Paço Municipal: espaço, tempo, movimento. Memória e transitividade.

June 16, 2017 | Autor: Selma Baptista | Categoria: Cultural Studies, Social Anthropology
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Paço Municipal: espaço, tempo, movimento. Memória e transitividade.

A poética de uma cidade. A cidade-signo.

Resumo: este texto narra de forma imaginativa uma proposta de adaptação de um edifício público tradicional, cedido em comodato, objetivando a construção de um espaço cultural para a cidade de Curitiba, no ano de 2008.1 Este texto é, portanto, parte desta ocupação que se dará ao longo do tempo, seguindo este projeto institucional. Trata-se de uma “etnografia do espaço vazio”2, em que a partir dos dados contidos no próprio edifício em reforma, da planta baixa e do projeto de design e arquitetura, bem como do projeto cultural em perspectiva, “vêse” este espaço configurar-se culturalmente, antes mesmo de sua concretização. Trata-se, portanto, de um exercício imaginativo, a partir de pressupostos etnográficos e antropológicos, que sugere o que poderia ser compreendido como uma visão suposta da cultura, ou, uma visão da cultura suposta. De qualquer maneira, uma leitura pelo avesso, ou, pelo vazio.

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Este projeto de um Centro Cultural Multimeios está já funcionando, sob a direção do SESC, depois de ter sido executado pelo mesmo órgão, desde o final de 2009. 2 Este é um conceito cunhado pela autora, a partir deste trabalho de campo.

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2 Abstract: this text narrates, in a creative and imaginative way, the proposal to an adaptation of a traditional and historical public building, transferred in loan for use, aiming the creation of a “cultural space or center” in Curitiba, southern Brazil, 2008. Therefore this text is part of the “occupation” to be accomplished in time, following this institutional project. In this sense, this text exercises itself in an “anthropology of the void” through which from the floor plan, the project design, as well as the cultural project in perspective, one is able to “see” this space configuring itself as culture even before its realization. It is, therefore, an imaginative exercise supported by ethnographic data and anthropological premises, which suggests something that might be understood as a “supposed vision of culture” or a “vision of a supposed culture”. A “reading” from the inside, or, from the void. Palavras-chave: etnografia do espaço vazio, crítica cultural, políticas públicas de cultura, cultura material. Key-words: ethnography of the void space, cultural critique, public cultural policies, material culture.

A porta de entrada. Há vinte e quatro anos um dos maiores críticos literários da América Latina, Angel Rama, publicava La Ciudad Letrada, cunhando o termo cidade-signo e tecendo, através dele, uma longa e sedutora história da relação entre a(s) cidade(s) e as palavras, unindo fatos, personagens, sonho e realidade. Neste ensaio, nos mostra como a(s) cidade(s) na América Latina pode(m) ser pensada(s) não apenas como um processo urbanístico, mas como imagem espacial “... cujo começo é sonho da imaginação que deseja, desejo fundador de uma ordem e de um poder, e que vai crescendo palavra a palavra com os avatares de uma sociedade que articula realidade e letra numa luta que chega até os nossos dias”.3 Assim, ao percorrer estes passos do ensaio de Rama, somos levados a capturar a sutil e inteligente relação que o autor constrói entre as letras (a palavra) e o Poder, instigandonos a ver, em cada momento das infindáveis transfigurações urbanas, o desejado umbral do pleno gozo da liberdade e democracia. Nas terras americanas, a passagem da cidade “orgânica” medieval à cidade “barroca” implicava já uma consciência racionalizadora, e um projeto de futuro. Sob o signo da Ordem, sua inserção numa cultura universal, seu espaço, tempo e movimentos internos, sua edificação sob a égide do Humanismo, compuseram a primeira relação entre os Poder e sua legitimação pelo domínio da Palavra.

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Achugar, Hugo ( 1985) “Introdução”, A cidade das Letras. São Paulo, Brasiliense.

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“ ...as cidades, as sociedades que as habitarão, os letrados que as explicarão...”

Sociedade e cultura foram, naquele momento, percebidas como equivalentes, justamente porque assim foram imaginadas, planejadas. O princípio do planning, o desenho à la “tabuleiro de damas”, tudo isso consistiu numa representação simbólica a priori, sustentando a cidade, edificando-a e preenchendo-a pelos signos, pelas normas: a cidade “ordenada”. Diante de uma situação “rarefeita”, diz Rama, enquanto nos constituíamos como “periferia da periferia”, as ordenanças acabaram por solicitar um script , uma escritura que desse fé, que atestasse e controlasse esta feitura nos planos e altiplanos, selvas e desertos. E, assim, a palavra escrita iniciou, como diz o autor, uma “esplendorosa carreira imperial” no continente. A cidade letrada sacralizou um locus muito especial dentro das urbes, distanciando-o cada vez mais das injunções , das determinações naturais, sociais e políticas. Este centro burocrático, “anel protetor do poder e executor das suas ordens” (op.cit:43), passou a controlar a comunicação para fora, com a metrópole colonizadora, e, para dentro, com a população local. A formação da elite dirigente juntou e fortaleceu, cada vez mais, “a coroa e a tiara”, depositando anjos, querubins, harpas e trombetas nas edificações, fachadas fechadas, com portas e janelas densamente envoltas em cortinas de seda e veludo. Como lemos neste famoso ensaio, “O discurso barroco não se limita às palavras, mas as integra com os emblemas, hieróglifos, empresas, apologias, cifras, e insere este enunciado complexo dentro de um desenvolvimento teatral que apela à pintura, à escultura, à música, aos bailes, às cores, proporcionando-lhes o fio vermelho que para Goethe fixava o significado da diversidade”. (op.cit: 50)

Esta escritura em códices e corpos, inscrições, marcas, depósitos, distanciamento entre a “letra rígida” e a “fluida palavra falada”, reservou pequenos espaços para uma minoria alfabetizada, educada, ordenada e mandante: “a língua é a companheira do Império”(op.cit: 60). Normas, auto-definições, metalinguagens, barroquismos , grafites, traços e caiações superpostas em paredes toscas, quadros e adereços em salões hiperbólicos, espelhos, muitos espelhos... legalidades e transgressões. Página 3

4 Mas as letras não estavam fazendo cidadãos. O entorpecimento da repetição descolada da experiência vivida veio, ao longo dos tempos, sugerindo possibilidades de superações tantas vezes utópicas, outras tantas surrealistas, completamente avant la lettre... em todo caso expressões de um desajuste cada vez mais profundo, mais abissal. Ficamos a imaginar, como nos conta Angel Rama acerca das propostas de Simon Rodríguez, palavras adornadas com boquinhas expressando a maneira “americana” de falar o espanhol, na tentativa desesperada de encontrar a identidade desta expressividade tanto lingüística quanto literária... A progressiva transformação deste conhecimento que legitimava o Poder também deslocou a visão que se tinha das funções intelectuais, e a cidade modernizada veio sustentar uma relativa autonomia, um espírito crítico que sobrevoará o continente americano buscando as vozes dos oprimidos e excluídos. Lugar de novos mitos, da idealização, dos anti-heróis, dos messianismos e banditismos, a voz e a letra passam a circular clandestinamente, mãe e pai de novas dissidências e exílios. Politizada, revolucionada, revisada, enfim, a idéia de uma cidade-signo vem revelando, ao longo destes séculos que nos constituíram, não apenas a compreensão da América Latina como um “esquivo objeto do desejo acadêmico”, como nos diz Hugo Achugar no prólogo deste ensaio de Rama, mas sobretudo, uma incrível refração que nos permite pensar nossas cidades, hoje, desde dentro, através de seus (es) paços, tempos, memórias, movimentos e transitividades. O Paço Municipal em Curitiba traz esta mesma marca no seu corpo de cimento, tijolos, vidros, colunas, esculturas e, da mesma maneira, trouxe até hoje uma história interior feita de palavras, imagens, memórias, desejos. Tempos e representações que marcaram seu destino de habitação, lugar, espaço, locus. A nova ocupação do Paço Municipal encerra um longo ciclo sígnico de Curitiba, para abrir um outro em que a cidade deixa de ser o lugar da memória preservada , como expressividade e objeto de políticas públicas voltadas à exposição, e mostra-se como uma “passagem”, que encapsula num edifício, a sedução do hibridismo: a transformação. E o paradoxal se expressa justamente nesta fusão de passado, presente e futuro, na qual o concreto, o material da sua imagem, o edifício em si mesmo remete ao passado, e seu interior, ao presente e futuro. Concebido como a imagem da “cidade ordenada”, para ser em seguida, o lugar da memória, como museu, torna-se hoje, o lugar da transitividade, da superabundância de Página 4

5 significações, do deslocamento de entendimentos. Lugares. Espaços. Significados. Uma estranha e singular “trama”. Movimentos heterodoxos: quando o popular é quadro de parede, e a parede se transforma em quadro digital.

Passagens e conexões: do mercado ao paço.

Reza a história que tudo começou num mercado: barracas, cavalos, vacas, aves, porcos, frutas e legumes, comidas, flores, águas, vozes, cantorias, dispersos para que, em 1916, se erguesse, belo e digno, o Paço Municipal. Como diz sua inscrição do Tombo: “Prédio de arquitetura eclética, com elementos art nouveau representados, sobretudo, pelas marquises de ferro voltadas para a Praça Tiradentes, pelo

desenho das esquadrias de madeira

e portas externas (...) Dois Hércules sustentam as colunas da entrada do prédio e representam os poderes Municipais – o Legislativo e o Executivo -, e o nicho existente logo acima encerra figura feminina que representa a cidade de Curitiba. Completa a ornamentação da torre escudo com as armas do município e a cabeça do leão, símbolos da força. Em três faces da torre, há relógios movidos eletricamente. Em todas as fachadas, sacadas semicirculares.”

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Vamos entrar neste pequeno palacete propondo dois percursos que, agora, um visitante virtual, pode seguir neste caminho de palavras: um deles talvez pareça um pouco confuso, como quem sabe sentiram os chineses em 1596, enquanto Matteo Ricci, o jesuíta, ensinava-lhes a construir “um palácio da memória”.5 O outro, que vem a seguir, implica em criar, paralelamente às propostas concretas de sua ocupação, uma imagem poética das práticas que ali acontecerão. De Matteo Ricci, aprendemos pela história, como construir “lugares” virtuais, e, ao mesmo tempo, reais. Do quanto quisessem os chineses recordar dependeria o tamanho da construção mental desta estrutura: um salão de entrada, um pavilhão, o recinto de um templo, um albergue público ou uma tenda de mercado... até mesmo um guarda-roupa, ou um divã. (op.cit:19). Reais ou fictícios, ou, meio a meio, seriam lugares para uma visitação mental, reflexiva, inerte, profunda. Andares, portas, passagens, gavetas, escadas imaginárias, armazenavam milhares de conceitos, soma de todo o conhecimento humano. 4

Livro Tombo Histórico, inscrição 06-II, Processo número 222-06/64. Data da inscrição: 18 de janeiro de 1966. 5 Spence, Jonathan D. (1986) O Palácio da Memória de Matteo Ricci. São Paulo, Co. das Letras.

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6 A história da história da história conta que o poeta grego Simonides, convidado pelo rei de Ceos a escrever um poema em sua honra, o fez louvando também os deuses Polux e Castor. Ao entregar o poema, o rei disse-lhe que só pagaria metade do valor, e que ele fosse, então, pedir a outra metade aos deuses citados. Neste mesmo momento, ele é avisado que alguém o espera no jardim. Ao sair, o palácio desaba, matando todos os que estavam ali festejando. Ninguém o esperava lá fora. E, assim, Polux e Castor, pagaram sua dívida. Houve uma grande lamentação porquanto os mortos não podiam ser reconhecidos, tal a devastação. Simonides, ao fazer uso da sua memória, pode reconstruir os lugares, as vestimentas, enfim, toda a situação em que se encontravam os cortesãos, possibilitando seu reconhecimento. Apesar das críticas medievais de Erasmo, Melanchton, Rabelais, entre outros, os palácios mnemônicos e suas imagens seguiram cumprindo suas funções de representação imaginativa, amalgamando-se com a Retórica, a Lírica e a Religião, num interminável processo diante do qual, ainda hoje, nos detemos perplexos, como Matteo Ricci no século XVI: “que todas as coisas (...) são em seus primórdios tão pequenas e de contornos tão indistintos que não é fácil se convencer que delas surgirão assuntos de grande importância”. (op.cit: 281). E o livro termina quando a frase final anuncia que “ele fecha a porta”, depois de descrever o que havia colocado dentro do seu palácio da memória: sua vida. Não sabemos se ele fica lá dentro, ou, se fecha a porta, deixando que tudo permaneça no silêncio das imagens descritas, voltando às ruas. Nós, no entanto, vamos entrar no Paço Municipal. Este interior está demarcado como espaço: seus quatro pisos, intercomunicados, poderiam ser pensados como um sistema de “lugares-na-memória”, assim como o palácio da memória de Matteo Ricci. No entanto, sua proposta contemporânea sofreu a turbulência do tempo, não aquele que passou como história, mas este que abre portas e janelas, percorre as escadarias como uma refração caleidoscópica, apressada, ágil, voraz, visionária, incontrolável. Uma espiral vulcânica que tem na sua base o calor humano, o contato, a interação, e que sobe, como uma ogiva, construindo sua força na mais pura combustão das suas partículas produtivas para romper as amarras das palavras ordenadoras, disciplinadoras, memorialistas, de uma escritura enquanto lápide, explodindo em sons, cores, movimentos da vida como ela é, capturada na sua feitura da experiência, do cotidiano, das passagens, das transformações. Página 6

7 A dinâmica cultural contemporânea demanda, cada vez mais, atenção às conexões, mediações e passagens. Resultado de uma sociedade marcada pelo capitalismo pósindustrial, aspectos do que se vem caracterizando como uma cultura pós-moderna, ou seja, o movimento constante, a efemeridade, a fugacidade, a velocidade das informações, o consumo altamente estimulado e a fragilidade das bases culturais tradicionais, apontam também para a necessidade de espaços de troca mais energizados, mais ágeis, capazes de tornar tênues as fronteiras entre a produção e o consumo. Adquirir o controle sobre as informações e meios de expressão, ainda que parcial, diante da infinitude das possibilidades que a produção cultural nos oferece hoje em dia, é construir , da mesma maneira, fragmentos múltiplos de ações e atitudes, pessoais e coletivas. Longe vai o tempo em que nos referíamos à cultura como um grande depósito de comportamentos, pensamentos e ações, guardado em algum lugar metafísico, como um ente imaginário que nos visitasse toda vez que o invocássemos. Hoje, caminhamos em labirintos extremamente densos de significados, in(re)ferências e implicações que não procedem apenas das coisas como elas existem no mundo empírico, mas sobretudo de como são narradas, supostas e superpostas, numa cadeia infindável de relações entre coisas e pessoas. Por todas estas razões, cada fato, cada detalhe, cada evento, cada ato imaginativo provoca inúmeras (re)descobertas e nos projeta em direção a novos acontecimentos, reais, ou, imaginários. Mas como estabelecer estas fronteiras? Não existem mais fronteiras: apenas passagens, conexões, mediações sobre territórios indemarcáveis, ainda que os possamos vislumbrar. Assim, seguindo os passos sugeridos por Walter Benjamin em suas Passagens, propõese uma espécie de “flânerie” trazida pra dentro deste locus : interna e transitiva, que, percorrendo múltiplos sistemas de representação e comunicação, faz (des)aparecer a diferença entre o que normalmente se convencionou chamar de “realidade” e sua representação. 1º. Piso: começando o percurso Este espaço interno é um mito. Ele se reconta através da história, em múltiplas versões, ou seja: como a própria realidade é uma forma de expressão, a cultura pode ser pensada como um conjunto de diferentes sistemas de comunicação, criando homologias, assonâncias, aliterações... resíduos, fragmentos de experiências, conexões heteróclitas. Página 7

8 Das passagens de tropeiros no século XVIII, ao Paço Municipal, hoje rodeado de lugares destinados à sociabilidade, ao encontro, à troca, ao manuseio do real enquanto relações de convivência, Curitiba se reconta. O café, situado no centro e na base deste locus, pleno de uma oralidade descompromissada, leve, desejante, ao mesmo tempo em que se transforma em passagem, concentra. Ao mesmo tempo em que pode ser pensado como a inversão do conhecimento, ou seja, a dispersão descontraída, vai encontrar-se ladeado pela palavra escrita em duas dimensões convidativas: a livraria e a sala de leitura. Na primeira, o caçador com-partilha do campo aberto de possibilidades, circulando entre novidades. Na segunda, solitário, se transforma no coletor dos resultados das suas escolhas individuais. Mas a estética deste espaço não se completaria se nele não estivesse, também, a possibilidade de manipular este possível “real”, interagindo, como um bricoleur, em meio às possibilidades virtuais que ligam coisas, fatos, dados e pessoas: a estação de internet. Assim, este locus se realiza como uma experiência inicial em dois planos simultâneos: o da passagem, e o da concentração, esta, que se distribuirá em círculos ascendentes, fazendo da história, uma projeção rumo ao futuro.

2º. Piso: o bricoleur em ação O mito não é nem ciência, nem arte: é pura mediação, resultado da função simbólica que consiste em criar significados. Assim, esta forma narrativa, híbrida, caótica, mas estruturada, catalisa, magnetiza, codifica, condensa saberes e fazeres, sem compromisso aparente com a racionalidade. Assim, mistura tecnicalidades, emoções, sentimentos, conhecimentos, com um único objetivo: a interação, a expressão, a comunicação. Nesta avalanche feita de memórias e irrupções, o mito se realiza na sua narração. E o que ele conta? Fala da sua imponderabilidade, da sua condição de imagem, da sua impermanência, do seu sopro, da sua condição transeunte: ele precisa ser narrado para existir. Passar por outras bocas, outros ouvidos, outros olhos, outras mãos. O processo de fabricar sons e imagens, enfim, informações e fruições, instala-se no âmago deste segundo percurso. Aqui, não há começo, nem fim: a oralidade, a visualidade, a sonoridade, fazem parte do mesmo sistema comunicativo no qual, ouvir e falar, ver e manipular conteúdos do presente, passado e futuro são absolutamente Página 8

9 intercambiáveis. O real se torna um “modelo reduzido”, conforme Lévi-Strauss, sobre o qual é possível agir. Situada a meio caminho entre a ciência e a bricolage, a arte tornase um objeto de conhecimento e, ao mesmo tempo, um objeto estético. E nós nos tornamos sujeitos de um universo “agido”, atuando nossa cultura, num jogo produtivo de múltiplas mediações, enfim, criando sentido, transpondo nossa experiência vivida através destas “pontes” feitas de palavras, imagens, sons, sabores, sensações... Como diz Edward M. Bruner, o que constitui a experiência não é a vida vivida no seu cotidiano, nesta dimensão a que chamamos realidade. 6 A experiência é uma construção à qual chegamos através de inúmeras ligações com os significados acumulados através da memória, das relações com outros seres humanos e acontecimentos aos quais atribuímos valores específicos. Enfim, cultura é um “documento de atuação pública”, realizado através de estruturas conceptuais complexas, sobrepostas, amarradas umas às outras, simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas. 7

3º. piso: reflexão A arte como crítica da cultura

Há no ar uma atmosfera bastante lúdica e reflexiva, como quando Alice atravessou o espelho. Produzir uma auto-imagem é refletir sobre si mesmo e sobre o mundo, a partir do olhar de um possível outro. Expor-se, construir imagens do vivido, criando significados decorrentes do incessante acordo que se estabelece entre o tempo, o espaço, a memória, através do movimento presente, do aqui e do agora. Assim, os processos de especulação, criam, ao mesmo tempo, uma reflexão e uma meta-perspectiva, propondo, dispondo, articulando representações e identidades. A relação entre arte e pensamento configura acordos, provisórios e intensos, que realizam a mediação entre o “visível” e o “invisível”: objetos, palavras, relações, comportamentos, gestos, ações, são pontes práticas, cognitivas e comunicacionais, estendidas entre o passado e o futuro. E é, justamente, este instante sobre o “abismo” que dá sentido às práticas culturais e artísticas. Estas indicações apontam para a questão do lugar do “coletivo” na sociedade contemporânea, e também para a importância de se levar em consideração as mediações, passagens, conexões, enfim, o movimento nas e das manifestações culturais. 6 7

Bruner, Edward M. ( 1986) The Anthropology of Experience. Chicago, University of Illinois Press. Geertz, Clifford ( 1989) A interpretação das culturas. RJ., LTC.

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10 Parece imprescindível pensar tudo isso em termos dos modos de comunicação que devem incluir não apenas a linguagem escrita, a oral, mas todas aquelas, não linguísticas, como a canção, a dança, a atuação teatral, as artes plásticas em geral, na intenção de captar, justamente, as maneiras através das quais acontecem, como diz Milton Singer, as “orquestrações midiáticas”. 8 Mas, o que há do outro lado do espelho? Apenas a história do espelho, ou, o espelho da história, onde tudo é o reverso do que parecia ser? Se história e cultura não se realizam enquanto acúmulo, mas como representação, como forma em processo, então nossa experiência lúdica e reflexiva, ao agir sobre o real, nos faz reatar não apenas com o tempo e o espaço enquanto dimensões da geometria euclidiana, mas a partir de uma concepção espacial inspirada na Física moderna, a quarta dimensão, o Tempo, passa a esclarecer, simultaneamente, o presente pelo passado e vice-versa, simplesmente tomando o futuro como força cotidiana.

4º. Piso: expressando Mas o “poder estético”, este que nos leva a teatros, a exposições, a cinemas e shows dos mais simples aos mais radicais, não está, como escreve Clifford Geertz, apenas “nas relações formais entre sons, imagens, volumes, temas ou gestos”... e sim, nas relações que a arte cria, a partir das experiências de vida, nos desdobramentos subjetivos e coletivos que as atividades culturais podem propiciar. Salas de concertos, multiplicidade de exposições, olhares diversos, refrações inesperadas são, ao mesmo tempo, formas de expressão artística e formas de pensamento. Como disse Marilena Chauí, “seres e objetos culturais nunca são dados, são postos em práticas sociais e históricas determinadas, por formas de sociabilidade, da relação intersubjetiva, grupal, de classe, da relação com o visível e o invisível, com o tempo e o espaço, com o possível e o impossível, com o necessário e o contingente”. (Chauí, 1986:122-123). Com o outro, enfim. A necessidade de (re)conhecer a alteridade cultural nos faz mergulhar no denso líquido da fusão comunicativa, no sentido mais amplo da liberdade, que é aquela que nos

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Singer, Milton B. ( 1972) When a Great Tradition Modernizes : an anthropological approach to Indian Civilization. Praeger Ed.

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11 permite vivenciar outras experiências culturais, da nossa própria sociedade e de tantas outras que hoje estão na porta ao lado. Este périplo dentro de um mesmo locus, ou seja, as oportunidades de acesso a uma cultura globalizada e local simultaneamente, sugere um itinerário para dentro e para fora dos nossos próprios limites, subjetivos e interpessoais. Fechando o circuito, saímos pela última porta, voltando às ruas de uma cidade ainda desconhecida: “qual o sentido de tanta construção? (...) onde está o plano que vocês seguem, o projeto? Mostraremos assim que terminar a jornada de trabalho, agora não podemos ser interrompidos, respondem...” ( Calvino, 1991:117). O trabalho da arte e da cultura não possui começo, ou fim.

Referências bibliográficas: Bruner, Edward M. ( 1986) The Anthropology of Experience. Chicago, University of Illinois Press. Calvino, Ítalo ( 1991) As Cidades invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras. Chauí, Marilena ( 1986) Conformismo e Resistência. São Paulo, Editora Brasiliense. Geertz, Clifford ( 1998) “ A arte como sistema cultural”, in O Saber Local. Petrópolis, Vozes. Rama, Angel ( 1985 ) A cidade das Letras. São Paulo, Brasiliense. Singer, Milton B. ( 1972) When a Great Tradition Modernizes : an anthropological approach to Indian Civilization. Praeger Ed. Spence, Jonathan D. (1986) O Palácio da Memória de Matteo Ricci. São Paulo, Co. das Letras.

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