da morosidade com que eles se desenvolvem, sendo que em nosso ordenamento não cabe o retrocesso em matéria ambiental, portanto são todas estratégias ilegais do ponto de vista da concretização do Estado de Direito Ambiental. É neste contexto que trouxemos a problemática da formação do mercado de seguros, os quais também podem significar um movimento do Estado de tentar transferir ao setor privado responsabilidades que são suas de fiscalização, avaliação e controle de riscos junto a empreendimentos poluidores. Com relação ao mercado dos Seguros Ambientais, conforme podemos apreender a priori, esse compreende, empresas que atuam em atividades de alto risco e impacto ambiental, as seguradoras empresas que vendem a cobertura dos danos e prejuízos decorrentes de acordo com as cláusulas e apólices contratadas, o poder judiciário, o qual defere sentenças de condenação por responsabilidades civil e penal por danos ao meio ambiente, Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 63

os órgãos do SISNAMA (Sistema Nacional do Meio Ambiente), as empresas de consultoria ambiental, o poder legislativo que promulga as leis de matéria ambiental e as penalidades a serem aplicadas e que serão cobertas pelas seguradoras de acordo com o caso concreto e ainda demais agentes que possamos identificar a partir desse estudo, para averiguar de que modo interferem direta ou indiretamente na legitimação desse mercado. O contrato de Seguro Ambiental também pode gerar diferenças entre classes e portes de empreendimentos, os que podem poluir e segurar seus empreendimentos e os pequenos empresários ou cidadãos que não possam arcar com um seguro e acabam por sofrer de forma mais grave uma penalização. Neste sentido refletimos sobre a categoria de Justiça Ambiental, a equidade possível na aplicação dos dispositivos legais e a distribuição desigual das penalidades, as quais por um aspecto podem se tornar ineficazes com relação a empresas em que o lucro auferido supere o valor imputado a título de penalização. Para a instrumentalização destes mercados é condição indispensável fazer previsões valorativas de possíveis Danos. Estes valores são dados em parte por parâmetros legais através da legislação que define valores a títulos de multas, pelas sentenças condenatórias em matéria ambiental, as quais estipulam valores de indenizações ou reparações de danos e ainda os valores do risco, calculados geralmente pelas seguradoras ou empresas de auditoria ambiental. Para tanto existem disciplinas especificas utilizadas balizadoras e condutoras de cálculos específicos da matéria como a perícia ambiental, a contabilidade ambiental, economia ambiental ou do meio ambiente, economia ecológica. Nesse sentido, entendemos necessária a investigação sobre a aquisição de valor dos bens ambientais, a qual culmina com a estipulação legal de valores de referência, os quais acabam por calçar também os valores dos custos e as apólices na criação de um mercado de cobertura financeira dos Danos. Outra questão atual que surge em torno desse instrumento é a possibilidade de obrigatoriedade do mesmo. Este tema vem sendo inclusive objeto de projeto de lei, pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, visando alterar a Lei 6.938/81, de Política Nacional do Meio Ambiente, e implementar um seguro mínimo obrigatório ambiental o qual seria fixado em fase inicial do processo de licenciamento (Senado Federal)1. 1 Disponível em: http://WWW25.senado.leg.br/web/atividade/materiais/-/materia/124325 64 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Para tanto questionamos a “lógica simbólica” (Bourdieu, 1989) que contribui para a constituição destes mercados e as fontes de legitimação, movimentos políticos, criações normativas, pressão de órgãos de proteção às causas ambientais que atualmente associam tal mercado ao lema do Desenvolvimento Sustentável e Justiça Ambiental. “... o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (Bourdieu, 1989: 7). Deste modo, essa proposta busca refletir sobre o tema a partir dos referenciais teóricos da Nova sociologia econômica, que permite um olhar sobre os mercados como construções sociais, considerando e agregando ao estudo econômico outros aspectos da sociedade, como o social, político, cultural, e simbólico. A Nova Sociologia Econômica e os mercados de Seguros Ambientais A Nova Sociologia Econômica é uma atual base epistemológica que propõe um diálogo com a ciência econômica e dentre outras categorias, trata das dimensões sociológicas dos mercados, o que aqui nos interessa, visto que nosso foco é buscar compreender a lógica social desses mercados. Ela surge como uma crítica à análise dos fenômenos econômicos, em especial, do mercado e a racionalidade formal que orienta a lógica econômica do ponto de vista destes especialistas. Assim importa-nos aqui o estudo da NSE justo por ela se distinguir dos modelos de análise da economia, por ir além da ideia do mercado como lócus da racionalidade. [...] a NSE corresponde, em grande medida, a um projeto fluido desenvolvido por inúmeros investigadores (maioritariamente norte americanos) que, a partir do inicio dos anos 80 do século XX, dirigiram o melhor dos seus esforços na direção da aplicação de uma matriz de conhecimento sociológico a fenômenos econômicos. É ponto adquirido que o impulso inicial desta linha de pesquisa terá sido dado pelo texto marcante de Harrison White (1981), centrado na discussão das origens sociais dos mercados” (Marques, 2003: 1-67).

Neste sentido, Granovetter (1985) torna-se reconhecido como proponente de uma metodologia para a disciplina e trata da teoria da incrustação (embededdness) da seguinte forma: Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 65

o argumento de que os comportamentos e instituições em análise são tão condicionados pelas relações sociais, que conceitua-los como elementos independentes representa um sério equivoco.

Observa-se que um importante precursor desta teoria foi Karl Polanyi, o qual aponta entre seus diversos temas o problema da falácia economicista. No texto, o referido autor considera um erro igualar a economia humana com a forma de economia de mercado conforme conhecemos hoje. (Polanyi, 2012: 47). Sob esta óptica alguns autores da NSE trabalham sobre o tema da construção social de mercados, entre eles, Parpet-Garcia (2004), que tratou da construção social do mercado de vinhos na França e do mercado de Morangos (2003) e Viviana Zelizer (1978) que tratou do surgimento “moral” do mercado de seguros nos Estado Unidos, avaliando como a vida foi “precificada” nos contratos que hoje chamamos de Seguro de vida. No Brasil, estudos recentes também são referência, como A Construção Social do mercado de madeiras certificadas na Amazônia brasileira, de Marcelo Sampaio Carneiro (2007), a Construção social de mercados e novos regimes de responsabilização no sistema agroalimentar, de Paulo André Niederle (2013) e A construção social do mercado olerícola na ótica da nova sociologia econômica, de Mazon, Marcia da Silva (2005). Assim partimos dessas análises que consideram as estruturas sociais como resultado e também produto da interação entre os agentes, portanto, Bourdieu (2001), também será referência, quando trata da produção social da utilidade e do valor e questiona a dominação simbólica e suas influencias sobre o estabelecimento das lógicas econômicas vigentes. Entendemos ainda que a criação deste mercado de seguros está vinculada a reflexões e teorias que determinaram a “sociedade de Risco”. Partindo de Beck (1944) e de outros debates em diferentes áreas do conhecimento podemos questionar como o mercado de seguros ambientais e de riscos são significativos na agenda do Desenvolvimento Sustentável. Torna-se necessário discernir o quanto a absorção e concretização dos conceitos de risco e das formas de minimizar os seus impactos estão enraizadas nas noções e soluções dadas por uma lógica formal (Polanyi, 2012) advinda da economia clássica. Apresentamos aqui a Nova Sociologia Econômica, como forma de conduzir nossa pesquisa correlacionando a presente teoria com a pro66 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

blemática proposta no sentido de compreender o quanto a interpretação do mercado através da NSE pode permitir reflexões complementares ao pensarmos Desenvolvimento Sustentável, considerando-se que as críticas propostas por esta, estão vinculadas a um modo de produção capitalista a qual também é responsável pelo avanço da degradação ambiental e ampliação de riscos, de modo que entendemos oportuna a reflexão correlata destes temas permitindo um entendimento maior inclusive sobre as intersecsionalidades destas questões. Entendemos que todo o estudo sobre a lógica dos mercados e em especial este de Seguros Ambientais, pode nos trazer um modelo importante e representativo, para compreendermos a lógica de valoração dos bens ambientais, no presente modelo de Desenvolvimento e as possibilidades de aumento da proteção destes bens através do mercado. As visões do Desenvolvimento Sustentável na construção dos mercados de seguros Para trabalharmos o tema, necessário se faz, situarmos nossos estudos em propostas de Desenvolvimento Sustentável, que possam dialogar com a análise do mercado, assim tratamos aqui um pouco de nossas inspirações em teorias e definições de modelos mais adequados de Desenvolvimentos, tidos como “Sustentáveis”. A comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento definiu “desenvolvimento sustentável” como o “desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades” (UICN, PNUMA, WWF, Cuidando do planeta Terra uma estratégia para o futuro da vida, São Paulo, 1991). Recentemente em 2015, a ONU lançou a Agenda 2.030 para o Desenvolvimento sustentável, nela traça 17 objetivos, que priorizam a erradicação da pobreza, como indispensável para o Desenvolvimento Sustentável que, de acordo com a ONU, equilibram as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental (ONU Brasil, 2015). É importante vislumbrar a preocupação da ONU com a estipulação de três dimensões do desenvolvimento sustentável, visto que uma visão exclusivamente economicista acerca do desenvolvimento traz a dissociação da população em geral, da noção do impacto da exploração de recursos sobre a sua qualidade de vida e, principalmente, o significado da sua participação neste processo a partir de seus hábitos e Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 67

consumo. O indivíduo perde a compreensão do Desenvolvimento como uma possibilidade mais ampla de desenvolvimento humano e identifica o progresso como a possibilidade ascendente de produção e aquisição de bens que indicariam um grau de desenvolvimento desejável. Dentro desta visão econômica, se utiliza o PIB, (Produto Interno Bruto), como índice de desenvolvimento. Para inibir este modelo é preciso estabelecer diretrizes balizadoras do uso sustentável dos recursos naturais e cada vez mais restritivas e fiscalizadoras do meio ambiente, de forma a buscar-se uma equação mais equilibrada do binômio, exploração de recursos versus proteção ambiental. Essa visão de desenvolvimento como crescimento econômico advém do modelo capitalista, o qual é, cada vez mais questionado, num dado momento foi justificado que o modelo permitiria que todos usufruíssem dos bens e com isso teriam uma realização de seus anseios e satisfação de necessidades, hoje questiona-se tal premissa. Para tanto é necessária à reflexão e a alteração de paradigmas do conceito de Desenvolvimento de uma sociedade, o qual deve se aproximar cada vez mais de um processo sustentável que seja capaz de uma ampliação de direitos dos cidadãos para que estes tenham uma ampliação do desenvolvimento de suas capacidades e possam reflexivamente contribuir para uma sociedade mais desenvolvida e equilibrada. A partir da busca por uma visão ampliada e mais justa do conceito de Desenvolvimento nos aproximamos e solidarizamos com a teoria de Amartya Sen. Amartya (2010) nos traz o conceito de Desenvolvimento como liberdade, através do livro de mesmo nome, no qual defende a concepção de Desenvolvimento, calçada no desenvolvimento humano através da expansão de liberdades e capacidades dos indivíduos. Esta ideia considera também a necessidade de se ter um Desenvolvimento Sustentável conforme defende Veiga (2005), para o qual precisamos nos dissociar da ideia de desenvolvimento como crescimento econômico apenas (Veiga, 2005: 9-106). Foi nesta intenção e necessidade de busca por índices que pudessem trazer amostragens e refletir sobre as condições das diferentes populações em âmbito mundial sob outra ótica de desenvolvimento, que Amartya contribuiu com a criação do IDH. O Índice de Desenvolvimento Humano utilizado pelo Programa das Nações Unidas trouxe uma interpretação muito importante dos processos de desenvolvimento, através da utilização de índices que ampliam a visão das sociedades 68 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

e das condições humanas em diferentes países com diferentes níveis de crescimento econômico e desenvolvimento, ainda assim, tal índice é criticado, já que trabalha com bases estatísticas, que nem sempre representam uma realidade total porque transformam em condições homogêneas situações adversas dentro dos mesmos países. Já, Celso Furtado (1974), referência brasileira nos estudos de desenvolvimento, considera que a sociedade tem se preocupado mais com os meios do que com os fins, os quais deveriam ser o bem estar do homem. Para ele o desenvolvimento e o progresso são ideologias, considera que o desenvolvimento é um mito porque devemos considerar que não é possível que todos os países possam atingir os níveis de crescimento econômico, consumo e exploração de recursos (Furtado, 1974). Por outro lado, Robbert Putnam (2000), a partir de uma pesquisa sobre o desenvolvimento na Itália por via da constituição de suas estruturas administrativas, traçou as características que diferenciam a forma de desenvolvimento do sul e do norte da Itália, comprovando o quanto outros fatores diversos do econômico, como um melhor desempenho institucional, decorrente do que chamou de uma comunidade cívica e formação de um capital social, contribuem para o desenvolvimento de uma região. No livro Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI, Veiga (2005) considera três hipóteses de entendimento do processo de desenvolvimento. Primeiro, o desenvolvimento é visto como sinônimo de crescimento econômico, segundo como mito ou ilusão e numa terceira corrente que seria o “caminho do meio” encontraríamos o desenvolvimento sustentável. Para o autor, há dois caminhos para este desenvolvimento sustentável, através de uma mediação do crescimento econômico ou conduzido pelo custeio público. O desenvolvimento deve ter um impacto qualitativo significativo, isso é o que diferenciaria o Desenvolvimento Sustentável dos conceitos de crescimento e expansão econômicos que significam mudanças quantitativas apenas. Entendemos que para um processo adequado de Desenvolvimento deve haver um fortalecimento das instituições, a partir da formação de cidadãos mais comprometidos com a causa ambiental e dispostos a partir de valores de solidariedade e cooperação, contribuírem para uma maior aplicação das normas de proteção ambiental. Atualmente o pensamento ecológico ganhou legitimidade e parece pautar nossos processos de decisões políticas e econômicas, é uma Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 69

necessidade biológica se considerar a influência de politicas públicas para gerir uma rede de relações que operem favoravelmente ao meio ambiente, é necessária à busca por um equilíbrio, que seria a manutenção de um número máximo de espécies sob um conjunto específico de condições ambientais e esta capacidade dependerá do estilo de desenvolvimento de cada sociedade. Assim, faz-se necessário o entendimento do custo ecológico das atividades humanas e a compreensão da natureza holística da vida. Enquanto vida biológica, social e política, como aponta Gattari (1993): As formações políticas e as instancias, executivas parecem totalmente incapazes de apreender essa problemática no conjunto de suas implicações. Apesar de estarem começando a tomar uma consciência parcial dos perigos mais evidentes que ameaçam o meio ambiente natural de nossas sociedades, elas geralmente se contentam em abordar o campo dos danos industriais e, ainda assim, unicamente numa perspectiva tecnocrática, ao passo que só uma articulação ético-politica – a que chamo ecosofia – entre os três sujeitos ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sócias e o da subjetividade humana) é que poderia esclarecer convenientemente tais questões.

A questão ambiental vinculada aos processos e diferentes entendimentos de desenvolvimento, têm sido ponto importante de debates de interesse global, o que não poderia ser diferente devido ao seu caráter, o qual exige o reconhecimento da necessidade de posturas que estejam à frente das barreiras territoriais. Seu caráter multidisciplinar exige uma evolução de vários aspectos da sociedade, sejam eles políticos, jurídicos, econômicos ou científicos, para que se propicie uma conciliação de interesses e uma alteração de comportamento com alcance maior. Em se entendendo o processo de Desenvolvimento, a partir da ótica de Sen (2010), passamos a compreender também a necessidade de expansão de capacidades para a formação de agentes que possam atuar socialmente em defesa da sua qualidade de vida e da qualidade do seu ambiente. Esta ideia encontra assento em outros autores entre os quais já citamos Robert Putnam (2000), o qual nos chama à análise histórica da formação de um capital social e das possibilidades de formação de uma comunidade cívica. “Os círculos virtuosos redundam em equilíbrios sociais com elevados níveis de cooperação, reciprocidade, civismo 70 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

e bem-estar coletivo. Eis as características que definem a comunidade cívica” (Putnam, 2007: 186). De certa forma, a breve apresentação desse referencial teórico orienta nossa pesquisa e aponta como tal modelo sustentável de Desenvolvimento, pode ser um dos motivos que legitimam a criação de um instrumento de Seguro direcionado à redução de riscos e custos decorrentes de atividades lesivas ao Meio Ambiente. Do Sistema legal de Proteção Ambiental a legitimação do mercado Já em 1.500, logo do descobrimento do país, haviam normas de proteção aos recursos naturais e a partir das Ordenações Afonsinas e Manuelinas de proteção à caça, riquezas minerais, corte de árvores, mas até então estas preocupações se pautavam ante o temor da escassez. Na Monarquia a Constituição de 1824 e depois, o código criminal de 1930, estipularam a proteção da cultura e um regime de penas para o corte ilegal de árvores, e, em 1.850 surgiram sanções administrativas para tal atividade. Até a década de 1980, há uma exploração desagregada do meio ambiente e ficava a cargo do código civil, a regulamentação destas questões e da solução dos conflitos. Neste mesmo período passa a haver um desenvolvimento em nível de conscientização ambiental, ante a publicação de obras, artigos científicos, edição de leis e ações do Ministério Público que repercutiram de forma benéfica para enaltecer o tema do Direito Ambiental. (Sirvinskas, 2002: 20). A Constituição de 1988 dedica um capítulo inteiro para tratar da questão ambiental, tamanha à proporção que já tomava o tema neste período. O capítulo sexto de nossa carta magna é inaugurado pelo art. 225, que reza: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações (Brasil, 1988).

A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, Lei nº 6938/81, inaugurou uma fase de preocupação integral com o meio ambiente e auxilia a efetivação do Art. 225 da Constituição. A tentativa de uma visão integrada do meio ambiente é desafio desta legislação e do DiPanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 71

reito Ambiental, este não pode ser aplicado ante os moldes de nosso direito material e processual, porque exige a visão do todo, sistêmica, global, transindividual. O grande desafio dos juristas contemporâneos é superar o paradigma individualista porque a proteção jurisdicional do meio ambiente está numa nova perspectiva que visa solidariedade e colaboração dos indivíduos. Para a abordagem do tema dos Seguros Ambientais é necessário algum entendimento prévio da legislação ambiental no país e entre os institutos legais pertinentes ressaltamos aqui, o da Responsabilidade Ambiental porque este instituto se difere da Responsabilidade Civil do Código civil, e quando mencionamos uma breve evolução histórica do mercado no Brasil, observamos a fragilidade da Responsabilidade civil, utilizada pelo mercado de seguros Ambientais, tornando ineficiente a prática securitária sob esta perspectiva. A responsabilidade civil, a qual regula e tutela as relações no âmbito das obrigações civis, exige para sua configuração a comprovação do nexo de causalidade e a averiguação da culpabilidade do agente, neste sentido não se presta a garantir de forma adequada a proteção pretendida por nosso sistema legal ao bem ambiental, sob a perspectiva dos Princípios de Prevenção e Precaução. Já a Responsabilidade Civil Ambiental, artigo 14, §1º da Lei nº 6.938/81, recepcionado pelo artigo 225, parágrafos 2º e 3º da Constituição Federal, em seu parágrafo primeiro, excluiu a discussão a cerca da culpa, o que se caracterizou em uma responsabilização objetiva a cerca do Dano Ambiental. Art 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores: I - à multa simples ou diária, nos valores correspondentes, no mínimo, a 10 (dez) e, no máximo, a 1.000 (mil) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional - ORTNs, agravada em casos de reincidência específica, conforme dispuser o regulamento, vedada a sua cobrança pela União se já tiver sido aplicada pelo Estado, Distrito Federal, Territórios ou pelos Municípios. II - à perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público; III - à perda ou suspensão de participação em linhas de financiamento em estabelecimentos oficiais de crédito; 72 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

IV - à suspensão de sua atividade. § 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.

Com relação aos instrumentos legais de proteção, pretendemos ao longo do trabalho explorá-los melhor, principalmente com relação a este tema da Responsabilização ao qual retornaremos e ainda a análise de outros instrumentos legais significativos quanto a matéria do risco e do dano ambiental. Quanto ao poder legislativo, este incumbido da edição de normas capazes de conter as ameaças aos recursos ambientais, desenvolveu ao longo dos anos um sistema de normas de proteção ambiental, o qual não foi codificado, o que gera complexidade para sua aplicação por exigir aos envolvidos no sistema de proteção ambiental a observação de muitas normas, esparsas, tanto normas federais, estaduais, municipais, como resoluções dos conselhos e órgãos ambientais das três esperas, como normas técnicas especializadas. Adiciona-se aí a existência de um Sistema de proteção ambiental, o SISNAMA, instituído pela Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981, regulamentada pelo Decreto 99.274, de 06 de junho de 1990, sendo constituído pelos órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e pelas Fundações instituídas pelo Poder Público, responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental, os quais também editam resoluções e normativas capazes de regular a matéria. Quanto aos órgãos do SISNAMA, se observa grandes dificuldades operacionais, de modo que muitos dos conflitos que poderiam e deveriam ser dirimidos por estes, acabam por serem levados ao poder judiciário. O fortalecimento deste sistema, poderia ser uma alternativa a uma redução dos riscos e uma melhor resolução dos conflitos ambientais. De outro lado, a população não parece reconhecer a sua condição de pertencimento ao meio ambiente, de modo que ela própria participa de conflitos sem reconhecer os riscos ambientais a que esta se submetendo ao criar situações que geram impactos de natureza ambiental. E também ao passo que não reconhece a relevância do seu impacto, Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 73

também não se reconhece como agente capaz de dirimir os mesmos conflitos, de modo que delega ao poder judiciário fazê-lo. Observa-se uma quase exclusiva busca por resolução através da submissão destes ao poder judiciário. Ocorre que a dinâmica processual, tanto pela sua natureza procedimental, quanto por ineficiência do sistema judiciário e o abarrotamento deste, acaba por impedir um andamento adequado das causas a ele submetidas, não representando um instrumento adequado a resolução desta espécie de conflitos sociais. No contexto de instrumentalização de novas praticas capazes de contribuir ou solucionar as demandas ambientais, é que parece se inserir a criação do instrumento de Seguro Ambiental o qual parece aproveitar-se desta oportunidade de cobrir o risco de perdas financeiras e ao mesmo tempo representar a inserção de práticas de prevenção e gestão ambiental ás quais se tornam exigências para a contratação dos seguros. A partir da NSE, como perspectiva da análise do Mercado de Seguros ambientais buscamos compreender a lógica do entrelaçamento das variáveis em torno da geração de riscos e danos ambientais bem como da judicialização das questões ambientais. Assim, como primeira evidência temos que a ampliação de mecanismos de proteção ambiental é legitimada a partir dos estímulos à informação, ampliação de capacidade dos agentes, cooperação e participação da sociedade para que haja a concretização de um Direito ao Meio ambiente equilibrado para as presentes e futuras gerações e um desenvolvimento humano ampliado e não mais calçado exclusivamente em interesses econômicos, o que significa, o fortalecimento, do discurso de desenvolvimento sustentável. Isto posto, a própria lógica da construção social desse mercado vai além da ideia meramente econômica e agrega ao seu repertório questões sociais que lhe dão legitimidade. Por fim nossa expectativa, através da observação do fenômeno social que escolhemos apreciar, é de vislumbrarmos as estratégias da construção de um mercado de seguros, que nos remete a pergunta de partida: O mercado de seguros contribui para a construção de um modelo de desenvolvimento sustentável e justiça ambiental ou apenas segue uma dinâmica economicista, nos moldes da economia clássica significando apenas mais um produto para gerar lucro e significar um marketing verde para as atividades de risco?

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Considerações Finais Dado o crescente aumento dos conflitos em torno de demandas ambientais e consequentemente o aumento da necessidade de construção de novas soluções para estas questões, entendemos pertinente a reflexão sobre o surgimento do mercado de seguros ambientais no Brasil e sua legitimação como forma de contribuição para um sistema de proteção, em especial, o mercado que iremos analisar. O surgimento da prática de cobertura financeira por danos ambientais se constrói a partir da identificação dos riscos a que a sociedade atual se submete a partir do modelo de desenvolvimento econômico vigente. Além disso, entendemos pertinente refletir sobre como se constituem os instrumentos de precificação da proteção ambiental, bem como a constituição dos Riscos e dos Danos adentra no debate do Desenvolvimento Sustentável e de que modo este mecanismo passa a ser internalizado nas empresas a partir do incentivo das seguradoras para redução dos riscos. Importa-nos ressaltar que, ao tempo que preparamos a presente proposta de pesquisa, nos deparamos no Brasil com o desastre ambiental por rompimento de barragem de extração de minério de ferro, no Estado de Minas Gerais, tendo causado impacto de grandes proporções, e além de causar mortes e prejuízos financeiros, também temos que considerar os danos emocionais e culturais aos sobreviventes, entre tantos danos que devem ser ainda inventariados. De modo que o tema referente à necessidade de investimentos e soluções para prevenção e contenção de desastres toma proporções significativas e nos convoca a reflexões diante da ineficiência social de nossos instrumentos de proteção. O tema tem ganhado relevância, tendo a ONU (Organização das Nações Unidas), inclusive, através do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), lançado os PSIs, (Princípios para Sustentabilidade em Seguros), criados a partir da Conferência Rio+ 20, que foi a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento sustentável, realizada em 2.012 no Brasil. A iniciativa constitui-se em uma parceria publico- privada, reunindo o PNUMA ao setor financeiro global. A nossa pergunta, portanto, vai além dos aspectos jurídicos e econômicos, buscando esboçar como se dá a construção desse mercado de seguros ambientais via os aspectos políticos, culturais e simbólicos. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 75

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Cosmologia e ação polítiCa indígena frente à transposição do são franCisCo no sertão de itapariCa cArlA souzA de cAmArgo Introdução O Rio São Francisco é considerado o rio da “Integração Nacional”. Nasce em Minas Gerais, nas proximidades da Serra da Canastra, fornece água para 6 estados (Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Goiás) e sua bacia é responsável pelo abastecimento de 504 municípios (CIMI, s/d e RIMA, 2004). Apesar de ser um imenso território percorrido, o rio São Francisco é bem fragmentado, pois mesmo sendo localizado dentro do Semiárido brasileiro, percorre 2 biomas distintos (e os mais ameaçados de extinção do país), o Cerrado e a Caatinga. A diversidade da fauna e flora, o regime pluviométrico, as cheias e estiagens não tem a mesma temporalidade ao longo de seus 2.800 km. A região do sertão, em especial, corresponde em grande parte as características de semiárido situado na região Nordeste, e parte do norte da região Sudeste. O aspecto climático do semiárido regional, muito quente e sazonalmente seco, é determinante na configuração das paisagens sertanejas. O sistema hidrográfico autóctone é dependente das chuvas sazonais que se apresentam de maneira bem irregulares ao longo dos anos, intercalando longos períodos de secas devastadoras para o bioma da caatinga. Todos rios da região, mesmo intermitentes, chegam ao mar, contribuindo para evitar uma salinização excessiva e prejudicial dos solos drenados. Além da grande diversidade ecológica, o rio São Francisco abriga também imensa diversidade sociocultural, sendo apontado um total de 32 povos indígenas que têm população estimada em torno 70.000 indígenas (Marques apud CIMI, s/d). Além destes, um grande número de populações tradicionais, entre ribeirinhos, quilombolas e camponeses, alimenta-se do rio e apresentam uma ligação identitária muito especial com o “o Velho Chico” (Dhesca, 2010) Para grande parte da população Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 79

indígena, o rio São Francisco é chamado de Opará (CIMI, s/d), que significa “o rio-mar”, que é fonte de recursos, mas também é o abrigo de Encantados na cosmologia indígena, o que aponta para a importância do rio não só na produção da subsistência, mas também da própria memória destes grupos. A chamada “transposição do Rio São Francisco”, na realidade chama-se “Projeto de Integração da Bacia do Rio São Francisco às Bacias do Nordeste Setentrional”. Apresenta-se como um projeto de infraestrutura hídrica, empreendido pelo Governo Federal sob responsabilidade do Ministério da Integração Nacional, que busca solucionar problemas sociais e econômicos decorrentes da escassez de água. A obra era prevista para ser finalizada em 2012, mas até hoje ainda não está concluída. Durante as eleições de 2012 e 2014, alguns trechos foram finalizados, ficando claro um grande interesse político-eleitoral neste projeto. Hoje a situação de alguns trechos da obra é precária, necessita de reparos em diversos pontos onde a vegetação cresce em meio as placas dos canais e a nova previsão para finalização da obra é o ano de 2018. A obra se materializa em meio a um panorama desenvolvimentista, inseridos em nos projetos federais chamados “Programa de Aceleração do Crescimento” - PAC I e II, o primeiro lançado em um plano de metas (2004-2007) no primeiro mandato do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, entrando efetivamente em atividade em 2007 e o segundo durante o governo da Presidente Dilma Rousseff, em 2011. Não foram poucas as movimentações da sociedade contra a maior parte dos projetos propostos desde o primeiro PAC, pois resgatavam projetos propostos em diferentes momentos da política brasileira (muitos deles idealizados durante a ditadura militar), uma mistura de visões megalomaníacas, soluções milagrosas, construções faraônicas que traduziam uma nova ideologia de estado. Este modelo de Estado pautava-se em um desenvolvimento a qualquer preço, sem considerar duas pautas essenciais delicadamente traçadas na Constituição de 1988: os direitos das populações tradicionais sobre seu território e a necessidade de defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado. O Projeto de Integração da Bacia do Rio São Francisco às Bacias do Nordeste Setentrional – um dos projetos prioritários do primeiro PAC – reside na construção de dois sistemas independentes – denominados Eixo Norte e Eixo Leste – para a captação de água do rio São 80 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Francisco entre as barragens de Sobradinho e Itaparica, em Pernambuco; nestes sistemas, ainda está prevista a construção de canais, reservatórios, estações de bombeamento e usinas hidrelétricas. Segundo o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA, 2004), o principal objetivo é assegurar a oferta de água para suprir as necessidades de abastecimento de municípios do semiárido, do Agreste Pernambucano e da região Metropolitana de Fortaleza. Esta região atendida pelo projeto encontra-se na área delimitada como Polígono das Secas e a população que será assistida é estimada em 12 milhões de habitantes. Desde julho de 2004, está disponível no site do Ministério da Integração o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) do Projeto de Integração do Rio São Francisco às Bacias do Nordeste Setentrional, realizado pelo Ministério da Integração Nacional, que a partir de pesquisas e avaliações de uma equipe multiprofissional dão suporte à aprovação do projeto da transposição. Menos de 10% das 136 páginas que contém o relatório correspondem aos esclarecimentos acerca das ações compensatórias e mitigatórias relativas aos efeitos da obra na população e na paisagem. Interessante notar que mesmo impactando diretamente populações tradicionais, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas, este relatório não contém nenhuma análise antropológica mais esmerada, assim como nenhum antropólogo envolvido em sua confecção. O principal ator circunscrito pelo RIMA é a “população”, categoria genérica que não delimita nenhuma comunidade específica e não informa muitos pormenores sobre ela. Além disso, a “população” descrita pelo RIMA é pobre, com grande e ascendente tendência à migração para grandes centros urbanos e, principalmente, para o Sudeste. Interessante notar que este ponto específico do Relatório vai contra estatísticas produzidas pelo próprio Estado1. Ainda segundo o RIMA, somente sofrerão efeitos sociais as comunidades indígenas Kambiwá, Pipipã e Truká, mas o mínimo possível. O principal eixo de incômodo a essas comunidades aparece como o contato com os trabalhadores das obras, as doenças sexualmente trans1 O Censo 2010 aponta, por exemplo, uma redução em aproximadamente 30% a migração dos estados de Pernambuco e Paraíba para outros estados do país na última década. Segundo dados do Ipea 2010, acerca da migração interna no Brasil, percebese que durante quase uma década 2000-2008, as migrações do Sudeste para o Nordeste superaram significativamente as migrações do Nordeste para o Sudeste. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 81

missíveis e as perturbações decorrente do uso de maquinário, trânsito e barulho em suas terras. É importante notar que o Relatório assinala que houve grande preocupação do projeto em deixar de fora e desviar das unidades de conservação onde estão essas comunidades indígenas, demonstrando-se que os efeitos que serão sentidos são muito menores por conta do cuidado do Estado em não afetar estas comunidades. É interessante ressaltar que existem diversos outros relatórios contestando muitas informações do RIMA, principalmente ligados a movimentos sociais e instituições que cobram a efetivação de políticas públicas que foram direcionadas para minimizar os efeitos sociais da Transposição do São Francisco, como por exemplo um extenso relatório denúncia realizado pelo CIMI, em 2007 (acerca de 9 populações indígenas impactadas por obras ligadas à Transposição) e também um relatório de 2002, realizado pelo Fórum de Defesa do Rio São Francisco, denunciando a omissão de informações e a insuficiência de estudos e cálculos efetivos sobre o dano social e ambiental decorrente da obra. O relatório do CIMI, feito em parceria com a APOINME (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo), chama a atenção para as outras populações indígenas afetadas pela obra da transposição, segundo eles: Truká, Tumbalalá, Pipipã, Kambiwá, Pankararu, Tuxá, Kariri-Xocó, Xocó e Anacé. Revela também que a transposição se torna, desde 2007, a principal pauta do movimento Indígena em Pernambuco, além das titulações das Terras Indígenas, principalmente por que ambas as causas são diretamente ligadas uma a outra. A APOINME, segunda maior organização indígena do Brasil, forma-se a partir das articulações políticas dos índios Xucuru. Hoje ela é dividida em 4 regionais e, em Pernambuco, a regional é formada pela articulação de 11 povos: Atikum, Fulni-ô, Kambiwá, Kapinawá, Pankararu, Pankaiwká, Pankará, Pipipã, Tuxá, Truká e Xukuru. Como evidencia Kelly Emanuelly de Oliveira em sua tese sobre a APOINME, mesmo com presença formal na articulação, os Fulni-ô tem uma atuação política própria. Ainda segundo o trabalho de Kelly Oliveira, a articulação indígena em Pernambuco se forma de maneira muito atrelada ao terceiro setor, principalmente a ONG’s, especificamente ao CIMI. O caso dos Truká, Pipipã e Kambiwá, apesar de não serem os únicos impactados pela obra, são os que primeiro se deparam com os incômodos da sua construção, pois essas populações residem no “ber82 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

ço” dos dois trechos da obra. O caso Truká já foi bastante estudado, inicialmente por Mércia Rangel Batista, que já tinha um trabalho com a população e, mais recentemente, por Eliana de Barros Monteiro. Em Floresta, o caso Pipipã me aparece em relevo, pois além dos problemas decorrentes da transposição, vivem em um caso de sobreposição territorial com uma unidade de conservação, que não permite a entrada e o livre acesso de pessoas desta comunidade no interior de sua terra sagrada de origem, a Serra Negra. Através de um corte transversal, procuro analisar a transposição do São Francisco em relação aos povos indígenas do sertão de Itaparica, a partir de uma etnografia focada na ação política dos povos indígenas e seus parceiros, representantes de outras comunidades implicadas durante décadas por grandes obras no Rio São Francisco. A construção de Itaparica e os entes cosmológicos Existe uma relação de dependência entre o lago de Itaparica e o canal leste da Transposição, pois o ponto de captação do canal faz parte de uma represa contígua ao lago de Itaparica, artificialmente produzido pela construção da Usina Hidrelétrica de Itaparica (UHE Luiz Gonzaga) durante a década de 80. A construção da UHE Luiz Gonzaga removeu diversas comunidades de seus territórios, principalmente porque a construção da barragem acarretou na submersão de diversos territórios entre Bahia e Pernambuco, desalojando cerca 40 mil pessoas ou 10500 famílias para a construção deste reservatório. A maior parte das comunidades removidas era composta por pequenos trabalhadores rurais, distribuídos entre sete municípios: do lado baiano, Glória, Rodelas e Chorrochó, do lado pernambucano, Itacuruba, Belém de São Francisco, Floresta e Petrolândia. O reservatório foi originalmente projetado para inundar 716 milhas quadradas (SCOTT, 2009, p.23). Entre as populações diretamente implicadas na submersão dos territórios descritos, existiam alguns grandes proprietários, pequenos agricultores (45,6% dos reassentados), pescadores, arrendatários e meeiros, mas também dois povos indígenas, os Tuxá e os Pankararu (Arruti, 1996: 141). Antes do dilúvio causado pelo alagamento para a construção da UHE Itaparica, em 1985, os Tuxá viviam num complexo de ilhas no rio São Francisco em torno de uma ilha principal, chamada Ilha da Viúva. Viviam da exploração da agricultura de vazante e de um pequeno Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 83

comércio de excedentes e da pesca (Sampaio-Silva, 1997: 9). Detinham o controle de seu território e mantinham relações pouco conflituosas com os brancos urbanos de Rodelas, depois de décadas de luta contra proprietários de terra que detinham o poder político na região e avançavam violentamente sobre o território indígena (Salomão, 2009: 2-4). Com a inundação da antiga cidade de Rodelas e das ilhas habitadas pelos Tuxá, a CHESF, em parceria com a FUNAI, promoveu diversos arranjos para reassentá-los em uma área, que segundo o acordo de 1987, seria de 6.050 ha. No entanto, esses acordos não foram cumpridos até hoje. O que ocorreu foi a realocação dos Tuxá em 3 territórios diferentes. Segundo Francisco Tuxá, a CHESF se aproveitou de fraturas de base familiar e dividiu os Tuxá em 3 grupos diferentes: Tuxá de Ibotirama, Tuxá de Rodelas e Tuxá de Inajá. Atualmente, a ação política Tuxá visa agregar os grupos apartados pelo processo de reassentamento promovido pela CHESF, assim como cobrar a resolução das antigas pendências dos acordos da década de 80 com a empresa. Diferente do caso Tuxá, a desterritorialização dos Pankararu não ocorreu por meio do reassentamento do povo indígena, mas somente de algumas famílias que trabalhavam nas áreas mais próximas ao rio, que foram reassentadas em agrovilas próximas à T. I. Pankararu. A maior modificação em relação ao rio, esta sim extensiva a todo povo Pankararu, foi a inundação de territórios tradicionais à etnia e a negação do acesso, pois agora o espaço seria utilizado exclusivamente para geração de energia elétrica. Talvez seja impróprio listar impactos, pois a transformação no território e na vida cotidiana dos Pankararu foi muito grande. Foi criada uma nova cidade para abrigar os trabalhadores da CHESF apenas alguns quilômetros distantes da área indígena, redes de transmissão começaram a figurar na paisagem, inclusive dentro da T.I. Pankararu, que passava a ter energia elétrica de forma gratuita, assim como a ação de uma série de órgãos assistencialistas e agências não governamentais, motivadas pela exposição da etnia (assim como dos Tuxá) como atingidos pelas barragens (Arruti, 1996: 140-141). Alguns trabalhos sobre os Pankararu apontam como territórios tradicionais foram inundados, causando uma grande modificação na cosmologia Pankararu. Principalmente em Ribeiro (1992: 30), Arruti (1996: 145, 159), Mura (2012: 156), podemos perceber como em algumas passagens narrativas sobre como a cachoeira de Itaparica – que foi alagada pelo lago de Itaparica – aparece como o local onde muitos 84 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

indígenas se encantaram. Arruti (1996: 145) ainda aponta que em suas narrativas, a cachoeira de Itaparica aparecia como o lugar do segredo da aldeia, que já havia sido modificado, pois antes se localizavam na cachoeira de Paulo Afonso, onde também passou a existir um complexo de usinas hidrelétricas (que teve sua construção entre 1954-1979). Quando Raimundo Nonato, cacique dos Tuxá de Rodelas me advertia, durante a pesquisa de campo: “Para falar dos impactos da transposição da Transposição, primeiro você tem que falar das barragens”, ele reiterava a importância do estudo das barragens, em especial a UHE de Itaparica para a compreensão da escala de mudanças que uma obra de grande infraestrutura causava na vida das populações tradicionais. Uma grande preocupação das lideranças indígenas arroladas na pesquisa está na falta de perspectiva em relação a artefatos, objetos e sítios arqueológicos que pertenciam às comunidades indígenas, em grande parte ao povo Tuxá, que foram explorados e retirados pela CHESF, quando da construção da UHE de Itaparica. Segundo meus interlocutores de pesquisa, já existiram até exposições internacionais destes objetos, mas que hoje encontram-se em posse da Chesf, “estocados sem cuidados em algum escritório”, me disse Dipeta Tuxá. Segundo alguns acreditam, será montado em breve algum tipo de coleção histórica ou museológica sobre o homem do rio São Francisco, “algo semelhante ao Museu do Homem do Nordeste, em Recife”, afirmou Álvaro Severo, produtor cultural presente na reunião. Em sua tese de doutorado, Juracy Marques dos Santos (2008) aborda a questão do patrimônio e cultura material implicados na construção do lago de Itaparica. Segundo o autor (Ibdem, p. 204-206), visto que a região do São Francisco que foi alagada guardava uma quantidade muito grande de inscrições rupestres e sítios arqueológicos, a CHESF firmou um acordo com as populações indígenas – em especial os Tuxá – para o salvamento arqueológico2. No entanto, os Tuxá não tiveram acesso ao acervo levantado na região, mas tem feito parte de sua ação política a pressão junto à CHESF para o repatriamento dessas peças, em um museu ou casa de memória no território da etnia. É fundamental perceber como populações tradicionais afetadas no projeto anterior se juntam as populações tradicionais que estão di2 Um projeto que já havia sido empreendido na construção da barragem de Sobradinho, o Projeto de Salvamento Arqueológico de Sobradinho, em 1977 (Santos, 2008: 204-206). Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 85

retamente implicadas na construção do eixo leste da transposição do rio São Francisco. Uma vivência e um aprendizado político que compõe as estratégias de resistência, antecipa a visão de diversos problemas decorrentes de grandes obras e, principalmente, informa e estabelece modos de existência destas comunidades, ou dito de outra forma, o que engrossa sua luta. Os descendentes de Serra Negra Já em 1883 é possível encontrar o relato de um capuchino italiano chamado Vital de Frescarolo a respeito dos “índios arredios” de Serra Negra. O missionário italiano informava ter participado de dois aldeamentos nas redondezas de Serra Negra, onde estariam 114 índios “Pipipãos”, possivelmente referindo-se à Aldeia do Jacaré, fundada pelo frei capuchinho entre a Serra Negra e a Serra do Periquito (Frescarolo, 1883 apud Léo, 2014). No entanto, desde o século XIX as perseguições sofridas pelos “índios de Serra Negra”, principalmente Pipipã, os levou a serem chamados de nômades ou índios errantes. Estes eram os relatos elaborados durante a década de 1950, entre outros, por Francisco Pereira da Costa e Álvaro Ferraz, principalmente sobre como tais perseguições levaram as diásporas Pipipã. Como apontado por Barbosa (2003), William Hohenthal na década de 50, faz a primeira menção aos Kambiwá, como uma pequena quantidade de pessoas que resistiram ao desaparecimento de sua etnia, os antigos Pipipã. O etnônimo Kambiwá foi somente reconhecido pela FUNAI na década de 1960, e seu surgimento é remetido ao Pajé Pankararu João Tomaz, que teria recebido em um toante, como uma expressão de “voltar à Serra Negra”. O etnônimo, contudo, não foi aceito por todo o grupo, que não o reconheciam como do “idioma dos antigos”; ainda segundo Barbosa (2003), “Kambiwá” é tornado nome do povo a partir da descrição de uma condição: sua tradução é “retorno à Serra Negra”. Barbosa (2003: 55-60) nos mostra que a cisão entre Kambiwá e Pipipã ocorre principalmente por motivações políticas. Em um momento de eleições junto à FUNAI para uma nova liderança, uma divisão entre dois grupos é motivada por uma série de acusações a uma vereadora. A principal delas, a doação de cestas básicas originalmente destinadas aos índios que são entregues aos brancos, coloca dois grupos em uma disputa acerca da sua tradição cultural. Essa informação 86 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

em um primeiro momento pode parecer que se relaciona somente a acesso a questão materiais, mas trata-se antes da relação política de grupos de base familiar. De certa forma, um grupo de base familiar não se sentia representado nas lideranças políticas Kambiwá neste momento e a separação do grupo motiva um resgate étnico aos antepassados Pipipã (que também eram antepassados Kambiwá). No caso Kambiwá/Pipipã, esta memória parece estar imbricada na questão da dispersão ou afastamento de Serra Negra. Desta forma, a criação de uma nova aldeia dentro da área indígena Kambiwá engendra disputas políticas que implicam também modos de diferenciação cultural, um faccionalismo que também é traduzido pela performance e signos que estão presentes na prática do Toré. O processo de mobilização dos povos indígenas “ressurgidos” do Nordeste é chamado etnogênese e é abordado por Oliveira Filho (1998) e por Arruti (1999). No artigo “Uma etnologia dos ‘índios misturados’: situação colonial, territorialização e fluxos culturais”, Oliveira Filho (1998) chama a atenção para o fato de que os indígenas do Nordeste não foram objeto da atenção da etnologia brasileira, constituindo-se como uma etnologia menor. Segundo o autor, além do objeto assinalado fugir da voga da antropologia no Brasil, coloca aos etnólogos paradoxos que muitas vezes parecem inescapáveis, como por exemplo, o de como abordar populações tradicionais, que reivindicam culturas ancestrais, mas que tem o “surgimento” recente. O autor nos mostra que se tomarmos a distintividade cultural radical como uma regra para os trabalhos etnológicos, que parecem trazer o distanciamento e objetividade necessários ao pesquisador, os índios do Nordeste ficam realmente fora do escopo, uma vez que nesta região os indígenas misturam-se aos sertanejos pobres – que também não tem posse de terra e não apresentam grande contrastividade cultural. A terra e até mesmo a questão fundiária aparecem como de grande importância, segundo o autor, para entender essa integração dos indígenas a outras camadas pobres da população, pois os territórios indígenas foram tomados desde a colonização no Nordeste, situação que correspondeu a um grande problema para a ação indigenista: a recuperação destes territórios tradicionais. Segundo os autores, é a partir dos atos de natureza política que os atuais povos indígenas do Nordeste aparecem como um objeto aos antropólogos, Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 87

principalmente no que diz respeito às demandas por assistência e terra. É neste contexto, segundo o autor, que vemos surgir processos de etnogênese, onde há não só a emergência de novas identidades, como também a reinvenção de etnias já conhecidas. Os Pipipã de Kambixuru se organizam em dez núcleos populacionais na cidade de Floresta e, segundo a FUNASA (2012), contam com uma população de 1.274 pessoas, apesar de os próprios Pipipã estimarem sua população em 2.050 pessoas, espalhadas pela Ribeira do Pajeú (NEPE, 2014), “os números da saúde referem-se aos indígenas aldeados” me disse o cacique Valdemir. O território atualmente ocupado pelos Pipipã em Floresta faz parte da Terra Indígena (T. I.) Kambiwá, pois o território reivindicado pela etnia já foi identificado pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 2010, mas a demarcação e titulação de suas terras ainda não ocorreu. Caso é, como me relatou diversas vezes o cacique Valdemir, as negociações acerca da transposição do São Francisco foram feitas a partir da garantia de que a construção do canal ocorreria concomitante ao desenrolar do processo de demarcação do território Pipipã, o que não aconteceu. Para o cacique Pipipã, por uma série de razões, principalmente o grande crescimento da especulação imobiliária na região que seria desapropriada e determinado descaso implicado no andamento da obra, não se avançou com a demarcação. Mais do que isso, grandes proprietários começaram a comprar ainda mais propriedades na região, com vistas aos benefícios que a obra pode significar aos terrenos aos redores. Encontrei os Pipipã na Aldeia Travessão de Ouro, à 3km de distância da rodovia PE-360, entre Floresta e Ibimirim. Essa é a aldeia central de um conjunto de 10 aldeias dentro de parcela da TI Kambiwá: Travessão de Ouro, Faveleira, Caldeirão do Periquito, Capoeira de Barro, Jiquiti, Alfredo, Pai João, Tabuleiro do Porco, Barra do Juá e Caraíba. A aldeia Caraíba é a que mais se aproxima ao Canal Leste da Transposição e à Serra Negra. Até a cobra fugiu “Até a cobra fugiu”, me disse o Pajé Pipipã Expedito Roseno acerca da construção do canal do Eixo Leste da Transposição do São Francisco. Acompanhado de dois de seus filhos, aproveitando a sombra ao pé de uma árvore à espera de uma reunião no posto de saúde indígena da Aldeia Travessão de Ouro, em Floresta, seu Expedito mostrava-se desolado com as transformações do meio ambiente, ou no “mato”, já 88 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

sentida pela construção do primeiro trecho do canal Leste que corta o território reivindicado pela etnia. Isso por que a obra da transposição não só corta o território Pipipã, mas coloca-se no pé de Serra Negra, como já assinalado, de grande importância para a comunidade. Seria de grande impacto na vida cotidiana das aldeias Pipipã se a água do São Francisco fosse disponibilizada para consumo humano. Isso por que existe um sistema de abastecimento proveniente de um poço artesiano na aldeia Faveleira. No entanto, a água amplamente consumida é salobra3. Na escola, no posto de saúde e na maior parte das residências é esta água que é utilizada no dia-a-dia, “menos aos hipertensos, por causa do sal que faz aumentar a pressão”, me advertia o Pajé Expedito. O cacique Valdemir me disse que ele faz parte de uma minoria que é contra a obra da transposição, pois sabe que essa água dificilmente vai servir para o consumo nas aldeias Pipipã. Mas me disse compreender que as pessoas sejam esperançosas, seja pela pequena oferta de alguns postos de trabalho e pela proximidade, que dá a impressão de que existirá acesso. Pior que não ofertar água insípida, segundo o Cacique Valdemir, é acabar com as únicas fontes de água doce que ficavam dentro da Serra Negra. Segundo ele, durante os dias do Aricuri não era preciso levar água, pois fazia-se uma limpeza nas fontes e a água era suficiente. No entanto, desde o começo das obras, as fontes secaram. O Cacique Valdemir, professor de ciências exatas na escola indígena, associa essa mudança às constantes dinamitações para o andar da obra, uma vez que o solo da Caatinga é rochoso. A questão fundiária que envolve a regularização do território Pipipã é muito complexa, como tentei apresentar na ao longo dessa discussão. Soma-se à morosidade na demarcação, e também às situações de conflito entre as administrações de Serra Negra, práticas cotidianas de devastação. Segundo o plano de manejo realizado pelo (ICMBio, 2011), a face de Serra Negra voltada para o município de Floresta é 3 Segundo o Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Águas disponibilizado pela Agência Nacional de Águas (ANA), a falta de dados acerca da água subterrânea na região é grande. No entanto, é sabido que em grande parte do Semiárido, os sistemas aquíferos apresentam teores de dureza, salinidade e ferro impróprios ao consumo humano. Entretanto, onde a água salobra é a única alternativa, ela é usada no abastecimento humano e em pequenas culturas agrícolas. Segundo a Resolução CONAMA 357/2005: águas doces apresentam salinidade igual ou inferior a 0,5 ‰, as águas salobras salinidade superior a 0,5 ‰ e inferior a 30 ‰ e águas salinas, a salinidade igual ou superior a 30 ‰. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 89

a que mais sofre com prejuízos da ação humana. Isso por que além da presença indígena, existem fazendas de gado, pequenos proprietários e o assentamento Serra Negra. Dentre os principais prejuízos desta ação humana sobre os recursos naturais de Serra Negra e de seu entorno, indígenas e especialistas do ICMBio concordam em afirmar que as duas práticas mais danosas são a extração de madeira e as queimadas. Sobre a extração de madeira, Nivaldo Léo Neto (2015, p. 11-12) afirma que os proprietários particulares que fazem a retirada de madeira na região têm licença do IBAMA, sob registro de uma prática extrativista inserida em um plano de manejo. A legalidade da prática incomoda muito aos indígenas da região, que afirmam que o desmatamento é produto de décadas de tentativa de os fazendeiros “limparem o terreno” para pecuária. Nas matas fechadas, como no caso da REBIO de Serra Negra, as madeiras que são extraídas apresentam grande valor comercial. Já a madeira retirada da mata nativa da Caatinga destina-se, em grande maioria, à carvoaria. A principal ameaça à biodiversidade decorrente do desmatamento de Serra Negra e de seu entorno é o prejuízo à fauna silvestre. A retirada da cobertura nativa mingua, principalmente, os locais de abrigo e alimento dos animais silvestres. A construção do canal Leste da Transposição só veio complicar ainda mais a situação de risco aos animais silvestres, como me disse Expedito Roseno: [...] essa construção mexeu com muita coisa, mexeu com caça, com abelha, passarinho. Já não bastasse a seca, a caça não acha o que comer e não tem como atravessar o canal da obra. Como faz pra reproduzir? Como o animal vai cortar aquela parte, com maquinário passando?! Até o passarinho, o papagaio, fica com medo da barulheira e não travessa pro outro lado. Até cobra tá morrendo de fome, ou fugindo. O lambu não está se reproduzindo. No trecho não tem mais nada, isso por que essa construção interrompe a passagem. Veado, peba, tá se acabando tudo. Só trouxe coisa ruim (Diário de Campo, Aldeia Travessão de Ouro, Maio de 2015).

A redução da fauna nativa para a caça, segundo o Pajé Expedito, é bem impactante ao modo de vida Pipipã: “o índio só se alimentava da caça. Quando proibiram de caçar, andar armado, o índio começou a ficar doente. Essa carne que a gente compra é cheia de doença e veneno, por isso o índio está doente!” (Diário de Campo, Aldeia Travessão de Ouro, 90 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Maio 2015). A caça é ilegal na região e também, me explicou o Pajé, o indígena não pode andar portando “nenhuma arma de fogo dentro da aldeia, nem mesmo dentro da casa”. Outro tipo de prática muito associada aos índios Pipipã e ao ambiente nativo da Caatinga é a extração do mel. Como me ensinaram alguns Pipipã, entre eles seu Inácio Francisco, a maior parte do mel hoje extraído na Caatinga não é nativo, pois as abelhas italianas (européias ou africanas) são invasoras e acabaram com grande parte das abelhas nativas, como Arapuá, Tubiba, Cupira, Sanharó e Exu Preto (as duas últimas não produzem mel). Entretanto as espécies da Caatinga que produzem mel dão origem a produtos de grande aplicação na medicina tradicional sertaneja. Quando perguntei ao Pajé sobre o uso do mel na medicina Pipipã, ele me disse ser detentor do “segredo” e que não poderia me falar. Segundo Inácio Francisco, em uma conversa sobre o que ele chama “a questão racial no Nordeste”: “o indígena tem três tradições: a caça, a pesca e o mel. A pesca nós não temos, então temos que preservar e ensinar a força das duas outras a nossos jovens e crianças” (Diário de Campo, Aldeia Faveleira, Maio de 2015). Pretendo adensar a discussão com dados da pesquisa de campo entre os Pipipã sobre a mudança em seu território e cotidiano decorrentes da obra da transposição, assim como das negociações e conflitos decorrentes da obra. Também pretendo retratar como os projetos de compensação/mitigação provenientes da obra interferem diretamente na organização social e política do grupo. Como me foi relatado, houve uma troca de lideranças Pipipã logo depois dos acordos sobre projetos compensatórios, pois a comunidade discordou veementemente os projetos acordados entre Codevaf e antigas lideranças. Para o atual Cacique, tratam-se de políticas públicas que poderiam ser feitas por outros caminhos, como editais do Ministério da Agricultura, e não projetos que provoquem mudanças significativas aos Pipipã. Já foram recebidas as algumas casas e há a promessa – que muitos desconfiam que não se realizará – da oferta de lotes irrigados para a agricultura4. 4 Parry Scott (2009) sugere a existência de um modelo de reassentamento para as populações desterritorializadas pela construção da barragem de Itaparica na década de 80, que previa a realocação de famílias em pequenas propriedades com perímetros irrigados, visando o incentivo da agricultura familiar, modelo que teve experiências extremamente desiguais, sendo que algumas famílias não receberam o lote irrigado até hoje. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 91

Cosmologia e Territorialidade Quando eu fui pra Serra Negra, Eu passei lá no Pau Ferro Eu fui direto ao Pau Alho Lá na mata do Ventador. Olha o Toré dizendo!5

A estreita relação da comunidade Pipipã com Serra Negra se traduz por meio de um cotidiano narrado através de analogias de pertencimento, grande ligação, profundo apreço e vasto conhecimento da biodiversidade, dos encantos e segredos presentes em seu território. Esse modo de se pensar se traduz em diversos contextos, seja no cotidiano, na escola Pipipã ou até mesmo através de uma conversa com uma liderança política. Narrada como morada “dos antepassados” e “encantados de luz”, a importância de Serra Negra aos Pipipã é ao mesmo tempo cosmológica e sociológica. Isso porque existe a utilização de espécies de fauna e flora em sua medicina tradicional e também a prática da caça, como já citado, muito associada ao cotidiano do grupo, mesmo que por enquanto suspensa por conta da legislação ambiental. No entanto, Serra Negra não é o único território a ser descrito como detentor dessa relação com os Pipipã, a Serra do Periquito também é narrada como de grande importância ao grupo, apesar de apresentar uma ecologia que não se diferencia muito da mata nativa da Caatinga, como me diziam: “lá tem madeira que tem em Serra Negra, como é o caso da Massaranduba. Mas a maior parte é diferente”. A Serra do Periquito localiza-se próxima a aldeia Travessão de Ouro, dentro da TI Kambiwá, morada de muitos encantos e também de caça, segundo relatos, muito mais escassas nos últimos anos por conta da seca. Segundo seu Inácio Francisco, esse é o caso do Tamanduá e do Tatu Bola “que não aparecem há mais de 20 anos”. Diferente da maioria das espécies de árvores nativas da Caatinga (Faveleira e Imburana de Cheiro, por exemplo), Serra Negra guarda espécies de árvores de grande porte, sendo duas delas de grande importância para os Pipipã. O Pau Alho é retratado em diversos trabalhos nas escolas visitadas, e entusiasticamente relatado como uma árvore capaz de abrigar até 17 adolescentes em seu interior, pois trata-se de 5 Toante Pipipã reproduzido por Arcanjo (2007). 92 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

uma árvore oca. Além do deslumbre pelo tamanho, esta árvore também tem grande importância na medicina tradicional Pipipã, como de relatou Inácio Francisco: O Pau Alho, também é chamado de Pau do Oco, está bem viva! Vai saber quantos séculos tem e tá vivinha. A casca é um bom remédio para febre, dor de garganta, gripe. É como se fosse alho, o cheiro é o mesmo que do alho. Digo cheiro por que não é fedor não. Se é da natureza é cheiro e não fedor. Mas lá tem muitas árvores pra fazer remédio. A única espécie que não faz remédio é a Algaroba. Ela é uma invasora. Mas cada planta tem seu segredo, seu remédio (Diário de Campo, Aldeia Faveleira, Maio de 2015)

Trabalho escolar retratando as árvores de Serra Negra.

A partir da interpretação das letras dos toantes do Toré, Arcanjo (2007: 71-72), defende que Serra Negra é o “epicentro” da cosmologia Pipipã. O autor afirma que a busca pelo “Ser Pipipã” está permeado por uma “etnobotânica Pipipã”, sendo as plantas do território marcos identitários, como o Pau Alho e o o Pau Ferro, mas também a Mata do Ventador e o Pé de Coité. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 93

A outra árvore que me foi citada como principal de Serra Negra é o Pau Ferro, de incidência ainda entre a mata baixa da Caatinga, é a marca do principal terreiro6 de Toré “Pau Ferro Grande dos Índios”, ao sopé de Serra Negra. Neste terreiro se encontra o Cemitério dos Antigos, e é o espaço onde se performa o Toré durante o Aricuri, ritual anual dos Pipipã que é realizado em Serra Negra. O Aricuri é realizado ao longo de dez dias do mês de outubro, onde se realiza o Toré todas as noites. O ritual se passa em dois ambientes distintos: o terreiro Pau de Ferro, onde se perfoma o Toré, permite-se a entrada de convidados não-indígenas e é onde permanecem mulheres e crianças durante o ritual; e a mata, restrita aos homens, onde um grupo de escolhidos pelo Pajé o acompanham para buscar o segredo no ponto mais alto da Serra. Segundo me disse seu Inácio, é melhor que só Pipipã acompanhe a ida até a mata, pois: o branquinho dos olhos azuis vai saber do sangue? Ele pode levar uns sopapos e ter que saber lidar. E daí, como ele vai ter os ensinamentos? (...) Então lá em cima com o Pajé são só os escolhidos. A partir dos 12 anos, pode fazer o acompanhamento, mas com o conhecimento do Pajé. É ele quem pode dizer ‘não é hoje não, não vá’ ou ‘não faça o ritual por que está muito pesado’. Mesmo os filhos dele, só ele é que diz quem vai. A força maior é o segredo do Aricuri. Não tem mais história daí pra frente, a história fica pra natureza.

Segundo Arcanjo (2003: 72), a vivência do Aricuri é a expressão maior da religiosidade Pipipã, vista como uma prática herdada dos antepassados, com um simbolismo imbricado no retorno ao ventre materno da etnia, referido como o oco de uma grande árvore localizada no cume da serra. Este é o único intervalor em que os Pipipã tem autorização do acesso à Serra Negra, o lugar que servia de morada aos antepassados e onde sua ancestralidade se eterniza através dos Encantados (Arcanjo, 2003:126). Após os conflitos com o ICMbio, o ritual só pode ser feito com a supervisão e fiscalização oficial. Inácio Francisco trabalha na escola, e além de fazer um trabalho de liderança, é detentor de muito conhecimento acerca das espécies vegetais 6 Terreiro é o espaço onde se realiza o Toré entre os Pipipã. O terreiro Pau Ferro só é utilizado como prática ritual durante o Aricuri, por conta das negociações entre a etnia e o ICMBio. Além dele, existem outros 3 terreiros, sendo dois na aldeia Travessão de Ouro e um na aldeia Caraíbas. 94 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

e dos segredos guardados em Serra Negra. Na aldeia Faveleira, trabalha como zelador e professor de cultura indígena. Ele teve tinha muita paciência para me ensinar as particularidades da cultura Pipipã, de certa forma me pareceu um detentor da cultura tradicional e talvez o responsável por transmitir esse conhecimento ao pesquisador, assim como o ensina às crianças Pipipã. O professor demonstra grande preocupação com o futuro, pois já vê muito a mudança geracional dos antigos para hoje. Acerca do meio ambiente e das mudanças na biodiversidade, afirma que o que mais o preocupa é que as crianças Pipipã talvez não cheguem a conhecer as espécies do seu território. Inácio me levou a algumas salas de aula e pediu para que as crianças conversassem comigo em seu idioma, com algumas palavras reconstituídas. “Os caciques mais velhos diziam ‘tem a língua? Não deixem se acabar’”, me dizia orgulhoso por seu trabalho com as crianças. Sobre a melhor forma de ensinar as novas gerações, seu Inácio me diz: A melhor forma é intermediar pela educação. Durante o Aricuri, as escolas fecham os 10 dias e leva os alunos pra Serra Negra para trabalhar a questão tradicional com eles lá. No dia 12 de outubro nós batizamos as crianças, é muito bonito, os pequenininhos são batizados com o símbolo da cruz na testa com a pedra toá.

Os professores das escolas indígenas Pipipã com quem eu conversei eram unanimes em dizer que a escola ganhava muito com todo o quadro formado por profissionais Pipipã. Me diziam isso por que acreditavam que esta condição os colocava a possibilidade de trabalhar elementos da cultura Pipipã em todas as disciplinas, e não só nas aulas de cultura indígena, como ocorre em outros povos de Pernambuco. O cacique Valdemir me disse que o maior desafio é colocar temas da cultura Pipipã em matérias como matemática, química e física, mas que mesmo assim isso era possível com um pouco de criatividade dos professores. Outro ponto comemorado pelos professores é a possibilidade de colocar os 10 dias de Aricuri no calendário escolar, fato concebido como uma vitória, pois é uma maneira de inserir a cultura tradicional na escola Pipipã. Além do papel da escola, me diz Inácio, existe os ensinamentos que cada um deve seguir em sua conduta particular, o que ele chama de respeito. Principalmente com os adolescentes, me adverte ele, precisa-se de um trabalho que ensine que os rituais sagrados se dão em lugares Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 95

que exigem respeito. O respeito seria obedecer algumas interdições, que para os Pipipã precisam ser respeitadas para que não se tenha problemas com a saúde de todo povo. Se não há respeito, explica-me o professor Inácio, sabemos que virão doenças e que elas vão afetar, principalmente, as crianças. As principais interdições são acerca das relações sexuais e da menstruação. Não se pode manter relações sexuais nos dias do Aricuri, mesmo aquelas pessoas que são casadas, por respeito ao lugar sagrado. Também ressaltam a importância de que as meninas saibam desde adolescentes que a mulher menstruada não pode passar no meio do terreiro, tendo que ficar somente nas laterais ou no acampamento durante o Aricuri. Segundo Inácio, é tarefa da mãe da família ensinar para as filhas que é preciso se tomar cuidado com esta interdição. Fora do Aricuri, o Toré é praticado a cada 15 dias entre os Pipipã, aos sábados no pôr do sol. Nas casas Pipipã, é comum estarem bem visíveis os acessórios utilizados na performance, pendurados ao alto de uma parede. Barbosa (2003) e Arcanjo (2003) propõem um estudo mais aprofundado da prática do Toré entre os Pipipã, pois esta prática estaria no centro do processo de ressurgimento da etnia. Como apontado em Barbosa (2003), o Toré está imbricado em um momento de cisão política e social entre os Kambiwá, que motiva o faccionalismo e o ressurgimento da etnia Pipipã7, iniciado em uma crise na Terra Indígena Kambiwá8 em 1998. O evento de ruptura entre Kambiwá e Pipipã ficou marcado pela queima dos acessórios utilizados pelos Kambiwá durante a prática do Toré, as maracás e cataiobas e a recusa a prática de Toré com as vestes e símbolos conhecidos como “dança dos Praiás” (Arcanjo, 2007: 68), característico dos Kambiwá que os liga aos Pankararu. É importante lembrar que para Arruti (1999), entre os indígenas do Nordeste, o Toré não aparece como uma forma de padronização cultural, ou dito de outra forma, não se trata de uma prática cultural homogênea, mas uma forma política de produzir e reelaborar sua própria memória e cultura: 7 Interessante notar, como aponta Arcanjo (2003), que entre os índios “ressurgidos” do Nordeste, que teriam sua origem revelada durante os rituais, os Pipipã assumem um etnônimo existente na literatura, assumindo uma identidade que ressurge de um povo considerado extinto. 8 Homologada em 1998, a Terra Indígena Kambiwá compreende um território entre os municípios de Inajá, Ibimirim e Floresta. Já funcionava como Posto Indígena em 1971, que coordenava 5 aldeias centralizadas na baixa da Alexandra (Pereiro, Tear, Serra do Periquito, Faveleira e Serra Negra). 96 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

[...] transmitir a semente e ensinar o Toré não implicam o simples ensino de uma coreografia, nem o “resgate” de uma tradição, por motivos de preservação cultural. Trata-se da transmissão de um conhecimento de natureza mágica. A semente é o primeiro “caminho até os Encantados”, que o tronco velho dá ao grupo emergente. Caminho que a “ponta de rama” perdeu ao longo das sucessivas misturas a que foi submetida. Depois de recebida a semente, cabe ao grupo emergente descobrir o seu próprio caminho e seu próprio segredo, isto é, a forma de acesso e de produção de seus próprios Encantados, fulcro da identidade do grupo. Ensinar o Toré, portanto, não implica a simples disseminação de uma semelhança, mas também a possibilidade de produzir diferenças (Arruti, 1999: 33)

O texto aponta o Toré como uma instituição unificadora e comum, que transmitido de um grupo a outro por meio de visitas de pajé e coadjuvantes, vira a marca oficial das comunidades para serem reconhecidas como indígenas. O que podemos entender, do caso Pipipã é como também as diferentes formas de se perfomar o Toré também pode implicar conflito, afastamento e cisão. Um outro elemento muito importante de ser analisado sobre a prática do Toré entre os Pipipã é o uso e estatuto da Jurema em seu ritual e em sua cosmologia. A Juremeira (acácia hosilis, mimosa nigra, etc) é uma árvore utilizada para a composição de elementos associados ao ritual. De sua madeira se faz bordunas, quaquis9 e os cruzeiros existentes em cada terreiro. Já de sua raiz, prepara-se de uma bebida ritual, chamada “vinho de Jurema” ou “água de Jurema” (Arcanjo, 2007: 72). Marcos Tromboni Nascimento (1994) acerca de uma pesquisa com os Kiriri no sertão da Bahia, propõe o conceito de “complexo ritual da jurema” para tratar sobre a relação entre povos indígenas que partilham de um processo histórico comum e fazem o uso ritual da Jurema preta. Retomando as proposições de Stengers e Latour acerca de uma “cosmopolítica”, posteriormente trabalhadas em contextos etnográficos recentes, minha proposta é analisar o conceito em profundidade para tentar melhor retratar o caso dos Pipipã de Kambixuru. Por ora, é interessante discutir como o termo é tratado genericamente para que se faça claro quais as diferenças no caso Pipipã para qual proponho um maior investimento analítico. 9 Bordunas são um tipo de lança e quaquis são cachimbos, ambos artesanais feitos de madeira. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 97

Stengers (2003) ao colocar sob suspeita a própria forma de produção de conhecimento, coloca o termo cosmopolítica para pensar na relação de entes que não partilham de uma mesma natureza ou não estão listados em uma mesma classificação. O termo é proposto, então, para descrever a política entre seres de diferentes naturezas e, principalmente, como os homens traçam relações com outros coletivos e seres não-humanos. Latour (2004), seguindo esta sugestão de Stengers, emprega o termo para pensar que os humanos não praticam somente a política entre humanos e que o cosmo não se trata de um a priori, mas de uma esfera que está em constante relação política entre entes e seres. Lima (2012) coloca que a cosmopolítica não deve ser pensada como só como uma extensão entre homem, plantas e animais, sendo necessário ver que existe dentro do conceito demarcada uma diferença. Essa diferença, ressalta a autora chamando a atenção ao perspectivismo ameríndio, não seria de grau, mas de ponto de vista. Retomo o conceito de Gallois (2002), já discutido anteriormente, de que a territorialidade indígena deve ser pensada imbricada na dimensão sociocultural em que a terra se encontra. Também nos estudos rurais, assim como abordado em trabalhos como o de Pietrafesa (1997, 1999), Sigaud (1992) e Woortmann (1995), a noção de território é ao mesmo tempo prática e simbólica, pois é articuladora do espaço onde se desenrola a vida social e a memória familiar de uma dada população10. O que busco é retratar quais são as formas de relação entre os Pipipã, Serra Negra e seus diversos habitantes como uma cosmopolítica ou cosmologia imbricada em sua territorialidade. De acordo com a literatura disponível e minha pesquisa de campo, o que procuro é propor que a existência Pipipã é inseparável da relação que mantém com o meio ambiente; a ecologia aparece como essencial não só para a manutenção do território e das práticas tradicionais, mas também é compositora da corporalidade individual e coletiva. Ao colocar em prática sua forma de proteção ao meio ambiente, os Pipipã pretendem conservar a si e a seu modo de vida, que ora diverge das recomendações dos órgãos de proteção ambiental, ora não. Outro ponto essencial desta cosmologia, e que me parece ser abrangente a outros povos indígenas da região, é que as moradas de encantados ou o local escolhido pelos encantados de 10 Woortmann (1995) chega a dizer que o território é ao mesmo tempo a unidade de produção familiar, mas também a unidade de reprodução familiar, ou seja, a importância extrapola apropriação econômica, significando um pertencimento genealógico. 98 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

luz normalmente refere-se a ambientes nativos ou intocados de determinado bioma. Dessa forma, esses seres cosmológicos não apresentam uma existência em outro plano, dimensão ou mundo metafísico. Compartilhando de uma mesma paisagem, o risco território reverberam na dimensão cosmológica e tais implicações agem diretamente sobre o corpo do indígena (normalmente traduzido em saúde e doença).

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território de pesCa do baiXo vale do itaJaí e tiJuCas: organização polítiCa autônoma e ConsCiênCia CrítiCa

dAuto J. dA silveirA Introdução Discutiremos, neste artigo, essencialmente, a natureza do processo de implantação do Plano de Desenvolvimento Sustentável Mais Pesca e Aquicultura (PDSMPA) no Território do Baixo Vale de Itajaí e Tijucas (TBVIT) de Santa Catarina e as implicações deste para a consciência crítica dos pescadores artesanais. É mister evidenciar que a evolução dos processos de tomada de decisão dos pescadores artesanais está a demonstrar que a autonomia das suas organizações é produto do fortalecimento das instituições e serviços do Estado brasileiro. Ainda que a solidez destas organizações autonômas estejam mediadas pelos fios invisíveis do capital é possível dizer que elas se arranjam negando a ordem social capitalista. No caso de análise, as formas de lutas emancipatórias nasceram, não só das impossibilidades históricas enfrentadas, mas, contraditoriamente, do processo de fortalecimento institucional, como a Superintendência de Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE) e o Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), por exemplo. O curioso é que o cenário institucional, criado para a sorte dos envolvidos, simultaneamente, engendrou formas indescritíveis de regurgitamento. É possível, dentro da ordem capitalista, instituições sociais serem duas coisas ao mesmo tempo? No presente trabalho tentaremos tocar nesta questão. Para além dela, outros questionamentos serão feitos, quais sejam: i) qual a relação entre as lutas sociais, enquanto forma de consciência, e as condições materiais dos pescadores artesanais?; ii) na antinomia da sociedade capitalista é possível relacionar o fortalecimento dos fios sociais à concentração e centralização da riqueza? e iii) é possível identificar, no Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 103

interior das lutas sociais, o componente concreto, enquanto um salto teleológico à emancipação? O tema das lutas emancipatórias do pescador artesanal tem um significado todo especial no tempo presente. Se não bastasse a desvalorização material a que estão submetidos, há ainda um aviltamento colossal penetrante. Em boa verdade, encontramos essas duas expressões circunscritas ao modus vivendi dos povos vulneráveis em qualquer canto do mundo, mas, no Brasil, a compreensão que temos é que para este grupo social de desconhecidos singulares, cuja preterição sempre foi tão latente, o fortalecimento dessas lutas ganha outra coloração social. Para aprofundarmos a nossa análise é lícito apresentar a natureza do processo de implantação do PDSMPA no TBVIT. A partir da exposição deste processo mostraremos como se deram as lutas populares e as organizações políticas destes pescadores artesanais. Identificação do território da pesca e aquicultura O PDTPA diz respeito a uma das seis diretrizes do PDSMPA, implementado no governo Lula em 2007. No cerne desta diretriz estava a tentativa de criar um instrumento através do qual fosse possível obter informações privilegiadas das regiões a facilitar o “processo de tomada de decisões de forma participativa, de monitoramento e de orientações gerais do setor”, conforme alude o Seap (2009, s/p). Como se tratou de algo realmente “novo”, dentro de um ministério embrionário, as tentativas de ampliar a participação social e de descentralizar os processos de decisão sofreram com a falta de articulação entre as esferas de governo e com as incompetências dos envolvidos. Segundo consta nos documentos oficiais do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), a missão do Plano de Desenvolvimento Territorial da Pesca e Aquicultura (PDTPA) seria de promover o desenvolvimento sustentável, integrando as atividades pesqueiras e aquícolas praticadas no TBVIT, possibilitando a implementação, elaboração e construção de programa e projetos com benefícios sociais e econômicos para o setor, visando o bem-estar de todos (MPA, 2010b). De tal sorte, foram criados no Brasil 174 territórios da pesca. Segundo o MPA (2010, s/p) os critérios para identificação dos 174 territórios foram: a) Recortes territoriais de outras políticas e programas federais e estaduais; b) Áreas prioritárias da agenda social do Governo Fe104 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

deral (Territórios da Cidadania e Povos e Comunidades Tradicionais); c) Registro Geral da Pesca (RGP); d) Infraestruturas de apoio à cadeia produtiva instalada com recursos do MPA; e) Territórios com previsão de implantação de Terminal Pesqueiro Público (TPP); f) Territórios com previsão de implantação de Parque Aquícola (continental ou marinho); g) Territórios com previsão de implantação de Centro Integrado da Pesca Artesanal (Cipar).

A formação dos 174 territórios ao longo do Brasil obedeceu a critérios bem definidos de importância da pesca. Neles, segundo dados da Seap (2008), estão presentes 89,8% dos pescadores cadastrados no Registro Geral da Pesca (RGP), 80% das áreas de alta incidência de aquicultura continental, 100% das áreas com potencial para atividade de maricultura e 85% dos reservatórios com potencial de aquicultura. Os territórios integraram 1.886 municípios e envolveram 586.090 pescadores artesanais. Caracterização do território do Baixo Vale de Itajaí e Tijucas É oportuno esclarecer que nem todos os territórios foram contemplados ao mesmo tempo pelas ações do MPA. Dos 174, apenas 62 foram atendidos, sendo que em Santa Catarina, dos sete configurados (Território Baixo Vale de Itajaí e Tijucas, Território Grande Florianópolis, Território Litoral Sul, Território Meio Oeste Contestado, Território Litoral Norte, Território Oeste e Extremo Sul) apenas os quatro primeiros foram atendidos imediatamente. O objeto de preocupação da nossa pesquisa será o Território do Baixo Vale do Itajaí e Tijucas, composto por 14 municípios: Balneário Camboriú, Bombinhas, Camboriú, Canelinha, Itajaí, Itapema, Major Gercino, Navegantes, Nova Trento, Penha, Piçarras, Porto Belo, São João Batista e Tijucas (Figura 1).

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O território ocupa uma área total de 2.340 km², o que significa 2,46% da área do Estado de Santa Catarina. Apresenta uma população de 615.552 habitantes, o equivalente a 10,15% da população estadual (IBGE, 2010). As duas maiores cidades do TBVIT são Itajaí e Balneário Camboriú, com populações de 183.373 e 108.089 habitantes, respectivamente. As duas cidades que mais possuem residentes em áreas urbanas são Bombinhas e Balneário Camboriú, com 100% da população. 106 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Já as duas menores cidades são Major Gercino e Nova Trento, com populações de 3.279 e 12.190 habitantes, respectivamente. As que possuem os menores percentuais de residentes em áreas rurais são Itapema e Camboriú com 2,49% e 5,02% da população, respectivamente (Tabela 1). Tabela 1 - População residente por situação de domicílio

Fonte: IBGE, 2010 (adaptado pelo autor)

É oportuno salientar que o município de Itajaí apresenta o maior porto marítimo de Santa Catarina, produzindo uma grande influência em todo o setor pesqueiro circunscrito. Entre Itajaí e Penha há o porto de Navegantes, também responsável pelo desenvolvimento na região territorial. Mesmo recebendo influências diretas, dos dois pólos portuários acima, é perceptível a imagem de mundo artesanal da cidade de Penha. Isso pode ser reparado nos nomes das casas comerciais, o desenho humano ao longo das praias, na beira das quais é expressivo o derrame de canoas de “boca aberta” e, especialmente, na quantidade de pescadores artesanais nas quatro principais praias da cidade: Armação, Gravatá, São Miguel e Alegre. Há no território 2.866 pescadores artesanais1, dos quais 857 (29,9%) pertencem ao município de Penha, 578 (20,1%) ao de Bombinhas, e 529 (18,4%) ao de Porto Belo. O número de pescadores artesanais nos 1 Este número corresponde a 10% do total de pescadores artesanais do Estado de Santa Catarina. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 107

municípios de Itajaí, 50 (1,74%), e de Navegantes, 114 (3,97%), é ínfimo em relação aos de Penha, conforme tabela a seguir. Tabela 2 - Distribuição dos pescadores artesanais do TBVIT, por município

Fonte: MPA, adaptado pelo autor

Os municípios, onde a população residente na área rural é maior que 25% (Canelinha, São João Batista, Major Gercino e Nova Trento) o número de pescadores artesanais cadastrados no RGP é muito baixo. Na cidade de Major Gercino e Nova Trento, por exemplo, sequer há registro de cadastrados. Outro cenário passível de observação refere-se a Balneário Piçarras, uma cidade litorânea inscrita na rota de pesca artesanal e cultural catarinense, com 55 pescadores artesanais cadastrados. Isso nos revela que estamos a perquirir um território de muita disparidade, não só da pesca artesanal, como também econômica, social, cultural. Se é verdade que a organização do Estado catarinense feita pela Seap (2009) por meio de territórios da pesca, levou em conta a expressão regional (o que em tese daria robustez à política territorial) não é menos verdade que as assimetrias encontradas na maioria das cidades produziram um cenário conflituoso. De tal sorte que Itajaí e Navegantes, assentadas sobre um considerável avanço de negócios portuários, urbanos, turísticos e navais, depositaram forças maiores e mais decisivas na ordem das coisas. Nas quatro cidades onde a influência rural é 108 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

maior, a política territorial estava voltada unicamente ao parco setor da piscicultura. Ou ainda, nas cidades com força preponderante da pesca artesanal, como é o caso de Penha, Bombinhas e Porto Belo, a expressão das políticas públicas giraram em torno de melhorias isoladas, o que descaracterizou o eixo normativo central da política territorial. A política territorial, ao levar em conta a identidade da pesca de forma geral e a importância da pesca artesanal e da aquicultura, como forma de renda e emprego, não mensurou os desdobramentos que uma ação institucional como essa pudesse provocar em quem vive de tais atividades. Os dados alusivos aos pescadores profissionais industriais demonstram a importância que tem a atividade para os maiores municípios do território. Se somarmos os municípios com maior potencial de pesca artesanal do território, tais como Penha (851), Bombinhas (261) e Porto Belo (226), mesmo não havendo estruturas portuárias de beneficiamento e comercialização pesqueiras, o número de pescadores industriais é significativo. Os dois municípios com maiores pescadores profissionais são Itajaí e Navegantes com 1510 e 1338 pescadores, respectivamente. Esses números são diretamente proporcionais à infraestrutura estabelecida nessas cidades, ou seja, não raro, esses municípios são responsáveis pelo grande volume de pescados capturados em Santa Catarina. Planejamento e implementação do Território Baixo Vale de Itajaí e Tijucas: qual o vínculo com o mundo da Pesca Artesanal? Como dissemos os Territórios tornaram-se instrumentos mediante os quais houve a conexão entre as três esferas nacionais e a partir dessas pretendeu-se criar um aparato que propiciasse a criação de alternativas às contradições sociais da pesca e a leitura mais pormenorizada do corpo pesqueiro. No TBVIT, esta forma de atuação resultou em um Relatório sobre a situação da pesca. O Relatório foi produto das atividades desenvolvidas in loco com todos os envolvidos do setor pesqueiro. Para dar início às atividades do Território da Pesca foi necessário a realização de “Oficinas de Capacitação da Equipe Técnica” composta por articuladores e assessores de gestão ambiental. As oficinas foram realizadas em Brasília, no mês de abril de 2009, onde foram discutidos os conceitos básicos e a metodologia que seria utilizada no decorrer do processo de construção da Política Territorial. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 109

Uma vez realizado a oficina coube à “Articulação Territorial” visitar as instituições públicas com gerência no território, as entidades representativas do setor, as organizações civis com atuação voltada ao setor aquícola e pesqueiro e as instituições vinculadas a área ambiental e social. Além dessas atividades embrionárias, houve também visitas às empresas com inserção na cadeia produtiva do pescado cujo objetivo era apresentar o Plano e solicitar a participação nas Oficinas Estaduais. Todo este esforço possibilitou a criação do Colegiado da Pesca e Aquicultura (espaço onde foram debatidos os problemas mais profundos do setor e as deliberações das possíveis soluções da referida política). Em seguida foram realizadas quatro oficinas territoriais, com as seguintes temas: a) alinhamento conceitual e metodológico, b) aprofundamento das discussões sobre os diagnósticos e o plano de desenvolvimento sustentável, c) gestão social da pesca e aquicultura e d) planejamento territorial da pesca e aquicultura. O objetivo destas oficinas foi produzir um diagnóstico qualitativo sobre a situação da pesca no Vale Baixo do Itajaí e Tijucas e, para tal fim, foi necessário a participação dos órgãos estatais e demais entidades convidadas. A gestão da PDTPA configurava-se da seguinte forma: a) no âmbito federal, coube à Seap, ao Comitê Executivo das Ações Territoriais (CEAT) e ao Conape presidirem a área executiva; b) no âmbito estadual coube ao Comitê de Articulação Estadual do Programa Territórios da Cidadania coordenar as discussões das políticas para o setor e c) no âmbito municipal coube às instituições envolvidas, criarem o Colegiado Territorial da Pesca (órgão que aproximaria todos ao espírito da política territorial). Colegiado Territorial da Pesca: a tentativa de democratizar as políticas públicas do setor pesqueiro Dado a ligeira experiência das ações políticas do Colegiado no território estudado não será possível fazer um balanço profundo sobre a sua natureza. O que sabemos é que o Colegiado foi um órgão criado durante a implementação do território, mas que a instabilidade institucional das três esferas de poder sorveram a força política e institucional do mesmo. Isso nos revela o inarmonia existente entre os direcionamentos políticos institucionais e o estado de coisas culturais que rondam o mundo da pesca artesanal. O fato do colegiado ter sido uma criação do ministério, portanto uma política exógena, pode ter sido a razão do desmantelamento do território. 110 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Esse tipo de problema já estava colocado na experiência dos territórios rurais na década de 1990, razão pela qual Favareto (2010: 32 e Ss.) demonstra que “a larga maioria dos casos mostrou que a dinâmica e a agenda dos colegiados territoriais era pautada pela elaboração e negociação dos projetos do Proinf, substituto do Pronaf-Infraestrutura”. De toda sorte o colegiado do território, ora estudado, tinha caráter permanente de articulação, proposição, elaboração, discussão e avaliação das ações e projetos junto ao MPA. Caracterizou-se por ser um órgão que carregava os setores mais importantes da pesca, como podemos acompanhar no quadro apresentado na página seguinte. Fica claro, que o Colegiado da Pesca, enquanto instrumento por meio do qual as políticas territoriais manifestavam-se, se apresentou difuso: juntou todas as instituições envolvidas com a pesca na região do Baixo Vale de Itajaí e Tijucas. Se é verdade que os Territórios da Pesca foram criados especialmente para serem organizações que permitissem o desenvolvimento político, cultural e produtivo dos pescadores artesanais de uma região pesqueira, não é menos verdade, que da maneira como se constituiu os interesses antagônicos seriam um possível entrave.

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Quadro 1 - Colegiado da Pesca do Território do Vale do Itajaí e Tijucas

Fonte: MPA, 2010b

Fica claro, que o Colegiado da Pesca, enquanto instrumento por meio do qual as políticas territoriais manifestavam-se, se apresentou difuso: juntou todas as instituições envolvidas com a pesca na região do Baixo Vale de Itajaí e Tijucas. Se é verdade que os Territórios da Pesca foram criados especialmente para serem organizações que permitissem o desenvolvimento político, cultural e produtivo dos pescadores artesanais de uma região pesqueira, não é menos verdade, que da maneira como se constituiu os interesses antagônicos seriam um possível entrave. 112 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

A extinção dos Territórios da Pesca: problemas de ordem institucional ou contradições do real? Se considerarmos que as políticas públicas implementadas no território apresentaram um caráter mais conjuntural do que estrutural, ou seja, se elas não organizaram os pescadores em torno de questões fundamentais, é possível compreender a inconsistência delas para o cotidiano dos pescadores artesanais. Essas ações governamentais não conseguiram superar: i) os problemas existentes entre os pescadores e as colônias, sequer fomentaram a necessidade de fortalecimento desses espaços ou ainda a criação de novos espaços em torno dos quais os pescadores artesanais pudessem engendrar formas de entendimento acerca das suas condições existenciais e ii) a subjugação entre as colônias e associações de pescadores e as superintendências nos Estados e no MPA. As condições de manutenção das colônias, por exemplo, são extremamente precárias, com baixa participação dos pescadores artesanais nos rumos políticos e com um corpo administrativo olimpicamente limitado para uma demanda profunda. As mesmas condições são vistas nas associações de pescadores e ainda nas limitadas secretarias estaduais e municipais. Para além destas cores adversas há o conteúdo “conceitual”, uma espécie de espírito ingênuo que ordena o âmbito intelectivo/político dessas instituições. Isso se traduz na forma pela qual elas enfrentam os problemas do pauperismo social dos pescadores artesanais. Esse cenário é visível em todos os municípios do território em que há colônia de pescadores ou outra instituição representativa. No de Penha, por exemplo, nem a Colônia Z-5, nem a Associação participaram da construção do território da pesca. Independentemente da baixa capacidade organizativa dessas instituições o que queremos destacar é que a política territorial pesqueira no TBVIT não se desenhou enquanto ações supremas em torno das quais o pescador artesanal pudesse se envolver consistentemente. O caráter conjuntural dessa política, somado ao que vimos acima, foi o vento que moveu as águas dessa participação. Devemos dizer que em Penha a participação dos pescadores artesanais junto à colônia e à associação reduz-se à satisfação dos seus interesses organizativos imediatos, como: regularização das carteiras de pescador, licença para as embarcações, cadastro no Registro Geral da Pesca (RGP) e na previdência social e orientações sobre o seguro defeso, conforme acompanharemos nos gráficos abaixo. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 113

Além disso, há outras duas razões para explicarmos a extinção dos territórios da pesca no TBVIT. A primeira se refere à instabilidade institucional do MPA, ou seja, a política territorial foi criada durante a gestão do ministro Altemir Gregolin, em 2006 e não houve continuidade nos ministérios seguintes. Assim que a candidata Dilma Roussef assumiu a presidência em 2011, a culminar com a mudança de ministros, a política territorial deixou de fazer parte do corpo de políticas públicas e outras ações foram desenvolvidas. Segundo a Superintendência de Pesca e Aquicultura de Santa Catarina a política territorial sequer fez parte dos ministérios que sucederam o de Altemir Gregolim. Além da descontinuidade, observamos um outro aspecto estrutural, qual seja, o caráter empresarial e profissional das políticas públicas. Se entendermos que para serem consistentes as políticas públicas deveriam começar do empírico ao institucional, tornando os sujeitos envolvidos determinantes no processo de transformação social, as que foram instaladas pelo MPA foram meras formas conjunturais. Esse é o caráter alheio das políticas públicas do MPA, ou seja, o fato delas não partirem dos sujeitos subalternos envolvidos diretamente, provocou um estranhamento absoluto. Não estamos a negar, com isso, que elas não foram planejadas e realizadas, como podemos ver na tabela abaixo. O que queremos dizer é que a forma limitada, exterior, sem a participação efetiva dos envolvidos, com que elas se arquitetaram foi o motor da sua desestruturação. A outra razão pode ser compreendida a partir do Relatório (2010) realizado pelo MPA e com apoio do Instituto de Estudos e Assessoria ao Desenvolvimento (CEADES) em que diz que o colegiado ao unir setores com interesses tão contraditórios não alcançou o desenvolvimento esperado. Era assim que os interesses dos setores industriais e aquícolas eram confrontados com os interesses dos pescadores artesanais. Além disso, as reuniões de organização e tomada de decisões do colegiado eram centralizadas e realizadas em um único município. Este fato fazia com que outras instituições de municípios vizinhos não pudessem comparecer, pois se tratam de organizações comunitárias a viver em estado de fragilidade orçamentária, administrativa e participativa. Por último, mas não menos importante, devemos arrolar neste rol de razões o transplante operado entre as concepções de território. O implantado no MPA foi resultado da decisão de transplantar o modelo, ainda em construção dos Territórios da Cidadania do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). O que impulsionou esta medida foi, fun114 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

damentalmente, a possível similaridade com que se encontravam os sujeitos envolvidos. Os trabalhos desenvolvidos, especialmente na década de 1980, já gravitavam em torno desta problemática a destacar a origem dos pescadores artesanais. No litoral catarinense, não raro, é desaconselhável pensar na figura do pescador sem pressupor o pescador-lavrador, conforme vimos no capítulo primeiro deste trabalho. Se formos mais a fundo na história poderemos destacar que a pesca era uma atividade secundária do pequeno agricultor, limitada a períodos de safra. Foi em razão da crise das atividades agrícolas litorâneas de meados do século XX, sobretudo, que os camponeses migraram, integralmente, às atividades do mar. Portanto, as reminiscências teóricas somado as condições de vida destes pescadores artesanais e as potencialidades produtivas da aquicultura e da indústria coadunaram para a instalação da política territorial. No mesmo sentido, o governo do PT é caracterizado por uma articulação institucional capaz de ocultar os conflitos de classes. É muito fácil observar a amarração estrutural da política econômica aos interesses do capital especulativo, razão pela qual nenhuma política territorial, profundamente articulada às demandas populares, pudesse se processar eficazmente. Essa realidade é alusiva ao dois mandatos do presidente Lula e, até o momento, ao mandato da presidenta Dilma Rousseff. Se o que dissemos acima é consistente, não podemos deixar de considerar o caráter de adestramento para o conformismo destas políticas. Como falamos há instantes, elas não foram criadas no sentido de emancipar os povos subalternos. Elas atuaram mais no âmbito conjuntural do que no estrutural. Para o tipo de política que o PT realiza, definir o lugar dos povos subalternos é uma estratégia determinante e sem a qual seria muito difícil a burguesia financeira (mormente), comercial e industrial e os latifundiários manterem os padrões de acumulação de riqueza. É uma ingenuidade acreditar que diante de um governo com tais características seja possível emancipar milhões de miseráveis dos rincões do “vale de lágrimas”. Organização política autônoma e consciência crítica Neste momento discorreremos sobre uma questão fundamental para o entendimento do nosso trabalho. Defenderemos que a luta dos pescadores artesanais, no passado, sempre esteve cingida à relativa organização política e que, nos dias atuais, está em curso um profundo processo de transmutação deste quadro, posto que as instituições estatais Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 115

estão sendo tomadas, enquanto arranjos ineptos, e no seu lugar organizações autônomas estão sendo criadas. Contudo, a pergunta perturbadora que devemos tecer é a seguinte: o aparelhamento promovido pelas instituições estatais ao mundo dos pescadores artesanais, dialeticamente, não deveria ser o esteio sobre o qual se assentariam os firmes alicerces das suas organizações políticas? Por que temos de jungir, em última instância, a organização política autônoma dos pescadores artesanais ao grau de investimento do Estado brasileiro? Obviamente que estas perguntas não alienam a intelecção de que estamos a tratar de um grupo social com baixíssima escolarização e renda, submetido a situações de subsistência amplamente precárias. A presença do Estado, em vista disso, teria um papel fundamental no sentido de superar todos estes problemas. Contudo, devemos explorar mais profundamente as razões da baixa organização política dos pescadores artesanais para entender melhor. Os processos de lutas sociais dos pescadores artesanais podem ser identificados em três fases: i) a primeira fase será dividida em dois momentos, de 1822 a 1919, fase de movimentos isolados fora do âmbito do Estado, ainda que mediado por ele, e de 1919 a 1985, fase de lutas com interesses específicos dentro do âmbito do Estado; chamaremos esta fase de lutas espontâneas; ii) de 1985 a 2010, fase de organização política no interior do Estado; iii) de 2010 aos dias atuais, fase de organização política com autonomia em relação ao Estado. O primeiro momento da primeira fase está caracterizado pelos conflitos, cujo motor eram as políticas repressivas bastante específicas ao longo do nosso litoral. Tal fase não foi marcada por um grau de organização política que pudesse ter efeitos positivos para os pescadores. Eram demandas sociais que os moviam em busca de satisfações imediatas, às vezes atreladas a outros grupos, como foi o caso das lutas a favor dos escravos, a Cabanagem (1835 a 1940), a Revolta da Chibata (1910), a as Revoltas de 1903 e 1904 em decorrência da Lei de Recrutamento da República para a Armada de 1897. Já o segundo momento tem como característica o movimento contestatório estrutural, ainda que de baixo alcance e a criação das colônias de pescadores artesanais, como instituições que albergaria estes movimentos contestatórios. Disso resultou duas coisas: i) tornou os pescadores artesanais sujeitos de direitos políticos e sociais e ii) controlou as formas de descontentamento no interior da ordem social capitalista. 116 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

A segunda fase foi assaz importante, porque houve um conjunto de conquistas sociais e políticas. Já na última fase percebemos que diante de tais conquistas o pescador artesanal passou a ter consciência sobre a sua existência, ou seja, as conquistas advindas do próprio Estado tornaram-se objetos de questionamentos. Se, especialmente, depois da criação da Sudepe, as passeatas, as reivindicações, as greves e os protestos, tornaram-se mais presentes, o mesmo não podemos dizer das condições políticas depois da instalação das colônias de pescadores, em 1919. As colônias foram criadas para assegurar os interesses da Marinha de Guerra e de setores empresariais envolvidos com a pesca em geral e transformar os pescadores artesanais em força de trabalho livre aos empreendimentos nascentes do capital urbano-industrial, como lembra Mello (1989). Do ponto de vista estrutural do Estado, o recrutamento dos pescadores artesanais para abastecer o estoque da reserva naval já havia se iniciado em 1840 com a “Inscrição Marítima”, entretanto, a resposta dada à oficialidade, naquela ocasião, foi de muita resistência, como mostramos nas Revoltas de 1903 e 1904. É verdade que na transição do século XIX ao XX os pescadores artesanais não possuíam nenhuma organização política concreta a ponto de reconfigurar a ordem das coisas a seu favor, contudo já era crescente a insatisfação de grupos sociais com baixo poder político. As colônias, por conseguinte, foram instrumentos de cooptação desses grupos sociais contestatórios para o seu interior, alterando o horizonte de lutas dos pescadores artesanais. A instalação das colônias inaugurou um sistema de representação política nos níveis municipais, estaduais e nacionais, posto que elas, junto com as federações e confederações, fabricaram uma “falsa ideia” de que tal estrutura estava a serviço dos interesses reais dos pescadores. Como menciona Silva (1993: 88): Através da criação de cooperativas, da instalação de frigoríficos, da organização do mercado ou da grosseira conversão dos pescadores-lavradores em pescadores exclusivos, pretendia-se destruir uma noção de trabalho anterior de modo a propiciar a emergência de outra, mais afeita a grupos que se assemelhavam a uma consciente e emergente burguesia.

A instalação das colônias ao longo do litoral brasileiro foi exitosa: o número de pescadores cadastrados foi expressivo e desta forma o horizonte reivindicativo, que assistimos entre o final do século XIX e início do XX, foi desaparecendo. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 117

É nesta estrutura, inteiramente jungida aos interesses do Estado, que aparece o primeiro Código de Caça e Pesca de 1934, onde no seu Artigo 15 é dito que as “Colônias reger-se-ão por estatutos elaborados pela Confederação Geral dos Pescadores do Brasil e aprovados pelo Ministro da Agricultura”, conforme Paiva (2004: 61). Desse modo, podemos afirmar que esta forma institucionalizada de representação política foi o que imperou em todo o território brasileiro. As Colônias, especialmente, até 1985, não deixaram de ser subordinadas ao Estado, por meio das federações e confederações, e fortemente atreladas aos interesses das burguesias locais. Ao mesmo tempo, as colônias se tornaram espaços de solidariedade, enquanto práxis social, e permitiram a interconexão dos pescadores, para além do seu círculo restrito familiar2. Se até o fim da Primeira República estes pescadores artesanais encontravam-se isolados, com suas lutas dispersas ao longo do litoral e águas interiores brasileiras a partir da institucionalização da pesca artesanal as colônias passaram a ser o local no interior do qual eles iniciariam o processo de perda das suas ilusões, mediante a socialização das suas angústias do cotidiano, das contradições do mundo do trabalho artesanal, do avanço urbano e dos limites e das potencialidades da pesca artesanal. Não foram espaços emanados do útero do cotidiano dos pescadores artesanais. No entanto, não deixaram de ser, contraditoriamente, espaços solidários em torno dos quais os pescadores puderam organizar desenhos emancipatórios, ainda que ao avesso. Em boa verdade, todo o aparato administrativo e político engendrado pelas condições socioeconômicas após o período colonial brasileiro não foi uma criação consciente da massa. “Foi uma espécie de carapaça disforme, vinda de fora, importada. Vasta, complexa e pesadíssima”, e não estava em consonância com a “rarefação e o tamanho da população” brasileira da época, como alude Viana (2010: 361). 2 É oportuno lembrar que os pescadores artesanais tinham para com as festividades religiosas, as cooperações vicinais e as tradições de toda ordem, um espaço de solidariedade permanente. O que que queremos por em relevo é que com as Colônias os pescadores passaram a ter necessidade de envolvimento político mais profundo acerca das condições sociais, onde as formas de ação em conjunto tornaram-se imprescindíveis para a obtenção de ganhos comuns. Se é verdade que as solidariedades familiares e comunitárias, enquanto microcosmos sociais, já permitiam algum tipo de conquistas, não é mesmo verdade que elas se apresentavam insuficientes para o tamanho do desígnio que se abria com a formação de quadros institucionais mais complexos. Na medida em que os imperativos capitalistas vão se derramando, vão criando formas de solidariedade amplas e conectadas com o todo, ainda que às avessas. 118 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Percebemos, portanto, a criação de formas de lutas, de espaços de solidariedade, dos homens a se fazer ser social, hominizando-se, pelo próprio processo de reprodução da lógica capitalista. O capital, enquanto forma social, na medida em que avança, produz mecanismos que negam a sua existência. Para ossificar o que estamos a dizer é oportuno atermo-nos ao significado de solidariedade neste trabalho. Entendemos que as formas de experimentação, de lutas sociais, cujo horizonte é a superação das contradições do tempo presente, tornam-se ações solidárias fundamentais para uma nova forma de se produzir a existência. Ainda que estas formas solidárias estejam configuradas na e pela ordem social vigente do capital elas são produtos de uma determinada práxis histórica. Grade (2008: 8 e Ss.) nos ajuda na temática ao dizer que “a solidariedade vem constituída como uma práxis que emerge a partir das experimentações dos homens produtores diretos tecendo-se em homens humanizados, hoje, nesses experimentos sociais”. Se assim o é, estes experimentos históricos, como solidariedade, vividos pelos pescadores artesanais no início do século XX, se apresentam como formas de lutas que já expressam a incapacidade de produzir a existência sob o manto do capital, ainda que contraditoriamente. A solidariedade é um espaço transitório para a construção de uma nova forma de produção da vida. Os experimentos sociais, ainda que com traços burgueses, nos revelam, de modo contraditório, o embrião da emancipação. Segundo Milani e Grade (2011: 62): estes experimentos constroem-se como nova práxis social que tem na solidariedade seu novo nexo social e sua especificidade do local, as quais buscam recuperar a centralidade do homem, suas habilidades produtivas e criativas, unidos por laços de cooperação, ao invés da acumulação de capital em si e para si.

As alterações profundas nas condições materiais da sociedade brasileira trouxeram outro dinamismo para a vida dos pescadores artesanais brasileiros. O crescimento industrial, que já começara em 1930, ganhou impulso com o governo de Juscelino Kubitschek transformando o semblante do litoral brasileiro. Na região sudeste houve, especialmente, uma forte especulação imobiliária e um forte avanço na área do turismo. Esses dois eventos fizeram com que as terras do “pescador-laPanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 119

vrador” fossem expropriadas, Diegues (1983). Em Santa Catarina, este processo também foi importante para a pesca artesanal: muitos pescadores artesanais foram absorvidos pelas possibilidades trazidas por estes dois setores, descaracterizando todo o seu modo de vida tradicional. Em todas as regiões brasileiras a realidade social não é diferente, isto é, há uma profunda transformação das condições materiais de produzir a existência dos pescadores artesanais. Elas se transformaram diante do avanço do modo de produção capitalista. Esta realidade social engendrou uma embrionária forma de organização política tendo como base as mobilizações contra a poluição dos rios, o sistema de representação das colônias de pescadores, a expropriação das terras dos pescadores artesanais, como os jangadeiros, caiçaras e açorianos e a ausência de um programa de previdência social e política de créditos. As formas de lutas variavam de abaixo-assinado, passeatas e denúncias à imprensa dos atos públicos. Estas manifestações passaram a ganhar peso e voz quando: i) foi criado o Conselho Pastoral dos Pescadores3 (CPP), em Pernambuco; ii) algumas colônias de pescadores passaram a ser tomadas e dirigidas por eles próprios; e iii) as lutas contra a poluição dos rios e mar obtiveram êxito regional. Para este último caso tivemos duas grandes passeatas com resultados imediatos, a saber: as passeatas, em 1983, contra o maior desastre ecológico do Estado de Pernambuco, onde 10 mil pessoas foram às ruas entre pescadores, cientistas e políticos e as que reivindicavam uma cesta básica a ser dada pelo governo estadual”, alude Silva (1993: 135). De fato os trabalhos da Pastoral dos Pescadores, como menciona Ramalho (2012: 3) “impulsionou e redefiniu a vida política dos pescadores e pescadoras, pois estes passaram a pressionar e a exigir modificações na forma de atuação das Colônias e um maior comprometimento de seus dirigentes”. Todas estas formas de lutas foram contundentes e já demostravam o pauperismo no qual se encontravam os pescadores artesanais, em todos os níveis, e que uma forma de organização política, ainda que 3 O site do CPP diz que ele é um “órgão vinculado à Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade Solidária, Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e composto por agentes pastorais, leigos, religiosos e padres comprometidos com o Serviço junto aos pescadores e pescadoras artesanais na construção de uma sociedade justa e solidária. Pastoral da Terra”. 120 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

restrita ao mundo burguês, começara a existir. É a partir da década de 1970 que as Colônias de Pescadores passaram a ser objeto de disputa, como foi o caso de Santarém e Aranaí (PA), Goiana (PE), Pitimbu (PB), Caiçara (RN), Caravelas (BA) e Penedo (AL). No mesmo caldo de lutas, as Federações Estaduais, como foi o caso de Pernambuco em 1984, e Alagoas em 1987, foram tomadas pelos pescadores artesanais. Em 1989, foram conquistadas as Federações de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Outro fato digno de nota foi a organização das pescadoras e marisqueiras junto aos trabalhos da Comissão Pastoral dos Pescadores, assim que chegou a Freira Montenegro. A força desta união resultou, em 1989, na eleição de uma mulher para presidir uma colônia de pesca, pela primeira vez no país. Cinco anos mais tarde, a mesma pescadora, Joana Mouzinho, presidiu a Federação de Pescadores de Pernambuco. A tomada de algumas colônias revela: i) a insatisfação dos pescadores artesanais com a baixa representação política promovida por estes órgãos criados no seio de um Estado repressivo e autoritário e ii) a consciência, por parte desse grupo, de que o controle das colônias seria uma forma de emancipação política. Afirmamos que as colônias foram agrupamentos criados pelo próprio Estado capitalista e o fato de algumas delas estarem nas mãos de pescadores artesanais não significa a superação do controle estrutural do Estado. Contudo, o controle revela as limitações do próprio Estado capitalista e a transformação da consciência ingênua pela consciência crítica. Se no século XIX os movimentos sociais foram reprimidos pelas leis imanentes do Estado da época, no século XX a repressão não deixa de existir, mas o instituto da cooptação estatal os redefine estruturalmente. Essa mudança não é só verdadeira para o objeto ora analisado, é ainda mais verdadeira para o histórico movimento dos trabalhadores assalariados, que depois de um longo período de lutas sociais a favor de uma sociedade superior à capitalista vêm as suas condições de lutas albergadas e legitimadas pelos mecanismos de controle do Estado moderno. O século XX foi o século da adequação das lutas sociais ao horizonte das conquistas sociais estabelecidas e organizadas pelos direitos advindos da sociedade burguesa. É correto que as lutas travadas pelos trabalhadores assalariados em suas Associações nacionais e internacionais no segundo período do século XIX apresentaram um vigor revolucionário, mas não é menos correto dizer que a organização Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 121

das lutas circunscritas aos sindicatos, e, em alguns casos, às colônias, é demonstração do alinhamento dos trabalhadores às conquistas burguesas arranjadas pelo Estado moderno. A mudança na estrutura interna do modo de produção capitalista e que gera uma substancial alteração nos desenhos comunitários dos pescadores artesanais, como vimos em boa parte do litoral brasileiro, impõe novas formas de lutas sociais. As colônias não são mais suficientes para garantir os ganhos necessários dos pescadores artesanais. Portanto, quão mais complexa vai se tornando as relações sociais, tão mais sólida e necessária se faz a criação de uma organização política que esteja à altura das coisas. É desse momento em diante que assistimos a um conjunto de ações no sentido de ossificar os movimentos sociais dos pescadores artesanais. As contradições do real: o processo embrionário de uma consciência crítica é a perda das ilusões? Falaremos que o processo de institucionalização da pesca artesanal no Brasil foi implantado levando em conta os desígnios da lógica do capital. No entanto, na medida em que as contradições do real aguçam essa lógica, os pescadores artesanais perdem as suas ilusões ou suas ingenuidades sobre o Estado capitalista e uma forma de consciência crítica ganha vitalidade. Quais as implicações desta forma de consciência para a nossa defesa? Vejamos isso de perto. Se estamos a defender ao longo deste trabalho que no curso do processo de hominização os homens vão perdendo as crenças e as ingenuidades é mais pela concretização da consciência crítica sobre os fatores e condições que determinam as contradições do real do que por outro fator qualquer. A consciência crítica é uma forma de consciência disposta a apreender e denunciar as influências dos elementos que estão sobrepostos a ela, ou seja, “está sempre interessada em descobrir os determinantes do seu conteúdo, porque sabe que eles existem e tem por tarefa lógica distingui-los e avaliá-los” (Vieira Pinto, 1979: 85). As formas de consciência social revelam, portanto, o grau de percepção que se tem sobre o real. Não significa que os povos seráficos, enquanto existência bruta, submetidos a um conjunto de percepção do real ainda ingênuo, não tenham consciência: “o conjunto de condições objetivas que constitui o estado de uma comunidade nacional é sempre acompanhado por uma consciência social, onde se reflete” (Vieira Pinto, 1979: 122 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

11). A consciência social pode ser ingênua se a sua forma de consciência for o desconhecimento dos fatores que determinam a sua formação. Ou ainda, a consciência ingênua pode ser “por essência, aquela que não tem consciência dos fatores e condições que a determinam” (Vieira Pinto, 1979: 83) Agora, se afirmarmos que a consciência crítica “surge quando um grupo social põe entre si e as coisas que o circundam um projeto de existência” (Guerreiro Ramos, 1996: 46) é mister sublinhar que ela só se torna possível na medida em que as ilusões e as ingenuidades vão se perdendo, quando vai se concretizando, graças a estímulos concretos, a personalidade histórica de um povo . Não será isso que estamos a perceber no exato momento em que os povos em lutas vão tomando consciência crítica da universidade do tempo presente, portanto, da comunidade humana universal? Quando afirmarmos que a consciência crítica é a percepção sobre os fatores e condições que determinam as contradições do real, não estamos a dizer que a apreensão do caráter universal das lutas sociais é peça decisiva para a sorte dos povos? Devemos reiterar que a ideia do imperativo do desenvolvimento capitalista suscita a consciência crítica, razão pela qual os povos, ao longo do mundo, vão tomando consciência de si e formando o ser social. Se assim o é, podemos afirmar que os caminhos possíveis em que trilham as experiências dos povos estão em todos os cantos. Para o nosso objeto analítico, ora em relevo, não é inconsistente asseverar que a Constituinte da Pesca, cuja atuação resultou em conquistas na Constituição de 1988, foi um marco da incipiente trajetória de luta dos “povos do mar” e com ela a consciência de que qualquer forma de luta deveria ser mais ampla, isto é, deveria contar com todos os pescadores artesanais brasileiros. Dessa forma, pois, a consciência histórica de um povo, grupo, é diretamente proporcional ao grau de domínio que ele tem do seu passado e presente, da existência de si - o que implica conhecer a natureza circundante e as formas de intercâmbio – e, por fim, da concreta relação com a universalidade da existência humana: só assim poderá realizar a experiência existencial do seu ser de acordo com o tempo. Guerreiro Ramos (1957, s/p e Ss.) em suas notas sobre o ser histórico assevera que: A existência histórica de um povo supõe assim uma elevação, um acesso a um modo superior de ser. Enquanto lhe falta aquela Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 123

consciência, a história lhe sucede sem que ele esteja nela. Nele se verifica uma pura sucessão de estados cuja concatenação não se tem consciência. Envolvido no puro suceder sem reflexão, um povo em tais condições não realiza a experiência no tempo. É por sua elevação ao plano da consciência que ele se instala verdadeiramente no tempo histórico.

Portanto, a existência histórica a ser alcançada por um povo passa pelos processos de consciência que vão se configurando nas lutas sociais. Esses processos de consciência só se realizam, enquanto existência coletiva, quando o seu conteúdo tiver como força a universalidade, ou seja, ainda que cada luta social carregue, irrefragavelmente, a decisiva dimensão singular da existência, ela é distintiva por estar concatenada às ações de todos nas mesmas situações históricas. É tomando consciência da existência coletiva que os sujeitos vão realizando a consciência histórica que tanto lhe é necessária para a emancipação humana. É quando um povo passa a ter o que Guerreiro Ramos (1957) chamou de ponto de vista, enquanto forma de consciência de uma determinada condição histórica. Quando um indivíduo ou uma sociedade tem consciência dos fatores reais que a conduzem ele passa a ter um ponto de vista consciente, ou nas palavras de Guerreiro Ramos (1957): “apenas quando fatores reais promovem a emancipação de uma sociedade é que ela passa a ter ponto de vista”. Parece oportuno observar que quanto mais concentrados tornam-se os meios de produção e menos trabalhadores tornam-se necessários para a produção da riqueza mais efetiva é a existência coletiva. O avanço das forças produtivas é senão a demonstração empírica de que o trabalhador está a se separar do homem e se materializando em meios de produção, como sustenta Marx (2005). O movimento de separação é, ao mesmo tempo, o movimento de conscientização das suas condições históricas, pois, regurgitado, só resta ao homem dominar o processo produtivo para a sua humanidade. Ou ainda, nas palavras de Marx (2005: 53) “o produto do próprio homem, expressão exteriorizada da força produtiva do trabalho social, constitui-se em meio pelo qual o homem se liberta de suas condições naturais à sua existência.” Os pescadores artesanais tornaram-se homens supérfluos pelo fato segundo o qual ao longo do processo de hominização tiveram as suas condições materiais de trabalho separadas de si. A sociedade capitalista tornou-os desnecessários para a produção. O único caminho que resta a eles, portanto, é a luta emancipatória. 124 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

A luta travada na Constituinte da Pesca gravitava em torno da transformação do sistema de representação da categoria, ou seja, o objetivo era dar às Colônias, às Confederações e às Federações, o mesmo caráter jurídico dos sindicatos de trabalhadores urbanos. A elas foi outorgado o direito de elaborarem seus próprios estatutos, adequando-os à realidade de seus Municípios. Também foi dado aos pescadores “a livre associação, a não interferência do poder público, autonomia, unidade sindical, entre outros, marcando legalmente o fim da tutela sobre as Colônias de Pescadores”, alude Cardoso (s/n: 02). A Constituinte da Pesca, portanto, foi um registro histórico do avanço das lutas dos pescadores artesanais na década de 1980. É a partir dela que podemos falar do Movimento Nacional dos Pescadores (Monape). Enquanto resultado das lutas travadas na década de 1980 o Monape forma-se no útero das conquistas da Constituinte da Pesca de 1988 e tendo a intenção de se constituir enquanto um movimento social aglutinador dos anseios mais recônditos dos pescadores artesanais ao longo do litoral brasileiro. A dimensão de ser um movimento nacional não era uma mera questão de retórica: tratava-se de uma necessidade premente, dito de outro modo, a possibilidade de alteração do quadro político dos pescadores era proporcional ao “peso” que o movimento alcançaria nacionalmente. Isso era explicado pela ausência de um organismo de interlocução e representação dos interesses comuns na esfera do poder central. Se até a década de 1980 as lutas travadas pelos pescadores artesanais circunscreviam à proteção ambiental, dado que a garantia de boas condições litorâneas era proporcional à subsistência da pesca artesanal, a partir do Monape urge a necessidade de uma organização política de atuação institucional para “democratizar as colônias, fazer valer conquistas realizadas pela Constituição e lutar pela melhoria das condições de vida e de trabalho dos pescadores artesanais”, como lembra Diegues (1995: 136). Isso se concretiza a partir de 1990 quando o movimento passou a apresentar “propostas emergenciais junto ao governo, dentre as quais se destacaram o salário desemprego durante o período de defeso; a regulamentação das leis das colônias, que ainda estava pendente; a isenção de impostos ao pescador na aquisição de seus instrumentos de trabalho, entre outros”. Conforme Fox (2010: 102 e Ss.) Tendo em vista que o 5º Encontro Nacional: Política Pesqueira, Meio Ambiente, Organização da Categoria, Politica Sindical e Previdência Social de 1991 buscou atender as necessidades dos pescadores Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 125

em todo país, foi criado, dentro do Monape, a seguinte estrutura: i) Assembleia Geral, ii) Conselho de Representantes (composto pela coordenação e representantes regionais) e Coordenação. Não obstante ao horizonte nacional, o Monape ainda é caracterizado por ser uma organização regionalizada. Vinte e sete anos depois da sua fundação ainda há Estados brasileiros que desconhecem a existência dele. Segundo FOX (2010: 106 e Ss.) “as enormes diversidades das atividades praticadas pelos pescadores e um vasto campo territorial que os mesmos habitavam, colocando a nu uma pluralidade de inserções no processo de produção e de condições de vida” tornou-se uma dificuldade para a expansão do movimento, bem como “ao fato da pesca embarcada ter maior penetração nas regiões Sul e Centro-Sul do Brasil”. Podemos dizer que os limites orçamentais do Monape, a baixa estrutura administrativa e o limitado quadro de profissionais para realizar as atividades foram as razões que levaram o Movimento a se transformar, durante o I Seminário do Conselho Deliberativo, em pessoa jurídica. A Associação Movimento Nacional dos Pescadores passou a ser uma sociedade civil sem fins lucrativos, de caráter filantrópico, de âmbito nacional e com o objetivo de captar recursos para o Monape. A Associação, agora, constituída pelo Conselho Nacional, Conselho Deliberativo, Coordenação Executiva e pelo Conselho Fiscal, transforma-se em uma entidade com finalidades bastante claras, quais sejam: i) elaborar, acompanhar e avaliar projetos e programas de desenvolvimento em parceria com órgãos oficiais e ii) promover a capacitação e formação profissional dos pescadores e pescadoras. A nova natureza jurídica se deu em um momento em que os movimentos sociais brasileiros se adequaram à institucionalidade posta, ou seja, tornar-se pessoa jurídica era inversamente proporcional ao isolamento. Ocorre que institucionalizar-se também significava aderir a um conjunto de atribuições que amarravam politicamente o movimento e o inseriam em uma lógica cada vez mais mecanizada de luta. O Monape vai aos poucos tornando-se um movimento cuja definição passa obrigatoriamente pela circunscrição do Estado capitalista. Como diz Gohn (2004: 143): “os fundos públicos são, no sistema capitalista, pressuposto de financiamento tanto na acumulação de capital quanto na reprodução da força de trabalho e este padrão de financiamento altera a natureza dos conflitos sociais, que passam a girar fundamentalmente em torno do Estado”. 126 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Se entre 1980 e 2000 o movimento estava envolvido com a defesa da pesca artesanal, o mesmo não podemos dizer da sua atuação no século XXI onde a cooptação, o gerenciamento e a fiscalização de recursos para projetos de pesca artesanal tornaram-se atividades dominantes. Ou seja, a necessidade imposta pela sociabilidade capitalista fez com que a Monape perdesse a força de luta e resistência de outrora junto aos pescadores artesanais e assumisse uma atividade institucionalizada. É fundamental destacar nesta discussão que o Monape, no século XXI, tornou-se um órgão distante dos pescadores artesanais. Isso ficava mais sólido na medida em que o movimento adaptava-se às exigências das parcerias, dos financiamentos internacionais e do Estado capitalista. Este distanciamento alcança seu ponto máximo em 2009 quando o Movimento dos Pescadores e Pescadoras (MPP) órgão que contava com dirigentes do Monape se posicionou contra as políticas públicas produzidas pela Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca (Seap) e não encontrou guarida do movimento. No interior da I Conferência da Pesca Artesanal – movimento criado paralelamente à 3º Conferência do incipiente MPA – o Monape desarticula-se e não retoma o vigor crítico e de resistência que o caracterizou na década de 1980. Diante do que expusemos, é possível caracterizar a luta dos pescadores artesanais brasileiros dentro de uma tendência geral de movimentos sociais de populações vulneráveis, como destaca Harvey (2011). Trata-se de movimentos guiados pela necessidade premente de combater o pauperismo social. Segundo ele o “enfoque na vida diária na cidade, vila, aldeia ou outro local fornece uma base material para a organização política contra as ameaças que as políticas de Estado e interesses capitalistas, invariavelmente, representam para as populações vulneráveis” (Harvey, 2011: 207). Como os pescadores artesanais lutam por melhores condições de vida, pela presença concreta do Estado, pela defesa dos conhecimentos tradicionais, pela preservação do meio ambiente, etc., ou seja, lutas do cotidiano, ainda que mediadas pelo capital, eles tornam-se mais pragmáticos, com possibilidades reais de apreender a estrutura da dinâmica capitalista por suas próprias experiências. Entretanto o movimento dos pescadores artesanais é, ao mesmo tempo, um movimento emancipatório. Se eles lutam pelo reconhecimento das suas existências singulares e essas lutas ultrapassam a agenda do cotidiano, é possível dizer que a agenda do cotidiano é ao mesmo tempo uma luta emancipatória, ainda que pelo avesso. Claro Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 127

está, que as práticas e os horizontes desses movimentos nacionais, são diferentes em cada região. Há regiões em que a luta já alcançou um grau de maturidade mais avançado de que outras, mas a atualidade de todas elas é o fato de terem se tornado expressões singulares da universidade capitalista, portanto, banhadas pelas mesmas contradições. Em verdade, o grau de avanço conquistado por estes movimentos sociais, impõe formas renovadas de atuação. A complexidade em lidar com os arranjos modernos, nos quais estão submetidos, impede que eles reproduzam práticas de lutas de outrora. Não se trata de exigir melhorias circunscritas, unicamente, aos sistemas político, econômico e cultural da ordem dominante. A luta do tempo presente deve transcender o horizonte burguês e se alinhar aos fios invisíveis que nos concatenam ao futuro humano. De toda sorte, o que podemos observar de alvissareiro nestes movimentos são as novas solidariedades contundentes e os novos caminhos que se abrem sobre a defesa da existência humana. Tornam-se, pois, utopias concretas, mas que ainda dependem de uma poderosa capacidade organizativa, atravessada de consciência crítica e de engajamento sistemático sobre o real.

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fortaleCimento do desenvolvimento territorial no estado do rs: desenvolvimento rural, Conflitualidades e eduCação ambiental nos Campos de Cima da serra leonArdo beroldt pAtríciA binkowski Aline reis cAlvo hernAndez rosmArie reinhr Introdução1 Os planejadores e formuladores de políticas públicas no Brasil têm dispensado grande atenção à abordagem territorial, desde a redemocratização, cujo marco legal, a Constituição Federal de 1988, estabeleceu a democracia participativa, com a descentralização das políticas públicas e a ampliação da participação social. Essa abordagem propõe a gestão por meio da cooperação horizontal e vertical entre as três esferas de governo - municipal estadual e federal, com a participação da sociedade civil, conformando uma nova unidade de referência, expressa pelo território (Ravanelli, 2010; Schneider, 2004). De acordo com Schneider (2004), as ações de intervenção desse novo arranjo institucional no território passaram a se denominar desenvolvimento territorial. Neste cenário, busca-se valorizar (i) a participação dos atores da sociedade civil, através de suas organizações, e os próprios beneficiários; (ii) a redefinição do papel das instituições; (iii) a importância das esferas infranacionais do poder público, notadamente as prefeituras municipais. Essa estratégia para a gestão compartilhada de políticas públicas tem papel central frente à escassez de recursos financeiros, às diferenças regionais na capacidade gerencial e fiscal dos entes federados, à profundidade das desigualdades sociais e à natureza 1 Artigo elaborado como resultado parcial de projetos em andamento no âmbito do Núcleo Interinstitucional de Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento Territorial e Etnoecologia dos Campos de Cima da Serra - NIPEDETE CCS, criado a partir da Chamada CNPq/MDA/SPM-PR Nº 11/2014 - Apoio à implantação e manutenção de Núcleos de Extensão em Desenvolvimento Territorial. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 131

cada vez mais complexa dos problemas urbanos e ambientais, que exigem soluções interssetoriais e intergovernamentais (Ravanelli, 2010). Desde a década de 1990 o Brasil vem executando programas e ações com base no desenvolvimento territorial. O Rio Grande do Sul é um estado pioneiro nessas iniciativas por meio da institucionalização dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDE), em 1994. Estes são fóruns de discussão e decisão a respeito de políticas e ações com o objetivo de: “promover o desenvolvimento regional; a integração dos recursos e das ações do governo na região; a melhoria da qualidade de vida; a distribuição equitativa da riqueza produzida; o estímulo à permanência do homem na sua região; e a preservação e a recuperação do meio ambiente” (Rio Grande do Sul, 2014). De acordo com Bandeira (2007), os COREDE conseguiram ocupar uma posição relevante no quadro institucional do estado, podendo ser considerados uma das mais bem sucedidas experiências no país. Entretanto, os diferentes governos não foram capazes de aproveitar adequadamente a sua potencialidade, não incorporando à prática da administração pública esta escala territorial intermediária entre o estado e o município, que conta com a interação da sociedade civil. Dentre os programas em nível federal, destaca-se, durante os governos do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), no âmbito do Programa Comunidade Solidária, o Programa Comunidade Ativa, implementado em 1999, com o objetivo de promover o Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável (DLIS) em municípios brasileiros com população inferior a 50 mil habitantes e Índice de Desenvolvimento Humano abaixo de 0,5. Nas administrações de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), ainda no ano de 2003, dando seguimento aos DLIS, foi criada a política dos Consórcios de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local (CONSAD), como parte dos objetivos estruturais do Programa FOME ZERO, junto ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Em 2003 foi criada a Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), subordinada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), com a finalidade de implementar o desenvolvimento rural por intermédio do Programa de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais (PRONAT), em parceria com diversas instituições da sociedade civil, nos governos federal, estaduais e municipais. O PRONAT tem por objetivo promover o planejamento, a implementação e a autogestão do processo 132 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

de desenvolvimento sustentável dos territórios rurais e o fortalecimento e dinamização da sua economia.Aparticipação no PRONAT se dá via os territórios rurais homologados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF) e incorporados pela SDT. No PRONAT, o território rural é considerado como [...] um conceito operacional, um instrumento de planejamento, um espaço físico, geograficamente definido, geralmente contínuo, compreendendo cidades e campos, caracterizados por critérios multidimensionais, tais como o ambiente, a economia, a sociedade, a cultura, a política e as instituições, e uma população, com grupos sociais relativamente distintos, que se relacionam interna e externamente por meio de processos específicos, onde se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade e coesão do ordenamento social, cultural e territorial (Brasil, 2004).

O PRONAT começou a operar em 2004 com 65 territórios e, atualmente, conta com 239 territórios rurais compostos por 1.072 municípios. Sua estrutura e modelo baseiam-se na formação de uma instância local de mobilização denominada de Colegiado de Desenvolvimento Territorial (CODETER), onde o Estado e sociedade planejam e geram as políticas públicas conjuntamente em torno da construção de ações destinadas, em especial, aos agricultores/pecuaristas/piscicultores familiares, assentados da reforma agrária, povos indígenas, quilombolas e pescadores artesanais. Além dos colegiados, para a implementação do Programa, que pressupõe uma metodologia participativa, existe o Comitê Articulador Estadual e o Comitê Gestor Nacional. O estudo em tela vem sendo realizado no Território Rural Campos de Cima da Serra, composto por 13 municípios2 (Figura 1), localizados no nordeste do Rio Grande do Sul e reconhecidos pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF), a partir de 20133. A população total do Território é estimada em 627.501 habitantes, sendo que 54.173 vivem no meio rural. 2 Antônio Prado; Bom Jesus; Cambará do Sul; Campestre da Serra; Canela; Caxias do Sul; Ipê; Jaquirana; Monte Alegre dos Campos; São Francisco de Paula; São José dos Ausentes; São Marcos; Vacaria. 3 Resolução nº 94, de 23 de maio de 2013, do CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO RURAL SUSTENTÁVEL – CONDRAF, incorpora territórios ao Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais – PRONAT, e dá outras providências, publicada no D.O.U., Seção 1, páginas 56 a 61, de 28 de maio de 2013. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 133

O Território se constituiu a partir de uma articulação de atores sociais e setor público de municípios pertencentes a três Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDE), a saber, Campos de Cima da Serra, Hortênsias e Serra que, por sua vez, compõem a Região Funcional 3, uma unidade de planejamento adotada pelo governo estadual, a partir do Estudo de Desenvolvimento Regional e Logística para o Rio Grande do Sul (Rumos 2015), realizado em 2004. Figura 1 – Mapa de localização do Território Rural Campos de Cima da Serra, Rio Grande do Sul

Os Campos de Cima da Serra: a busca de uma identidade territorial entre diferentes paisagens A região faz divisa com o estado de Santa Catarina, apresentando as maiores altitudes do estado, com pontos acima de mil metros em relação ao nível do mar. Embora vinculada ao bioma Mata Atlântica, a região é influenciada pelo bioma Pampa (ou Campos Sulinos), o que, na avaliação de Boldriniet al. (2009), constitui-se na transição entre o bioma Pampa e o bioma Mata Atlântica. As características paisagísticas permitem dividir o Território em três microrregiões (Coelho-de-Souza et al., 2015). A primeira, compos134 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

ta pelos municípios de Bom Jesus, Cambará do Sul, Jaquirana, São José dos Ausentes e São Francisco de Paula,é caracterizada pela predominância dos campos de altitude, e se constitui de mosaicos de campos e florestas mistas, com presença de araucárias, solos rasos e teores elevados de acidez, o que lhes confere uma baixa fertilidade. De forma associada à qualidade das pastagens nativas, desenvolveu-se e mantém-se na microrregião a atividade pecuária como principal atividade rural, com destaque especial para a pecuária de corte, mas, em virtude da adaptação do gado à região, com certa expressão também para a produção de leite e derivados. Na região, a pecuária ocupa mais de 90% das terras dos municípios, de modo que se pode estimar que existam entre 2.500 e 3.000 pecuaristas familiares (Ries e Messias, 2003). Além disso, também de acordo com Ries e Messias (2003), nos municípios da região, cerca de 70% dos estabelecimentos rurais tem menos de 100 hectares, área que, de acordo com os critérios do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), caracteriza esses produtores como pecuaristas familiares. A centralidade da produção de gado bovino presente hoje nos Campos de Cima da Serra é decorrência do próprio povoamento da região, que esteve relacionado com a ocupação da terra e apropriação de reserva de animais, como bovinos e mulas, deixados para trás pelos padres jesuítas com o término das reduções no Rio Grande do Sul, durante o século XVIII. Ao longo do período de ocupação e colonização, os produtores se adaptaram à região e desenvolveram técnicas de produção e manejo das propriedades voltadas para a produção de carnes e também para a produção do Queijo Serrano, bastante conhecido principalmente na região (Ambrosini, 2007; Krone, 2009; Cruz, 2012). A imensa maioria dos produtores deste queijo artesanal não possui certificação de inspeção sanitária para produtos de origem animal, conforme legislação vigente, o que tem gerado conflitos com os órgãos de fiscalização. Um segundo foco de conflitos refere-se ao manejo dos campos nativos,que ainda é realizado, em sua maioria, com o uso do fogo para a realização da “sapeca”, tendo sua maior ocorrência no período de agosto. Por ser uma prática proibida no estado do Rio Grande do Sul, tem gerado conflitos entre pecuaristas, ambientalistas e agentes do Estado. Outro produto com expressão social e econômica é o pinhão – extraído da araucária ou pinheiro brasileiro (Araucaria angustifóPanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 135

lia,Kuntze 1898). Sua coleta envolve um número expressivo, embora ainda não quantificado, de famílias serranas, que buscam na atividade uma fonte de renda para subsistência. A coleta costuma ocorrer a partir de meados de abril e se estende até junho. Em São Francisco de Paula, ocorre, anualmente, a Festa do Pinhão, no mês de junho. A redução da oferta de pinhão a cada ano tem gerado especulações a respeito das possíveis causas. Pesquisa recente realizada pelos autores deste trabalho revela que as opiniões se dividem entre a redução da população de araucárias e as mudanças climáticas, com o aumento dos períodos de calor, prejudicando assim a formação das pinhas. Uma característica importante do pinheiro brasileiro está no tempo de formação da pinha que ultrapassa dois anos até a maturação e o estágio adequado à coleta. Desta forma, as pinhas ficam expostas às alterações do ambiente por um longo período, o que pode interferir na produção final. A ausência de políticas mais direcionadas para os pecuaristas familiares tem produzido, como consequência, o abandono da atividade pecuária, com a ocupação de áreas de campo nativo pelo monocultivo de espécies arbóreas, especialmente Pinus spp. No caso dos produtores menos capitalizados, ocorre o arrendamento das áreas de campo para o cultivo de lavouras anuais, especialmente de batata e, mais recentemente, a soja, o que tem gerado um aumento expressivo do uso de agrotóxicos na região. Culturalmente, a população predominante é constituída por descendentes de portugueses e de miscigenações, caracterizando-se pela figura típica do “gaúcho”. Uma segunda microrregião, constituída pelos municípios de Campestre da Serra, Ipê, Monte Alegre dos Campos e Vacaria, pode ser denominada de transição, pois, além das características físicas e socioculturais da microrregião anterior, apresenta também outra importante atividade produtiva – o cultivo de pequenas frutas. Além da figura característica do gaúcho, esta microrregião também se constitui de uma população significativa de descentes de imigrantes europeus, muito especialmente italianos. A agricultura familiar baseada na produção de frutas tem apresentado uma expansão significativa, representando uma alternativa importante de renda para as famílias rurais. Outra importante atividade que vem se consolidando é a produção de alimentos ecológicos, com destaque para hortaliças e frutas. Uma terceira microrregião, composta pelos municípios de Antônio Prado, Canela, Caxias do Sul e São Marcos, é definida como colonial 136 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

e caracteriza-se pela paisagem de serra e encosta da serra. Esta microrregião possui o menor percentual da população rural do território, em sua maioria, descendentes de imigrantes italianos e uma pequena parte de alemães (Canela). A agricultura familiar se caracteriza por pequenas unidades de produção, com atividades diversificadas, destacando-se a produção de uvas e pêssegos. Também é relevante a produção integrada de aves e suínos. As agroindústrias e cooperativas são expressivas nesta microrregião. Além disso, a produção agroecológica também é bastante significativa, representada por algumas das associações de agricultores ecológicos mais antigas do estado do Rio Grande do Sul. Em relação à relevância da produção agropecuária, vale ter presente que, dentre os municípios desse território, Caxias do Sul, com 435.564 habitantes, é o que apresenta maior população, seguido por Vacaria, com 61.342 habitantes (IBGE, 2010). Os demais apresentam população próxima ou inferior a 20.000 habitantes. Assim, diferentemente de Caxias do Sul e, em menor grau, de Vacaria, o que os dados populacionais desses municípios indicam é que, principalmente Caxias do Sul, se constitui em importante centro urbano consumidor, para onde parte expressiva da produção agropecuária da região é escoada. Organização, representação e participação política nos Campos de Cima da Serra No que se refere à organização dos agricultores e demais atores locais, pode-se afirmar a existência de certa organização e, mais recentemente, tem havido processos organizativos que indicam mudanças significativas para a região. Ressalta-se aqui a articulação da gestão das unidades de conservação, a movimentação dos municípios em torno da Rota dos Campos de Cima da Serra4, a mobilização para os planos estratégicos de desenvolvimento delineados pelos COREDE, as associações de produtores que estão em fase de ampliação no Território. Vale mencionar ainda, particularmente no âmbito da organização administrativa e institucional, a Associação dos Municípios dos Campos de Cima da Serra (AMUCSER), que reúne as prefeituras municipais, e o Consórcio das prefeituras da região para o desenvolvimento sustentável (CONDESUS). No entanto cabe salientar que os casos de “organização” da sociedade civil no Território Campos de Cima da Serra não revelam neces4 Disponível em: http://www.rotacamposdecimadaserra.com.br Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 137

sariamente níveis de “participação e mobilização”. De maneira geral na realidade dos Campos de Cima da Serra, há limitações na participação da sociedade civil, sendo esta pouco representativa diante da diversidade dos setores governamentais envolvidos. Assim como também tangenciam algumas questões culturais de incentivo ao individualismo e não à participação social coletiva, visão esta municipalista, que tende a beneficiar o município e não a região, além é claro, de interesses puramente partidários. Uma das dificuldades que tem contribuído para aimplementação de iniciativas que envolvam a gestão territorial é a falta de compreensão dos próprios gestores, que não veem os programas ou as políticas como ferramentas de desenvolvimento local. Sabe-se que existem muitos casos onde as prefeituras acessam certas políticas e programas como um meio para obtenção de recursos, não visualizando estritamente o processo de desenvolvimento territorial. Na última década no Brasil, um dos programas federais que vem surtindo efeito no meio rural é o Programa de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais (PRONAT), comentado anteriormente. Este Programa tem promovido o planejamento, a implementação e a autogestão do processo de desenvolvimento sustentável dos territórios rurais, além do fortalecimento e dinamização da economia local/ regional. Com foco no desenvolvimento territorial, o Território Rural Campos de Cima da Serra (TRCCS) foi reconhecido pelo MDA em 2013 e, cujas primeiras reuniões de implementaçãoforam realizadas no mês de julho de 2014, no município de Vacaria, sendo promovida pela EMATER/ASCAR e organizada pelo MDA. A partir daí, foi organizado o Colegiado de Desenvolvimento Territorial (CODETER), que visa fomentar a articulação do poder público e da sociedade civil para a discussão, planejamento, tomada de decisão e implantação de ações voltadas para o desenvolvimento territorial rural, com base nas redes já existentes. Concomitantemente ao CODETER, foi criado o Núcleo Interinstitucional de Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento Territorial e Etnoecologia dos Campos de Cima da Serra (NIPEDETE), formado por pesquisadores da UERGS e UFRGS, com o intuito de fortalecer o CODETER, por meio da coleta de dados de pesquisa e extensão. A inserção das instituições acadêmicas e grupos de pesquisa com trabalhos 138 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

na região, tanto na elaboração de diagnósticos, quanto na realização de projetos de pesquisa e extensão junto às instituições, agricultores(as), pecuaristas familiares, quilombolas e indígenas, tem potencializado o trabalho de articulação do CODETER. Com o CODETER já estabelecido, observou-se que a mobilização da sociedade civil apresentava índices de participação sociopolítica baixíssimos,sendo estes pontos cruciais para o desenvolvimento das políticas públicas voltadas ao território. Afinal, quem são os atores, grupos e redes sociais inseridas no Colegiado Territorial dos Campos de Cima da Serra? Quais os argumentos, justificativas e indicadores sociopolíticosda participação e de não participação no Colegiado Territorial? A fim de trazer algumas respostas foi elaborado o projeto de pesquisa “Análise da participação e da não participação sociopolíticados diferentes atores sociais no Colegiado Territorial do Território Rural Campos de Cima da Serra”. A 1ª etapa desta pesquisa, realizada no segundo semestre de 2015, deu-se com a coleta de dados sociais, econômicos e demográficos para criação de um banco de dados relativos aos municípios pertencentes ao Território Rural. Recorreu-se aos sítios da internet como, por exemplo, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), EMATER-RS/ASCAR, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, da Fundação Economia e Estatística do Rio Grande do Sul (FEE). O andamento da pesquisa se deu com a identificação e entrevista das principais representações da sociedade organizada nos municípios do Território. As análises preliminares nos permitem perceber inúmeras dificuldades na participação sociopolítica no Colegiado Territorial dos Campos de Cima da Serra.Entre elas, destaca-se a descrença da efetividade dos programas e das políticas de governo pela politização e descontinuidade das mesmas; a distância entre os municípios do Território, o que desmobiliza os atores para plenárias; a falta de informação sobre a função do Colegiado Territorial; e, a burocracia de acesso às políticas governamentais. Contudo, no ano de 2016, percebeu-se que a adesão ao Colegiado aumentoudevido, principalmente, à constituição e acompanhamento das assessorias territoriais - de Gestão Social e Inclusão Socioprodutiva.

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Práticas e atores da educação ambiental Território Rural do Campos de Cima da Serra Ao se considerar a relação direta entre processos participativos e desenvolvimento5, há de se reconhecer o potencial da proposta territorial no sentido de revelar e/ou estruturar a forma como se dá o exercício da “liberdade substantiva6” - no sentido de liberdade quanto à atribuição de valores, a regras e procedimentos - dos agentes e atores envolvidos no processo, representando este seu aspecto/espaço/poder educativo. De forma geral, o planejamento e a formulação das políticas públicas caracterizam-se, no Brasil, por dar continuidade à dinâmica multissetorial, historicamente estabelecida desde sua constituição, com enfoque às diferentes áreas e demandas sociais. Na tentativa de modificação deste quadro, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, as políticas ambientais estão direcionadas ao desenvolvimento de ações participativas, tendo na Educação Ambiental, sobretudo, um espaço de reflexão e prática de valores que se substantivem na interdependência entre o meio natural, o socioeconômico e o cultural, sob o enfoque humanista, democrático e participativo7 (Brasil, 2012). Nesta perspectiva, Favareto (2010) e Schneider (2004), assinalam que esse arranjo institucional que passou a sustentar a redefinição das ações e intervenções institucionais, denominado “Desenvolvimento Territorial”, busca valorizar a participação da sociedade civil (Schnei5 Segundo Sen (2000: 52), as visões mais estreitas de desenvolvimento, por exemplo, as baseadas apenas no PIB ou industrialização, não reconhecem a participação e a dissensão política como partes constitutivas do próprio desenvolvimento, cujo processo, quando julgado pela ampliação da liberdade humana precisa incluir a eliminação da privação da livre expressão ou da participação. Para o autor, a importância crucial da liberdade individual no conceito de desenvolvimento, relaciona-se à avaliação e eficácia, pela sua condição de verificação do êxito de uma sociedade a partir da avaliação das liberdades constitutivas que os seus membros desfrutam (Sen, 2000: 32). 6 Duas são as formas de liberdade substantiva consideradas: a intrínseca e a instrumental. A primeira com o objetivo proeminente de buscar o desenvolvimento e a segunda, a instrumental, cujo papel concerne “ao modo como diferentes tipos de direitos, oportunidades e intitulamentos contribuem para a expansão da liberdade humana e promoção do desenvolvimento”:1) liberdades políticas; 2) facilidades econômicas; 3) oportunidades sociais; 4) garantias de transparência e 5) segurança protetora (Sen, 2002: 54-57). 7 Resolução Nº 2, de 15 de junho de 2012, do MEC/CNE/CP, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental. 140 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

der, 2004) na elaboração de políticas públicas, e sua articulação irá enfocar e promover uma abordagem territorial voltada para o rural. Segundo Favareto (2010) a “abordagem territorial do desenvolvimento rural” traduz uma condição em que não faz mais sentido tratar o rural como sinônimo do agrário e que é necessário compreendê-lo, sobretudo, por sua “natureza eminentemente territorial” (Favareto, 2010: 299). A “abordagem territorial do desenvolvimento rural” defendida pelo autor se relaciona diretamente ao reconhecimento de novas dinâmicas espaciais, como reconhecem Veiga (2000) e Abramovay (2003). Como já assinalado anteriormente, verifica-se no Território a existência de processos organizativos em diferentes estágios e institucionalizações, que delimitam limites à equação das questões ambientais, que envolvem o desafio sustentável regional. No que tange ao planejamento dos “processos por meio dos quais, o individuo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade” - o que se entende por Educação Ambiental, segundo a Lei 9.795, 1999, art. 1° - não há reconhecimento de redes articuladas no/com o Território Rural Campos de Cima da Serra. Com o objetivo de agregar contribuições ao NIPEDETE CCS e ao fortalecimento do CODETER, e tendo como lócus os processos educativos presentes nestas dinâmicas territoriais, encontra-se em andamento o projeto de pesquisa denominado “Diagnóstico de práticas e atores da Educação Ambiental no Território Rural Campos de Cima da Serra – RS”, investigando as seguintes questões: quem são os atores, grupos e redes envolvidas com a EA inseridas no espaço denominado Território Rural Campos de Cima da Serra? Como se estruturam, relacionam-se entre si, entre as redes e com o Colegiado Territorial? Como compreendem sua participação na formulação das políticas do Território? Entre os dados preliminares, coletados no âmbito da pesquisa, verifica-se que a organização administrativa da gestão ambiental nos municípios que compõem o Território Rural Campos de Cima da Serra caracteriza-se pela mescla de interesses sob uma mesma jurisdição, em mais de 75% das organizações municipais (Quadro1). Neste sentido, como demonstrado no Quadro 1 acima, e a par do entendimento acerca da precarização de muitos municípios, frente Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 141

às demandas resultantes da descentralização administrativa imputada pelo cenário político nacional, este quadro em que se mesclam interesses divergentes sob uma mesma organização administrativa - impactando e/ou obstruindo as demandas ambientais - reflete escolhas políticas implicadas em processos de não neutralidade decisória. De forma imperiosa, tais decisões político-administrativas refletem/são refletidas na formulação das políticas públicas locais e regionais, replicando-se no seu contexto educativo, social e cultural. Quadro 1 - Organização Administrativa da Gestão Ambiental nos Municípios que compõem o Território Rural Campos de Cima da Serra, RS

Fonte: FEE (2016)

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Tabela 1 - Dados socioeconômicos do Território Rural Campos de Cima da Serra/RS

Fonte: FEE (2016); IBGE (2010); PNUD (2010). Notas IDH Municipal (*) Se refere a Posição no TRCCS (E) Se refere a dimensão Educação do IDH-M é medida pela combinação de 2 fatores: acesso e avaliação. Para o fator acesso à educação da população de uma localidade, são considerados dois indicadores: a porcentagem de pessoas alfabetizadas entre os moradores com mais de 15 anos de idade daquele lugar (com peso dois no cálculo final) e a taxa de freqüência bruta a salas de aula (peso um). O fator avaliação da educação de uma população é o percentual de alfabetizados maiores de 15 anos. A taxa de alfabetização é obtida pela divisão do total de alfabetizados maiores de 15 anos pela população total de mais de 15 anos de idade do município pesquisado. Maiores especificações ver: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/ pt/o_atlas/idhm/

Um segundo cruzamento, que relaciona indicadores de autonomia na gestão ambiental dos municípios e os índices de IDH-M/IDH (Quadro 1 e Tabela 1), aponta a existência de diferentes agrupamentos, como segue: 1. Um primeiro, formado pelos municípios de Canela (4º), Caxias (1º), Ipê (5º) e São Marcos (2º), apresentam correlação positiva entre autonomia na gestão ambiental, situam-se no topo do ranking de IDH entre os municípios componentes do TRCCS e apresentam correspondência entre seus índices de IDH – Geral e Educação. 2. Um segundo grupo, embora sem autonomia na gestão ambiental dos municípios, apresenta correspondência positiva na Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 143

correlação IDH G e E: Jaquirana, situado em último lugar no ranking IDH-M=IDH E (13º), Vacaria (6º) e Antonio Prado (3º). 3. Um terceiro grupo de municípios, apresenta discrepâncias na relação IDH-M ≠ IDH E, respectivamente: Bom Jesus (10º e 11º), Cambará (8º e 7º), Campestre (7º e 8º) Monte Alegre dos Campos (12º e 11º), São Francisco de Paula (9º e 10º) e São José dos Ausentes (11º e 9º). Este último com diferença de 2 pontos percentuais na comparação entre IDH-M e IDH-E. Entre eles, apenas Cambará do Sul e São Francisco de Paula apresentam autonomia administrativa na gestão ambiental municipal. Segundo Ruscheinsky (2002: 8), a pesquisa sociológica caracteriza-se por reconhecer pautas de investigação inerentes aos processos democráticos instituídos, nos quais “a expansão das atribuições de desempenho dos atores sociais, em consonância com práticas sociais geradoras de políticas públicas precisa ser interpretado à luz da ampliação dos espaços de legitimidade do poder público, da expansão da burocracia ou do corpo técnico usurpador do ideário original”. Nesta perspectiva, o reconhecimento de diferentes configurações no interior do território e suas implicações na formação das instâncias deliberativas intermediárias no papel de potencialização e fomento da capacidade técnica, cultural e política, para que as decisões reflitam interesses do público alvo, implica em desdobramentos na investigação em curso. Para tanto, foram selecionados de 02 (dois) municípios por agrupamento, a saber: Canela e Ipê; Jaquirana e Vacaria e São Francisco de Paula e São José dos Ausentes (em grifo acima). Territórios invisibilizados de Cultura Quilombola nos Campos de Cima da Serra O subprojeto “Territórios Quilombolas nos Campos de Cima da Serra: Imagens, Narrativas e Memórias desde o (In)visível” tem como principais objetivos: mapear as comunidades quilombolas e remanescentes de quilombos na região, a partir de sua localização geográfica e territorial e a elaboração do perfil sociodemográfico das populações; realizar análises de necessidades e de demandas psicossociais, a fim de acessar e/ou elaborar políticas públicas de interesse dessas populações; 144 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

revisitar as histórias e memórias quilombolas, a partir de narrativas, imagens e práticas socioculturais. Para não falar em “objeto” de pesquisa, adotamos o foco epistemológico de olhar, revisitar e pensar as imagens, narrativas e memórias sobre as comunidades e territórios quilombolas. Nessa pesquisa as narrativas e imagens são consideradas elementos da memória social, conceito que será abordado nos termos de Certeau (2012) como contexto de experiências. Trataremos da memória como um dispositivo de “possíveis” e não como algo a ser recuperado fidedignamente do original. A memória não será tratada como um objeto, mas como contexto de relações subjetivas e intersubjetivas que se constituíram nas comunidades quilombolas dos Campos de Cima da Serra e que podem ser acessadas por meio das narrativas de pessoas e documentos que serão pesquisados e revisitados. Os quilombos se mantiveram durante séculos através de uma unidade social com base em estratégias de solidariedade, de produção de valores culturais, através da combinação de formas de resistência que se consolidaram historicamente e o advento de uma existência coletiva capaz de se impor às estruturas de poder que regem a vida social (Almeida, 2004). Quilombos são grupos étnico-raciais segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (Decreto 4.887/2003). Quanto às políticas públicas, a coordenação de políticas públicas das questões quilombolas é administrada pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SPPIR) e pela Secretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais da Presidência da República. Uma importante política pública é o “Programa Brasil Quilombola” que existe desde 2004 e articula-se em quatro eixos: 1. Acesso à terra; 2. Infraestrutura e qualidade de vida; 3. Desenvolvimento local e inclusão produtiva; 4. Direitos e cidadania. Onze ministérios compõem o seu comitê gestor, coordenados pela SEPPIR/PR: 1. Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial 2. Casa Civil da Presidência da República 3. Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) 4. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) 5. Ministério da Cultura (MinC) e Fundação Cultural Palmares (FCP) 6. Ministério das Cidades 7. Ministério da Educação (MEC) e Fundo Nacional de Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 145

Desenvolvimento da Educação (FNDE) 8. Ministério da Saúde (MS) e Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) 9. Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) 10. Ministério da Integração Nacional (MIN) 11. Ministério de Minas e Energia (MME). Sua gestão estabelece interlocução com órgãos estaduais e municipais de promoção da igualdade racial (PIR), associações representativas das comunidades quilombolas e outros parceiros não governamentais. As Bases Legais em vigor são: a Constituição Federal de 1988 Artigos 215 e 216: Direito à preservação de sua própria cultura; o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT): que garante o direito à propriedade das terras de comunidades remanescentes de quilombos. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mediante o decreto 5051/2004 de direito à autodeterminação de Povos e Comunidades Tradicionais. A Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010: Estatuto da Igualdade Racial. O Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003 que trata da regularização fundiária de terras de quilombos e define a responsabilidade dos órgãos governamentais. O Decreto nº 6040, de 07 de fevereiro de 2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. O Decreto nº 6261, de 20 de novembro de 2007 que dispõe sobre a gestão integrada para o desenvolvimento da Agenda Social Quilombola no âmbito do Programa Brasil Quilombola. A Portaria Fundação Cultural Palmares nº 98 de 26 de novembro de 2007 institui o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos da Fundação Cultural Palmares, também autodenominadas Terras de Preto, Comunidades Negras, Mocambos, Quilombos, dentre outras denominações congêneres. A Instrução Normativa do INCRA nº 57, de 20 de outubro de 2009 regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas. No Brasil os números estimados são: 1.948 comunidades reconhecidas sendo: 1.834 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP), sendo 63% delas no Nordeste e 1.167 processos abertos para titulação de terras no INCRA. No Estado do RS 117 famílias foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares (dados de julho, 2012). A Federação das Associações das Comunidades Quilombolas do Rio Grande do Sul informa que existem mais de 130 comunidades quilombolas no estado, 146 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

sendo a principal luta dessas comunidadesassegurar o uso de suas terras, apesar desse já ser um direito assegurado na Constituição Federal. Nos Campos de Cima da Serra, RS, temos alguns territórios invisibilizados de cultura quilombola. A região possui uma herança negra escravagista forte, porém muitas vezes negada. Muitas famílias saídas das fazendas em busca de independência e autodeterminação ocupavam territórios das zonas rurais e urbanas para fixar moradia e resistência. Esses “territórios” apesar de não terem sido devidamente cadastrados e já não possuírem moradores quilombos ou remanescentes, precisam ser mapeados e localizados como patrimônios de memória social. Além disso, dentro do Parque dos Aparados da Serra, uma área com forte impacto turístico na região, alberga em seu interior a Comunidade Quilombola São Roque que há anos vem enfrentando conflito com a administração do Parque, o Instituto Chico Mendes (ICMBio). A comunidade São Roque está situada no extremo sul de Santa Catarina, limítrofe ao RS e no interior do estado do RS, onde se delineiam os cânions da Serra Geral, nos Campos de Cima da Serra. A comunidade se define quilombola após o Decreto 4.887/2003 e ocupa hoje a ínfima parcela de 2% de seu território de direito. Desde a abertura do processo para regularização territorial, a comunidade vem enfrentando uma série de pressões por parte de instituições regionais e públicas contrárias ao seu pleito pelo território e sua identificação como remanescente de quilombo. Ocorre que 36% da porção territorial foi transformada em Unidade de Conservação (UC) ambiental de proteção integral: os Parques Nacionais de Aparados da Serra interditando a residência humana na área, apesar desete famílias quilombolas ainda resistirem sob fortes investidas proibitivas e punitivas do órgão ambiental responsável. O conflito segue ativo enquanto o INCRA defende a titulação integral do território e o ICMBio pede a realocação das famílias. O Ministério Público Federal vem tentando promover a interlocução entre ICMBio, INCRA e comunidade, buscando a construção de um termo provisório que possibilite a continuidade da ocupação e dignidade às famílias. O conflito não encontra meios de negociação, pois se os gestores entendem que a comunidade deve ser reassentada, por outro lado, a comunidade entende que ali é seu lugar. A pesquisa pretende, então, mapear esses territórios (in) visíveis, revisitando-os enquanto memórias sociopolíticas da região, além de melhor compreender/explicar as conflitualidades os e possíveis meios de negociação/resolução. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 147

Para tal, a abordagem metodológica iniciará com a contextualização dos territórios e comunidades quilombolas ou remanescentes de quilombos, localizadas exclusivamente nos Campos de Cima da Serra/ RS. Será realizada uma pesquisa mista (qualitativa e quantitativa) e triangulada, usando os seguintes procedimentos e técnicas: pesquisa em fontes secundárias, bases de dados e sites governamentais (elaboração de estatísticas descritivas), pesquisas documentais e imagéticas, imersões antropológicas nos territórios e entrevistas/grupos focais com pessoas referenciais. Os procedimentos serão realizados a partir das etapas: 1ª Mapeamento dos Territórios: Através de pesquisas em fontes secundárias, entrevistas a partir da metodologia “bola de neve” e de contatos com informantes-chave serão mapeadas as comunidades quilombolas na região dos Campos de Cima da Serra. 2ª Etapa: Imersão em Campo: Realizada a partir de saídas de campo, a fim de elaborar a caracterização sociodemográfica das populações. Será utilizada metodologia mista, a partir dos indicadores: número de habitantes, sexo, idade, caracterização das famílias, ocupação e uso do território, relações de trabalho, mobilidade social, hábitos e rituais, conflitualidades territoriais e sociopolíticas etc. A análise de necessidades sociais e de demandas psicossociais investigará os sentimentos de pertença, o acesso a bens, serviços, políticas públicas e sociais e a constituição e densidade das redes sociais. A partir da exploração narrativa e imagética serão registradas as histórias, memórias, práticas socioculturais e rituais junto às comunidades quilombolas. A experiência narrativa prevê que os participantes falem livremente sobre todos aqueles aspectos que caracterizam suas histórias e trajetórias. Os instrumentos e técnicas serão as entrevistas, questionário, método “bola de neve”, saídas e “imersão” em campo, filmagens, registros fotográficos. Considerações Finais A partir dos estudos que vêm sendo conduzidos pelos autores, no âmbito do Território Rural Campos de Cima da Serra, algumas constatações preliminares são possíveis, ainda que não conclusivas. Para além da execução de políticas públicas, a formação dos Territórios Rurais implica na construção de identidades. Neste sentido, se constitui um grande desafio a construção identitária do Território Rural Campos de Cima da Serra, com suas distintas paisagens, compostas tanto por uma diversidade natural como cultural, abarcando trajetórias de 148 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

diferentes comunidades e o desafio de construir uma agenda territorial comum, considerando diferentes indicadores e sua influência na recepção/participação/formulação das/nas políticas territoriais. Ainda que a participação das organizações da sociedade civil seja frágil, percebe-se uma lenta e gradual adesão ao CODETER. Em parte, esta adesão deve-se ao trabalho de articulação política das assessorias territoriais. Esta constatação impõe uma questão imperativa: como se dará esse trabalho de articulação, após findar a participação das assessorias?

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na roça, na mesa, na vida: uma viagem sobre as rotas da mandioCa ao fazer-se beiJu em araí miguel de nAzAré brito picAnço

O ponto de partida O Pará, sem dúvida, é um dos mais exuberantes estados brasileiros, com consideráveis potenciais que vão desde o extrativismo, a pecuária e a agricultura, sem falar na sua fauna e flora. Porém, de todas as riquezas existentes, a mais importante está na diversidade cultural do povo paraense, que se encontra distribuído nos 146 municípios que compõem seu território. Conforme se adentra no interior do estado, torna-se evidente o amálgama de precariedade e abundância que permeiam esse lugar, que, por um lado, é carente daquilo que seria básico para uma vida decente, mas, por outro, é marcado pela exuberância que extrapola sua carência e demonstra no povo aquilo que de mais rico ele tem, que é a criatividade. Penso até que a criatividade para produzir pode chegar ao ponto de suprimir as carências materiais. Assim é o povo que habita na região bragantina paraense, que faz do seu ofício de artesão fonte de superação da pobreza e do descaso governamental. Os artesãos da região aos quais me refiro aqui são aqueles trabalhadores rurais que habitam no interior da região bragantina, especialmente no munícipio de Bragança e Augusto Corrêa, cuja principal rede produtiva é a pesca e a agricultura. Na agricultura, suas atividades principais estão focadas no cultivo da mandioca, que se configura, para muitos, como única atividade e fonte de suas sobrevivências, em que, quase tudo é feito de forma extremamente simples e artesanal, mas carregado de adjetivos como beleza, inteligência e muito sabor. Mas, é na comunidade de Araí que a mandioca desempenha outro relevante papel quando seu valor comensal opera na construção das identidades culturais dos sujeitos que ali habitam e, que fortalece a traPanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 153

dição reconstituindo lógicas de pertencimento, mas ao mesmo tempo permitindo rearranjos dessas lógicas e de concepções mais extensas, por exemplo, de família. Nesse lugar, há uma ressignificação ou certa singularização da mandioca que na Semana Santa, se transforma em outro bem, tratando-se aqui do beiju1. Foi por essas razões que seguir as rotas pelas quais a mandioca transita na região bragantina, em especial na comunidade de Araí, em Augusto Corrêa, para assim observar, compreender e etnografar a biografia desse bem até o momento em que ele se converte em beiju. De Belém ao Araí: as rotas pelas quais a mandioca transita até fazer-se beiju ROTA DESBRAVA OS SABORES DA AMAZÔNIA: cinco chefes de cozinha viajam rumo ao interior paraense para entender por que esta gastronomia é tão cheia de saber e história (Jornal Diário do Pará, 2014: 1).

O excerto acima citado foi manchete do caderno Cidade, de um dos mais conceituados jornais da capital paraense, o Diário do Pará, e versa sobre uma viagem gastronômica que teve como destino seguir a rota da mandioca na região nordeste do Estado, especialmente na região bragantina, com o intuito de conhecer a potencialidade do uso desse bem na gastronomia para além da região. O recorte do assunto abordado vem ressaltar que: [...] Depois de uma semana de profunda vivência na primeira viagem do “Laboratório do sabor - expedições gastronômicas”, uma ideia inovadora do chefe de cozinha Ricardo Frugoli que trouxe outros cinco chefes [...] para saborear intensamente o Pará. Por aqui, o grupo seguiu a Rota da Mandioca, e a escolha não foi ao acaso. “[...] em 15 anos de estudo de gastronomia e de vivência turística, descobri que a mandioca é o principal produto da culinária brasileira e, portanto, essencial para a gastronomia, principalmente do Pará, que a utiliza de forma tão diversificada 1 Uma espécie de bolo, cuja mandioca é sua matéria prima, que é produzido, trocado e consumido pelos moradores de Araí, apenas na Semana Santa. 154 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

e saborosa”, explica Ricardo. As expedições gastronômicas têm rotas previstas em outros locais do Brasil, [...] mas para Ricardo a Rota da Mandioca é a mais importante “A mandioca está presente em muitos pratos pelo país, mas, no Pará vi os usos mais diferentes [...]” (Jornal Diário do Pará, 2014: 1).

Aqueles que vivem ou conhecem o cotidiano da região nordeste e da capital paraense hão de compreender as afirmativas contidas na matéria supracitada, isto porque, a mandioca é um bem que permeia a vida daquela população. Afirmo isto enquanto nativo desse Estado e dessa região bragantina, em especial da vila de Araí, no meio rural do município de Augusto Corrêa, onde nasci. Diria que conheço bem a rota da mandioca, talvez para além do que foi visto pelo Chefe, uma vez que sigo e vivo essa rota durante toda minha existência. Sou um admirador e consumidor da gastronomia que deriva da mandioca, assim como na infância fui produtor desse bem junto com meus pais. Por muitas vezes, embrenhei-me com eles nos caminhos das roças para roçar o lugar, plantar, capinar a roça, extrair a mandioca, submergi-la na água para prepará-la para a farinha ou, até mesmo, na casa do forno2 fazendo a farinha. Enfim, são várias situações que me legitimam a afirmar que existe certa intimidade entre minha vida e a/ou as rotas da mandioca e por muitas vezes me apropriei dessa minha experiência para compor este trabalho. A mandioca se manifesta no cotidiano dos paraenses para além de um bem a ser consumido, ela também se materializa no imaginário popular dos nativos, que acreditam que, certa vez, em uma tribo, a filha de um poderoso Tuxaua engravidou. Esse fato teria causado vergonha e desonra para o pai da moça que a expulsou da tribo. Esta passou a viver numa palhoça na beira do mato até dar à luz a uma menina de pele extremamente branca. O avô, ao ver a menina, decidiu matá-la, pois acreditava que sua cor demostrava a insatisfação de Tupã. Em uma dada noite, Tuxaua teve um sonho com um grande guerreiro branco que lhe dizia que sua filha seria inocente e que, portanto, sua neta deveria viver. Caso a matasse, sofreria grande castigo, o que o fez desistir do assassinato. 2 A casa do forno é o lugar onde estão fixados todos os recursos necessários para a produção da farinha, tais como: o tipiti, a gamela grande, a gamela pequena, a peneira, o ralo – este último é denominado de Catitú pelos nativos – e o forno. Todos esses equipamentos são construídos e manuseados artesanalmente e são rudimentares. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 155

A menina passou a chamar-se Mani e morreu antes de seu primeiro aniversário. Tupã ordenou que seu corpo fosse sepultado dentro da oca do Tuxaua, e assim foi feito. Todos os dias, os índios regavam a sepultura da menina, como era de costume entre eles. Passado algum tempo, nasceu sobre a cova da menina uma planta verde desconhecida, cujas folhas teriam formato de uma mão, e quando os pássaros a comiam, ficavam embriagados. Certo dia, a terra rachou ao pé da planta, e emergiram raízes de cor marrom. Os índios as colheram, as descascaram e foram surpreendidos ao se depararem com o produto contido dentro da casca: a raiz branca como a cor da pele de Mani. Acreditaram que era milagre de Tupã e passaram a se alimentar das raízes marrons de conteúdo branco. A partir de então, começaram a cultivar a planta e a batizaram com o nome de Mandioca ou Manioca, cuja tradução é: corpo de Mani. “Mani” remeteria ao nome da menina e “oca” ao local onde seu corpo foi enterrado. Esta lenda se faz presente no imaginário dos habitantes da região bragantina, em especial daqueles que habitam o meio rural, e é contada pelos mais velhos da região. Pode-se dizer que, nos dias atuais, a mandioca tem se deslocado da roça e do imaginário mitológico paraense e tem ganhado a mesa dos brasileiros e quiçá do mundo3, pois seu consumo tem se efetivado de maneira distinta pelo planeta4. No estado do Pará, a cultura deste bem está voltada predominantemente para a produção de farinha de mandioca, em que o consumo, em alguns casos, se dá como complemento alimentar; em outros casos, é o alimento principal. 3 É um engano, porém, supor que a transição da autossuficiência e do isolamento para a interdependência e a globalidade aconteceu de maneira repentina. A difusão mundial de certos alimentos, como os que foram primeiro cultivados no Novo Mundo, é muito mais antiga do que a chamada "globalização", e é importante continuar lembrando os entusiasmados globalistas - que parecem ser tantos - dessa verdade tão pouco espetacular. A difusão do milho, da batata, do tomate e da pimenta-do-reino, da mandioca e do pimentão, do amendoim e da castanha, tanto no Novo quanto no Velho Mundo, não precisou de transporte aéreo, de cientistas de aventais brancos, do McDonald's, nem de engenharia genética - nem tampouco de propaganda, e muito menos de antropólogos - e começou a acontecer há quinhentos anos (Mintz, 2001: 33). 4 Segundo Bezerra (2009), a mandioca é transformada para ser consumida como insumo no processo produtivo mundial em vária linhas industriais. Isto ocorre em linha da indústria de alimentação como: caramelos, massas, panificação, bebidas; na construção civil, na indústria têxtil, na indústria de cosmético, mineração e petrolífera entre outras. 156 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Partindo desse pressuposto, na capital paraense, Belém, a farinha é ingrediente indispensável e, nas principais refeições, ela aparece como complemento, porém, se nelas estiver agregado o açaí, então a farinha deixa de ser complemento e passa a ser um dos alimentos principais. Observa-se que, no meio rural do nordeste paraense, a farinha toma forma de alimento principal de quase todas as refeições. Em muitos casos, ela é a única fonte de alimento. Além de ser fonte de alimentação enquanto farinha, a mandioca também é fonte de sobrevivência, pois muitos agricultores a produzem para comercializá-la nas feiras e mercados dos municípios da região bragantina e da cidade de Belém. Porém o cultivo da mandioca extrapola a produção de farinha e toma forma de outros produtos e bens alimentícios, pois, além da raiz, se consomem também as folhas da planta. Da raiz se extrai a goma5 (fécula) e o tucupi6, enquanto a folha é utilizada como principal ingrediente da maniçoba7. Todos os produtos derivados da mandioca são comercializados nas feiras, mercados, restaurantes ou nas barracas que vendem comidas típicas da região, encontradas pelas ruas das cidades paraenses. A maioria deles é produzido de forma artesanal, porém, em alguns casos, como a farinha de tapioca, já foram agregados na sua linha de produção recursos tecnológicos que possibilitaram produzir em larga escala, atendendo ao mercado local, nacional e até internacional. Esses produtores têm ampliado suas linhas de produção mediante a implementação de políticas públicas estaduais que lhes permitem angariar recursos financeiros e capacitá-los para melhoria de suas produções. Apesar da implementação de algumas inovações tecnológicas no processo produtivo do cultivo da mandioca e da produção de seus derivados, o modelo predominante nesse processo é aquele que se dá por meio da agricultura familiar, em que pequenos agricultores desempenham suas atividades seguindo a lógica das relações de parentesco, desde 5 Da goma deriva outros produtos que compõem a mesa do paraense, a saber: 1farinha de tapioca que tem característica granular irregular, coloração branca, crocante com alto teor de amido e alto e baixo teor de proteína, utilizada de diversas formas na culinária regional; 2- É utilizada para a produção da tapioca; 3- É ingrediente fundamental na produção de tacacá (alimento típico do Pará). 6 Na prensagem da massa de mandioca é extraído o tucupí, que é um líquido amarelado utilizado na culinária paraense, como o Pato no Tucupi e o Tacacá. 7 A maniçoba é um prato típico do Estado do Pará cujo ingrediente principal é a folha da mandioca que deve ser prensada e cozida por sete dias antes de ser inserida aos outros ingredientes. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 157

o desmatamento da área onde a mandioca é cultivada até os produtos finais desse processo, quando a mandioca já está transformada em farinha d’água ou de tapioca, ou goma, tucupi ou beiju. A comercialização desses produtos se dá, na maioria das vezes, por meio de atravessadores que negociam diretamente com o produtor e os renegociam nas feiras, supermercados e mercados das cidades paraenses. Em alguns casos, esses produtores estão organizados em associações, o que de certa maneira lhes possibilita negociações com o Estado, no sentido de fomentar recursos para a melhoria da produção, assim como provimento de acesso direto ao mercado. Esse é modelo produtivo implementado em quase toda a região bragantina, inclusive na comunidade de Araí. Assim sendo, examinando a biografia da mandioca, seguindo as rotas pelas quais ela transita na região bragantina, cheguei até a comunidade de Araí, que está localizado no meio rural a 60 km da cidade de Augusto Corrêa, na região nordeste do Estado do Pará. É um vilarejo com aproximadamente três mil habitantes, sendo uma das maiores comunidades rurais do município, onde se observa um processo de singularização da mandioca que se difere de todos os produtos até aqui descrito, a saber: nesse lugar e na Semana Santa, ela transforma-se em beiju. Os fenômenos aqui estudados fazem parte da minha vida, isto porque sou oriundo daquele lugar, onde vivi até os doze anos de idade. Desde então, somente retornei à comunidade no ano de 2010, na época da Semana Santa católica, o que me possibilitou participar das comemorações alusivas a este período de tempo sagrado para a comunidade local e me permitiu observar que aquela semana era efetivamente diferente: que o evento provocava mudanças na dinâmica social dos que habitam aquele lugar; que determinada transformação ocorria na vida daqueles moradores a partir da relação estabelecida inicialmente entre eles e uma determinada coisa8, ou seja, o preparo do beiju para a Sexta-Feira Santa e seu consumo no mencionado dia e isto parecia ter um valor social, econômico e, quiçá, místico ou religioso para aquela comunidade, pois durante uma semana, tudo girava em torno da produção do beiju, que, depois de pronto, se estendia para além da alimentação; possibilitava e promovia, de certo modo, aproximação entre as pessoas, troca simbólica entre elas, momento em que afloravam, entre outras, as relações de gênero, nas quais as mulheres desempenhavam papel fundamental. 8 A ideia de coisa aqui é pensada na perspectiva definida por Ingold (2012), e encontra-se detalhada na próxima sessão deste trabalho. 158 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Percebi também que a iguaria se constituía em importante operador da religiosidade, de sociabilidade e reciprocidade entre aquele povo. Foi a partir dessa percepção que se instaurou em mim a curiosidade e, ao mesmo tempo, uma vontade de estudar as rotas da mandioca, com a intenção de perceber os momentos em que ela se faz e se refaz em outros os produtos e bens de troca e consumo, como o circuito9 do beiju. Esse é um circuito intenso que, de certa forma, se concretiza na singularização da mandioca, o que possibilita sua ressignificação ao fazer-se beiju. Nesse sentido, as práticas supracitadas dizem muito sobre a vida daqueles que moram naquela comunidade e encontram-se incorporadas nas referências do ethos10 daquele povo. Dessa maneira os ciclos da mandioca e o circuito do beiju são aqui pensados para além da lógica dos vínculos que os precedem, pois meu olhar está voltado para duração dos vários percursos e trajetórias dos ciclos produtivos e de trocas da mandioca, até os ciclos rituais11, nos quais se faz beiju e quando ele já está preparado para ser distribuído, trocado e consumido. Discuti sobre esse processo é o que farei nas linhas que seguem. 9 Aqui o sentido atribuído a circuito está em consonância ao significado que Lopes (2012: 148) atribuiu ao termo: “Denomino como circuito um trajeto específico demarcado pela movimentação de atores significativos na produção de um evento festivo [...]”. 10 Refere-se aqui a definição de Gaiger (1995: 56), que diz: “O ethos compreende aquelas referências que moldam um esquema mental organizador dos sentidos e dos comportamentos. Diz respeito a uma sabedoria implícita, ao domínio de um conjunto de informações, de códigos e de modalidades operacionais adquiridos ao longo de um itinerário de vida, que aos poucos deixa sedimentado no indivíduo um conjunto de saberes e um senso prático determinado. Configura um sistema de disposições duráveis, por meio do qual o indivíduo percebe o que chega aos sentidos. Formula seus julgamentos e define sua ação. Constitui um sistema de crenças, um modo de compreensão e um modelo de comportamento que orientam as opções relativas à construção da vida cotidiana e, também, a resposta diante de situações excepcionais que colocam o indivíduo em conjunturas efetivamente perturbadoras”. 11 Ritos são aqui pensados, segundo a definição de Robbins (2014: 23-24)), de que “os rituais permitem que as pessoas suspendam a complexidade das relações entre os muitos valores com os quais elas se deparam na vida cotidiana e vivam a experiência de apreender e concretizar um único valor de modo pleno [...]; ao comprometer-se a realizar os resultados do ritual, as pessoas também se comprometem a concretizar os valores incorporados nesses resultados. [...] uma vez que todo ritual, enquanto ação performativa, exige o compromisso dos participantes com uma meta específica, cada um deles também pressupõe e, com frequência, também expressa explicitamente o valor que essa meta realiza. É nesse sentido que os rituais oferecem oportunidades para realização de valores únicos de modo mais pleno e também tendem a oferecer representações claras dos valores que eles expressam”. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 159

Os acordos da produção Em Araí, além de todas essas materializações já descritas até aqui, a mandioca se apresenta de uma forma que não se vê em nenhum outro lugar da região. É na Semana Santa que ela muda seu ciclo vital, e sua biografia se torna inconfundivelmente singular, deixando de ser qualquer desses produtos vistos até então e se constitui em um bolo especial que, em Araí, recebe o nome de Beiju que é feito a priori para ser doado, trocado entre os católicos e até não católicos do lugar. Entendo que esse processo de singularização que ocorre com a mandioca é assegurado pela cultura, que garante a essa coletividade resistir à mercantilização e, algumas vezes, até ressingulariza aquilo que foi mercantilizado (Kopytoff, 2008). O processo que culmina com o circuito do beiju se inicia no ano anterior, quando os acordos são firmados e materializados no cultivo das roças de mandioca, culminado com a Semana Santa, quando o beiju é preparado, repartido e compartilhado entre os envolvidos nesse processo. Esses acordos se dão da seguinte maneira: aqueles que praticam a mandiocultura doam a mandioca para parentes ou amigos que não dispõem da raiz. A doação não se dá de forma desinteressada, já que, neste caso, as partes acordam que a produção será dividida “na meia” (metade). Tal acordo é firmado algumas semanas antes da Semana Santa e é orientado pelas relações de parentesco, vizinhança e amizade. Outra forma de negociação, que até pouco tempo não existia, é aquela em que a mandioca é vendida, e geralmente os negociadores não estabelecem qualquer relação de proximidade. Nesta mesma lógica, ocorre outra maneira de negociação, que é aquela em que se compra não a mandioca, mas o beiju. Este último caso é menos comum, porém é real. Neste caso, os materiais que dão vida à coisa aqui tratada, ou seja, ao beiju na Semana Santa, já vazaram da lógica da tradição daquilo que deveria seguir uma rota coletiva, ou seja, a produção do beiju para troca entre os sujeitos do circuito religioso da Semana Santa. As coisas vazaram na medida em que, excedendo a regra, sujeitos estabelecem nesse circuito relações de mercado, onde a mandioca e os outros ingredientes do beiju são comercializados e, em casos extremos, a mandioca já materializada como beiju também é vendida. A ideia de coisa tratada aqui tem como pressuposto as proposições de Ingold (2012), cujo argumento central está focado numa 160 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

ontologia que se impõe ao modelo hilemórfico que ainda norteia os debates no campo das ciências. Ingold fundamenta sua proposição argumentando que o mundo em que vivemos é habitado não por objetos, mas, ao contrário, é habitado por coisas. Os objetos seriam aqueles “artefatos” que, diante de nós, se apresentam como aquela forma imposta “por um agente com um determinado fim ou objetivo em mente sobre uma matéria passiva e inerte” enquanto que coisa, “[...] por sua vez, é um “acontecer”, ou melhor, um lugar onde vários aconteceres se entrelaçam. Observar uma coisa não é ser trancado do lado de fora, mas ser convidado para a reunião”, assim, a coisa não é um objeto, “[...] mas um certo agregado de fios vitais [...] um parlamento de fios” (Ingold, 2012: 29). Ao tratar as coisas não mais como objetos, Ingold nos convida a repensar a maneira dicotômica pela qual a teoria tem tratado a relação entre as coisas e os humanos, ou seja, entre a natureza e a cultura. Atualmente, os teóricos dão ênfase na agência material, isto porque persistem em tratar as coisas como objetos e, quanto mais eles falam em agência, “[...] menos eles parecem ter a dizer sobre a vida [...]” (Ingold, 2012: 29). Ao afirmar isto, Ingold (20012) também nos diz que as abordagens existentes até então que se propuseram discutir questões inerentes a cultura material, em especial no que se refere a agências de objetos, ou ainda nas questões de materialidade, fizeram sob o prisma do modelo hilemórfico de Aristóteles, que pensa o objeto a partir de uma composição dual: a forma, que corresponderia ao estado final, produto da ação de um agente e a matéria que seria aquilo imposto por um agente ao objeto lhe dando forma. Nessa lógica o objeto é pensado numa perspectiva passiva e inerte, portanto, sem vida. Numa tentativa de superar essas abordagens que até então tem marcado os estudos sobre acultura material na teoria social, Ingold, propõem então outro olhar sobre a questão, quando em suas proposições o autor tentar ressuscitar os objetos que no modelo hilemórficos estariam mortos. Aliás, para o autor, aquilo que até então foi chamado pelas teorias de objetos, não o são, são coisas. Para fundamentar sua ideia de que o mundo que vivemos é composto por coisas e não por objeto, o autor usa como exemplo a condição de uma árvore. E para tal, ele se detém aos elementos que compõem esse vegetal e as relações que ocorrem entre eles e a árvore e entre ela e eles, Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 161

desde os insetos, a casca da árvore, os pássaros e seus ninhos, em fim, todo o movimento que faz com que a árvore seja árvore na sua plenitude. Seria então, esse movimento o que lhe conferiria o status de coisa (árvore viva) e não de objeto (árvore morta), isto graças aos elementos que a compõem num“[...] agregado de fios vitais (Ingold, 2012: 29). Sendo assim, para Ingold diferente dos objetos, as coisas as ações ocorrem de maneira entrelaçadas, interligadas, caraterizadas como um nó de fios suscetíveis ao entrelaçamento de outros fios (outros elementos) que da mesma amaneira, estão suscetíveis ao vazamento de sua forma podendo alcançar outros “parlamentos de fios” . Isto é o que ocorre coma árvore, quando seus fios não se encerram nela mesma, ao contrário, dialogam, se entrelaçam e até vazam para, e com outras identidades, como o pássaro e seu linho, ou como os insetos que nela habitam. Nesse sentido diz o autor que as coisas são formadas sem ou com a menor intervenção de agentes, isto porque, elas são uma reunião de vidas, que se coisificam. Então, partindo desses pressupostos, Ingold propõe pensarmos um mundo sem objetos (ASO), é nesse mundo, segundo essa lógica, que nós habitamos quando nos unimos aos processos de construção e desconstrução de diferentes entidades ou elementos inerentes às coisas que são, e estão tão vivas, tanto quanto os humanos e que por isso alcançam outras vidas quando vazam de suas superfícies entrelaçando seus fios a outros nós constituindo-se e sendo constituídas outras vidas. Portanto viver neste mundo é se juntar a esses processos e fluxos de materiais capazes de formar e dissolver outras entidades que compõem um ambiente sem objetos. Este movimento não cabe num mundo com objetos, não cabe nas teorias cuja fonte é o modelo hilemórfico, quando essas consideram as coisas como objetos, suprimindo dessas coisas aquilo que lhe da autonomia, isto é a vida. Diferentemente dessas proposições, no ASO a capacidade de ação das coisas não se dá pelo fato delas possuírem agência (atribuída ou própria), mas, sim pelo fato delas serem e estarem vivas. Assim, o autor nos convida a não pensar as relações sociais (entre humanos e humanos ou entre humanos e não humanos) sobre o prisma da agência dos objetos, evitando assim, o risco de reduzirmos as coisas a objetos e também à vida a agência, pois quando isto acontece ocorre o equívoco de se tentar reanimar o mundo das coisas como se ele estivesse morto, inerte, consequentemente passivo. 162 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Portanto, diz o autor que as relações entre as coisas se dão por caminhos seguidos pelos fluxos de vida dos materiais que são criativos, não estando estes, por tanto, a mercê de um agir humano. Para tanto, deve-se “[...] seguir os fluxos ou linhas de vida na medida em que ambos se desenrolam, não se preocupando em definir as conexões, até porque esses fluxos/linhas não se conectam, mas se entrelaçam (Merêncio, 2013: 199). Ingold não interpreta esses caminhos de fluxos como sendo relações que interligam uma coisa a outra, ao contrário diz ele, que são linhas pelas quais as coisas se fazem coisas, o que resulta num emaranhado de caminhos e coisas e esse emaranhado é como definido como “uma malha de linhas entrelaçadas de crescimento e movimento” (Ingold, 2012: 27). Nesse sentido, Ingold tenta com sua teoria suprimir as dicotomias que até então marcaram a teoria social. Seu objetivo é, portanto, romper com as dicotomias entre sujeito e objeto, materialidade e imaterialidade. É nessa perspectiva apontada por Ingold que estou olhando para o beiju . O percebo enquanto uma coisa que, na Semana Santa se faz e se refaz, não num agir único, mas, nas ações que ocorrem de maneira entrelaçadas, interligadas, como se fossem um nó de fios suscetíveis ao entrelaçamento de outros fios que da mesmas amaneira, estão suscetíveis ao vazamento de sua forma podendo alcançar outros “parlamentos de fios”. É esse movimento que faz com que na Semana Santa a mandioca se faça beiju. A produção O circuito do beiju provoca transformações na dinâmica social dessa comunidade. Nessa época, quase tudo está em função deste processo, dos preparativos para produzi-lo e das relações de trocas entre as pessoas. Há uma mobilização coletiva por meio das conversas, dos acordos, dos planos etc. Tudo tem um só foco: fazer a iguaria para a Semana Santa, e isso é percebido especialmente nas conversas entre as mulheres, porque elas são as personagens principais desse cenário, tanto no que diz respeito à produção como à troca. Segundo Picanço (2013), no dia em que o bolo é fabricado (na Quarta-Feira Santa), percebe-se que as mulheres “beijuzeiras” migram desde muito cedo para a casa do forno, onde o beiju é finalmente produzido. É um dia inteiro de trabalho, que se inicia por volta das três horas da madrugada e se estende até o final da tarde, quando elas retornam, trazendo Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 163

o beiju da casa do forno para suas casas, na maioria dos casos em bacias ou paneiros12, que são transportados na cabeça das mulheres. Quando a produção é maior, entra em cena outro recurso técnico que permite o transporte de grandes quantidades de uma só vez: o carro de boi. Um dos elementos mais importantes nesse processo é a casa do forno. Nela, as pessoas se concentram na Quarta-Feira Santa para a produção da iguaria. A casa é propriedade privada, mas nessa época ela é cedida, torna-se praticamente propriedade coletiva. A cedência da casa se dá por meio de um acordo entre o produtor do bolo e o proprietário. Esse acordo, no qual constam o horário de trabalho e os cuidados com o local, é firmado verbalmente dias antes da Quarta-Feira. Cumprir o horário determinado é fundamental, pois, dessa forma, todos poderão usufruir da casa. Ao final da atividade, é comum doar para o proprietário uma pequena parte do que foi produzido, como forma de agradecimento pela cedência da casa. Essa doação e o seu volume não são acordados, tampouco exigidos pelo proprietário. O proprietário doa a casa, o produtor recebe a casa e retribui ao doador com beijus. É um fato que, ao mesmo tempo, é espontâneo e obrigatório, sobe pena de, no ano seguinte, não ter o espaço cedido e, até mesmo, sofrer sanção moral por parte dos grupos familiares, pois aquele que não retribui a cedência da casa corre o risco de ser “mal falado” e ser visto como alguém desprovido de generosidade e sem consideração. O beiju aparece aqui como “[...] um bem que se insere em redes de suportes à discriminação de valores, dando concretude e sentido ao mundo que nos cerca” (Douglas e Isherwood, 2006, apud Lopes, 2015: 36). Assim, ceder a casa representa também estabelecer uma distinção do morador em uma rede local de interações, uma vez que a casa cedida se torna referência em um espaço de sociabilidades onde as famílias conversam, trocam ideias, fofocam13, ajudam-se mutuamente nas atividades produtivas. 12 Pequeno cesto de vime com duas asas. 13 Segundo Elias, “a fofoca [...] não é um fenômeno independente. O que é digno dele depende das normas e crenças coletivas e das relações comunitárias. [...] o uso comum nos inclina a tomar por “fofocas”, em especial, as informações mais ou menos depreciativas sobre terceiros, transmitidas por duas ou mais pessoas umas às outras. Estruturalmente, porém, a fofoca depreciativa [blame gossip] é inseparável da elogiosa [pride gossip] que costuma restringir-se ao próprio indivíduo ou aos grupos com que ele se identifica [ao que o autor afirma:] o grupo mais bem integrado tende a fofocar mais livremente do que o menos integrados, e que, no primeiro caso, as fofocas das pessoas reforçam a coesão já existente”. (2000: 121 a 129). 164 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Os meios de produção, incluindo a casa do forno e todos os equipamentos, são de propriedade privada. Pertencem a um morador da vila e, em dias comuns, são utilizados para a produção de farinha de mandioca, porém, nessa época, tornam-se propriedades coletivas, à medida que estão emprestadas para várias famílias que naquele dia a transformam num espaço comum a todos. Geralmente, o proprietário da casa está de alguma forma, ligado ao grupo familiar produtor por relações de parentesco ou, até mesmo, de amizade. A casa do forno abriga, além das pessoas, os recursos para a produção, tais como: o tipiti, a gamela grande, a gamela pequena, a peneira, o ralo – este último é denominado de Catitú pelos nativos – e o forno. Todos esses equipamentos são construídos e manuseados artesanalmente e são rudimentares. A religiosidade no circuito do beiju Uma característica marcante da vila diz respeito à vida religiosa, que é extremamente católica, apesar de lá existir também uma minoria de evangélicos da Assembleia de Deus. São sujeitos que têm uma vida religiosa muito ativa; são praticantes do cristianismo, especialmente do catolicismo popular14, que, na Semana Santa, se dá de maneira mais intensa. É fato que profundas mudanças ocorreram na relação estabelecida entre os católicos e o sagrado, em especial na Semana Santa. Essas transformações foram percebidas por mim nesses quase quatro anos que tenho estado na comunidade. Sempre que me deparo com um fato novo nesse processo, imediatamente minha memória me adverte com 14 Maués (1999: 171), ao definir o sentido da expressão ‘catolicismo popular’, afirma que “[...] ela é empregada, comumente, para fazer a distinção dessa forma de catolicismo daquela que às vezes se chama de ‘oficial’, isto é, a que é professorada pela igreja hierárquica, que a procura incutir no conjunto da população. Trata-se, de certo modo, da mesma distinção que se costuma fazer entre medicina popular e oficial, música popular e erudita etc. Não se trata de um ‘catolicismo das classes populares’, pois o conjunto da população católica (os leigos, em oposição aos sacerdotes), independentemente de sua condição de classe, professa alguma forma de catolicismo popular, que às vezes é partilhada mesmo pelos clérigos, assim como os leigos também partilham do catolicismo oficial”. Nesse sentido, para Maués, catolicismo popular é “[...] aquele conjunto de crenças e práticas socialmente reconhecidas como católicas, de que partilham sobretudo os não-especialistas do sagrado, quer pertençam às classes subalternas ou às classes dominantes”. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 165

lembranças que me fazem pensar e perceber as semelhanças e diferenças entre o que eu vivi, como nativo de Araí, e a maneira como os católicos de hoje vivem a Semana Santa. Nesse tempo de outrora, revisitado por minhas lembranças, os rituais inerentes a esse período sacralizado da Semana Santa aparecem de maneira bem mais fervorosos, pois, naquela época, todas as atividades rotineiras dos católicos cessavam no domingo que antecedia a Semana Santa. Na duração da Semana Santa, não se fazia nenhuma atividade, como pescar, cortar lenha, roçar o campo, entre outras. Varrer a casa, por exemplo, só se podia até Quarta-Feira Santa, enquanto os alimentos (peixes e mariscos) deveriam ser tratados e preparados na quinta e, no máximo, até o meio dia, para, na Sexta-Feira Santa, serem submetidos apenas ao cozimento. A comunidade agia assim porque acreditava que aquela semana era verdadeiramente santa e, nela, todos os esforços coletivos deveriam estar voltados para a adoração e agradecimento a Cristo, caso contrário, estaria pecando contra os princípios coletivos e religiosos que regiam aquela semana. “Se guardava a Semana Santa” por temor e obediência, pois acreditava-se que aquele que desobedecesse ao resguardo santo seria punido pelas forças divinas. Na verdade, esses resguardos eram regidos por proibições de cunho tradicional e religioso que, no decorrer do tempo, se legitimaram como verdades e que passaram a reger a consciência coletiva dos católicos. Entre os mais velhos daquela época, era comum contar histórias de pessoas que desobedeceram e foram castigadas, a saber: pescadores que se dispuseram a pescar naquela semana sofreram naufrágio e, em alguns casos, chegaram a óbito, ou simplesmente desapareceram no mar. Outras histórias relatavam que aqueles que se dispuseram a cuidar dos alimentos na Sexta-Feira Santa tiveram seus dedos amputados, e assim por diante. Porém, as mudanças havidas nas práticas religiosas não implicam que a população de Araí não estabeleça mais relações com o sagrado; ao contrário, essas relações são expressas na atualidade de outras maneiras, como por meio das missas e encontros na pequena igreja, ou ainda, nas casas dos fiéis, que são frequentes. Nesse sentido, para os moradores de Araí, a religião continua expressando uma representação e realidade que são coletivas: uma representação daquilo que é vivido concretamente e que possibilita, por meio de crenças e ritos, fazer com que os sujeitos coletivos possam viver melhor. 166 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

A Semana Santa em Araí, como em outras localidades amazônicas, é resultado de um longo processo de hibridismo cultural que se iniciou com a ocupação europeia e se estende até a atualidade. É sabido que, nesse processo, a Igreja Católica desempenhou papel fundamental, fortalecendo na população amazônica dogmas do catolicismo que hoje se manifestam no catolicismo popular (Braga, 2007; Rodrigues, 2008). De acordo com Maués (1995), a maioria da população rural da região do Salgado15 tem identidade católica, que resulta do processo de ocupação europeia. [...] nessa região, a maioria da população rural ou de origem rural identifica-se como católica. A identidade católica dessa população é o resultado de um processo de hegemonia secular do catolicismo, que se implantou na área desde o século XVII, com a chegada dos primeiros colonizadores, impondo sua dominação às populações nativas [...] (Maués, 1995: 492).

A Semana Santa em Araí apresenta traços desse processo: de um lado, as práticas inerentes ao catolicismo oficial, de outro, a iguaria permeando as relações entre o sagrado e a vida sociocultural dos araienses. Nesse período, as práticas religiosas se tornam mais expressivas na comunidade; é uma semana inteira de festa, de culto e de louvor praticados tanto pelos católicos como pelos evangélicos, sendo que os primeiros são os que a praticam com mais veemência, pois, para eles, essa semana tem um significado diferente. Já os evangélicos exteriorizam suas práticas religiosas nesse período de forma mais comedida. Estes não participam da produção e troca do beiju, pois, para eles, a iguaria não tem o mesmo significado que tem para os católicos. Considerando Maués (1995: 484), esse sentido diferente de festejar a Semana Santa entre católicos e protestantes pode ser entendido ao se pensar o catolicismo, [...] como uma religião sincrética que, ao contrário do protestantismo – tendente ao sacerdócio universal e à fragmentação em numerosas igrejas e seitas – sabe conviver com as diferenças e assimilá-las, até certo ponto, numa totalidade (católica universal). Preservando um “núcleo essencial de fé cristã” ou uma 15 O Salgado é uma das microrregiões do estado brasileiro do Pará, pertencente a mesorregião Nordeste Paraense, e tem esse nome devido toda sua costa ser banhada pelo oceano Atlântico, que é exclusivamente salgado. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 167

“identidade católica”, que inclui, também, uma aceitação – embora nem sempre passiva – dos ditames da hierarquia eclesiástica, o sincretismo católico é capaz de se manifestar nas mais diversas culturas e etnias, nas mais diversas classes e camadas sociais, incorporando elementos os mais variados, mas sempre permanecendo católico [...].

De certa maneira o beiju acaba por se mostrar como um elemento que confirma essa dimensão sincrética do catolicismo, capaz de compatibilizar as mais variadas maneiras de professar e viver a fé Cristã. Segundo Nascimento (2009), a questão da religiosidade está diretamente ligada à ideia de popular, isto porque se acredita que a expressão religiosidade refere-se ao que vem do povo e pode provocar manifestações inerentes ao sagrado. Essas manifestações populares do sagrado às vezes contradizem a ideia de religião daquilo que é considerado como oficial, sendo dito e feito pela Igreja. Então, é percebida uma dicotomia entre religiosidade e religião, pois a primeira está intimamente ligada às manifestações populares relacionadas ao sagrado, já a segunda diz respeito à hierarquia eclesiástica, aos dogmas de uma instituição religiosa. Percebe-se certa tensão entre a religião da igreja e a religiosidade do povo. A esse respeito, Maués (1995: 497) afirma: [...] que essa tensão é constitutiva do catolicismo [...] O catolicismo vive, efetivamente dessa tensão. Não poderia existir sem ela. Deixaria de existir a oposição tripartite entre sacerdotes e sacerdotes e entre sacerdotes e leigos. Só que a lógica do sacerdote não é, certamente, a despeito de algumas inconsistências, a mesma do leigo. A lógica do sacerdote é a lógica do sacramento, enquanto a lógica do leigo (no catolicismo popular) é a lógica do santo. Mas o santo é, também, o “sacramento” do leigo.

Em se tratando de cultura e relacionando esse conceito com o de religiosidade, isso leva-nos a pensar em cultura popular, talvez pelo fato de uma das formas de se estudar a cultura popular seja estudar a religiosidade de um povo, suas crenças, devoções, ritos, magias e tudo aquilo que estabelece uma ligação direta com o sagrado, pois, por meio de estudos da religiosidade de uma sociedade, é possível compreender também aspectos relacionados à economia, à política, à cultura e à sociedade.

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A troca e o consumo A troca de beijus é guiada primeiramente pela relação de parentesco, depois pela relação de compadrio e, por último, pela relação de amizade e consideração. Essa troca parece dar-se na perspectiva apontada por Douglas e Isherwood (2006: 114) de que “os bens são, portanto, a parte visível da cultura. São arranjos em perspectivas e hierarquias que podem dar espaço para a variedade total de discriminações de que a mente humana é capaz [...]”. Essas hierarquias que os autores expõem são peculiares no circuito do beiju e atravessam todo o processo de sua produção e singularização, desde os primeiros acordos até a partilha, a troca e o consumo. A ordem da troca, por exemplo, explicita a ordem hierárquica de distribuição dos beijus segundo a importância das relações estabelecidas entre os que trocam. O primeiro momento da troca se dá na família: a mãe doa beijus para os filhos; em seguida, doa para as comadres e os compadres e, na sequência, para os amigos, os vizinhos e chegados. Quase todos retribuem uns para com os outros, não necessariamente na mesma proporção, ocorrendo, de certa forma, um vai-e-vem de beijus. Aqui, um circuito de discriminação de valores opera na trajetória da mandioca, já singularizada como beiju. Mesmo que, a priori, o circuito do beiju se concretize numa lógica não econômica, os bens que antecedem e os que resultam desse processo são carregados de hierarquias e valorações relativas, que são postas e vivenciadas no circuito da Semana Santa. Isto nos permite considerar que “a hierarquia dos bens expressa, pois, a hierarquia dos valores ligados às diversas atividades sociais, e esses valores traduzem o papel dominante no seio da sociedade e de certas estruturas sociais [...]” (Godelier, 1969: 79). O consumo acontece com maior frequência na Sexta-Feira Santa, quando os moradores recebem seus convidados que podem ser vizinhos, amigos, filhos, noras, comadres afilhados, “chegados” etc. “Assim, além de produzir vínculos sociais, o consumo também gera formas particulares de solidariedade, confiança e sociabilidade fundamentais para a vida social” (Gomes, 2008: 10). Na Sexta-Feira Santa, o beiju parece extrapolar a necessidade de saciar a fome do corpo, se materializando na comida que, segundo Da Matta (1986: 55), está além da função de alimentar, uma vez que Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 169

O alimento é algo universal e geral. Algo que diz respeito a todos os seres humanos. Amigos ou inimigos, gente de perto ou de longe, da rua ou decas, do céu ou da terra. Mas a comida é algo que define um domínio e põe as coisas em foco. Assim, a comida é correspondente ao famoso e antigo “de comer”, expressão equivalente a refeição, como de resto é a palavra comida. Por outro lado, comida se refere a algo costumeiro e sadio, alguma coisa que ajuda a estabelecer uma identidade, definindo, por isso mesmo, um grupo, classe ou pessoa.

Nessa perspectiva, o autor afirma ainda que “alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva; comida é tudo que se come com prazer, de acordo com as regras mais sagradas de comunhão e comensalidade”. (Da Matta, 1986: 55). Esse processo acontece ao longo do dia, em virtude de que os moradores fazem visitas uns aos outros. Ao deixar uma residência, o visitante se despede ao mesmo tempo convidando o anfitrião do momento: “tô indo, vou lhe esperar em casa mais tarde”. Essa é uma fala muito comum de quem visita, e geralmente o convidado retribui, indo visitar quem o visitou. É o beiju, enquanto comida, que celebra a festa da Semana Santa. A comida, na festa, segue uma orientação comum no catolicismo popular, evidenciando-se como um bem que se distribui e que, ao mesmo tempo, explicita na abundância da distribuição a extensão das interações que a família, ou seus indivíduos, mantêm. A distribuição da comida legitima, dessa forma, uma rede de alianças que demarca o lugar das famílias em uma hierarquia das interações festivas (Lopes, 2015: 35).

Essas relações são marcadas pelas interações que se estabelecem com aqueles que são da família consanguínea, com aqueles que são de outras famílias, com aqueles que são de famílias externas ao lugar e também com aqueles que são os parentes escolhidos como compadres, comadres, padrinhos, madrinhas, afilhados e afilhadas. São relações marcadas pela proximidade parental, ou não. Nesse contexto, as mulheres são as responsáveis por garantir a manutenção dos vínculos intrafamiliares e o alargamento desses vínculos para outras redes familiares, mediante arranjos diversos. Na Semana Santa, o consumo do beiju, enquanto comida, intensifica esses arranjos nas redes de intera170 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

ções entre famílias. Assim, tais arranjos “[...] ampliam a concepção de família [...] em uma lógica de movimentação dos parentes e seus convidados pelas moradas locais [...]” (Lopes, 2015: 26). Nesses arranjos, o parentesco está para além da consanguinidade e se estende também às relações de compadrio. O ponto de chegada Penso que as variadas formas pelas quais a mandioca se manifesta no estado do Pará, fazem dela uma planta especial na região. Todas essas manifestações representam fases que correspondem a ciclos vitais da mandioca que se materializam em interações que afetam os paraenses de alguma forma. Nesse sentido, percebo o fenômeno aqui estudado, não apenas como sistemas de trocas primárias de doações, recebimentos, devoluções de bens simbólicos e materiais entre os indivíduos, mas também como um fenômeno que permite o estreitamento de laços ou, até mesmo, o estabelecimento de vínculos sociais duradouros entre os participantes desses ciclos e circuitos. Dessa forma, penso que esse contexto empírico também favorece algumas abordagens teóricas fundamentais para as Ciências Sociais, como o saber da relação entre humanos e não humanos, comensalidade, religiosidade, reciprocidade, política, sociabilidade, moral e solidariedade. Acredito que a produção, troca e consumo de beijus em Araí, a pesar de já ter “vazado” a tradição, ainda se concretiza, sobretudo, na obrigação de provocar nas pessoas o desafio da generosidade, da reciprocidade. É uma prática eminentemente coletiva, que lhes possibilita fortalecer suas identidades enquanto católicos que pertencem a uma comunidade cabocla amazônica e que todos os anos, no mesmo período, se reúnem para produzir, trocar e degustar o beiju. É antes de tudo, um espaço de encontros entre as amigas e os amigos, as comadres e os compadres, os vizinhos, os “chegados”, os afilhados e os parentes.

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quando a natureza afasta o humano

ritA pArAdedA muhle tAís cristine ernst Frizzo Introdução Em termos de preservação e conservação de áreas naturais a prática do isolamento desses espaços tem imperado no mundo ocidental desde o século XIX. O isolamento em questão se refere ao fato de retirar o ser humano do convívio com a natureza, mantendo-a um lugar sagrado e intocado para momentos de contemplação, reflexão e boas energias, longe as interferências e destruição dos humanos. Fazendo um breve histórico, é possível observar que esta concepção de proteção dos espaços naturais teve sua origem após os marcos da Revolução Industrial na Europa dos séculos XVIII e XIX e a corrida para a expansão do oeste nas Estados Unidos. Preocupados em perder as áreas naturais frente aos processos que ocorriam, os naturalistas da época se empenharam em isola-lás das atividades humanas, afirmando que somente assim seria possível sua manutenção. Muitos povos que habitavam há séculos esses espaços foram considerados não mais aptos a ficar nesses locais1. Este modelo de criação dos chamados parques nacionais (em especial dos parques norte americanos Yellowstone e Yosemite), que tiveram aqui sua origem citada de forma bastante simplificada, influenciaram as políticas ambientais brasileiras de preservação e conservação. A justificativa muitas vezes usada para legitimar a criação de uma área natural protegida é a incapacidade do ser humano fazer um uso de seus recursos de forma não prejudicial, sendo assim necessária a restrição das atividades ali desenvolvidas. Outras vezes, é permitido um uso 1 As consequências da importação do modelo dos parques dos EUA para implementação no contexto brasileiro se apresenta nos problemas gerados para os povos que habitam e necessitam destes locais para sua sobrevivência. Essa problemática, para os povos indígenas norte americanos também foi devastadora. Entretanto, como não se configura como o objetivo maior deste artigo, esse tema não será aprofundado. Ver Diegues (1994). Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 175

de forma sustentável de acordo com a capacidade das áreas naturais e o uso em questão. De acordo coma legislação brasileira, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC)2 faz uma divisão entre áreas de proteção integral e áreas de uso sustentável. O SNUC prevê em ambas as categorias a permissão de atividades de pesquisa e educação ambiental nas áreas, incluindo o caráter científico da proteção para além de valores estéticos como na sua origem. Muitas vezes a realização das atividades científicas e de educação ambiental não são realizadas por dificuldades de gestão, de manutenção ou de recursos humanos específicos para sua execução. Em outros momentos, são impedidas por elementos novamente humanos como a violência, a ocupação imobiliária irregular, o descarte de resíduos, entre outros fatores. Um exemplo é o da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que possui sobre seu domínio e gestão uma área que está destinada a se tornar um Refúgio de Vida Silvestre e que tem no momento restrições para o uso educacional no espaço. A área que costumava receber alunos para aulas práticas e projetos de educação ambiental tem cada vez mais apresentado problemas de violência no local. Exemplos deste tipo podem ser encontrados também em outros locais, onde o ser humano é o agente responsável pelo não uso dos espaços, tanto contemplativo, quanto pedagógico. Em Santa Catarina, Debetir (2006) apontou os conflitos gerados entre os usuários do Parque Municipal da Lagoinha do Leste e da Reserva Natural Menino Deus, em função da presença de fugitivos e de traficantes de drogas, respectivamente. No Paraná, Souza (2011) registrou a preocupação dos visitantes com relação à segurança no Parque do Cinturão Verde de Cianorte, como um dos principais fatores de desconforto para o acesso à área. Entretanto, um caso inusitado pode ser constatado nesta relação entre humanos e natureza. Durante uma visita realizada às reservas florestais do campus da Universidade de São Paulo (USP) em Piracicaba, um novo elemento, não humano, se apresentou como impeditivo para o uso das áreas naturais. Esses locais estão infestados pelo carrapato-estrela, causador da febre maculosa, e isso está impedindo as ações que eram desenvolvidas lá, conforme será detalhado no decorrer do texto. É neste cenário que este artigo pretende se colocar, trazendo para reflexão a exixtência de uma agência dos não humanos enquanto respon2 O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) foi instituído pela Lei Nº 9.985, de 18 de julho de 2000, que pode ser acessada em: . 176 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

sáveis por impedir uma relação de harmonia entre humanos e natureza. Para tanto, apresentaremos as reservas florestais da USP, passando, a seguir, a relatar a experiência na visita à Piracicaba, pensando sobre as relações entre os humanos e não humanos que compõe esse cenário. Cabe ressaltar que durante a visita utilizamos como recursos a observação participante, a leitura de documentos e entrevistas com estudantes e docentes da universidade. As Reservas Florestais e seus elementos híbridos A USP possui um caráter particular de envolvimento com áreas de conservação. A universidade é composta por oito campi distribuídos pelo estado de São Paulo, localizados em Piracicaba, São Carlos, Pirassununga, Anhembi, Ribeirão Preto, Lorena, Itatinga e São Paulo. Sob o argumento de assumir sua responsabilidade frente às questões ambientais e assumindo que a preservação de ambientes naturais é fundamental para conservação da biodiversidade e dos serviços naturais, a USP criou 2012 uma rede de reservas ecológicas que está distribuída em seis campi: São Paulo, Pirassununga, Piracicaba, São Carlos, Ribeirão Preto e Lorena. Juntas, as reservas totalizam quase três mil hectares. A denominação de “reserva ecológica” foi criada com a intenção de separar a classificação destes espaços das unidades de conservação geridas pelo SNUC, podendo assim a universidade assegurar seu total domínio e legislação (Delitti e Pivello, 2015). Entretanto, muitas dessas áreas naturais já se constituíam Áreas de Preservação Permante (APP) e Reservas Legais (RL), previstas pelo SNUC, o que permite que, em alguns casos, a proteção seja feita nas esferas particular e pública. As reservas ecológicas são administradas pela Superintendência de Gestão Ambiental (SGA/ USP) e contam com um financiamento da própria universidade. Em outubro de 2015 realizamos uma visita à Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ), campus da USP em Piracicaba. Como esse campus é um dos que possui áreas preservadas, o objetivo era conhecer as atividades que eram realizadas ali, procurando identificar ações de ambientalização que envolviam estudantes e funcionários da universidade, bem como a comunidade. O campus de Piracicaba possui uma área total de 3.825,4 hectares, distribuídos entre o campus central Luís de Queiroz (914,5 hectares) e as estações experimentais em Anhembi, Anhumas e Itatinga (2.910,9 hectaPanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 177

res). Também conhecido como Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, este espaço da USP oferece cursos relacionados à àrea ambiental, como Ciências Agrárias, Ciências Ambientais, Ciências Biológicas e também Ciências Sociais aplicadas. A área que hoje compõe o campus Piracicaba pertencia a Luiz de Queiroz que, em 1901, fundou a Escola Agrícola de Piracicaba. Em 1934 esse local passou a ser incorporado pela USP como um de seus campi (Universidade de São Paulo, 2015). A parte central do campus, segundo relatos de funcionários e estudantes, é vista pelos moradores como um parque de lazer, sendo um local onde vão para praticar exercícios como caminhadas e corridas. Aos finais de semana, o “gramadão” (extensa área gramada em frente ao prédio administrativo da ESALQ) costuma ser preenchido por grupos que realizam piqueniques e também vão até lá para contemplação da natureza. Foi relatado que nem todos estes usuários sabem que o espaço se trata de um campus universitário, acreditando ser unicamente um parque público de Piracicaba. Entretanto a própria universidade reconhece, além dos valores científicos, os valores estéticos do local, dando a ele o nome de “Parque da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz”. As áreas de preservação existentes dentro dos limites do campus são geridas atualmente pelo Grupo de Trabalho – Uso do Solo, sendo um dos eixos que compõem o Plano Diretor Socioambiental da ESALQ. Um enfoque maior passou a ser dado ao uso do solo quando a USP recebeu em 2002 um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) visando a recuperação das áreas degradadas, principalmente das Áreas de Preservação Permanente, ações exigidas pelo Ministério Público Estadual. Dentro deste contexto, a USP também viu a necessidade de definir as áreas de Reservas Legais para elaborar sua política de uso e gestão. O TAC assinado pela ESALQ parece ter assumido o papel de responsável pela preocupação que a universidade passou a ter com seus espaços verdes. Segundo relatos, pressões internas e externas (Estado) obrigaram a universidade a adotar processos de ambientalização3 dessas áreas que vinham sendo relegadas e ficando em segundo plano dos investimentos da instituição. No histórico da universidade, presente dentro do Plano Diretor Socioambiental de 2009 (Universidade de São Paulo, 2009), o grupo reunido para discutir e implentar ações para tornar o campus mais sustentável reconhece certo lapso: 3 Segundo Carvalho e Toniol (2010), este conceito se refere a um “[...] processo de internalização nas práticas sociais e nas orientações individuais de valores éticos, estéticos e morais em torno do cuidado com o meio ambiente”. 178 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Ao longo desta história, porém, esqueceu-se de concentrar-se nos problemas que aqui estavam sendo gerados, principalmente com relação ao planejamento de uso do solo, às áreas de preservação, ao tratamento de resíduos líquidos, sólidos e atmosféricos, entre outras desconformidades. (Universidade de São Paulo, 2009: 18)

Com relação aos efeitos da legislação, um exemplo apontado por Leite Lopes (2006) é o da Companhia Siderúrgica Nacional localizada em Volta Redonda, RJ, que nos anos 80 sofre pressões populares e governamentais para ser responsabilizada por suas ações poluentes. Apesar de todo o poder que exercia na cidade, a empresa é obrigada a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta, comprometendo-se a se engajar ambientalmente em mudanças no método de suas produções. O autor argumenta, através desse e de outros exemplos, que aspectos que antes eram “naturalizados” (como a liberação de poluentes não tratados na atmosfera) passaram a ser denunciados como problemas ambientais por diferentes grupos sociais que se sentem atingidos em determinado contexto e época. O caso de Volta Redonda ocorreu em uma época em que as problemáticas ambientais começaram a se instituir como argumentos legítimos para reinvindicações de novos comportamentos. Ainda conhecendo o campus podemos visualizar diversos setores relacionados com questões ambientais como o Departamento de Ciências Florestais, Departamento de Ciência do Solo, Departamento de Zootecnia de Não Ruminantes, Laboratório de Biotecnologia Agrícola, Tecnologia de Sementes, Clínica do Leite, Centro de Energia Nuclear na Agricultura, entre outros, o que corresponde à diversidade de pesquisas e estudos realizados ali. Destacamos a presença do Departamento de Agroindústria, Alimentos e Nutrição junto ao Departamento de Economia, Administração e Sociologia, ambos situados no Pavilhão de Ciências Humanas. Subtamente chama a atenção essa terminologia que mescla termos que remetem à técnica ou tecnologia, como zootecnia, biotecnlogia, energia nuclear e clínica, com termos que poderiam ser vistos como naturais, como florestais, solo, sementes, leite e agricultura. Elementos híbridos se cruzam e se formam nestes espaços de pesquisa onde o natural passa a ser modificado pelo pesquisador, que visa de alguma forma seu aprimoramento, como no caso da tecnologia e da semente. Isso dificulta perceber onde realmente acontece a separação da técnica/ciência como disciplinas puras, uma vez que pesquisar sobre a tecnologia da semente e sobre o uso da energia nuclear na agricultura Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 179

tem um fundo social que vai desde o pesquisador que decide sobre os rumos dessas investigações (e o discurso por trás disso) até o momento em que os resultados passam a ser aplicados em técnicas de plantio que gera um produto destinado a um consumidor. Latour (1999) alerta para a produção de novos híbridos decorrentes das pesquisas científicas no geral, principalmente no campo da Biotecnologia (células-tronco, culturas transgênicas, ovelhas clonadas são alguns exemplos). Nesse sentido, o autor entende que as questões levantadas pela produção científica contemporânea são não apenas práticas, mas epistemológicas. A visita à ESALQ/USP Na ESALQ/USP fomos gentilmente recebidas pelo grupo “USP Recicla – da Pedagogia à Tecnologia”, que nos apresentou, durante nossa estada, os projetos que estavam sendo desenvolvidos, o campus e sua história. Além disso, nos colocaram em contato com outros pesquisadores que poderiam nos auxiliar na investigação sobre atividades nas áreas preservadas. A universidade compôs o Plano Diretor Socioambiental entre 2004 e 2009, as Políticas Ambientais em 2014 e, atualmente, está elaborando os Planos de Gestão. Na sequência, planejam criar os Planos Diretores. Segundo nossa interlocutora na ESALQ, as políticas ambientais foram elaboradas de maneira participativa, envolvendo cerca de 200 pessoas. A SGA/USP está promovendo, desde 2013, a formação socioambiental dos funcionários técnicos da universidade a partir de uma rede de multiplicadores, em uma arquitetura de capilaridade denominada “Pessoas que Aprendem Participando”, ou “PAP”4. A proposta foi baseada nas contribuições teóricas da educação popular de Paulo Freire e de Carlos Rodrigues Brandão e busca valorizar os diferentes conhecimentos de forma horizontal. Pretende-se, posteriormente, estender a formação aos professores, a fim de capacitá-los para o trabalho com seus alunos. Com relação às ações ambientais na USP destacamos, principalmente, o USP Recicla e as Reservas Ecológicas, ambos em parceria com a SGA/USP. O USP Recicla é um programa desenvolvido em toda 4 A proposta dos PAP’s na universidade está disponível em: . Acesso em 06 nov. 2011. Os resultados até então foram apresentados por Patrícia Silva Leme, da USP, no o III Seminário da Rede Internacional de Estudos sobre Meio Ambiente e Sustentabilidade (RIMAS), que aconteceu na PUCRS em maio de 2015. 180 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

a universidade desde 1994 e “busca transformar a Universidade de São Paulo em um bom exemplo de consumo responsável e de destinação adequada dos resíduos”5. Na ESALQ o USP Recicla conta com uma educadora ambiental, três funcionários e um grupo de estagiários (bolsistas e voluntários), além do coordenador e dos membros dos Grupos de Trabalho (GTs) e das comissões. Nossos encontros aconteceram na sede administrativa, em um prédio antigo com recepção, salas de reunião e de computadores, cozinha, banheiros e pátio. Além da sede, também conhecemos o galpão (figura 1), destinado à organização dos resíduos coletados, onde conversamos com o funcionário responsável. O funcionário do galpão nos explicou como funcionava a coleta e a separação dos resíduos sólidos na ESALQ. Havia coletores adequados em todo o campus e os resíduos eram recolhidos por ele e encaminhados para cooperativas de catadores ou à coleta comum, por uma empresa contratada pela Prefeitura Municipal de Piracicaba. Contou que ainda havia muita dificuldade na compreensão, por parte da comunidade do campus, na separação entre o lixo reciclável e o lixo comum. Isso era observado também nos mutirões organizados pelos estagiários do USP para avaliar o lixo coletado. O funcionário mostrou-se desanimado com a forma como as pessoas dispensam os resíduos, mas acredita na educação escolar como alternativa para a problemática do lixo: “Só vai melhorar se investir na educação das crianças, mostrar como fazer a compostagem. Acredito que ter uma matéria inserida no currículo desde pequenininho com certeza seria muito diferente”. A “Pedagogia dos 3 Rs” é um recurso utilizado nas atividades do projeto “Vivências em Educação Ambiental”6 do USP Recicla. Acompanhamos uma visita de estudantes, familiares e professores de escolas de Matão-SP, recebidos por estagiários do USP Recicla. O encontro foi 5 Informações disponíveis em . Acesso em 06 nov. 2011. 6 O projeto Vivências em Educação Ambiental “se baseia no estímulo a práticas cotidianas mais sustentáveis e no princípio dos 3 Rs – Redução, Reutilização e Reciclagem – enfatizando o segundo R, que trata da reutilização de materiais considerados resíduos sem utilidade pela maioria das pessoas, a partir de atividades lúdicas o público, que envolve uma a população interna e externa do campus, é levado a conscientização através da transformação de papel, plásticos, óleo de cozinha usado - entre outros – em materiais novamente úteis, eliminando a ideologia da inutilidade do material após uma utilização inicial.” Disponível em: http://www.projetosustentabilidade.sc.usp.br/index. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 181

conduzido em dois locais na ESALQ: no Museu e Centro de Ciências, Educação e Artes “Luiz de Queiroz” e no galpão do projeto “Vivências em Educação Ambiental”. No museu foram apresentados modelos sobre solos e rochas, no primeiro andar, e a história do café, no segundo andar. Após, o grupo se dirigiu para o galpão, onde se acomodaram em cadeiras dispostas em círculo para assistir as explicações dos estagiários. Antes de iniciar a apresentação projetada em datashow, perguntaram para os presentes se o lixo entrava de maneira positiva ou negativa nas suas vidas. A maioria respondeu que seria de maneira negativa, mas com o estímulo “Só negativa?” da estagiária, uma estudante repontou que também positiva, no caso de servir como adubo. A estagiária acrescentou a importância da reciclagem e iniciou a explicação sobre os 3Rs, exemplificando o uso das estratégias de reduzir, reutilizar e reciclar nas atividades diárias. Após, apresentaram o vídeo “Desabrigados”, que mostrava o corte de florestas para uso agrícola, desabrigando diversos animais. Ao vídeo seguiu-se um jogo, fora do galpão, no qual os presentes simularam a situação de animais desabrigados. Ao retornarem para suas cadeiras, assistiram ao vídeo “Gente Grande”, relacionaram as três atividades e responderam um questionário de avaliação da visita. Figura 1 - Galpão do USP Recicla, na ESALQ/USP, Piracicaba, 10/2015.

Tanto nessa atividade como na fala do funcionário do galpão de separação dos resíduos é possível perceber como o lixo entra na pauta normativa da Educação Ambiental. Com relação às diferentes ações do USP Re182 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

cicla, também nossa interlocutora havia reforçado em sua fala: “Precisa ter um educador ambiental para funcionar”. Reforça-se, assim, a necessidade da formalização dos conteúdos e do especialista como mediador do processo – a escola daria conta, por meio de seu dispositivo pedagógico (Bernstein, 1996), daquilo que deve ser ensinado/aprendido para a formação de sujeitos conscientes com relação às questões do lixo. Outras ações do USP Recicla têm sido conduzidas no sentido de evitar o desperdício de alimentos no restaurante universitário, estimular a diminuição do consumo de carne e substituir materiais descartáveis por duráveis. Foi realizado um estudo sobre os gastos com materiais descartáveis na universidade e se concluiu que esses seriam muito menores ao optar por materiais duráveis. Assim, todos que ingressam na universidade recebem uma caneca de plástico, além de orientação sobre a importância desse recurso e das demais ações socioambientais do USP Recicla. A USP não compra mais copos descartáveis e no restaurante da ESALQ há desconto nas bebidas para quem utilizar a caneca. Enquanto esse problema tem sido mitigado pelo benefício da redução dos custos, outras ações têm gerado alguns conflitos na universidade. Uma das estratégias do USP Recicla para combater o desperdício do restaurante universitário é a pesagem dos restos de alimentos deixados pelos estudantes após a refeição, na presença deles. Na tentativa de convencimento para a diminuição do consumo de carne as ações também encontram um público resistente. É sabido que a ESALQ conta, historicamente, com estudantes filhos de pecuaristas, bem como com grupos de pesquisas aliados ao desenvolvimento de técnicas para a pecuária. Nesse sentido, tais ações ainda são um grande desafio, de acordo com membros do USP Recicla. Os não humanos da ESALQ/USP Ao tratarmos previamente nossa visita com os interlocutores, fomos alertadas sobre a problemática relacionada ao carrapato-estrela (espécies Amblyomma cajennense e Amblyomma dubitatum), que transmite a bactéria Rickettsia rickettsii, causadora da Febre Maculosa Brasileira (FMB). A FMB provoca uma enfermidade infecciosa febril, de gravidade variável. Já houve casos de óbito de pessoas infectadas em Piracicaba, incluindo o filho de um funcionário da universidade7. Dessa 7 A informação sobre a morte do filho de um empregado da universidade foi obtida apenas em depoimentos dos nossos interlocutores, não sendo confirmada por outras vias. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 183

forma, foi sugerido que utilizássemos um Equipamento de Proteção Individual (EPI) para que pudéssemos conhecer as reservas ecológicas. Ao longo de nossas conversas com os diferentes interlocutores, a problemática da FMB era recorrente. O fato é que a capivara (Hydrochoerus hydrochaeris), hospedeira do carrapato-estrela e presente em grande número no campus, possui a bactéria causadora da FMB. Ao parasitar as capivaras, alguns carrapatos-estrela são infectados com a bactéria e podem transmiti-la aos humanos. Dessa forma, todas as atividades que ocorriam nas áreas preservadas da ESALQ, ou até mesmo nos gramados artificiais, estavam suspensas. Apesar de placas informativas alertando sobre o problema, muitas pessoas continuam utilizando as áreas como o “gramadão” para lazer. Os pesquisadores que trabalham nas áreas ocupadas pelas capivaras utilizam o EPI para proteção, mas as atividades de Educação Ambiental ficaram prejudicadas. Materiais informativos sobre o carrapato e o ciclo, a transmissão e os sintomas da febre maculosa foram elaborados e distribuídos para divulgação do problema, inclusive através da elaboração do livro de Meira et alli (2013). Há também placas informativas nas entradas das matas e áreas onde as capivaras costumam frequentar alertando sobre os carrapatos (figura 2). Figura 2 - Placas informativas alertando sobre a febre maculosa, ESALQ/USP, Piracicaba, outubro/2015.

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Nos espaços das reservas florestais ocorriam atividades como caminhadas nas trilhas e aulas práticas, o que necessitou ser revisto por questões de segurança e responsabilidade da universidade. Um desses projetos chama-se “Florestas do Futuro” criado pelo Grupo Florestal Monte Olimpo ESALQ/USP. Destinado a crianças em situação de vulnerabilidade social de Piracicaba, o objetivo do projeto é “despertar o interesse das crianças em relação às florestas e a necessidade de sua restauração, passando, de forma recreativa, informações que contribuam para o entendimento das relações homem-natureza e dos produtos madeireiros e não-madeireiros oriundos da floresta” (Grupo Florestal Monte Olimpo, 2015). As atividades são ministradas por alunos da graduação da ESALQ e o projeto foi idealizado pelos integrantes Grupo Florestal Monte Olimpo em 2008 no intuito de “oferecer aos estudantes experiências que contribuam para a pratica humana e proporcionem o bem estar e a educação de outras pessoas”. As atividades incluiam a trilha ecológica, que adentrava o espaço das reservas, e a trilha no pomar, área com espécies frutíferas, que pela proximidade entre elas e a existência dos carrapatos tiveram que ser suspensas. Outro projeto que se utilizava das reservas florestais é o Programa Ponte, um programa de extensão universitária da ESALQ que realiza intervenções educacionais de caráter interdisciplinar, vivencial, experimental e crítico em Escolas Públicas de Piracicaba – SP. Ele busca proporcionar a troca de experiências e conhecimentos entre a universidade e as escolas públicas, fortalecendo e aprimorando a interação entre ambos. Desde 2008, ano em que deu início às suas atividades, o programa já trabalhou com cerca de 20 escolas estaduais, realizando mais de 200 intervenções junto aos estudantes e elaborou quatro publicações de cadernos pedagógicos. Segundo especificado em seu site (Projeto Ponte, 2015), o objetivo geral do Programa Ponte “é contribuir para o desenvolvimento de relações de ensino-aprendizagem na escola e na universidade que estimulem o pensamento crítico, a participação ativa, a curiosidade, a expressividade, a criatividade, o espírito questionador, a esperança, solidariedade e o amor”. Atualmente o projeto continua ativo, mas impossibilitado de usar as reservas. Uma opção seria controlar a população de capivaras, mas tratando-se de um animal nativo é necessária avaliação da população e enquadramento legal. A castração das capivaras foi relatada como uma alternativa de manejo. Ainda se tem poucas informações para contriPanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 185

buir sobre o combate direto ao carrapato-estrela, até mesmo com relação ao seu predador natural. A dinâmica dos ecossistemas, com relação às populações e às cadeias alimentares das capivaras, dos carrapatos-estrela, das bactérias R. rickettsii e dos humanos, tem desafiado as vivências junto à natureza no campus da ESALQ. Assim como os pesquisadores e extensionistas que suspenderam os projetos de Educação Ambiental nas áreas verdes do campus, também nós acabamos por não conhecer as trilhas e reservas legais, por causa dos carrapatos-estrela. Considerações finais Se em Porto Alegre os humanos tornam o morro Santana perigoso para outros humanos, em Piracicaba a própria natureza afasta os humanos de si. Ao entrar em conflito com os humanos, bem como sendo um local evitado em função do mal (violência) a natureza real transborda aquela concepção romântica de natureza, como um lugar sacralizado onde impera o bom e o belo. Essa concepção romântica é explicitada por Carvalho (2009) ao tratar das “várias naturezas da natureza”. A autora faz uma incursão pelas diferentes concepções de natureza, demonstrando que as diferentes produções de sentidos vão influenciar as experiências e o agir político relacionados ao ambiente na contemporaneidade. Nessa dicotomia homem/natureza, onde é costume ver os humanos exercerem sua força e violência sobre sua fragilidade, a natureza parece mostar sua força e exercer seu poder de impedir o homem de agir sobre ela. A presença de um grande número de capivaras no campus pode ser um resultado de sua própria relação com os humanos, se considerarmos os fatos de ser uma espécie protegida pela legislação ou de perturbações ambientais que possam ter favorecido a população de capivaras. Ainda assim, nesse momento, a agência do não humano (natureza), que aparece materializada na capivara e no carrapato-estrela, acaba por afastar os humanos de si. Enquanto uma proposta inicial de reflexão sobre a influência dos elementos não humanos na relação humano e natureza, o artigo aqui apresentado não se encerra. Pelo contrário, ainda em fase de construção e aprofundamento pretende contar com o aporte teórico de autores que encontram abrigo dentro das epistemologias ecológicas (Steil e Carvalho, 2014), como as teorias de Stengers e de Latour. Este refina186 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

mento ao qual o texto busca tem encontrado subsídios nas leituras e discussões do Grupo de Pesquisas SobreNaturezas. A teoria de Latour sobre ator/rede e as redes sociotécnicas, e a teoria da cosmopolítica de Stengers poderão contribuir para uma análise das relações que considere em igual medida a influência de atores que fazem parte das relações estudadas, como o humano, a capivara e o carrapato-estrela. Desta forma, não se pretende restringir essa relação a uma análise dicotômica entre dominante e dominado, a favor ou contra. Seguir os atores envolvidos e ver o que compõe suas redes de maior ou menor influência, elementos presentes na teoria de Latour, poderia quebrar esse caráter bipartido e permitir uma análise que não levasse em consideração apenas a agência humana, mas também um agenciamento recíproco entre as universidades e as áreas naturais. A cosmopolítica de Stengers também poderá contribuir para uma análise baseada na ampliação da simetria entre universidade e natureza. Dentro da cosmopolítica, a natureza teria valor em si mesma, se fazendo também sujeito dentro do cosmos, entidades como sujeitos políticos.

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quando o “brinquedo ribeirinho” vira “arte de aeroporto”: tensionamentos entre os valores Comunitários e a lógiCa de merCado entre os artesãos de brinquedo de

miriti,

abaetetuba, pa rodrigo mArques leistner Introdução O trabalho analisa as relações tensas que se estabelecem entre as práticas de artesanato e as políticas culturais contemporâneas, observando de modo mais específico as realidades vivenciadas pelos coletivos de artesãos de brinquedos de Miriti, radicados no Município de Abaetetuba, Estado do Pará1. Busca-se compreender as principais complexidades que envolvem a experiência desses agentes - relativamente vinculados a valores “comunitários” e “tradicionais” -, especialmente a partir de suas conexões com um campo institucional e burocrático voltado ao desenvolvimento de políticas de fomento às atividades próprias da cultura popular, cujos princípios básicos têm sido orientados pelas demandas e pela lógica do mercado2. Em Abaetetuba, a confecção dos brinquedos de Miriti atingiu uma dimensão especial nos últimos anos, tanto no que se refere ao nú1 Do ponto de vista metodológico, a reflexão se baseia num trabalho de campo efetuado no Município de Abaetetuba, no mês de fevereiro de 2016, quando foram realizadas incursões etnográficas em ateliers e associações de artesãos, assim como aplicadas entrevistas semidiretivas aos agentes que compõem o ciclo de produção e comercialização do artesanato do brinquedo de Miriti da localidade. Também foram entrevistados agentes ligados às instituições parceiras das coletividades de artesãos, caso da divisão do SEBRAE de Abaetetuba. Por fim, ainda foram retomados os dados produzidos pelo colega de pesquisa Prof. Dr. Paolo Totaro, que realizou investigações no mesmo contexto empírico em maio de 2012. Todos os relatórios das investigações citadas fazem parte do banco de dados do Laboratório de Políticas Culturais e Ambientais do Brasil – LAPCAB, grupo ao qual essas pesquisas encontram-se vinculadas. 2 A pesquisa que possibilitou essa discussão, assim como as demais investigações conduzidas no âmbito do Laboratório de Políticas Culturais e Ambientais do Brasil receberam apoio e financiamento da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e da Fundação à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 189

mero de agentes envolvidos com essa prática quanto ao volume de sua consequente produção, o que não apenas conferiu à cidade o epíteto de “Capital Mundial do Brinquedo de Miriti”, mas também gerou constantes esforços de agentes públicos e privados no sentido de capitalizar e potencializar aquela produção. Nesse sentido, diversas políticas têm sido empreendidas com o objetivo de promover o empoderamento econômico e o reconhecimento identitário dos artesãos da localidade. Geralmente definidas pelo SEBRAE (principal instituição envolvida nesses processos), tais iniciativas associam expectativas de geração de renda e reconhecimento a processos pedagógicos de capacitação profissional fundamentados em noções como empreendedorismo, competência técnico-administrativa e inovação artística e estética, além de implantar metodologias de trabalho cooperativo que visam coletivizar a produção e a comercialização do artesanato. Foi com base em tais estratégias que, no ano de 2001, surge uma associação dos artesãos locais, cujas principais ações visam ampliar as possibilidades de escoação da produção de peças a partir de feiras de artesanato popular, as quais não raramente encontram-se inseridas no calendário turístico de Abaetetuba. Desse modo, é possível constatar a existência de um conjunto de agenciamentos institucionais (públicos e privados) cujos escopos se encontram balizados por uma concepção recursiva da cultura (Yúdice, 2006), através da qual os objetos culturais são ressignificados em um campo de ações performativas orientadas a ao desenvolvimento de economias locais (Bayardo, 2007). Amplamente ancoradas numa perspectiva concorrencial e mercadológica, essas estratégias lograram ganhos significativos para as coletividades de artesãos, especialmente no que se refere ao aumento do ciclo produtivo e da comercialização do artesanato da cidade, não sendo raros os casos em que uma atividade artesanal desenvolvida em caráter de “trabalho complementar” transformou-se na principal fonte de renda de algumas famílias locais. Entretanto, em conjunto com essas aparentes conquistas desenvolveu-se uma lógica conflitiva no interior das coletividades mencionadas, fator que tem gerado não apenas o enfraquecimento do trabalho cooperativo, mas a própria desestruturação das relações entre artesãos e instituições parceiras. Nessa perspectiva, formatos de circulação de bens materiais e simbólicos baseados numa lógica reciprocitária têm cedido espaço a processos concorrenciais de características anômicas, observando-se diversos tensionamentos que 190 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

decorrem das demandas de adaptação dos processos produtivos tradicionais aos novos formatos de gerenciamento do trabalho e às novas perspectivas ligadas a inovações técnicas, estéticas e artísticas. No âmbito das realidades investigadas, verifica-se um quadro em que, por um lado, agentes do campo institucional compreendem as coletividades alvo de sua ação como refratárias ao “avanço” técnico e gerencial devido à suposta incapacidade de adaptação às exigências do mercado; por outro, agentes do artesanato percebem a ação institucional nos termos de uma difícil conciliação entre as demandas mercadológicas e a continuidade de suas práticas, suas lógicas de organização comunitária e suas expectativas artísticas e estéticas. Destaque-se que o artesanato com o Miriti é originário de culturas ribeirinhas, tendo se estabelecido com certa centralidade em Abaetetuba a partir de um fluxo constante de agentes e signos oriundos das ilhas que circundam aquela cidade com base em diversas levas de migrantes em busca do trabalho urbano. Desse modo, tais práticas relacionam-se com o imaginário próprio das culturas ribeirinhas da localidade, compondo parte dos repertórios simbólicos que organizam não apenas a memória afetiva dos agentes, mas ainda suas relações de parentesco, suas percepções acerca da natureza e suas representações de ordem religiosa. Fortemente vinculado a esse repertório, o artesanato de brinquedos de Miriti articula um conjunto de representações e práticas que comporta um ethos e uma visão de mundo característicos (Geertz, 1978) e fortemente ligados a valores comunitários e tradicionais. Com base nessas ideias, não parece estar equivocada a percepção inicial de que os tensionamentos que abarcam as relações entre os coletivos de artesãos e as políticas culturais desenvolvidas pelo campo institucional se expressem nos termos de algumas contradições entre a tradição e os valores comunitários e a modernidade urbana e capitalista que se ancora naquelas políticas. Considerando que esses empreendimentos políticos e institucionais promovem um tensionamento entre as lógicas mercadológicas implicadas e os valores comunitários envolvidos, relação aqui percebida a partir da ressignificação dos bens artesanais tradicionais, esse trabalho reflete sobre os limites e complexidades presentes no desenvolvimento das atuais políticas de fomento ao artesanato (em específico) e à cultura (num sentido mais amplo) no Brasil. Contudo, é devido clarificar alguns pressupostos sob os quais tal análise se desenvolve. Ao refletir sobre as contradições mencionadas Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 191

não está sendo proposto que as coletividades populares enfocadas configurem tipologias baseadas na descontinuidade cultural3. Ao contrário, se é possível perceber um ethos e uma visão de mundo característicos no que concerne às práticas do artesanato de Miriti, é também factível avaliar que essas representações e práticas não se encontram isoladas, acabando por absorver elementos relacionados com a própria lógica urbana e capitalista com a qual podem por vezes colidir. Como exemplo, se é fato que os tensionamentos referidos levam até mesmo ao rompimento entre os coletivos de artesãos e certas agências do campo institucional, é também correto avaliar que as comunidades de artesãos absorvem muitos elementos contidos naquelas políticas. Assim, nos casos estudados, é comum se observar um repositório de signos no qual se articulam as representações da religiosidade popular e os ideais de empreendedorismo típicos dos projetos do SEBRAE. Dito de outro modo, ao se propor a existência de uma cultura específica e ligada ao artesanato do Miriti está sendo avaliada a configuração de uma matriz cultural híbrida (Canclini, 2013). Trata-se aqui dos diferentes arranjos através dos quais os próprios coletivos portadores de valores tradicionais e comunitários negociam sua aproximação com os signos da modernidade e com o sistema capitalista. Considera-se que essa perspectiva comporta uma vantagem analítica, a qual permite inferências que ultrapassam a possibilidade de compreensão dos tensionamentos e limites contidos na relação entre as práticas tradicionais e as políticas culturais a elas destinadas. Ao não isolar perspectivas supostamente opostas (tradicional versus urbana) - e a partir de então avaliar os possíveis limites das políticas culturais atuais (mais vinculadas à modernidade capitalista) -, proponho investigar o modo como esses tensionamentos se refletem nas próprias práticas e representações dos agentes da cultura popular, o que favorece a percepção não apenas sobre o modo como seus objetos culturais são alvos de empreendimentos políticos contraditórios, mas ainda sobre a forma como esses mesmos objetos promovem a mediação simbólica das tensões que incidem sobre a experiência social dos agentes ligados ao artesanato. No caso das realidades do artesanato do brinquedo de Miriti, avalio essas contradições com base nas lógicas de ressignifica3 Sobre os problemas das abordagens atreladas a ideia de descontinuidade cultural ver a discussão de Fredrik Barth (2000), que se refere às diferenciações (mais metodológicas que factuais) entre sociedades simples e complexas. 192 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

ção dos objetos da cultura colocados sob observação, compreendendo a transformação das peças artesanais como parte de uma cultura de transição, a partir da qual o brinquedo de Miriti se desloca de seu sentido lúdico e tradicional (o brinquedo rústico, portador de valores da cultura ribeirinha e feito para brincar) para uma concepção mercadológica, nos moldes daquilo que se tem definido como “arte de aeroporto”4 (práticas e objetos estéticos representativos de tipicidades da cultura tradicional, cujos resultados tendem a ser “comodificados” nos termos das políticas culturais hodiernas). O circuito de produção e comercialização do artesanato de brinquedos de Miriti Antes de iniciar o empreendimento de análise aqui proposto, cuja possibilidade se vincula a uma recuperação histórica do artesanato de brinquedos em Abaetetuba, bem como ao fluxo de agentes e símbolos culturais em deslocamento por entre as regiões ribeirinhas e contextos urbanos, convém retomar algumas notas etnográficas sobre o circuito de produção e comercialização das práticas artesanais enfocadas. Embora existam outras modalidades de peças que compõe o artesanato feito com o Miriti, os brinquedos tradicionais tornaram-se o foco dessa produção, havendo poucas referências sobre demais categorias de artefatos ou matérias-primas. No contexto paraense também se observa uma vinculação quase específica desse artesanato com a cidade de Abaetetuba, ainda que o mesmo tenha origem nas regiões ribeirinhas. Contudo, em termos de práticas executadas em caráter profissional, são raros os artesãos de brinquedos de Miriti que não estejam radicados nessa cidade. A maior parte dos mesmos encontra-se vinculada a uma entidade que congrega suas atividades produtivas e institucionais: a Associação dos Artesãos de Miriti de Abaetetuba – ASAMAB, que tem por objetivo coletivizar a produção e o comércio dos brinquedos, ainda atuando como principal instrumento de mediação das relações institucionais e burocráticas estabelecidas entre seus filiados e os órgãos públicos e instituições parceiras, especialmente aque4 Utilizo a expressão com sentidos similares àqueles conferidos por Firth (1992) e Rhodes (2000), que compreendem a airport art como produção destinada a retratar as tipicidades de comunidades locais em circuitos de consumo cultural definidos em escala global, sobretudo aqueles afetados pelo mercado turístico e pelas lógicas de comodificação das culturas. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 193

las através das quais se definem articulações que visam à orientação técnica e administrativa, bem como o apoio logístico e comercial aos artesãos da cidade, caso das atividades apoiadas pelo SEBRAE. Dentre suas relações de maior constância a Associação ainda possui parcerias com a Secretaria Municipal de Cultura de Abaetetuba e Secretaria de Cultura Estado do Pará, além de vínculos ocasionais estabelecidos com empresas do setor público e privado, nesse caso tratando-se da captação de recursos para a organização de eventos propícios ao escoamento da produção, tais como as feiras de artesanato popular5. Os principais brinquedos produzidos em Abaetetuba podem ser divididos em quatro categorias básicas, todas oriundas da própria perspectiva êmica. Inicialmente observam-se os brinquedos “tradicionais”, tais como a “cobra que mexe”, cujo corpo é feito de pequenos pedaços de Miriti arredondados e articulados por um fio ou barbante, ou ainda o “soca-soca”, que diz respeito a um boneco que através de colagem articulada promove o movimento de “socar o pilão”. Noutra perspectiva verificam-se os “barcos”, peças de tamanhos e cores diversas que retratam uma ampla estética naval comum às regiões paraenses. O terceiro modelo corresponde aos brinquedos que reproduzem a “fauna local”, observando-se pássaros diversos como araras, tucanos e canários, além de onças, peixes, tatus, caranguejos, etc. E finalmente, há os brinquedos que retratam a paisagem construtiva das regiões ribeirinhas, categorizados simplesmente como “casas”, os quais correspondem a pequenas réplicas de moradias populares. A principal matéria-prima utilizada na confecção dos brinquedos é extraída da polpa do Miritizeiro, de onde se obtém o talo interno dos caules da planta. Após um processo de secagem que ocorre na própria estocagem do material inicia-se o “quadrejamento” - delimitação do caule em um longo bastão de forma quadrada a partir do corte realizado com linhas de cabo de bicicleta (veículo muito utilizado em Abaetetuba). Extremamente maleável, com porosidade similar ao isopor e muito mais resistente que o mesmo (fator que facilita o entalhamento), o bastão que resulta do quadrejamento é a principal base para o entalhamento das esculturas, podendo ser recortado, diminuído ou amplia5 Nesse caso se destacam o Banco da Amazônia, a Companhia Albrás Alumínio e a Companhia de Gás do Estado do Pará (PARAGÁS), cujos projetos envolvem principalmente os patrocínios para realização das feiras de artesanato popular via Lei de incentivos fiscais. 194 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

do através da colagem de diversos pedaços em acordo com o tamanho de peça que se deseja executar. Assim, a prática busca inicialmente a montagem de um “corpo base” através do qual se processará o entalhe da peça, na etapa denominada “corte”. O corte designa a principal etapa do trabalho artesanal com Miriti. É recorrente que seja realizado pelos artesãos mais experientes, sendo ainda o procedimento que define as características técnicas e estéticas de um artesão. Quando um profissional é reconhecido como excelente escultor, diz-se que “é bom de corte”. Algumas peças podem conter o acoplamento de diferentes “corpos” ou ainda peças confeccionadas com outros materiais oriundos do Miriti, como as asas dos pássaros, que são elaboradas com a casca externa da poupa. Com as esculturas concluídas dá-se início ao processo de montagem (quando é necessário o acoplamento de peças) e acabamento, esse último consistindo no lixamento do corpo principal e na aplicação de um fundo para penetração das tintas, técnica que visa facilitar a pintura final numa superfície extremamente porosa. Quando é necessária a acoplagem de peças duas técnicas podem ser utilizadas: a inserção da “tala” (pequenos pedaços da casca do Miriti que são introduzidos nas articulações das peças, promovendo o efeito “alavanca”) ou a colagem (mais usada em virtude de não oferecer riscos para crianças, uma vez que as “talas”, quando soltas, podem causar acidentes). Por fim, a última etapa do processo consiste na pintura, geralmente realizada com tinta de tecido e cores primárias, as quais se apresentam como uma das principais características dos brinquedos de Miriti. O processo de fabricação é geralmente baseado na constituição de núcleos familiares através dos quais o trabalho é segmentado. Assim, é comum que um artesão, geralmente chefe de família, seja o especialista em todas as etapas do processo produtivo e gerente administrativo dessa mesma produção. Com o aumento da comercialização e da demanda por produtos, é também comum que outros membros da família sejam inseridos no processo, muitas vezes tomando parte em alguma etapa da confecção de brinquedos. Quanto maior o volume de peças confeccionadas em um atelier, maior a extensão do número de familiares empenhados no trabalho. Assim, não é raro que indivíduos externos à família sejam contratados de modo informal para atividades secundárias, sobretudo no caso dos maiores ateliers ou em períodos de aumento da demanda de produção. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 195

Se o volume da produção e comercialização em cada atelier gera o aumento lógico do número de agentes empenhados no processo produtivo, é também detectável a existência de algumas tipologias de agenciamento envolvidas nas práticas artesanais de um modo geral. Assim, num primeiro momento pode-se considerar a figura do núcleo familiar de um grande atelier, geralmente gerido por um artesão de caráter mais empreendedor, sendo este um modelo relativo ao agenciamento de encomendas maiores destinadas a lojistas de fora da cidade ou do Estado, ampliando-se a escoação da produção para além das feiras de artesanato de Abaetetuba. Tal modelo é ligado a processos de trabalho que se constituem como renda principal de uma família; os artesãos correspondentes demonstram-se mais organizados do ponto de vista burocrático, sendo possível observar o registro de pequenas empresas. Noutra perspectiva, é possível verificar ateliers menores cujos trabalhos são conduzidos por um artesão individual, que apenas em períodos específicos (caso das feiras populares) pode ou não acionar a mão-de-obra familiar. É mais recorrente que, nesse caso, o artesanato configure uma renda complementar do artesão e sua família. Trata-se aqui de indivíduos pouco empenhados com questões de ordem burocrática e completamente desinteressados no registro formal de suas atividades comerciais. Em todas as situações, também é factível avaliar a existência de tipologias de agentes que se dividem de acordo com uma maior ou menor influência dos processos de capacitação oferecidos pelo SEBRAE: os “empreendedores”, na maioria dos casos preocupados com o caráter inovador e estético de suas peças, bem como com sua capacidade de agenciamento comercial e burocrático; e os “tradicionais”, mais atentos às características rústicas dos brinquedos e aos vínculos afetivos e religiosos da confecção artesanal, assim como mais resistentes aos processos de inovação técnica e comercial presentes nas capacitações do SEBRAE. As maiores possibilidades de distribuição desta produção correspondem à organização anual de duas grandes feiras: o “Miriti Fest”, que ocorre no mês de maio, em Abaetetuba; e a feira de brinquedos da Festa do Círio de Nazaré, que ocorre em Belém, no mês de outubro. No primeiro caso, trata-se de uma feira específica do artesanato do brinquedo de Miriti, cuja realização anual acabou entrando para o calendário turístico de Abaetetuba. O evento conta com shows musicais e amostras culinárias, sendo organizado em torno da montagem de uma praça de exposições com de cerca de oitenta estandes para a comercialização do 196 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

artesanato de brinquedos. Segundo meus informantes, o custo de organização gira em torno de duzentos mil reais e o público médio que circula pela feira alcança a marca de trinta mil pessoas. Ao longo dos três dias do evento, é comum que cada artesão comercialize um volume médio de duas a quatro mil peças, o que pode gerar o somatório de até quarenta mil reais por estande, nesse caso considerando-se o preço médio das peças pequenas (que custam em torno de dez reais). Esses cálculos aumentam para o caso do Círio, ocasião em que os maiores ateliers costumam comercializar entre seis e oito mil peças, o que pode redundar numa quantia de ao menos sessenta mil reais por expositor. O tempo de produção das peças específicas para esses eventos pode durar de três a quatro meses de trabalho, sendo que o lucro obtido nas feiras é capaz de sustentar uma família de artesãos por um período de cinco a seis meses. Daí a importância que essas coletividades conferem à realização das duas grandes feiras anuais. No caso dos artesãos “empreendedores”, além da participação em feiras são comuns os agenciamentos de encomendas para fora da cidade e do Estado. Essas consignações podem ser recebidas através da participação na Associação ou nas próprias feiras, eventos que se demonstram cruciais para o contato com distribuidores de outras regiões do Estado ou do País. É a partir desses contatos que conjuntos de peças são endereçados a lojistas de outras regiões, fator que pode aumentar consideravelmente a produção de um atelier e a renda de seus artesãos. Esses agentes podem inclusive apresentar um considerável crescimento econômico para os padrões de Abaetetuba, muitos declarando que o artesanato lhes possibilitou a construção de moradias, compra de automóveis e custeio dos estudos dos filhos. De modo evidente, esse modelo de agente revela-se como uma minoria no que se refere às realidades do artesanato do Miriti, a grande parte dos artesãos locais sobrevivendo com bastante dificuldade. Nesse sentido, ressalte-se que boa parte dos artesãos locais reside nas regiões periféricas da cidade, com destaque para o bairro Algodoal, onde se localiza a própria Associação de artesanato. De brinquedo ribeirinho à “arte de aeroporto”: ressignificações do artesanato do Miriti Conforme proposto anteriormente, a análise das complexidades que incidem sobre a relação entre as práticas do artesanato de Abaetetuba e as políticas culturais contemporâneas - cujos sentidos são aqui observaPanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 197

dos não apenas a partir da ressignificação dos objetos artesanais (em seus deslocamentos entre o “brinquedo ribeirinho” e a “arte de aeroporto”), mas ainda com base no estabelecimento de uma cultura de transição em que o tradicional e o moderno se confrontam - deve partir de uma recuperação histórica dessas práticas artesanais, bem como do fluxo de agentes e símbolos culturais em deslocamento por entre as regiões ribeirinhas e contextos urbanos. Nessa perspectiva, a própria contextualização histórica e geográfica da região fornece pistas relevantes para a análise. O Município de Abaetetuba se localiza na região nordeste do Estado do Pará, a cerca de 120 quilômetros da capital, Belém, possuindo uma população estimada de 150.000 habitantes para o ano de 20156. Trata-se da sétima maior cidade paraense, estando inserida na microrregião de Cametá, que inclui os municípios de Baião, Igarapé-Miri, Limoeiro do Ajuru, Mocajuba, Oeiras do Pará, Barcarena e a própria Cametá. Praticamente toda região é perpassada pelos afluentes do Rio Tocantins, sendo Abaetetuba localizada às margens do Rio Maratuíra. Os espaços urbanos que emergem nessa localidade são geralmente circundados pela denominada região das “Ilhas”, margens opostas aos contextos citadinos ocupadas pelas populações ribeirinhas. Esse é o caso das diversas ilhotas que se localizam na baía do capim (costa oeste do Município de Abaetetuba). Até o início do século XX a economia local se encontrará fortemente relacionada com a produção de água ardente, detectando-se a existência de diversas destilarias equipadas com maquinário importado e produção constante. Nas primeiras décadas do século passado, conforme Souza (2008), essa produção renderá à cidade o título de “terra da cachaça”. De acordo com o mesmo autor, esse ciclo produtivo entra em declínio a partir dos anos 1940, sendo possível avaliar que, já nas décadas de 1950 e 1960 a economia do Município será predominantemente ligada às atividades rurais. É possível avaliar que dois fatores contribuíram para a retomada e ampliação do processo de urbanização da região a partir dos anos 1970. Como destaca Souza (2008), a localização geográfica peculiar acabou por inserir Abaetetuba no cerne dos processos de distribuição de mercadorias e circulação de pessoas por entre as rotas estabelecidas entre Belém e o interior do Estado, fazendo com que o Município conquistasse uma posição estratégica no que se refere à condição de entreposto comercial. Tal condição será favorecida pela construção e ampliação das rodovias 6 De acordo com dados do IBGE 2014. 198 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

estaduais a partir dos anos 1970, o que tornou mais fácil o acesso entre Belém e a microrregião do Cametá. Por outro lado, é no ano de 1979 que se dá a implantação da Companhia Albrás Alunorte na cidade de Barcarena, o que favoreceu o processo de ampliação das malhas urbanas de cidades vizinhas, caso de Abaetetuba. Nesse aspecto, destaque-se que se em 1970 a população do município era de 50.000 pessoas e de caráter eminentemente rural, em 30 anos (já no ano 2000) o contingente populacional de Abaetetuba aumentou para 120.000 pessoas e adquiriu características predominantemente urbanas (Souza, 2008). Abrigando diversos indivíduos que migraram de outras regiões para trabalhar no polo industrial de Barcarena, “Abaeté” (como comumente chamada na perspectiva êmica) se fortaleceu com base no setor de comércio e serviços, atualmente as principais atividades de sua economia. É através desse fluxo de migrantes para a região que se dá o deslocamento parcial das populações das ilhotas para os Municípios em crescimento nas zonas urbanas do Cametá, fator que explica não apenas o trânsito de indivíduos entre Ilhas e contextos citadinos, mas também o fluxo dos elementos simbólicos originários da cultura ribeirinha na direção de Abaetetuba e adjacências. É justamente através desse trânsito que se compreende a chegada à cidade de práticas oriundas da cultura tradicional regional, caso do artesanato de Miriti. Convém ressaltar que esse fluxo de pessoas e informações (na direção das Ilhas para Abaetetuba) é destacado de modo recorrente na perspectiva dos artesãos locais, sendo comuns as narrativas sobre trajetórias de indivíduos que descendem das áreas ribeirinhas e que, ao chegar em “Abaeté” à procura de trabalho, encontraram no artesanato não apenas um meio para retomar os vínculos afetivos com a cultura das Ilhas, mas também uma atividade profissional ligada ao circuito de produção artesanal da cidade. Assim, são diversas as histórias de sujeitos que migraram para Abaetetuba e iniciaram suas atividades de artesãos como meio de complementar a renda oriunda de outros trabalhos (como a pesca ou serviços no comércio), em alguns casos o artesanato tornando-se a principal atividade econômica de suas famílias. Na mesma perspectiva, é comum que a renovação dos agentes do artesanato se efetue a partir da chegada de novos indivíduos oriundos das Ilhas, os quais encontram auxílio dos familiares já estabelecidos na cidade justamente através de sua integração em núcleos de produção artesanal baseados na segmentação familiar da atividade. Em tais trajetórias, são Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 199

diversos os casos de agentes que se estabeleceram nas zonas pobres e periféricas do Município, especialmente na região do Algodoal, bairro que atualmente congrega a maior parte dos artesãos da cidade e que mantém forte vínculo com a prática do artesanato: trata-se da “área” que congrega majoritariamente o artesanato do brinquedo de Miriti. De modo reiterado, a avaliação dos fluxos de pessoas e informações que ocorrem entre as comunidades ribeirinhas e Abaetetuba também ajuda a compreender a própria história do artesanato de brinquedos de Miriti na região. Conforme algumas publicações7, as origens desse artesanato se perdem em narrativas orais, não existindo registros precisos ou documentação cronológica sobre o surgimento da prática. Ao que tudo indica, trata-se de atividades originárias da cultura indígena que posteriormente foram incorporadas pelas populações ribeirinhas e apenas mais tardiamente espalharam-se por Abaetetuba, conforme as migrações descritas acima. De acordo com as narrativas de meus informantes, os primeiros artesãos que chegaram a Abaetetuba, que até então confeccionavam peças para uso doméstico, em algum momento produziram brinquedos em maior escala e decidiram vendê-los na Festa do Círio de Nazaré. Assim, são comuns as recordações sobre a trajetória de antigos “mestres” que, na época do Círio, partiam de barco de Abaetetuba em direção à Belém visando obter algum lucro com a venda das peças e assim, “com a ajuda de Nossa Senhora”, atenuar sua situação de precariedade material. Tais narrativas tornam evidentes uma lógica de ressignificação das peças confeccionadas em Miriti, observando-se a passagem de um valor de uso carregado de aspectos lúdicos (o brinquedo feito “para brincar”) para um valor estético, religioso e comercial: o brinquedo, comercializado como artefato estético representativo da cultura tradicional, estando vinculado a um contexto devocional em que a possibilidade de sua venda se relaciona com a ideia de graça religiosa. Supõe-se que a primeira exposição dos brinquedos tradicionais teria ocorrido já na primeira festa do Círio de Nazaré, em 1793, durante uma feira de produtos oriundos de comunidades do interior paraense (SEBRAE, 2004). Já em 1930 a exposição das peças fora incorporada dentre os elementos permanentes que compõem a festividade, sendo que, posteriormente, os brinquedos tornaram-se um dos quatro principais símbolos da Festa do Círio de Nazaré (em conjunto com o próprio Círio, a Procissão e a Corda). A exposição sazonal dos brinquedos na festivida7 Ver SEBRAE (2004) e Loureiro e Oliveira (2012). 200 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

de permanecerá constante até meados da década de 1990, verificando-se um deslocamento anual dos artesãos de Abaetetuba que compreendiam o Círio como única possibilidade de escoamento de sua produção, até então restrita e especificamente vinculada àquele contexto devocional. Com o aumento do número de expositores já na década de 2000, bem como em conjunto com alguns conflitos estabelecidos com os organizadores da Festa, alguns artesãos decidem fundar uma entidade associativa que promovesse a negociação de seus interesses junto ao Poder Público local. Tal iniciativa coincidiu com o trabalho de prospecção realizado pelo SEBRAE em Abaetetuba, que vislumbrou junto ao crescimento do artesanato da cidade a possibilidade de constituir projetos de capacitação e geração de renda para as famílias envolvidas com tal atividade, sobretudo aquelas radicadas na periferia do Algodoal. É nesse contexto que surge a ASAMAB, como metodologia idealizada pelo SEBRAE para operacionalizar os processos de organização coletiva e ampliação da produção do artesanato do brinquedo de Miriti de Abaetetuba. Desde então, são frequentes os cursos de capacitação do SEBRAE oferecidos aos artesãos, os quais se voltam basicamente para a capacitação técnica e partem de projetos pedagógicos que possuem os seguintes focos: empreendedorismo; capacitação administrativa e gerencial, aqui sendo trabalhadas as questões logísticas, operacionais e de atendimento comercial; fomento à inovação técnica e artística, nesse caso destacando-se tanto os processos técnico-produtivos como estéticos, considerando-se estratégias de desenvolvimento de produto e design. É justamente nesse ponto que se percebem novos processos de ressignificação das práticas artesanais do Miriti, observando-se um último nível de deslocamento dos sentidos atribuídos aos objetos culturais avaliados, que após partir de um sentido prático e lúdico (o brinquedo ribeirinho feito para brincar), passam por uma conotação estética e devocional (a comercialização atrelada às práticas devocionais das primeiras feiras do Círio de Nazaré), chegando finalmente a seu sentido mais contemporâneo, aqui se evidenciando uma perspectiva recursiva (a prática do artesanato como recurso para o empoderamento das comunidades periféricas) e ligada à constituição de elementos representativos de uma tipicidade a ser comercializada em circuitos de comodificação da cultura8: o que aqui denominamos como “arte de aeroporto”. 8 Sobre os processos de comodificação dos bens culturais ver os trabalhos de Canclini (1983), Brown (1998) e Comaroff e Comaroff (2009). Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 201

Nessa perspectiva, considera-se tal “estágio” como representativo dos escopos mais gerais das políticas culturais contemporâneas, cujo cerne reside nas propostas de empoderamento econômico e reconhecimento identitário de grupos periféricos a partir do agenciamentos de recursos com base nas práticas e bens culturais desses mesmos grupos. De modo reiterado, se tais estratégias podem gerar benefícios para as coletividades alvo, não são raros os casos em que a absorção das lógicas do mercado origina profundos tensionamentos nas perspectivas identitárias dos grupos periféricos e dos agentes da cultura popular, realidades que não raramente são perpassadas por inúmeros tensionamentos, conforme os próprios casos do artesanato de brinquedos de Miriti de Abaetetuba, retomados na sequência. Tensionamentos entre o tradicional e o moderno numa cultura de transição É devido retomar aqui que lógica implícita no trânsito de atores e símbolos culturais estabelecido na relação entre a região das Ilhas e a cidade de Abaetetuba pode ajudar a compreender não apenas os vínculos que a prática do artesanato mantém com uma memória afetiva ligada à cultura ribeirinha (algo muito enfatizado nas narrativas dos artesãos), mas também com o bairro do Algodoal, na periferia de Abaetetuba, zona que recebeu boa parte dos que chegaram à cidade em busca de trabalho e, na mesma lógica, abarca a maior parte dos artesãos do Município. Assim, por um lado evidenciam-se sensos estéticos e morais articulados numa visão de mundo característica das coletividades ribeirinhas, a qual tende ser atualizada num contexto urbano através da estruturação de atividades práticas como as do artesanato. Como componentes dessa cosmologia encontram-se visões sacralizadas do Miriti e dos espaços naturais das comunidades de origem (o Miriti é tido como planta que “dá tudo ao ribeirinho, do alimento à matéria-prima necessária para construção das moradias ou para ganhar o pão através do artesanato”), bem como dos próprios artefatos produzidos pelos artesãos. Nessa última possibilidade, salienta-se que os brinquedos tradicionais se ligam a experiências devocionais envolvidas em sua vinculação com a feira do Círio de Nazaré, em lógicas de troca que não raramente vinculam sua comercialização à ideia de uma dádiva obtida por aqueles que passam por dificuldades econômicas (caso dos artesãos do Miriti). 202 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Por outro lado, observa-se que estes aspectos cosmológicos operam na delimitação de pertenças identitárias que se atualizam num contexto urbano e periférico, caso do bairro Algodoal, onde os elementos daquele ethos e visão de mundo característicos promovem a mediação simbólica das realidades que concernem às experiências dos sujeitos envolvidos com o artesanato. Trata-se aqui de especular sobre a possibilidade de que esses mecanismos simbólicos (identitários, cosmológicos, etc.) estejam operando na mediação das “experiências de trânsito” vividas pelos sujeitos da pesquisa, que se deslocam ente um contexto ribeirinho e uma nova realidade periférica, constando-se a existência de uma “cultura de transição”. Compreende-se que é justamente a partir da observação dessas mediações e desse espaço de deslocamentos que se torna possível compreender as relações tensas que se estabelecem entre a atividade artesanal de Abaetetuba e as políticas culturais a ela direcionadas por parte de instituições como o SEBRAE. Aqui é possível analisar os tensionamentos que emergem da relação entre os valores tradicionais e sua adaptação a contextos urbanos e capitalistas, e no que se refere às questões mais caras para esta reflexão, averiguar como estes tensionamentos se expressam nos termos de relações entre as políticas culturais direcionadas ao artesanato e as próprias experiências sociais dos artesãos. Os principais condicionamentos e tensionamentos que incidem sobre essas relações podem ser exemplificados nas constantes contendas que se estabelecem entre os artesãos de Abaetetuba, especialmente a partir da introdução do modelo de organização associativa implementado como parte dos projetos do SEBRAE. Nesse sentido, os procedimentos de distribuição das tarefas de trabalho coletivo que visam atender às encomendas gerenciadas pela ASAMAB apresentam-se como cerne dos conflitos, ouvindo-se por parte dos associados constantes reclamações sobre o direcionamento dos lucros por parte dos gestores da Associação, geralmente atores mais acostumados aos processos de burocratização da atividade artesanal. Observa-se que tais fatores são recorrentes, podendo ser percebidos a partir de uma espécie de conflitualidade generalizada e gerada pela introdução de uma lógica concorrencial e capitalista junto a comunidades que até então baseavam suas articulações produtivas numa perspectiva reciprocitária. Como é possível avaliar, os processos produtivos guiados pela perspectiva mercadológica e a lógica concorrencial consequentemente geraPanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 203

da tendem a restringir as possibilidades de continuidade do modelo de relações reciprocitárias, muitas vezes ancorado em relações de trabalho familiares, o que fomenta tensionamentos diversos, seja pela redistribuição dos recursos obtidos no novo modelo, seja pela simples concorrência ativada por um modelo ancorado nas ideias de empreendedorismo e competência técnica e estética. Nesse último aspecto, são constantes e recorrentes as novas categorias de diferenciação entre os agentes envolvidos, que passam a estruturar suas relações com base em critérios hierárquicos definidos a partir da maior ou menor proximidade em relação aos atributos que definem o “bom artesão” na visão do SEBRAE. É a partir desses processos que surgem distinções entre agentes mais “empreendedores” ou mais “tradicionais”, os primeiros geralmente se sobressaindo sobre os últimos em todas as relações de produção e comercialização desenvolvidas. Em síntese, trata-se de relações comerciais desiguais e contraproducentes para os projetos que detinham como princípios originários o empoderamento socioeconômico daquelas comunidades. Contudo, se as relações tensas e conflituosas se demonstram recorrentes, em Abaetetuba observa-se um processo de resistência às alterações provocadas por essa espécie de cultura do empreendedorismo típica dos projetos desenvolvidos pelo SEBRAE. Nesse sentido, destaque-se que há dois anos os integrantes da ASAMAB romperam relações com essa entidade devido a um conflito relacionado aos projetos de realização da feira de artesanato na Festa do Círio de Nazaré. Ocorre que durante os preparativos para o evento, a diretoria regional do SEBRAE decidiu realizar uma curadoria relativa às peças a serem expostas e comercializadas na feira. Nesse processo, diversos artesãos de característica mais “tradicional” tiveram suas peças barradas da exposição por não estarem enquadrados nos critérios estéticos e técnicos exigidos pela curadoria. Como exemplo, alguns brinquedos de característica “tradicional”, ainda confeccionados com “talas”, foram considerados perigosos para os possíveis consumidores, sendo que os artesãos mais antigos demonstram-se resistentes em alterar suas habilidades de fabricação em acordo com os cursos de capacitação técnica do SEBRAE. Decerto, tais atores retiraram-se da feira e acabaram recebendo apoio dos demais membros da ASAMAB, mesmo daqueles que se enquadravam nos modelos de empreendedorismo típico exigidos pelo SEBRAE e sua curadoria. Conforme me confidenciou um dos membros da Associação, ainda que as políticas ligadas ao empreendedorismo e 204 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

à inovação técnica tenham gerado frutos positivos para as comunidades de artesãos, não seria possível preterir de seus projetos os “velhos companheiros que apenas desejavam expor seus brinquedos rústicos e tentar angariar alguns recursos sob a benção de Nossa Senhora”. Para concluir... Como sugerem alguns autores (Tomassi, 2013; Burity, 2007), se é correto afirmar que os agenciamentos culturais contemporâneos propiciam um espaço mais amplo na configuração dos canais de acesso a recursos econômicos e a processos de reconhecimento identitário para grupos socialmente marginalizados, tal realidade também desperta dúvidas sobre possíveis cooptações políticas implicadas na aproximação de coletividades tradicionais e periféricas com as lógicas economicistas do mercado. Cabe ressaltar que a disponibilização desses recursos ou de espaços para novas políticas de representação demanda, na maior parte dos casos, um enquadramento a modelos técnicos e mercadológicos que podem desvalorizar os agentes envolvidos, suas práticas e suas culturas. O que parece tornar-se claro nos dados aqui expostos se refere às contradições que incidem sobre a relação entre coletividades vinculadas a valores comunitários (de ordem estética, religiosa e afetiva) e as lógicas mercadológicas que abarcam os agenciamentos culturais contemporâneos, sobretudo no que se relaciona com o contato desses coletivos junto a um modelo de políticas empreendido no país de modo recorrente por instituições como o SEBRAE - organizado em torno de perspectivas de burocratização das relações de trabalho, empreendedorismo, competências técnicas e inovações artísticas e estéticas. Nesses casos, não são raras as ocorrências em que as lógicas próprias das comunidades tradicionais, baseadas em laços reciprocitários, acabam cedendo espaço a um modelo de relações competitivo que não apenas gera conflitos que desorganizam as relações cooperativas, mas ainda geram novos processos de hierarquização dos agentes de acordo com critérios definidos em termos de uma maior ou menor aptidão aos modelos do mercado. Nessa perspectiva, ao invés da promoção de lógicas cooperativas que atuem no empoderamento de determinadas coletividades, tais projetos podem estabelecer novas formas de desigualdade e novas relações de dependência nos contextos que envolvem as relações dos agentes da cultura popular e o campo institucional das políticas culturais. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 205

No entanto, deve-se atentar para o fato de que essas contradições não se definem por uma oposição rígida entre sistemas culturais supostamente antagônicos, as próprias culturas “tradicionais” absorvendo os elementos daquilo que comumente categorizamos como “contemporâneo”. Nessa lógica, os artefatos dessa “tradição” apresentam-se tanto como objeto de políticas contraditórias quanto como mecanismos de mediação das próprias contradições emergentes. Aqui, pareceria estarmos diante dos tensionamentos referidos mais acima (exemplificadas a partir do fluxo de atores e signos por entre as comunidades ribeirinhas e o bairro periférico do Algodoal em Abaetetuba), os quais se relacionam com a emergência de uma cultura híbrida na qual a experiências dos atores sociais se articula a partir dos tensionamentos que envolvem o trânsito entre a tradição e a modernidade, a reciprocidade e as demandas do mercado, o comunitarismo e a urbanização capitalista, o brinquedo ribeirinho e a arte de aeroporto. Avaliando essa perspectiva talvez seja possível verificar que os limites das políticas culturais hodiernas não se restringem a uma fraca compreensão das especificidades das coletividades alvo, mas à precária possibilidade de absorver os elementos culturais próprios dessas mesmas coletividades, num processo em que a construção da alteridade demonstra-se crucial para as mediações institucionais necessárias. Para a eficácia dessas políticas, talvez fosse fecunda a possibilidade de que o campo institucional burocrático e hegemônico adquirisse as mesmas características híbridas verificadas nos sistemas culturais em transição, assim tornando-se maleável e receptivo em relação aos processos de tradução cultural necessários para a implementação das ações políticas.

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em disCussão o artesanato de maria da fé: Cultura loCal e CoeXistênCia de novas perspeCtivas de geração de renda

silAs dorivAl de oliveirA cArlos Alberto máximo pimentA douglAs dos sAntos lemos limA Adilson dA silvA mello Introdução Este trabalho discute os processos de geração de renda promovido pela Casa do Artesão da cidade de Maria da Fé, MG, especificamente sobre as dimensões da coexistência de novas formas de sociabilidades, inscritas nas concepções de indivíduo, identidade e lugar, em que se percebe as implicações e configurações no social. Na perspectiva anunciada, vê-se presente as formas de socializações e de inserção econômica como elementos para o incremento do desenvolvimento local, mediante saber-fazer artesão na produção de objetos confeccionados a partir da reutilização da palha de bananeira. As discussões empreendidas são resultantes de pesquisas em execução no Grupo de Pesquisa e Extensão Ciências Sociais e Desenvolvimento, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade, da Universidade Federal de Itajubá, as quais intencionam capturar processos de geração de renda fora da lógica capital versus trabalho presentes no sul do Estado de Minas Gerais. Neste esforço pretende-se responder ao seguinte questionamento: de que maneira os modos de saber-fazer permitidos no campo da cultura reinscrevem as concepções de indivíduo, da identidade e do lugar na contemporaneidade? Desta pergunta, objetiva-se apreender exemplos dessas dinâmicas nos processos de geração de renda e modos de saber-fazer presentes na lógica artesã que são percebidos na cultura local. Do ponto de vista metodológico a abordagem é interdisciplinar. A condução da análise é sociológica com interfaces com a antropologia e a história. Em pesquisa de campo, a predisposição posta se reveste na apreensão dos impactos dos projetos individuais e coletivos de geração Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 209

de renda, os quais podem ser traduzidos em possibilidades ou limites de inserções econômicas e socioculturais. A proposta perpassa o tema desenvolvimento e tecnologias, com ênfase ao desenvolvimento local, o qual leva em consideração o humano, as tecnologias pensadas por meio da relação do humano e não-humano, ou humano e objeto. Valorizam-se, nas observações realizadas, as abordagens abertas que abarquem desde as mais íntimas impressões do pesquisador até as sugestões dos atores sociais contatados. As conversas foram realizadas com os artesãos que estavam de plantão no ponto de venda dos produtos. Certo de que as intervenções dos pesquisadores foram trazidas somente para alimentar algum tipo de diálogo, nunca para induzir a resposta ou conduzir o rumo da prosa. A proposta foi a de que se deixasse falar de modo descontraído. Não havia uma preocupação com os exageros das falas e nem registro em gravadores ou filmadoras, mas em cadernos de campo. Essas preocupações éticas nortearam a entrada dos pesquisadores, desde de agosto de 2012 até dezembro de 2015 na Casa do Artesão Mariense. Desse processo originaram as observações e registros de campo. Ressalta-se que as configurações promovidas na Casa do Artesão Mariense capturam o saber-fazer artesão, construídos, conscientes ou não, forjando a identidade artesã. Esse movimento estabelece a noção de lugar, de coletividade, de sobrevivência, de preservação ambiental e da memória cultural. Estruturou-se o texto em duas partes: a contextualização da Casa do Artesão Mariense, a partir de seus saberes e fazeres; e, as dimensões do local-global na constituição da identidade artesã e suas implicações. A Casa do Artesão Mariense: o saber-fazer artesanal O município de Maria da Fé, sul de Minas Gerais, considerado como polo importante de produção de batata, até então sua maior fonte de geração de riquezas. Nos anos 1990 a cidade passou por crise econômica no setor agropecuário, sobretudo nas monoculturas de batatas, o que acarretou ao surgimento de processos de geração de renda alternativos. O artesanato se constituiu como espaço de atuação política, solidariedade, trocas de experiências, colaboração e emancipações. Aos 210 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

poucos, não sem tensões, o poder público local passa, em conjunto com SEBRAE, EMATER, SENAR, a fortalecer as práticas artesãs por conta da valorização do setor turístico e de economia criativa local, pois já havia algumas pessoas fazendo artesanato de modo isolado. Dentro desse cenário é que o artesanato passou a ser uma atividade explorada na economia mariense. No plano da monocultura, a batata é substituída pela banana. A partir de então, as atividades do setor agropecuário passaram a projetar na bananicultura sua principal atividade de ramo agrícola no município. Da produção de banana é que surge a possibilidade de utilizar a palha da bananeira na confecção de produtos artesanais. Esta prática ganha destaque e se fortalece até o ponto que os artesãos percebem a necessidade da criação de um espaço para a exposição e venda dos produtos. Após várias tentativas de formar uma associação, um grupo de artesãos resolve registrar a “Casa do Artesão Mariense”, inaugurada no dia 7 de junho de 2008, com a finalidades de manter um local em que os turistas e as pessoas da comunidade pudessem encontrar uma mostra variada do artesanato. Atualmente o grupo é formado por cerca de 40 integrantes, em sua maioria mulher, dos quais 7 são homens. A antiga estação de trem, antiga sede do Centro Cultural Municipal, transformou-se na Associação. Trata-se de prédio funcional construído em 1981 , devidamente reformado e conservado, pintado de marrom terroso e detalhes em branco. Em sua fachada frontal, 3 grandes janelas e um enorme letreiro grafando “MARIA DA FÉ”. Ao seu lado, um dos cartões postais da cidade, a máquina de “Maria Fumaça”. 1

1 A informação foi extraída do site http://www.estacoesferroviarias.com.br/rmv_sapucai/mariadafe.htm. Acesso em 20.10.2015. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 211

Figura 1 - Casa do Artesão.

Fonte: Site da Prefeitura Municipal de Maria de Fé.

Da iniciativa de um grupo de artesãos, com o apoio da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, a Casa do Artesão, entidade sem fins lucrativos, estabeleceu-se como um espaço em que os interessados pudessem confeccionar, expor e vender os seus produtos. Em troca a prefeitura transforma a sede em um centro de informações turística, cuja responsabilidade de orientação dos turistas fica a cargo dos associados de plantão. Na cidade há vários ateliês, mas nem todos fazem parte do quadro de associados, pelas dificuldades que os artistas enfrentam no dia a dia. Estes não recebem subsídio da prefeitura, salvo a concessão do espaço, a estação ferroviária desativada. A organização da Casa é bastante peculiar e apresenta-se em perspectivas coletivas nas resoluções dos conflitos e da gestão dos negócios. Em termos de gestão do espaço, os artesãos elaboraram um sistema de rodízio entre eles para manter a loja aberta de acordo com a disponibilidade de cada um, uma espécie de escala de trabalho. Além dos produtos confeccionados com a fibra de bananeira, a Casa vende outros produtos artesanais, tais como: mudas de plantas e de oliveira; quitutes, pães de mel, biscoitos de nata, mel engarrafado, pimentas, temperos e especiarias gerais; fuxicos; figuras de barro; peças de barro e cerâmica. Contudo, o carro chefe são os objetos da fibra de bananeira. Os produtos e artefatos feitos pelas mãos dos artesãos da cidade são elaborados a partir da fibra das cascas de bananeiras. Resultam em bonecas, cestos, pratos, mandalas, luminárias e por aí vai. Na sensibi212 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

lidade dos artesãos é que se registram as ressignificações dos usos das matérias primas vindas de sua própria terra. Figura 2 - Preparo da palha de bananeira.

Fonte: Lima (2016)

O fazer artesão naquela realidade traz os elementos da ruralidade, da terra e de cidades de economias de base agrícola. Constata-se que os artesãos vêm da zona rural, das roças locais, e que são pessoas simples, as quais têm esta atividade como fonte e forma de geração de renda. Desenvolvem trabalhos com materiais recicláveis, panos, papéis e, mais especialmente, a fibra de banana e da palha. As últimas advêm das roças dos próprios artesãos e as técnicas foram difundidas por um senhor2, o qual não faz mais parte da Casa do Artesão. A aposta é coletiva, mas também tem a conotação de melhor inserção ao mundo econômico. A Casa existe aproximadamente há oito anos e cada artesão tem um ateliê, em sua casa, e, depois de finalizadas as peças, levam-nas para exposição e venda na Casa do Artesão. O espaço é organizado por todos, mediante escala: para vendas, limpezas etc. Segundo Elisângela, ex-presidenta eleita para o biênio 2012-2014, a proposta é democrática e aberta, pois todos dão suas opiniões sobre o que está certo ou errado na condução da Casa. 2 O nome do citado Senhor não será mencionado por questões éticas. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 213

Há um conjunto de acordos, tácitos e explícitos, estabelecidos por eles ao convívio coletivo. Quando alguma artesã desloca um artesanato de uma colega do lugar da prateleira, para dar maior destaque a um artesanato seu, ocorre uma quebra de um protocolo que não está escrito em nenhum lugar, o qual gera reações de aversão, comentários nos corredores, e as reclamações aparecem nas reuniões gerais. O acontecimento é discutido, negociado e a tensão equacionada. Tudo de modo coletivo. Figura 3 - Produtos expostos na Casa

Fonte: Lima (2016)

A Casa é espaço de venda de produtos. A casa é, sobretudo, também, espaço convivência, relacionamentos, trocas de experiências e de reuniões. Estas ocorrem formalmente uma vez por mês para discussão das questões pertinentes à gestão da associação e demais questões internas, cujos resultados são lavrados em ata. Do ponto de vista técnico, a matéria prima é extraída do próprio quintal ou da doação realizada por vizinhos, quando do fim da vida útil da bananeira. Para a recolha da árvore é necessário entender seu ciclo de vida. As bananeiras para maturação se caracterizam por três momentos: mãe, filha e neta. As bananeiras-mães, são as que pos214 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

suem cachos de bananas e podem entrar no período de colheita. As filhas e netas estão ainda em fase de crescimento3. Quando o agricultor corta o cacho da mãe a filha se torna mãe e a neta se torna filha, e assim se estabelece um ciclo de maturação e colheita. Os troncos das bananeiras mães, agora sem muita utilidade para o ciclo, são cortadas e se tornam a matéria prima para a atividade do fazer artesanal. Figura 4 - Artesanato de palha de bananeira.

Fonte: Lima (2016).

O resultado do fazer artesão contempla um conjunto de saberes que vão desde o cuidado com a matéria prima, as técnicas presentes no objeto final, até as tensões de caráter relacional e pessoal que se inscrevem nos espaços de convívio coletivo das artesãs. A realidade em sobreviver impõe outras práticas de sociabilidade e socialização pautadas na resolução de conflitos, no respeito e na colaboração.

3 Argumento extraído da pesquisa realizada por Lima (2016). Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 215

Do Global ao Local: indivíduos, lugares e identidades Pensar os processos geração de renda, a partir das experiências artesanais observadas na Casa do Artesão Mariense, requer, da perspectiva desse trabalho, teorizar sobre as consequências do global sobre o local e as alternativas que o local fomenta para fazer frente ao volume de transformações que o tempo contemporâneo estabelece. Acredita-se que a sociedade contemporânea é permeada por tendências globais que se evidenciam em hábitos e práticas. No entanto, o local possui seus mecanismos que lhe permitem fazer frente ao global. Esses mecanismos podem ser identificados por meio da cultura. Em outros termos, “a cultura se debate entre pressões locais e injunções universais” (Carvalho, 2013: 50). Augé (1997: 26) problematiza essa questão sob o viés da homogeneização cultural: “nossa modernidade cria passado imediato, história, de forma desenfreada, assim como cria alteridade, ao mesmo tempo em que pretende estabilizar a História e unificar o mundo”. Para o autor está em andamento o discurso do consenso promovido na contemporaneidade, caracterizado por uma padronização que ocorre por dois motivos: a aceleração da História e a diminuição do planeta. Trata-se de consequentes da revolução tecnológica e informacional que multiplicou a circulação de informações em um tempo nunca antes visto. Contudo, a diversidade cultural resiste e coexistem4 em modelos homogêneos e hegemônicos (Augé, 1997). Nessa lógica, o homem constrói contradições assumindo elementos destrutivos para a própria vida. Ou seja: “devastamos os ecossistemas de tal maneira que hoje, na primeira década do século 21, vivemos sem garantias futuras de usufruir de águas e terras” (Carvalho, 2013: 66). Carvalho faz crítica ao modelo de vida degradante que a sociedade moderna propôs sem levar em consideração as gerações futuras. Ressalta-se que a tradição e as artes, pensados pela perspectiva de Ortiz (2006), traz mecanismos de legitimação específicos da cultura que sofrem modificações na medida em que se tornaram produtos industriais em escala mundial. Pode-se destacar o artesanato enquanto modo de saber-fazer que foge a lógica industrial, em que se permite a originalidade e a especificidade do artefato. 4 De acordo com Marc Augé, o grande desafio dos antropólogos é compreender essa coexistência na contemporaneidade, por gerarem uma crise de sentido e uma crise de alteridade (Augé, 1997). 216 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Há um jogo de tensões que permeiam a cultura local e a cultura global em uma interface que determina “um tipo específico de dominação” (Ortiz, 2006: 186). Essa dominação é percebida pelo autor no início do século XX, onde o Brasil buscava inserir-se na modernidade por meio de elementos como: “as asas do avião, os bondes elétricos, o cinema, o jazz-band, a indústria, eles procuravam por sinais da modernidade” (Ortiz, 2006: 187). Para Ortiz, tais elementos agiam de forma a impor o moderno sobre o tradicional, ou na percepção de Augé (1997) o ‘consenso’ sobre o ‘desencantamento’ que era vigente no âmbito da cultura. Processo esse fundamentalmente permeado pela utilização da memória seletiva que legitima ou refuta elementos da memória coletiva5. Essa mundialização da cultura é deslocada para o campo econômico, e percebido da seguinte forma: os Estados Unidos da América foram pioneiros em investir no que Ortiz (2006) chama de “segmentos mundializados de cultura” que podem ser representados por filmes, seriados televisivos produzidos de forma a ser consumidos de maneira universal. O mesmo não ocorreu com produções cinematográficas indianas, telenovelas brasileiras e músicas japonesas, por exemplo, que não se mundializaram por deixar de excluir os elementos que remetem à cultura local. Nesse sentido, industrializar a cultura não é o bastante para mundializá-la (Ortiz, 2006). No que diz respeito aos hábitos populares, estes também são influenciados por meio dos processos de mundialização da cultura, mesmo em sociedades tradicionais pela introdução de certos alimentos industriais como a sardinha em lata, refrigerantes, molho de tomate, alterando o estilo de vida das pessoas de comunidades tradicionais (Ortiz, 2006). O autor chega a consideração de que mesmo as mudanças e o caráter sazonal de aspectos culturais da modernidade não fazem desta um movimento passageiro: A modernidade, neste sentido, não é efêmera. Suas mudanças se realizam sobre um solo firme que lhes dá sustentação. Esta solidez lhe confere o estatuto de civilização, cujo padrão cultural se diferencia das ‘tradições passadas’ (Ortiz, 2006: 214).

A modernidade reorganizou a sociedade sobre outros valores que nunca antes eram percebidos pelas sociedades pré-industriais. Desde 5 Para saber mais ver Nora (1993). Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 217

então, homem passou por dois processos culturais que permitem identificar a intensificação dessa reorganização, que Hall (1997) chama de descentramento do homem: 1. O homem passou a se apoiar em uma dimensão estética que corroborou com a incorporação de desejos e preocupações desnecessárias, como o exemplo de viajar apontado por Featherstone (1995), “os prazeres da descoberta, e as novas sensações como um produto da modernidade” (Featherstone, 1995: 204). 2. A substituição das relações homem-homem por relações homem-máquina (Harvey, 1993). Esses dois processos identificados, sobretudo nos países ocidentais, reorganizam a cultura em direção à homogeneização cultural, rompem com a lógica do tempo/espaço, incorporam culturas mundiais e tornam as pessoas cada vez mais parecidas desejosas de consumir produtos industrializados. Em contraposição as práticas artesãs são um elemento de afirmação da cultura local. Essa discussão é intensificada por Hall (1997) ao afirmar que em um dado momento, chamado por ele de pós-modernidade, houve um declínio das identidades que estabilizavam o mundo moderno. Isso ocorre, na “descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos” (Hall, 1997: 1). A complexidade do nosso tempo e suas identidades inconstantes se dá mediante ao fato de que se torna dificultoso ligar o sujeito à estrutura que o cerca, por conta de sua fragmentação, ao contrário do que ocorria com o sujeito do Iluminismo e com o sujeito Sociológico. Ainda que o indivíduo esteja ligado ao coletivo e sofra interferências deste, o coletivo está em constante mudanças, como afirma Marc Augé: “nunca as histórias individuais foram tão explicitamente referidas pela história coletiva, mas nunca também, os pontos de identificação foram tão flutuantes” (Augé, 1994: 39). O processo de deslocamento, defendido por Stuart Hall, leva a uma instabilidade perante o mundo social, ou seja, o próprio mundo social não comporta as antigas estabilidades, pois seus sujeitos não estão ancorados em um sistema cultural fechado. Esse processo é chamado por Hall (1997) de crise de identidade, e visto por Featherstone (1995) de identidades fluidas. Um momento histórico em que as noções de pertencimento não são compreendidas com clareza. “A “aceleração” da história corresponde de fato a uma multiplicação de acontecimentos na maioria das vezes não previstos pe218 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

los economistas, historiadores, ou sociólogos. A superabundância factual é que constitui problema, e não tanto os horrores do século XX (inéditos por sua amplitude, mas possibilitados pela tecnologia)” (Augé, 1994: 31).

Para Augé (1994) o problema dos novos objetos está na superabundância de fatos, viabilizada pela compressão do espaço-tempo Harvey (1993), que tendem a suprimir os significados. Nesse sentido, o mundo contemporâneo, pós-moderno para Hall (1997), Harvey (1993) ou supermoderno para (Augé, 1994; 1997), tem aspectos não capturáveis, subjetivos, que tornam os objetos não tão claros como na modernidade. Uma saída, consiste em compreender o mundo contemporâneo a partir das ‘novas’ regras do jogo social, aspectos da vida social que são perceptíveis por uma saída antropológica, especificamente vistas no campo da cultura. Essa pretensão antropológica é defendida por Augé (1994) em seu livro Não-lugares, onde o autor argumenta acerca do uso da antropologia para o estudo de sociedades “não-exóticas”. Isso se dá pela implementação de tecnologias que impuseram mudanças ao modo de produção capitalista, sobretudo a partir de 1960, com a universalização de novos meios de transporte e comunicação que permitiram o rompimento com tem-espaço, e quando o foco da produção e do consumo deixa de ser o produto material e passa a ser a relação abstrata do indivíduo com as marcas. Esse pensamento vai de encontro à lógica artesã onde o produto se sobrepõe à marca. Implica-se em pensar quais seriam as consequências desse processo de descentramento? Podemos apontar algumas: 1ª Identidade não se vincula mais ao local nativo do sujeito, pois os valores, sentidos e símbolos de outras culturas o atingem desde seu nascimento. O local não é determinante na construção de sua identidade. 2ª Como a identidade estabiliza o sujeito dentro de sua cultura. Quando não há essa sensação de pertencimento, por causa da fragmentação da cultura (identidades contraditórias se empurrando em diferentes direções dentro do sujeito), cria-se uma espécie de sujeito fugidio, ou seja, ele pode não se identifica com seu lugar de origem. A exemplo desse processo, Hall (1997: 4) aponta para o seguinte caso: Em 1991, o então presidente americano, Bush, ansioso por restaurar uma maioria conservadora na Suprema Corte americana, encaminhou a indicação de Clarence Thomas, um juiz nePanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 219

gro de visões políticas conservadoras. No julgamento de Bush, os eleitores brancos (que podiam ter preconceitos em relação a um juiz negro) provavelmente apoiaram Thomas porque ele era conservador em termos da legislação de igualdade de direitos, e os eleitores negros (que apóiam políticas liberais em questões de raça) apoiariam Thomas porque ele era negro. Em síntese, o presidente estava ‘jogando o jogo das identidades’

Como visto no exemplo acima, podem alternar, ou coexistir identidades diferentes e/ou contraditórias dependendo de valores intrínsecos aos sujeitos e sua leitura que fazem das relações sociais. Mediante as confluências de elementos locais e globais, as crises de sentido, identidade e alteridade, a compressão do tempo e do espaço, Augé (1997) acredita que podemos estar em direção a “novos mundos” e propõe o seguinte questionamento: Seria a cidade um mundo ou o mundo uma cidade? No contexto da supermodernidade, apropriando-se do termo utilizado pelo autor supracitado, as cidades são cidades mundo. São uma combinação de lugares e elementos que podem ser oriundos de diversos outros lugares, processo intensificado nas cidades de grande porte, um espaço simbolizado, onde, a identidade do indivíduo se mistura com a identidade do lugar em que vive: “A cidade é plural, ao mesmo tempo porque é composta de muitos bairros e porque existe singularmente na imaginação e nas lembranças de cada um dos que a habitam e a frequentam” (Augé, 1997: 171). Surgem, segundo Augé (1997), jovens que crescem nas periferias das grandes cidades francesas, e que ao chegarem à fase adulta, são levados a buscar empregos nas regiões que o autor chama de “cidade stricto sensu” (Augé, 1997: 183) ao se referir aos grandes centros urbanos, inserem-se em universo intercruzado de diversos mundos que nem sempre se identificam, e podem se tornar excluídos sociais por não dominar os códigos culturais ali presentes. Essa flutuação identitária também é vista por Froehlich (2003) ao afirmar que a mobilidade não se intensificou somente no campo espacial, mas, sobretudo no campo simbólico, “que se expressa pela capacidade do indivíduo de mover-se entre vários universos culturais em diferentes escalas espaço-temporais” (Froehlich, 2003: 118) gerando identidades híbridas. O autor propõe seus argumentos pautados em análise empírica do meio rural do Estado do Rio Grande do Sul, nos eventos populares 220 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

das localidades rurais, Festa de São Valentim e Festival de Inverno de Vale Vêneto e os elementos simbólicos ali circunscritos que transitam entre a tradição e o moderno. Ao mesmo tempo em que esses símbolos invocam o passado e a historicidade da região, a eles são incorporados elementos da contemporaneidade que permitem a preocupação estética e a curiosidade daqueles que participam do espaço. Como exemplo, Froehlich (2003) destaca o “Futebol de Bombacha”, une autenticidade e inovação, reforçando a ideia de coexistência simbólica local x global durante o Festival de Inverno. “Esta ampla circulação de pessoas que traz o Festival faz com que o vale adquira um certo ar cosmopolita nos dias do evento, uma manifestação do fluxo “global” no âmbito “local”, possibilitado pela compressão espaço-temporal e pela busca valorizada de sociabilidade convival que nossa época credita aos pequenos povoados” (Froehlich, 2003: 125).

O autor alude a diferença entre a “festa na aldeia” e a “aldeia em festa” para descrever os eventos do local, invocando os fluxos globais que se alinham a uma perspectiva de mercado em contraposição ao sentido próprio do evento, mas que, também coexiste com ele. Para entender o lugar, e sua construção, faz-se necessário perceber as identidades nele presentes, que, no entanto, não aparecem com a mesma clareza da modernidade. Nos fluxos de pessoas não se percebem o fato-social-total. Ou seja, no sentido antropológico e não histórico, não se separa de forma nítida cultura-sociedade-indivíduo, são elementos indissociáveis (Augé, 1994). Ainda na busca por entender o lugar pela cultura e pelas identidades, refletimos que as alianças, as trocas, os jogos, a religião e os demais produtos sociais nele presentes, que não são construídos de forma autônoma, metafísica. Nesses espaços contemporâneos proliferam os não-lugares, que se reinscrevem sobre os lugares de memória e identidade, coexistindo com a historicidade do lugar, mas sendo desprovidos de valor simbólico não permitem a identificação dos indivíduos que usufruem deles. Essa construção do lugar é utilizada por Harvey (1993) para compreender os elementos que permitem o autor chamar a contemporaneidade de pós-modernidade, que em sua concepção, trata-se de uma consequência da “cultura da sociedade capitalista avançada” (Harvey, Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 221

1993: 45), contudo o autor também defende que a pós-modernidade não veio para destruir a modernidade mas para coexistir com ela. A questão posta é que ao romper com a sociedade do encantamento e inserir-se na sociedade do trabalho, o homem acreditou que iria encontrar a felicidade prometida pelo projeto antropocêntrico, contudo se viu oprimido pela busca dos bens consumíveis (salário), que aliás, no modo de produção capitalista não é acessível a todos. Essa lógica levou a uma desestabilização, a qual, não se sabe qual é o sentido a ser buscado pelo homem pós-moderno, por certo seja uma satisfação estética (Harvey, 1993). Essas novas configurações são frutos das mudanças ocorridas no sistema de produção capitalista, que, por sua vez, acarretam mudanças na cultura de sua sociedade de acordo com Lopes (2009). Como o sistema não permite o acesso de todos os indivíduos de forma equânime aos bens e serviços disponíveis, a cultura permite a coexistência de estratégias (mecanismos utilizados por aqueles que detém o modo de produção) e táticas (saídas utilizadas pelos indivíduos que estão à margem do sistema) (Certeau, 1994). Por meio de restrições e permissões a cultura, refuta, legitima, concede sentido, institui, destitui novas formações que se ligam a estruturas hegemônicas. “Há uma inter-relação decisiva entre esses processos, na prática, que decidem os padrões de incorporação e suas formas de resolução de conflitos aí engendrados (Lopes, 2009: 27). Dessa ambiguidade surgem desigualdades sociais escondidas atrás de uma dada ordem social, que força aqueles que ficam a margem inventar sua maneira de jogar frente ao instituído, “a cultura é um elemento que protege as armas do fraco contra a realidade da ordem estabelecida” (Certeau, 1994: 85), esses indivíduos se utilizam da informalidade, dando golpes à ordem estabelecida, conseguindo se manter sem inserir-se na lógica vigente do trabalho formal e do consumo. Alguns exemplos dessas táticas são percebidos no trabalho de Pimenta; Mello (2014) onde os autores tratam de processos populares de geração de renda, especificamente no trabalho de artesãos do sul de Minas Gerais, a partir dos modos de saber-fazer encontrados na tradição popular dos locais estudados. A proposição dos autores não é inserir o artesanato como alternativa capaz de fazer frente ao modo de produção hegemônico, porém como meio viável mediante as consequências socioambientais impostas por este (Pimenta e Mello, 2014). 222 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Nesse esforço, imergiram nos lugares, afim de, capturar os modos de saber-fazer doces caseiros e artesanato de fibra de bananeira e palha de milho, a partir da voz dos próprios indivíduos que se utilizam de tais artefatos como meio de geração de renda. A pretensão dos autores foi deslocar o entendimento sobre desenvolvimento e tecnologias para o campo da cultura, assim, possibilita-se perceber “processos de negociação, convencimento, arregimentação, cumplicidade, tensões, decepções” (Pimenta e Mello, 2014: s/p). Confirmando que a cultura não se trata de algo estático, no entanto é, fundamentalmente, um elemento revelador da sociedade. Considerações finais Diante das ponderações elencadas ao longo do texto, apropria-se da afirmação de Reymond Willians (1992), de que “ver a cultura implica em ver a sociedade”. Em termos empíricos, pensar a cultura a partir de um viés específico ou seja, os modos de saber-fazer presentes na Casa da Artesã de Maria da Fé, Minas Gerais, vê-se a configuração de possibilidades de inserção social e de atenuação das desigualdades econômicas, mediante a reutilização de produtos naturais. A fibra e a palha da bananeira, matéria prima para a prática e aprimoramento da técnica artesanal, se transforma em produtos e são incorporados por uma dimensão estética própria do artesão, conferindo ao artesão forte laços de sociabilidade, de identidade e de pertencimento ao lugar e aos objetivos criados. Dito de outra forma, a Casa ganha dimensões que ultrapassam a questão econômica e se configura como espaço de sociabilidades, trocas e solidariedades. O espaço é coletivo e caracteriza-se de maneira diferente dos espaços convencionais de venda na sociedade da competição, da meritocracia do grande capital. Na cidade de Maria da Fé encontram-se diversos artesãos, os quais possuem ateliês em suas casas, mas têm um espaço coletivo de exposição e de venda de seus produtos: a Casa da Artesão Mariense. Aos artesãos não se dispõem políticas públicas de incentivo à prática artesã, no que tange ao fomento do turismo local. Conduto, há esforços que caminham para a superação dos entraves experienciados na prática artesã, mediados pela criatividade e valorização do coletivo.

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Centralidade e revitalização do merCado de pelotas/rs AnA estelA vAz xAvier Introdução Esta proposta de projeto busca compreender o processo de revitalização do Mercado Público localizado no centro histórico da cidade de Pelotas, atentando aos fenômenos sociais e culturais nele emergentes, além de observar a nova dinâmica que se apresenta no local no que se refere as questões econômicas. O Mercado Público, tombado no ano de 1985, fez parte do rol dos prédios que passariam pelo restauro, a partir da requalificação da área central de Pelotas, que contou com recursos do Programa Monumenta, do Ministério da Cultura e do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional – IPHAN (Brasil, 2012). A articulação das intervenções urbanas com vistas a revitalização das áreas centrais das cidades tendem a atrair capital e pessoas de classe médias e altas, tornando-as convidativas do ponto de vista turístico e comercial, por meio da ressignificação social dos espaços urbanos (Harvey apud Frúgoli Jr., 2000). Deve-se ressaltar que a intervenção urbana decorre, na maioria das vezes, de decisões políticas, do poder público e setores do capital, favorecendo a especulação imobiliária e do capital financeiro e comercial. De acordo com Peixoto (2009), a recuperação física e ambiental ocorre especialmente nos centros históricos das cidades, pelo fato de que este tecido urbano é formado por habitações antigas, além de que a recuperação contribui para o equilíbrio social, com atividades culturais e turísticas, e portanto, a valorização e conservação de patrimônio localizado no centro é uma tarefa coletiva. A presente pesquisa pretende observar quais os fenômenos estão envolvidos no processo de revitalização do Mercado Público Central de Pelotas e seus arredores. A Revitalização do espaço público degradado, pode tanto acarretar benefícios quanto prejuízos na vida da populaPanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 227

ção, dado que muitas vezes pode modificar as atividades econômicas originárias no meio ambiente construído. Por isso o foco da pesquisa é investigar a ressignificação social do uso do Mercado Público, após sua revitalização. O Mercado Público, entende-se como o espaço público, constituinte do meio ambiente urbano, onde os indivíduos se encontram no dia a dia movidos por alguns interesses comuns e outros diferentes. Consequentemente, esse espaço público possui uma centralidade que atrai pessoas, objetos, signos, estabelecendo entre esses elementos relações de troca seja econômica seja simbólica as quais sustentam processos de interação social. O objetivo geral desta pesquisa é investigar o impacto da revitalização do uso do MP para os antigos e novos ocupantes, buscando compreender a ressignificação das práticas construídas pelos comerciantes antigos e atuais, pelos expositores e frequentadores do MP. Propõe-se, identificar os agentes promotores e responsáveis pela produção e execução do projeto de revitalização, analisando a proposta inicial, juntamente com seus objetivos e sua repercussão, além de averiguar até que ponto os antigos ocupantes/permissionários tinham conhecimento do projeto de revitalização e em que condições eles participaram ou atuaram na tomada de decisões relativamente à reforma. É notório o fato de que houve um processo de higienização nos arredores do Mercado Público, excluindo do local as chamadas classes perigosas (frequentadores de bares, de baixa renda, que consumiam bebidas como a “cachaça”, as prostitutas, os moradores de rua, mendigos e outros considerados “ameaças” para a segurança da sociedade). Essa higienização é correlata ao enobrecimento da área central da cidade, o que demonstra indícios de gentrificação no local. Outro objetivo específico trata de estudar a mudança do perfil sociodemográfico do frequentador do Mercado Público, para discutir e refletir se houve ou não mudança em relação a isso, em decorrência da revitalização. E, por fim, tem-se por objetivo analisar os documentos pertinentes à revitalização do MP. Ao estudar as mudanças estruturais do local, será possível compreender no que resultou, após a reforma, procurando saber se houve uma descaracterização do Mercado, que se comparado a outros mercados públicos, perdeu sua singularidade de um local para vendas de produtos populares e tradicionais. Pois, podemos presenciar e vivenciar 228 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

práticas comerciais típicas em outros Mercados Públicos, que mesmo após passarem por reformas, mantiveram as características essenciais da forma de comércio, a exemplo do MP de Porto Alegre, MP de Ceará, MP de Florianópolis, dentre outros tantos. Neste sentido, menciona Arantes (2009), que na re-qualificação de centros históricos tem prevalecido critérios de intervenção que reforçam a dimensão estética monumental e os sentidos alegóricos dos bens patrimoniais, em desvantagem do uso que faziam os antigos ocupantes, o que parece ter ocorrido no Mercado Público. Conforme o Relatório do Projeto Monumenta, a requalificação da área central de Pelotas, se deu por meio das intervenções de restauro e reforma dos prédios pertencentes ao centro histórico da cidade, abrangendo os prédios da Administração, da Prefeitura, da Biblioteca Pública, os Teatros Sete de Abril e Guarani, a Praça Coronel Pedro Osório, e também do Mercado Central e a criação do Largo Edmar Fetter, estes últimos, objetos deste estudo, despertaram maior interesse por ter manifestamente se salientado no que se refere a sua ressignificação social. Antes da reforma, o Mercado Público possuía corredores com aparência menos alargada, com bancas/lojas maiores, com áreas de tamanhos diversos, além do que não haviam regras estabelecidas para a disposição dos produtos nas prateleiras e nos corredores do local, tanto é que tratava-se de prática comum os comerciantes exporem suas mercadorias pelos corredores na frente e nas laterais das lojas, porém, o Mercado estava abandonado quanto a limpeza, iluminação e “organização” (se é que devemos pensar em Mercados organizados, sem o toque local e cultural dos ocupantes). Após a revitalização, no Mercado, podemos identificar as alterações físicas relativas ao seu interior, que recebeu uma aparência mais arejada e renovada, houve um alargamento nos corredores e diminuição da área útil das bancas que foram adequadas pelo projeto de reforma ao novo modelo proposto, porém, também pode-se perceber que os ocupantes do local não são mais os mesmos na sua totalidade. Além das mudanças físicas e arquitetônicas, que presenciamos principalmente na parte interna do Mercado Público, podemos perceber que outros fenômenos ocorreram no local, portanto, com a presente pesquisa buscamos identificar e compreender quais foram. Hoje, encontram-se na parte interna do Mercado apenas quatro Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 229

dos antigos ocupantes, e, na parte externa do prédio, foi possível identificar outros poucos antigos comerciantes, dos quais dois estão nas barbearias, localizadas ao sul do Mercado, dois nos bares mais populares, a casa de peixes e aquários e em duas peixarias que permaneceram em funcionamento durante o período de reforma do prédio, portanto, no Mercado somente 11 bancas são ocupadas por permissionários que conseguiram retornar ao local com seus comércios e serviços. Os demais ocupantes do Mercado Público são novos, ou seja, instalaram suas atividades comerciais e de prestação de serviços depois da revitalização ocorrida. No entanto, o que percebe-se é que, passados quase quatro anos da entrega das obras, o Mercado possui um grande número de lojas desocupadas, que encontram-se fechadas, presume-se que isso ocorra em virtude do alto preço do aluguel cobrado aos permissionários e em decorrência da redução da área útil das lojas/bancas. Sabe-se que aumentaram o número de bancas após a reforma do Mercado, antes contava-se com 85 entre lojas, quartos e peixarias e atualmente totalizam 95 espaços destinados ao comércio, à gastronomia, ao espaço cultural e informação turística, ao comércio de carnes e peixarias. Portanto, será de suma importância, a abordagem acerca dos ocupantes das bancas e lojas do Mercado antes e depois da sua revitalização. O Mercado não voltou a ser como era antes, ele tornou-se um espaço de sociabilidade destinado sobretudo a atividades culturais, de entretenimento e de lazer, além do comércio. No seu exterior, diferentemente do que ocorria antes da revitalização, o Mercado passou a ser frequentado também à noite, especialmente nos bares e restaurantes, instalados principalmente na frente norte do Mercado, voltados para o Largo. A partir de então, busca-se investigar se as mudanças ocorridas no Mercado e no seu entorno acarretaram alguma espécie de exclusão social ou segregação a partir da higienização que acompanhou a Revitalização. Pretende-se averiguar se ocorreram outros processos sociais como a “gentrificação” (enobrecimento) do local, que levou a migração dos antigos ocupantes do Mercado a outros locais, bem como a perda da identidade e do sentimento de pertencimento por parte dos ocupantes que ali permaneceram ou ainda dos que dali saíram, além de outros fatores sócio econômicos que provavelmente fazem parte deste contexto. O problema desta pesquisa está em averiguar se há idiossincrasia entre os antigos e novos permissionários do MP em relação à ressignificação social do espaço, após a revitalização, além de buscar compreen230 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

der se os fenômenos envolvidos na revitalização do MP acarretaram a exclusão ou segregação espacial de um público frequentador com menor poder aquisitivo e menor capital social. Outro problema de pesquisa que se evidenciou foi buscar saber se após a revitalização houve a requalificação da centralidade de atividades comerciais e culturais no espaço público e por fim, pretende-se pesquisar se ocorreu a ressignificação do espaço público de Mercado para os atores sociais. No Mercado Público Central, como mencionado anteriormente, o comércio tinha uma aparência informal, despojada, os comerciantes podiam expor seus produtos sem regras de modo desordenado e até mesmo nos corredores, os produtos comercializados eram de outras espécies, como por exemplo, a casa de carnes, as sementes, as fruteiras, os calçados que eram destinados a todos os públicos, inclusive os consumidores “de menor poder aquisitivo”. Santos (apud Balsan e Ueda, 1998: 78-79) diz: “é, de fato, o mercado que autoriza a presença simultânea na cidade [...] de tantas formas de realização econômica diferentes e até contrastantes”. É nessa direção, que surgem os questionamentos acerca da ressignificação do Mercado Público de Pelotas após sua revitalização. No que tange as ruas que contornam o prédio do Mercado também pode-se perceber mudanças, já que sua revitalização incluiu a higienização do local. No entanto, esta pesquisa é ensejada pelo fato de que se acredita que o Mercado Público, não manteve seu uso de origem, destinado a concentração de comércio popular, como tradicionalmente ocorre.Tudo isso leva a crer que restou lesionada sobretudo a memória e a identidade de seus antigos comerciantes, ocupantes e frequentadores do Mercado. Com a revitalização do Mercado Público Central que reabriu suas portas em 2012, os fenômenos sociais que estão envolvidos passaram a chamar a atenção de muitos e, paradoxalmente, pode-se considerar que alguns destes fenômenos passam despercebidos, embora se façam presentes. Referencial Teórico O referencial teórico a ser utilizado como suporte a este estudo sociológico será devidamente referenciado neste tópico a fim de facilitar a compreensão do se pretende estudar. Neste sentido, os conceitos basilares, também serão evidenciados um a um para que o leitor possa orientar sua leitura para o entendimento do tema proposto. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 231

De acordo com Lefèbvre (2008: 90), “o urbano se define como lugar onde as diferenças são conhecidas, reconhecidas e postas à prova”. Neste sentido, o urbano é uma totalidade heterogênea e centralizada, marcada pelas particularidades, pelas diferenças que são o móvel da sociedade, pois a cidade acolhe o que é diferente, assim, pode-se afirmar que o urbano trata de centralizar tudo. As diferentes práticas agrupadas se confrontam, mas também se integram através das ações do indivíduos. No urbano ocorre a reunião das diferenças das relações sociais, nele estão as simultaneidades e consequentemente, os conflitos. A cidade centraliza as criações, que carecem de trocas, aproximação e relações. Segundo Lefèbvre (2008: 111), “a cidade cria a situação urbana, onde as coisas diferentes advêm umas das outras e não existem separadamente, mas segundo as diferenças”. Para esta pesquisa importa conceituar o urbano, pois o objeto de estudo está inserido no meio urbano da cidade de Pelotas e como bem menciona Henri Lefèbvre, o urbano é cumulativo de todos os conteúdos, ele possui signos que permitem a reunião das coisas, que propiciam espaços de intensa interação social. Sendo assim, entende-se que após a revitalização do Mercado Público, cujo prédio passou por modificações significativas na parte interna além da criação do Largo, ocorreu uma ressignificação deste espaço social, bem como o retorno da centralidade de atividades culturais e de entretenimento, pois, o urbano visto como forma, possui tendência à centralidade, pelos distintos modos de produção e de relações de produção. Visto que o Mercado Público da cidade de Pelotas, ao contrário de outros Mercados, que normalmente se encontram localizados em zonas portuárias, faz parte do centro histórico da cidade, bem na área central, administrativa e cultural, importa entender o que é a centralidade para a literatura. Procura-se investigar, além de outros elementos, a questão do resgate da centralidade, pós-revitalização do prédio do Mercado e seu entorno, o que percebe-se ter ocorrido, na medida em que atualmente, o local é mais frequentado como forma de lazer e entretenimento, seu espaço está sendo cada vez mais utilizado como meio de sociabilidade, o que antes da reforma não acontecia há muitos anos, pois estava abandonado e perigoso. Em relação à centralidade e seu resgate, processo pelo qual muitas cidades vêm passando e tema que Frúgoli Jr. (2006) busca estudar e compreender, em especial na grande São Paulo, analisando espaços decorrentes da expansão urbana, com os projetos que visavam a revitalização de áreas 232 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

que estavam deterioradas do ponto de vista urbano-ambiental, pois eram espaços que contavam com a presença de mendigos, ambulantes, assaltantes dentre outros grupos de pessoas, consideradas perigosas e indesejáveis para a população de classe mais abastada. Frúgoli Jr. (2006), se opõe ao que chamamos de higienização do espaço público que passa pela revitalização/requalificação, onde ocorre a expulsão de camelôs, pois o comércio informal não é aceito, além de outras expulsões de pessoas consideradas de risco para segurança pública. O autor procura compreender as concepções que norteiam as intervenções nas cidades, oferecendo interpretações das suas entrevistas muito importantes para a análise da complexa e difícil questão da apropriação do espaço urbano. Além do mais, inversamente ao “O direito à cidade” denominação de Henri Levebvre, Heitor Frúgoli Jr. se coloca contra a segregação social ou apartação sócio-espacial, posição que encontramos especialmente em sua obra “Centralidade em São Paulo” (Frúgoli Jr., 2006). Da mesma maneira que o autor consegue identificar casos de apartação sócio-espacial e a higienização do espaço público nas áreas que foram revitalizadas na cidade de São Paulo – SP, busca-se nesta pesquisa observar se ocorreram ou não casos semelhantes aqui na cidade de Pelotas- RS, com a requalificação do Mercado Público Central e de seu entorno. Em concordância com o pensamento de Park (1973), a cidade é muito mais do que é representado por seus componentes e instituições e setores administrativos. Para este autor, “a cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por esta tradição... é um produto da natureza humana” (Park, 1973: 26). Mais ainda, “a cidade é um habitat natural do homem civilizado” (Park, 1973: 27). Baseado no conceito de cidade acima descrito por Park, é que vê-se a necessidade de sua utilização nesta pesquisa sociológica, posto que, pretende-se estudar a ressignificação social do espaço social, no que toca os costumes, as tradições, os sentimentos, as práticas sociais, que voltam a ocorrer no centro da cidade após a revitalização do Mercado Público. Do ponto de vista do autor Ezra Park, com o qual ora compactua-se, a cidade possui uma vida propriamente sua, fazendo com que exista um limite para as modificações arbitrárias possíveis de se fazer em relação a sua estrutura e em relação a sua ordem moral. A cidade deixa ao empreendimento privado na maioria das vezes a tarefa de determinar seus limites, portanto, a organização e distriPanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 233

buição da população da cidade não é nem projetada e nem controlada. De acordo com Park (1973), nas cidades podemos visualizar questões morais vinculadas aos traços que seus integrantes têm em comum, que formam as “regiões morais” e inclui pessoas mais ou menos excepcionais e excêntricas que habitam as cidades, como parte da vida natural ou normal desta. Para Louis Wirth, as cidades exercem influências sobre a vida social do homem, pois elas são a moradia e local de trabalho do homem moderno, assim como é o centro iniciador e controlador da vida econômica, política e cultural que atraiu as localidades mais remotas do mundo para dentro de sua órbita interligando diversas áreas, diversos povos e diversas atividades num único universo. “O crescimento das cidades e a urbanização do mundo é um dos fatos mais notáveis dos tempos modernos” (Wirth, 1973: 91). A definição de cidade, para fins sociológicos, conforme Wirth, é “um núcleo relativamente grande denso e permanente, de indivíduos socialmente heterogêneos” (Wirth, 1973: 96). Para ele o problema central do sociólogo da cidade é descobrir as formas de ação e organização social que emergem em grupamentos compactos, relativamente permanentes, de grande número de indivíduos heterogêneos. O direito à cidade passa pelo sentimento de pertencimento do cidadão, pelo acolhimento e pela convivência entre os diferentes, onde há a percepção de que a sociedade serve a todos os cidadãos, sem distinção, não permitindo qualquer tipo de exclusão social. A cidade deve estar voltada para o compartilhamento do espaço público, considerando a igualdade para a aproximação e convívio entre as pessoas, com um maior grau de alteridade, onde o respeito à diversidade atua na saúde física e psíquica do homem da cidade, na sua coexistência no espaço público. No entanto, o que entende-se ter ocorrido no Mercado Central, foi justamente o contrário, pois suspeita-se de prática segregatória em relação a um grupo de pessoas. O espaço urbano, ocupado pelo homem citadino, que vai ao longo da vida estabelecendo relações de proximidade e de distanciamento de outros citadinos, em vários contextos, integra o que busca-se compreender neste trabalho, que tem por objetivo verificar o que ocorreu no espaço do Mercado público de Pelotas no tocante a seus atores e grupos sociais, bem como o modo de interação e sociabilidade, que levou a ressignificação social e resgate da centralidade da cidade após a sua revitalização. 234 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

De acordo com Serpa (2011: 9), em sua obra O espaço público na cidade contemporânea: “o espaço público é aqui compreendido, sobretudo, como o espaço da ação política ou, ao menos, da possibilidade da ação política na contemporaneidade”. Serpa, a partir de uma perspectiva crítica, afirma que mesmo sendo considerado público poucos se beneficiam desse espaço teoricamente comum a todos. O espaço público pode ser visto como espaço simbólico, que relaciona sujeitos diversos e percepções na produção e reprodução desses espaços através da intersubjetividade. Cabe aqui analisar o que tem sido considerado espaço público na atualidade, pois interessa a esta pesquisa compreender as muitas formas de interação social, modos de consumo, capital social e cultural, dentre outros elementos que se apresentam como determinantes das identidades sociais no espaço público das cidades, neste caso, o espaço público do Mercado Central, com vistas a sua ressignificação. A partir de estudos relativos às cidades, se pode observar que a crise da modernidade ocorre nos domínios público e privado e, neste sentido, Sennett diz que: “a erosão do equilíbrio entre a vida pública e a vida privada destrói o pilar que sustentava a sociedade nos primórdios do capitalismo” (Sennett apud Serpa, 2011: 35). Nas cidades brasileiras podemos verificar uma fragmentação do tecido sociopolítico espacial e a formação de encraves territoriais no tecido urbano, sofisticando as formas de auto-segregação dos habitantes (Serpa, 2011). A esfera pública além de nos reunir na companhia um dos outros também evita que colidamos uns com os outros, no entanto, a dificuldade que a sociedade encontra no convívio em massa é a de juntar os indivíduos, relacionando-os e separando-os dialeticamente. Os habitantes dos espaços urbanos possuem sistemas de significações a partir do percebido e do vivido, pelo fato do seu habitar desejado, destacados na teoria de Henri Lefèbvre. Entretanto, identificamos um grande vilão, que é o Estado, como participante das parcerias entre o público e o privado, que põe em ação estratégias urbanas, que parecerem produzir objetos e imagens, que na verdade nada mais são do que testemunhos da desintegração da cidade contemporânea. De acordo com Bourdieu (1996), autor eleito para conceituar espaço social nesta pesquisa sociológica, a ideia de diferenciação, de separação, faz parte do funcionamento da noção de espaço, conjunto de posições distintas e coexistentes exteriores e definidas umas em relação às outras Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 235

pela exterioridade mútua e por relações de proximidade ou de distanciamento assim como por relações de ordem (acima, abaixo e entre). Portanto, para Bourdieu (1996), quanto maior a proximidade de suas dimensões, os agentes sociais, possuem mais pontos incomuns, pois as distâncias espaciais, para ele, equivalem as distâncias sociais. Interessa para esta pesquisa compreender esta conceituação, pois os agentes no espaço social estão distribuídos na primeira dimensão de acordo com o volume global de capital (econômico e cultural), na segunda dimensão de acordo com o a estrutura desse capital (peso relativo do volume do capital econômico e cultural) e ainda na terceira dimensão conforme a evolução do volume e da estrutura de seu capital no decorrer do tempo. Para Bourdieu (1983), o mundo social é representação e vontade, existir socialmente é também ser percebido como distinto. No espaço urbano há um sistema de relações onde a alteridade está evidenciada delimitando-o de forma que as lutas de identidades moldam as divisões do mundo social, criando ou desfazendo os grupos. O espaço social de acordo com Bourdieu (1996), pode ser comparado ao espaço geográfico que conforme a proximidade dos grupos ou das instituições, pois são as interações, que proporcionam experiências mais imediatas, que podem ser tocadas. No entanto, o autor diz que a interação nunca está inteira na interação que se apresenta na observação, segundo ele, o espaço social está construído de tal modo que os agentes que ocupam posições semelhantes ou vizinhas estão colocados em condições semelhantes e submetidos a condicionamentos semelhantes, e têm toda a possibilidade de possuírem disposições e interesses semelhantes, logo, de produzirem práticas também semelhantes (Bourdieu, 1996: 155).

E, é neste momento, que se pretende compreender as prováveis questões sobre os interesses comuns e conflituosos, que, por dedução, acredita-se que estão presentes no Mercado Público como espaço social, pois baseando-se na teoria de Pierre Bourdieu, a proximidade no espaço social significa o intercâmbio de práticas e preferências igualitárias e por outro lado o afastamento implica em práticas e preferências distintas. Bourdieu (1996) apresenta o espaço social como sendo o local onde se organizam e se relacionam as diferenciações dispostas topologicamente de acordo com as posições sociais, porém, este conceito só 236 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

pode ser tomado ser for levado em consideração o universo relacional, ou seja, as disposições ou habitus, que são atribuídos a este ou àquele grupo determinado em um dado recorte espacial e temporal bem como em uma dada situação de oferta de bens. Bourdieu (1996: 27) diz que “o espaço social é a realidade primeira e última já que comanda até as representações que os agentes sociais podem ter”. Os usuários do espaço, segundo Serpa (2011), contribuem para a amplificação da esfera privada no espaço público, fazendo emergir uma sorte de estranhamento mútuo de territórios privados, expostos, no entanto, a uma visibilidade completa. No mundo contemporâneo, o Estado funciona como uma administração caseira, formando um lar coletivo, que ganha significado e sentido através das coletividades políticas, sendo assim, o domínio público se afasta de uma conotação política e vai assumindo um significado cada vez mais “social”, interditando a possibilidade da ação, como defendido por Serpa. Como bem menciona Serpa (2011: 39): Em um mundo onde a cultura transformou-se em lazer e diversão, existe uma distância mais social que física, separando os novos equipamentos públicos daqueles com baixo capital escolar, o que mostra que segregação espacial e segregação social nem sempre servem para designar a mesma coisa.

Neste sentido, conforme o pensamento de Serpa, pretende-se analisar supostos casos de segregação social e/ou espacial que possam ter ocorrido no espaço social, do Mercado Público de Pelotas após sua revitalização. A sociabilidade é um conceito básico que deve ser analisado, pois nele está a possibilidade de investigar a sociedade face às interações recíprocas dos seus indivíduos, segundo Simmel (2006). A alteridade encontrada nos espaços públicos está interligada às questões de formação de identidades sociais, cuja construção ocorrerá a partir da interação, das transações, das relações ou contatos entre grupos distintos. Para Simmel (apud Frúgoli Jr., 2007: 9), a sociedade nasce nos processos de interação microssociológicos, sendo necessário que “os indivíduos em interação 'uns com, para e contra os outros' formem, de alguma maneira, uma 'unidade', uma 'sociedade' e estejam conscientes disso”. Neste sentido, para Simmel o conceito de sociabilidade permitirá melhor compreender o modo como se organiza a sociedade através Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 237

de uma associação básica, por tratar-se de tipo ideal entendido como “social puro”, desprovido de interesses, de propósitos ou objetivos, que não seja a própria interação, vivida como espécie de jogo com suas regras implícitas, sendo uma delas a de que todos fossem iguais. Georg Simmel, como menciona Frúgoli Jr., diz que a sociedade é flexível e não rígida, sendo o conflito uma forma de socialização. Para ele, não há uma sociedade “como tal”, mas um movimento constante que separa ou aproxima constelações constituídas (Simmel apud Frúgoli Jr., 2007). Segundo Remy (2012), de acordo com o pensamento de Simmel, a sociedade é composta de grupos desarmoniosos, que estão em constante conflito, que tem por objetivo as funções muito mais que as disfunções, possibilitando a adaptação do indivíduo e o ajuste das relações sociais, através do consenso. E, partindo deste pressuposto, busca-se verificar se há conflito entre antigos e novos ocupantes do espaço do Mercado Público Central. Neste ponto, faz-se uma breve passagem conceitual pelo termo gentrificação (enobrecimento), a fim de entender se este processo ocorreu ou se pode ter ocorrido no Mercado Público após sua revitalização. O termo gentrification surgiu com os estudos da socióloga britânica Ruth Glass pela primeira vez, mas posteriormente foi sendo cada vez mais utilizado em muitos estudos com acepções diversas. De acordo com Rubino (2009), Glass, ao falar em gentrificação, se referia às casinhas modestas e geminadas das classes trabalhadoras de Londres, que foram invadidas pela classe média. Posteriormente, o termo gentrificação, segundo Rubino (2009) foi tomando outras nuances, com vertentes de pensamentos distintos em relação ao processo, pois de um lado haviam autores que salientavam a ênfase de imóveis em áreas abandonadas vinculados ao papel das finanças públicas e privadas, e por outro lado, na ênfase das novas classes médias urbana, com toda a sua prática de consumo e suas demandas. Neil Smith entende a gentrificação como sendo o “retorno do capital e dos segmentos sociais de maior poder aquisitivo ao centro” (Smith apud Pereira, 2014: 310). Para ele este processo resulta numa paulatina substituição de seus antigos moradores e frequentadores, que dificilmente conseguem resistir a pressão decorrente das mudanças provocadas pelo enobrecimento. Para Smith, o processo de gentrificação está muito mais vinculado às forças econômicas do que às culturais. 238 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

De acordo com David Harvey, pode ocorrer o fenômeno da gentrification, ou “enobrecimento”, quando as áreas centrais da cidade são revitalizadas e passam a ser habitadas por grupos sociais de maior poder aquisitivo, com tendência à criação de novos enclaves residenciais e à expulsão dos moradores originais, de baixa renda ou de origem étnica distinta daquela dos novos moradores (Harvey apud Frúgoli Jr., 2006: 22). No entanto, Rafael Gutiérrez (2014), afirma o termo gentrificação trata-se de um processo que não é homogêneo entre as cidades nem dentro delas próprias, onde convergem interesses tanto público como privados, que surgem ao redor deste e que em geral resulta excludente, diferenciador e enfocado no consumo. Ao compreender o que propõe Gutiérrez relativamente ao termo “gentrificación”, encontra-se base para levantar a hipótese de ter ocorrido tal processo no espaço do Mercado Público Central de Pelotas, objeto desta pesquisa. Segundo Zukin (2014: 10): A gentrificação é uma ótima estratégia para preservar o tecido físico da cidade: casas bonitas, ruas bonitas, usos variados, cafés, pequenas lojas. Mas os gentrificadores têm altos rendimentos se comparados com a maioria dos habitantes da cidade, então, eles alteram a economia local. Eles apoiam mercados de consumo cultural – cafés com chiques em vez do café comum do dia a dia, restaurantes gourmet – mas não apoiam as pequenas lojas e as feiras livres das quais os residentes de menor renda dependem.

Pretende-se fazer um breve apanhado conceitual dos termos revitalização e requalificação, este último é o termo utilizado no Projeto Monumenta e pelo IPHAN constante nas propostas destinadas à reforma e à restauração dos prédios históricos da cidade de Pelotas. Para Peixoto (2009), a requalificação urbana corresponde a uma prática de planificação ou de proteção urbanística de equipamentos e de infra-estruturas expostos à degradação e à obsolescência funcional. Peixoto (2009) menciona que na Carta de Lisboa, requalificação refere-se a operações dirigidas a espaços não residenciais, sendo que as mesmas apostam em fomentar nesses espaços novas atividades mais adaptadas aos contextos urbanos contemporâneos. De acordo com Peixoto (2009: 46): a requalificação urbana dirige-se mais ao seu entorno e ao espaço público, ou, nas operações urbanas de larga escala, à rePanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 239

convenção funcional de um dado espaço. O objetivo último da requalificação passa por (re) introduzir “qualidades urbanas de acessibilidade ou centralidade a uma determinada área”.

Neste sentido, Peixoto (2009) diz que o termo revitalização aparece associado à ideia de requalificação urbana, podendo ser considerado sinônimo para uma realidade que busca conjugar a reabilitação física, arquitetônica e urbana dos centros históricos visando revalorizar as atividades econômicas e culturais que ai se desenvolvem. Aqui pode-se verificar a proximidade dos termos revitalização (que ora adota-se) e requalificação (termo adotado pelo Iphan e Projeto Monumenta), ambos utilizados neste trabalho de pesquisa sociológica que pretende compreender a ressignificação social do Mercado Público após a sua revitalização. Deve-se atentar para a diferença conceitual das terminologias utilizadas nas intervenções urbanas. De acordo com a Carta de Lisboa (1995), o conceito de reabilitação se apresenta como sendo uma estratégia de gestão urbana, que induz a compreensão de seu significado como sinônimo de requalificação e que em seguida aproxima esse conceito da definição de revitalização (Vargas e Castilho, 2006). Ambos os conceitos carregam a necessidade de dar nova vida às áreas decadentes da cidade. No entanto, há que se considerar que, de acordo com as autoras, Vargas e Castilho (2006), existe uma diferença entre a reabilitação, que exige que sejam mantidas a identidade e as características do lugar e a requalificação que pode ser adotada em zona com ou sem identidade. Na interpretação das mesmas, o termo revitalização se aproxima muito do termo de requalificação, e ambos os termos implicam em dar nova vida, nova atividade econômica a áreas decadentes das cidades. Nas operações dirigidas às áreas urbanas antigas, “a revitalização de um centro histórico exige a manutenção da população (...), a atração da população que o abandonou, assim como de novos usuários” (Casares apud Peixoto, 2009: 46). E, Peixoto (2009), menciona Peña, quando ele diz que o objetivo da revitalização é conservar e reabilitar o patrimônio do centro histórico, devolvendo a sua importância funcional mediante a revitalização das atividades comerciais e dos serviços tradicionais, além de outros, que tornem o local atraente para aqueles visitantes interessados pela história e pela cultura locais. Neste sentido, observa-se que o que está ocorrendo no espaço público do Mercado Central, por hora, se distancia do que se espera da revitalização. 240 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

Porém, há que levar em consideração o fato de que a “reposição da totalidade” implicaria num falso histórico, “afinal toda a cidade é histórica, pois ela é a materialização do processo histórico; é impossível não deixar de atribuir juízo de valor ao escolher as áreas para intervenções” (Vargas e Castilho, 2006: 62). Sendo assim, como mencionam Vargas e Castilho (2006), no caso da renovação urbana que abre espaço para a reabilitação (revitalização, regeneração), as práticas urbanísticas reconhecem o valor da história na cidade e do homem enquanto ser cultural. Ao enfatizar as questões nas quais se apoiam os projetos de revitalização, com suas motivações e necessidades, assim como suas consequências para a população, sejam elas negativas ou positivas, dispõe-se de uma série de argumentos para embasar este trabalho de pesquisa no que tange aos assuntos de interesse público e privado. E, como mencionado anteriormente, Frúgoli Jr. (2000) diz que David Harvey, considera a promoção da revitalização de áreas centrais das metrópoles, como sendo um modo de atrair capital e pessoas, ressiginficando os espaços urbanos, tornando-os mais convidativos do ponto de vista comercial e turístico. Na proposta de reciclagem do Mercado Público de Pelotas, Villela (1995: 8), menciona alguns conceitos de revitalização editados pela revista Projeto nº 160 e utiliza o seguinte conceito: revitalização é incentivar a atribuição de novos usos e funções, tornando as edificações compatíveis com as necessidades de uma sociedade contemporânea e apresentando-as como alternativa para a crescente demanda de novas construções e equipamentos urbanos.

A princípio, acredita-se ser este o conceito que mais se aproxima do processo de requalificação/revitalização do Mercado Público de Pelotas, utilizado na prática pelos agentes operadores e promotores da reforma. Formulação de Hipóteses As hipóteses levantadas na presente pesquisa são: 1. A revitalização do Mercado Público Central de Pelotas contribuiu para o requalificação da centralidade de atividades comerciais e culturais no espaço público. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 241

2. A revitalização repercutiu na atração de um público com poder aquisitivo e escolaridade maiores e a evasão de um público com menor poder aquisitivoconsequentemente com menor capital social. 3. A revitalização do Mercado Público resultou na ressignificação do uso deste espaço público pelos atores sociais, ou seja, pelos antigos e atuais permissionários, pelos expositores culturais e artistas e ainda, pelos frequentadores. 4. Há idiossincrasia entre os permissionários atualmente estabelecidos no Mercado Público Central e os antigos permissionários que dali migraram para outros prédios/locais comerciais, no tocante à ressignificação do Mercado em decorrência da revitalização. No próximo tópico serão apresentados os procedimentos de pesquisa que este projeto visa empregar, ou seja, as ferramentas metodológicas, facilitando a compreensão e acompanhamento do trabalho que ora está sendo desenvolvido no projeto de dissertação. Orientação Metodológica Este trabalho procura observar e identificar as mudanças ocorridas no Mercado Central de Pelotas após sua revitalização, visando a compreensão dos fenômenos sociais que ocorreram e estão ocorrendo de fato no local, que vêm ressignificando seu uso. Ao observar o MP e analisar os questionários, as entrevistas e os documentos, apoiados no arcabouço teórico, será possível identificar diversos fatores que interessam a esta pesquisa sociológica. Foi realizada pesquisa exploratória no local e a análise de alguns documentos, citados anteriormente, que viabilizou a identificação de questões de ordem burocráticas que, possivelmente, impediram o retorno de alguns dos antigos ocupantes/permissionários ao Mercado, dentre outros fatores sociais que ensejam este trabalho. Será realizado um estudo qualitativo e quantitativo, cujas técnicas aplicadas serão: a) o questionário escrito, com perguntas abertas e fechadas, aplicado diretamente aos atuais permissionários do Mercado, com ou sem identificação do participante; b) o questionário escrito com perguntas abertas e fechadas, aplicado aos ocupantes/frequentadores do MP, para identificar o perfil sócio econômico dos mesmos, sem iden242 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

tificação do participantes; c) A entrevista aos antigos permissionários/ ocupantes do Mercado Público de Pelotas que não mais estão no local, dando liberdade ao entrevistado para identificar-se ou não; d) A revisão bibliográfica – que são as teorias e os conceitos que irão dar suporte a presente pesquisa sociológica; e) A técnica da observação; f) A análise de documentos relevantes para a pesquisa; g) A fotografia que também estará a serviço da pesquisa, facilitando a compreensão dos fenômenos que ocorreram e vêm ocorrendo no espaço do Mercado Público, no Largo Edmar Fetter e nos arredores, que levaram a ressignificação deste espaço.

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o engaJamento na investigação Como proCesso de Criação de sentido da própria pesquisadora

vAlériA ghisloti iAred Narrativa 01: Eu estava na Austrália! O dia era chuvoso, nublado e frio. Mesmo assim, eu estava na Austrália! Durante as minhas 30 horas de viagem, eu me questionei diversas vezes se estava fazendo a coisa certa. Mas, agora, estava lá esperando meu orientador que iria me acompanhar nos 12 meses durante aquele estágio sanduíche do outro lado do mundo. Nos encontramos no aeroporto e seguimos para sua casa em uma cidadezinha próxima a Melbourne, chamada Bendigo. Iria passar dois dias lá para ir me aclimatando a Austrália. A casa, na realidade, era uma chácara vizinha a um Parque Nacional e por onde andavam livremente cangurus. Na Austrália, eu fui vivendo cada momento intensamente! Desde as viagens pelos parques naturais, museus, cidades, até a relação com as pessoas de cultura tão diferentes da minha. Eu estou num referencial teórico que questiona dicotomias, por isso, não consigo separar o pessoal-profissional, penso que tudo isso foi e continua tecendo quem somos em casa e no trabalho. Na universidade, fui guiada por uma pessoa tão comprometida com a causa ambiental como a orientadora que tinha no Brasil. Tive a oportunidade de focar bastante no tópico da tese e conhecer diversas outras teorias e estudiosas/os que estão me instigando a querer mais, a ser mais, como diria Paulo Freire!

Tomo a liberdade de iniciar meu artigo por essa narrativa que de maneira nenhuma “representa” onde tudo começou. Payne (2013) sugere que as narrativas são alternativas para trabalhos pautados em uma perspectiva fenomenológica que considera que produção de significado na experiência estética/afetiva na natureza acontece no nível pré-reflexivo, ou seja, são anteriores a linguagem. Já que usei tal palavra, “representa”, justifico que a opção é coerente com o que venho estudando sobre o problema da representação nas ciências sociais e humanas (Thrift, 2008). Essa preocupação está em consonância com o desafio de descrever em palavras, verbais e escritas, os sentimentos, as emoções e a afetividade que temos nas experiências estéticas. E esse foi o meu tópico de pesquisa durante o doutorado: quais as naturezas das experiências estéticas da natureza no/com/como Cerrado? A opção por trabalhar com as experiências estéticas no Cerrado adveio da pesquisa de mestrado. A opção pela fenomenologia- herPanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 247

menêutica/interpretativa como referencial teórico-metodológico me fez mergulhar nas leituras de Mearleu-Ponty (1984, 2006), Gadamer (1997, 2006) e artigos/ pesquisas pautados nesse referencial. A tarefa era instigante, uma vez que minha formação na graduação é em Ciências Biológicas e, aos poucos, fui compreendendo e percebendo como poderia delinear a coleta de dados. Narrativa 02: Resolvi, então, partir para a coleta de dados. A sensação de ler, ler, ler, ler e não ir para a prática estava me dando agonia. Pessoa ansiosa que sou, decidi ir para a coleta de dados! Eu e minha orientadora elaboramos cartas-convite que foram enviadas para alguns grupos que tinham listas de email. Alguns responderam... Minhas/eus amigas/os! Percebi, mais uma vez, na prática, que a confiança na/o pesquisador/a é fundamental na pesquisa com pessoas. A empatia foi peça chave para a técnica proposta: ouvir as memórias e contos sobre a relação delas/es com a natureza, particularmente, o Cerrado. Aí fui escutar histórias... Passei algumas semanas escutando estórias... E diria, meses, “(re)ouvindo”, interpretando e estudando essas estórias e fui me encantando e me identificando com tais estórias. As histórias delas/es me faziam recordar as minhas histórias. Nasci e fui criada em São Paulo, a maior cidade do Brasil, mas tinha algumas opções de contato com outros seres vivos e não humanos, a começar pelo jardim da casa onde eu vivia e que minha mãe cuidava de maneira carinhosa. Também estudei durante alguns anos em uma escola que tinha um bosque, o parquinho era no bosque e eu adorava “catar” e comparar as pinhas que caíam no chão. Mas o fato mais marcante era o quintal da casa dos meus avós que, mais tarde, acabou sendo meu lar durante os 14 anos de residência em São Carlos. Meus avós moravam em São Carlos, três horas de São Paulo e eu os visitava frequentemente. O quintal sempre foi muito espaçoso, cheio de árvores e muitas galinhas que minha avó criava. Esse era o local preferido em que eu e minhas primas brincávamos. O dia começava às 5 horas da manhã, quando minha avó me acordava para dar milho para as galinhas. Mais tarde, minhas primas chegavam e nós subíamos nas árvores, brincávamos de barata ao alto, elefantinho colorido, esconde-esconde. Nesse quintal, nós soltávamos a imaginação e, algumas vezes, bolamos peças teatrais, as quais apresentávamos para a família. Mas nossa época preferida era o verão, porque era a estação que as mangas estavam maduras. Nós passávamos o dia inteiro subindo e descendo da árvore, para achar mangas e comê-las. Hoje em dia, percebo que não foi só Paulo Freire que brincou muito à sombra de uma mangueira, eu também brinquei. E assim como Paulo Freire disse que ele é o que ele é por conta dessa vivência no quintal da casa dele no Recife, eu sou o que eu sou por causa das brincadeiras no quintal da casa dos meus avós em São Carlos. Vale lembrar que nessa época que Paulo Freire não exista na minha vida, mas hoje, é uma das referências que carrego no meu dia-a-dia!

Durante as entrevistas, identifiquei como as pessoas estavam sendo cuidadosas na escolha das palavras. Eu as instigava a falar sobre 248 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

sentimentos, emoções e a relatarem o que sentiam em relação ao Cerrado. Elas, então, ficavam pensativas e muitos diálogos foram marcados por um “silêncio” antes da descrição da vivência. Não foram poucas as vezes que ouvi “ai que difícil falar sobre isso!” ou “não estou conseguindo colocar em palavras tudo que eu vivi, mas o Cerrado é parte de mim” ou “desculpa se eu não falei direito mas é que essas perguntas me pegaram de surpresa”. Em uma investigação sobre diferentes formas de aprendizagens, Payne (2005) compara duas formas de vivenciar uma praia na Austrália: artística e científica. A participante da pesquisa estuda a praia por meio técnicos- científicos para determinar as características físicas do local. Meses depois, ela retorna ao mesmo ponto e faz uma imersão, uma profunda experiência estética. A participante, assim como muitas/ os entrevistadas/os no presente estudo, sentiu dificuldade em colocar em palavras o que sentiu. O autor pediu para ela representar de outras formas (desenho, dança, música) o que viveu e critica as limitações que nós, pesquisadores, temos de representar os resultados das nossas investigações. Neste sentido, a teoria não representacional (Thrift, 2008) traz argumentos importantes de que a pesquisa tem limitações tanto no que diz respeito à acessibilidade dos dados como à forma de representá-los. A dificuldade em se expressar foi recorrente durante essa investigação e nos fez refletir que acessar sentimentos e emoções e representá-los são desafios a serem amplamente discutidos na pesquisa qualitativa. Narrativa 03: Mandei um email para o meu possível supervisor de estágio sanduíche numa sexta-feira contando sobre meu tópico de pesquisa e que um estágio sanduíche de 12 meses em Melbourne iria me ajudar. No sábado cedo chegou a resposta - ‘you are more than welcome!’ - ‘você é mais que bem-vinda!’. E, assim, eu fui para Austrália. Claro que entre esse email e minha ida foram 12 meses de elaboração de projeto, pedido de bolsa, burocracia com visto, compra de passagem e etc. Mas eu fui! E lá estava eu no meu primeiro dia explicando para meu supervisor cada detalhe do que estava pensando para meu doutorado e de como aqueles 12 meses do outro lado do mundo poderiam me ajudar na pesquisa. Ele não falava nada. Quando terminei de apresentar toda minha ideia, ele levantou da mesa, saiu da sala e voltou com uma pilha de livros. Acho que uns 10 livros. E foi me mostrando: ‘The spell of sensous’, ‘Sensory ethnography’, ‘The perception of environment’, ‘Being Alive’, ‘Becoming Animal’. Um dos autores eu já tinha ouvido e lido sobre, o Tim Ingold. Ele disse que eu ia começar (isso, COMEÇAR) pelas leituras desses. Iria, então, fazer um resumo (parte A) e uma reflexão de como essa obra poderia me ajudar na minha pesquisa (parte B). E eu comecei a ler... O primeiro deles o livro de David Abram, ‘The Spell of sensous’. Conforme eu ia lendo, eu sorria e vibrava e ler aquele livro foi um aconPanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 249

chego para o meu coração. David Abram conseguiu colocar no papel várias coisas que eu tentava organizar nos meus pensamentos. Dele fui para ‘Sensory ethnography’ da Sarah Pink que, na mesma linha, me fazia perceber que tinha um mundo a ser desvendado. De Sarah Pink, mergulhei (sem medo) nas leituras de Tim Ingold. Acho que eu mergulhei e nunca mais voltei à superfície. Tudo fazia tanto sentido!

Lorimer (2011) e Pink et al. (2010) afirmam que os mobile studies vêm crescendo como uma alternativa metodológica nas ciências sociais e humanas. Essa metodologia considera a mobilidade como um elemento importante na compreensão da vivência (Ingold, 2000, 2011) e que potencialmente expande nossas interpretações fenomenológicas do corpo engajado na experiência vivida na natureza (Iared, Oliveira, Payne, 2016). Para essas/es autoras/es, as investigações em movimento são ontológica e epistemologicamente co-geradoras na produção de significado na experiência estética/afetiva na natureza e nos auxiliam a compreender as relações com o mundo humano e mais que humano. Baseadas/os nos estudos antropológicos, algumas/ns autoras/ es no campo da pesquisa em educação ambiental vêm se apropriando de tais alternativas metodológicas com o objetivo de investigar as emoções e ligações afetivas com a natureza. Payne (2013) elaborou narrativas de sua experiência com cangurus no seu quintal, enquanto Iared (2015) utilizou o walking ethnography (Ingold, Vergunst, 2008) para expandir os dados de entrevistas semi-estruturadas na investigação sobre experiências estéticas no Cerrado. Da mesma maneira, Payne et.al. (no prelo)1, realizaram um auto-estudo coletivo de caminhar pela Mata Atlântica como proposta de discutir o significado da afetividade na maneira em que conduzimos pesquisas críticas em educação ambiental. O estudo identificou que o exercício da etnografia sensorial do caminhar propiciou uma compreensão metodológica, na perspectiva da mobilidade em pesquisas interpretativas, oferecendo a oportunidade de nos transformar como pesquisadores. Juntamente com minha orientadora brasileira e meu supervisor na Austrália, decidi que iria voltar para o Brasil e coletar mais dados, mas, dessa vez, propondo para as/os mesmas/os participantes da pesquisa um walking ethnography no Cerrado. Dessa maneira, houve a necessidade de vários exercícios prévios, ainda em Melbourne, sob su1 PAYNE, P.; RODRIGUES, C., CARVALHO, I.C.M.; FREIRE, L.; AGUAYO, C. Afetividade em Pesquisas em Educação Ambiental submetido para a Revista de Pesquisa em Educação Ambiental. 250 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

pervisão do meu orientador australiano. As práticas de captar quanto a mobilidade faz parte das nossas significações ontológicas e epistemológicas não se reduziram apenas a momentos formais com meu então orientador. Durante outros momentos, pessoais e de lazer, tomava essa postura de estar atenta e vivenciar a literatura que eu estava estudando. Nas últimas décadas vêm surgindo diversos movimentos que problematizam a raiz da nossa sociedade antropocêntrica. Alguns antropólogos como David Abram (1996) e Tim Ingold (2000) afirmam que nas civilizações nômades, quando caçávamos e coletávamos, não havia relação de apropriação da sociedade para com a natureza e nos colocávamos em uma posição horizontal e simétrica com o mundo mais que humano uma vez que vivenciávamos a natureza da mesma maneira que os outros seres vivos. Ingold (2011) afirma que a aquisição das tecnologias (botas, roupas e outros) nos afastou de perceber e experienciar a natureza em toda sua potencialidade. Transcendendo isso para a pesquisa, Vergunst (2011) se coloca contra o uso de aparatos tecnológicos (como GPS e gravadores) durante os exercícios de walking ehnography. Para o autor, se a proposta é estarmos, como pesquisadoras/ es, engajados no contexto de pesquisa das/os participantes do estudo, esses aparatos soam incoerentes. Da mesma maneira que estas/es antropólogas/os, Rousseau (2008) indaga sobre o surgimento da apropriação de uma sociedade sobre um pedaço de terra. Para o filósofo, propriedade privada e, conseqüentemente, a desigualdade surge quando o primeiro “homem” coloca uma cerca numa porção de terra e diz que é sua. Destaco a palavras masculina “homem”, porque, aparentemente, foi exatamente o que aconteceu. Em uma entrevista, em 30 junho de 2016(, para o programa “Em pauta” (na rede “Globo News” de televisão), a psicanalista e sexóloga, Regina Navarro, abordou o assunto do estupro coletivo acontecido no Rio de Janeiro e que infelizmente, ocorre no mundo todo (informação verbal)2. Ela comentou que vários estudos dizem que, quando éramos nômades, muitas civilizações eram matriarcais e que essa desigualdade de gênero não existia. A partir da primeira propriedade privada (ela usou esse termo), é que o homem ficou responsável por certas atividades e as mulheres por outras - começando uma relação de dominação do homem sobre tudo: propriedade (terra), decisões sociais e mulher. 2 Regina Navarro concedeu entrevista à Rede Globo News de televisão durante o programa Globo em pauta no dia 30/06/2016. Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 251

Atualmente, a perspectiva de uma sociedade antropocêntrica está sendo colocada em questão por movimentos como pós-humanismo (Braidotti, 2013) e o novo materialismo (Coole, Frost, 2010). O pós-humanismo descentra o ser humano como fundamento de toda investigação ontológica e sustenta a reconsideração do pensamento de que o somos aqueles capazes de perceber o mundo, pensar sobre isso, e comunicá-lo de volta para os outros (Braidotti, 2013; Haraway, Kunzru, Tadeu, 2009, Moore, Moran, 2016, entre outras/os). As/os seguidoras/es do novo materialismo (Dolphijn, Van Der Tuin, 2012, Coole, Frost, 2010) reposicionam a existência da materialidade e agência, estendendo-as para todos os seres vivos (e até não vivos) já que essa possibilidade ontológica tem a potencialidade de nos reorientar como indivíduos e sociedade, política e eticamente. As pessoas também são influenciadas por sua incapacidade de reconhecer que podemos fazer a diferença. O pensamento apocalíptico de que não há nada que possamos fazer para virar a maré; a falta de objetivos de longo prazo, e visões que falham em reconhecer que as futuras gerações realmente dependem de nossa boa vontade e os esforços que nós mesmos não vamos viver para ver; a necessidade de gratificação imediata; pura e simples preguiça; o pensamento hierárquico e especista de que nós somos “maiores, melhores, ou mais valiosos” do que outros animais uma barreira psicológica que justifica a superioridade humana e excepcionalismo, inclinações religiosas, contingências econômicas (é demasiado caro para cuidar e fazer alterações), alinhamentos políticos, e dogmas- todos fatores em negatividade. Os seres humanos não são “melhores” ou “mais elevados” do que indivíduos de outras espécies. Nós partilhamos muitas semelhanças, mas nós somos também diferentes, mas diferente não significa melhor (Bekoff, 2013, p. XV tradução nossa).

Como colocado, pesquisadoras/es estão se indagando sobre a materialidade das coisas (Bennett, 2004; Carvalho, 2014; Ingold, 2012) na perspectiva de reconhecer a agência dos não humanos. Segundo Coole e Frost (2010), nós estamos testemunhando a emergência de difusas maneiras de conceitualizar e investigar a realidade material e isso é especialmente constatado na ciência política, economia, antropologia, geografia, sociologia onde é exemplificado o recente e urgente interesse pela compreensão da sociedade contemporânea em relação a diversas questões, sendo uma delas, o ambientalismo. As autoras acres252 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

centam que o entendimento das práticas cotidianas passa pelo pensamento da natureza da matéria ou a matéria da natureza - elementos da vida, resiliência do planeta e a distinção do humano. Logo, os recentes estudos nos clamam para uma profunda reorientação com o mundo, com os outros e com nós próprios. Para Braidotti (2014), muitos campos de pesquisa inter e transdisciplinares vêm surgindo dentro do movimento pós-humano, sendo que entre eles está o de “Estudos Animais” e “Eco-criticismo”. De fato, na última edição do encontro anual da Associação Americana de Pesquisa em Educação em Chicago/ Estados Unidos, em abril de 2015, muitos trabalhos nessa linha temática foram apresentados no SIG (Special Interest Group- Grupo de Interesse Especial) de Educação Ambiental3. Outros trabalhos na área de educação ambiental (Borges, 2014; Fawcett, 2013; Flowers, Lipsett, Barret, 2014; Russell, 2005) também vêm publicando dentro dessa abordagem na qual a perspectiva do mundo mais que humano é reconhecida como fundamental. Steil e Carvalho (2014) intitulam esse movimento como epistemologias ecológica -as contribuições de diferentes campos científicos, apoiados na filosofia, antropologia, sociologia que contribuem para construir as pesquisas e práticas pedagógicas - nomeadas frequentemente como educação ambiental - que prezam pela horizontalidade nas relações entre humanos e não humanos coerente com o movimento da virada corporal. A virada corporal (Sheets-Johnstone, 2009) é um movimento contemporâneo que vem questionando as tradicionais teorias cognitivas na qual aprendemos pela transmissão de representações (Ingold, 2010). Isto é, não é uma mente em um corpo pensando, atribuindo significado para as coisas e representando o mundo e, sim, nosso corpo como centro e origem do ser e estar no mundo, ou seja, uma mente encarnada ou engajada que não separa o pensar - fazer e o sentir - estar em movimento (Sheets-Johnstone, 2009). Dentro desse movimento, considera-se que mente, corpo e mundo são indissociáveis, resultando, também, no questionamento de outras dualidades como sujeito- objeto, natureza-cultura, humanos- não humanos. A virada corporal tem uma proposta fenomenológica no que diz respeito ao estudo do movimento e do somaesthetics (Shusterman, 2008). 3 Para mais informações sobre esse evento, acesse: http://www.aera.net/EventsMeetings/AnnualMeeting/PreviousAnnualMeetings/2015AnnualMeeting/tabid/15930/Default.aspx Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 253

Segundo esse conceito de somaesthetics, desde que nascemos, temos conexões viscerais com o mundo da vida como criaturas na/com/ como natureza e o significado vem de nossas percepções corporais, movimentos, emoções e sentimentos. Essas conexões viscerais abordam o campo da estética, mas não a estética como o estudo da arte, mas como o estudo de tudo o que tem fortes ligações com o nosso corpo engajado no mundo (Ingold, 2011; Johnson, 2007; Shusterman, 2008; Sullivan , 2001). Logo, o somaesthetics se refere à compreensão das ligações viscerais com o mundo e a capacidade humana para significar as experiências. Essa proposta contemporânea percebe uma ontologia na qual nosso corpo está engajado no/com/como mundo em uma malha de fios (Ingold, 2011) em um fluxo constante na qual mudamos o mundo da mesma maneira que o mundo nos transforma. Narrativa 04: Comecei a perceber quanto o movimento fazia parte das nossas vidas. O caminhar da minha casa até a universidade. Estar atento às estações do ano, em como as flores e plantas respondem à variação sazonal. O nosso movimento de buscar ser mais (como diria Paulo Freire). E como representar tudo isso? Nas conversas com meu supervisor e meus colegas, soube de linhas teóricas- filosóficas que questionavam nossa tentativa de compreender, acessar e representar os não humanos a partir da nossa perspectiva humana. Isso ia totalmente ao encontro de algo que eu sempre pensei: por que essa mania de nos colocar como superiores aos outros seres vivos? Por que essa mania de achar que somos diferentes, que temos o tal sistema nervoso mais complexo e o polegar opositor e, por isso, somos diferentes e melhores? Todos os seres vivos são diferentes entre si... e cada qual tem seu encanto e sua beleza e merece ser respeitado por simplesmente por existir. E aí eu descobri que tinha um monte de gente pensando que nem eu e que tinha uma linha teórica ou várias linhas teóricas indo por esse caminho. Eu vibrei!!! Crist (2013) indaga sobre as raízes da cultura ocidental que enfatizam a nossa diferença para com os animais e afirma que esse posicionamento acaba por deslocá-los para um nível de menor importância, o que justificaria nosso domínio e exploração para com eles. De fato, os encontros com outras coisas (não humanas) estão crescendo em importância e, como resultado, a natureza de outras coisas se tornou cada vez mais ativo, fornecendo uma nova descentralização do sujeito “humano” e aumentando a dificuldade de conceber a “agência” humana ‘’ em tudo (Thrift, 2008). Para o autor, é nesse contexto que a linguagem humana não é mais assumida para oferecer o único modelo significativo de comunicação, logo, nos é colocado o problema da (não) representação, 254 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

ou seja, existe espaço para os outros seres e coisas nas representações da pesquisa em educação ambiental? Como essas histórias foram acessadas ou testemunhadas? Como elas têm sido representadas? Thrift (2008), Pink (2007), entre outros, recomendam técnicas que vão além de palavras e números, afinal, a afetividade é sinestésica, o que implica a interação dos sentidos entre si e seu potencial está na capacidade dos seres vivos em transformar seus efeitos de uma modalidade sensorial para os de outro ser vivo. No entanto, nas pesquisas, muitas vezes, a fonte de emoções parece vir de algum lugar fora do corpo, por métodos como questionários, entrevistas e outros instrumentos. Estudos quase sempre acabam analisando como as pessoas falam sobre suas emoções. Se existe alguma coisa distinta sobre as emoções, é que, mesmo se elas comumente ocorrem no decurso de falar, elas não são falar, nem mesmo apenas formas de expressão, eles são formas de expressar alguma coisa acontecendo que a conversa não pode captar. Estudos históricos e culturais, semelhantemente, suprimem o desafio de entendimento da experiência emocional quando analisam textos, símbolos, objetos materiais e modos de vida como representações das emoções (Katz, 2000: 4)

Segundo o autor, enrubescer, risos, choros e raiva são um processo de quebrar fronteiras corporais: lágrimas derramando-se, raiva queimando e risos explodindo. A obra de emoções emerge e é um envolvimento visceral entre corpo, mente e mundo. Em outras palavras, as emoções formam uma rica variedade moral através das quais e com as quais o mundo é pensado e no qual podemos sentir coisas diferentes, embora elas nem sempre são identificadas. Lorimer (2008), em um estudo sobre encontros com elefante, explora o potencial dos mobile studies para evocar as interações entre seres humanos-não-humanos. O autor afirma, então que as técnicas de vídeo podem ser usadas para testemunhar e dar sentido a encontros de elefantes em contraposição a ideia de representar ou captar as experiências. Testemunhar, nessa concepção, não é uma atitude passiva. Segundo Albright (1997), testemunho é muito mais interativo, uma espécie de perceber comprometido (de corpo inteiro) com um processo de diálogo mútuo. Em uma edição especial do periódico Digital Creativity, foram exploradas diversas abordagens de pesquisa existentes à luz da interPanorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2 | 255

pretação não-antropocêntrica de agência, autonomia, subjetividade, práticas sociais e tecnologias (Roudavskia, Mccormack, 2016). As/os editoras/es incentivaram narrativas inovadoras ou estratégias visuais que poderiam expressar relevantes cenários ao invés de formas tradicionais de escrita acadêmica. Diálogos, conversas, peças de teatro, conjuntos de instruções, jogos ou ensaios visuais foram convidados para fazer parte do desafio de conceber uma criatividade pós-antropocêntrica. De fato, autoras/es que seguem esse pensamento sugerem outras técnicas de “representação” ou testemunho da realidade: narrativas em auto-estudo ou auto etnografia (Payne et al., no prelo; Wylie, 2005), estórias (McPhie, Clarke, 2015), danças (Thrift, 2008), vídeos (Pink, 2007), pinturas, desenhos, fotografias, meditação, poesias (Flowers, Lipsett, Barrett, 2014) e mímicas (informação verbal)4. Narrativa 05: Voltei para o Brasil... feliz, reluzente, repleta de vida, repleta de ideias, repleta de uma nova Valéria. Uma Valéria que saiu medrosa, mas esperançosa de que aquela experiência acrescentaria algo na sua vida. Mas a experiência foi acima, mas muito, muito acima das minhas expectativas! Sinto dificuldade em descrever meu último dia na Austrália - um sentimento de gratidão a todas as pessoas que faziam parte dessa história, emoção em ter conseguido realizar o meu sonho, alegria em voltar para meu lar, triste por terminar aqueles 12 meses de aprendizado que me transformou como pessoa e pesquisadora. Eu havia me redescoberto! Eu tinha mais 06 meses para defender a minha tese de doutorado, sendo que tinha me proposto e acordado com minha orientadora e supervisor que iria coletar mais dados. Iria aplicar o “walking ethnography” - com todas as minhas inseguranças por apenas ter feito os exercícios pilotos, decidi encarar porque algo me dizia para seguir confiante. Muitas pessoas do grupo que entrevistei toparam caminhar comigo no Cerrado. E lá fomos nós! Duas manhãs de primavera coletando meus dados e, na verdade, me entregando ao Cerrado novamente. Mergulhei tanto na oportunidade de compartilhar o Cerrado com minhas/meus participantes da pesquisa que esquecia ali meu papel de pesquisadora. Foi aí que mais uma vez as coisas fizeram sentido... eu estava vivenciando a mesma experiência estética que as/os participantes. Eles não estavam descrevendo para mim o que sentiam quando iam ao Cerrado, estávamos percebendo tudo aquilo juntas/os! Mais uma vez, a teoria era a prática e a prática era a teoria... Acho que eu estava experienciando esteticamente os meus estudos e minha pesquisa, rs!!! E meu doutorado foi caminhando para o final. Claro que não foi tão simples assim... Como já dito, pessoa ansiosa que sou, acabei somatizando todo o meu nervosismo em crises de ansiedade e de choro, algumas noites sem sono que foram superadas graças à presença de amigas/os que, literalmente, pegaram na minha mão na reta final. Mesmo assim, estava na reta final daqueles 04 anos de dedicação e 4 Experiência vivenciada durante o Workshop Corporeidade e experiências afetivas em áreas naturais em Bertioga, em julho de 2015. 256 | Panorama das políticas culturais e ambientais no Brasil - Volume 2

não posso deixar de relatar que foi uma das melhores decisões da minha vida: ter me aventurado nessa pesquisa, ter me aventurado na Austrália, ter me aventurado nessa linha filosófica. Foi um processo de descoberta muito meu e parecia que um tantinho do meu sonho tinha sido realizado. Carrego dentro de mim, desde criança, o sonho de mudar o mundo- um mundo mais solidário, mais igual, mais amoroso. Eu sei que eu não posso mudar o mundo e minha tese também não vai mudar o mundo. Mas será que se juntarmos as várias vozes e disposições espalhadas por aí, dos seres humanos e não humanos, a gente não torna isso um pouco mais possível? Eu acredito que sim!

Em um manuscrito semelhante a esse trabalho, Martusewicz (2014) conta histórias da sua vida no intuito de defender que a educação é nossa vontade de experimentar a compaixão em face do sofrimento dos outros, assumido no artigo dela, como o mundo mais-que-humano. Nesse sentido, ela advoga por uma pedagogia da responsabilidade que teria o papel de buscar superar a supremacia humana e fundar novos vínculos amorosos com tudo o que existe. Em consonância com tal proposta, defendo que o campo de pesquisa da educação ambiental dedica-se a entender os processos educativos referentes à relação indivíduo/ sociedade – natureza, sendo que essa relação busca ser compreendida em sua complexidade. Seguindo o que dizem Dussel (2000) e Freire (1987), nos colocamos ao lado da vítima ou do oprimido que, na proposta de um novo paradigma, são os outros seres não humanos que, historicamente, vêm sendo desconsiderados na lógica da cultura ocidental. Podemos dizer que nessa perspectiva, a educação ambiental que se preocupa com os valores estéticos é crítica. É crítica porque ao valorizar o sentir, o diálogo e a alteridade, amplia horizontes, nos faz refletir sobre outras possibilidades de ser e estar no mundo com as/ os outras/os em uma relação horizontal, ou seja, a proposta é de uma virada ontológica dentro do movimento da virada corporal. Essa nova ontologia (que estabelece a indissociação entre mente, corpo e mundo) tem alto potencial transformador e de ruptura de paradigmas arraigados em sociedades antropocêntricas.

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sobre os autores adilson da silva mello: Professor Adjunto IV da Universidade Federal de Itajubá. adriana sartório riCCo: Professora e pesquisadora da Faculdade Estácio Vitória (ES). aline reis Calvo hernandez: Professora Adjunta em Psicologia Social da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). ana Cristina roCha silva: Professora Assistente II do Colegiado de História da Universidade Federal do Amapá. ana estela vaz Xavier: Graduada em Comunicação Social e Direito, Mestranda em Sociologia da Universidade Federal de Pelotas. anne pinto brandalise: Graduada em Direito e Mestrando em Sociologia da Universidade Federal de Pelotas. Carla souza de Camargo: Doutoranda de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas e Mestre em Antropologia Social. Carlos alberto máXimo pimenta: Professor Adjunto IV da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI). dauto J. da silveira: Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Sociologia Política e Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais. douglas dos santos lemos lima: Mestre em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade pela Universidade Federal de Itajubá. elivaldo serrão Custódio: Doutorando em Teologia pela Escola Superior de Teologia (Faculdades EST) em São Leopoldo/RS. Juliana teiXeira lima: Graduanda do Curso de Turismo da Faculdade Estácio Vitória (ES) e bolsista de IC da mesma instituição. leonardo beroldt: Professor Adjunto em Desenvolvimento Regional da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). miguel de nazaré brito piCanço: Doutorando em Ciências Sociais da Unisinos, Mestre em Ciência da Educação. patríCia binkowski: Professora Adjunta em Desenvolvimento Rural da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). rita paradeda muhle: Mestre em Educação e Bióloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. rodrigo marques leistner: Doutor em Ciências Sociais, professor da FURG e Pesquisador associado do LapCAB. rosmarie reinhr: Professora Assistente em Educação da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). silas dorival de oliveira: Professor e Mestrando em Desenvolvimento, tecnologias e sociedade pela Universidade Federal de Itajubá. tais Cristine ernst frizzo: Colégio de Aplicação/UFRGS valéria ghisloti iared: Professora Adjunta da Universidade Federal do Paraná. Sobre os Autores | 263

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