Papel dos Catadores no Brasil: possibilidades e desafios na cadeia reversa

June 2, 2017 | Autor: A. dos Santos de ... | Categoria: Reciclagem, Logística Reversa, Catadores De Materiais Recicláveis
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Papel dos catadores no Brasil: possibilidades e desafios na cadeia reversa

Sylmara Lopes Francelino Gonçaves-Dias, Armindo dos Santos de Sousa Teodósio, Maria Cecília Loschiavo dos Santos

Papel dos catadores no Brasil: possibilidades e desafios na cadeia reversa Sylmara Lopes Francelino Gonçalves-Dias Doutoranda em Administração de Empresas pela EAESP-FGV e em Ciências Ambientais pela USP Mestre em Administração pela USP, Bacharel em Administração pela PUC Minas Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo [email protected] Armindo dos Santos de Sousa Teodósio Doutorando em Administração de Empresas pela EAESP-FGV, Mestre em Ciências Sociais pela PUC Minas Bacharel em Ciências Econômicas pela UFMG Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Professor do Centro Universitário UNA [email protected] Maria Cecília Loschiavo dos Santos Doutora, Mestre e Graduada em Filosofia pela USP Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanisno da Universidade de São Paulo [email protected] Resumo O trabalho discute as possibilidades e desafios dos catadores nas cadeias reversas de embalagens pós-consumo no Brasil. Para tanto, busca-se entender a ação dos atores envolvidos no retorno dos produtos ao ciclo produtivo. Como fundamentação teórico-conceitual, o trabalho recorre à discussão da natureza e alcance da reciclagem, analisando as estratégias para articulação da cadeia produtiva desenvolvidas pelo governo, empresas e organizações da sociedade civil. Foram adotadas diferentes estratégias para a coleta de dados, envolvendo fontes secundárias (periódicos, documentos, estudos e informação disponível em portais da Internet) produzidas por órgãos públicos, instituições especializadas e mídia, além de entrevistas semi-estruturadas com especialistas. Os resultados apontam que, apesar das dificuldades, a reciclagem tem fortes apelos nas dimensões ecológica e econômica, além do papel social no Brasil. A capilaridade dos catadores como agentes da reversão das embalagens dos produtos consumidos torna mais amplo o alcance e a viabilidade dos volumes reciclados. Além disso, sua presença cotidiana nas metrópoles traz importantes desdobramentos, tanto em relação às normas de regulação da atividade, quanto às estratégias de inovação tecnológica e gerencial, e, sobretudo, às interações dos atores na cadeia. No entanto, perduram importantes questionamentos sobre sua inserção na cadeia reversa diante das estratégias empresariais levadas a cabo por atores mais articulados organizacional, gerencial e politicamente nas etapas subseqüentes da cadeia. Palavras-chave: Catadores de recicláveis; Cadeia reversa de embalagens; reciclagem. Revista de Administração da FEAD-Minas, v. 4, n 2, dezembro/2008

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Role of catadores in Brazil: opportunities and challenges in the chain reverse Abstract The paper analyses the possibilities and challenges of the collectors in the reverse chains of packings in Brazil. The discussion tries to understand the actors' action involved in the return of the products to the productive cycle. As theoretical-conceptual background, the article discusses of the nature of the recycling, analyzing the strategies for articulation of the productive chain developed by the government, business organizations and civil society instituições. Different strategies were adopted for the data collection, involving secondary sources (newspapers, documents, studies and available information in the Internet) produced by public agencies, specialized institutions and media, besides interviews semi-structured with specialists. The results point that in spite of the difficulties the recycling has strong appeals in the ecological and economical dimensions, besides his social role in Brazil. The capillarity of the collectors as agents of the reversion of the packings of the consumed products turns wider the reach and the viability of the recycled volumes. Besides, his daily presence in the metropolises brings important consequences to the norms of regulation of the activity, as for the strategies of technological and managerial innovation, and above all, to the actors' interactions in the chain. However, there are important questions about his insert in the reverse chain before the business strategies developed by organizational, managerial and politically more articulate actors in the subsequent stages of the chain. Keywords: Collectors of recyclable; Reverse chain of packings; Recycling.

1 Introdução Um dos temas ambientais mais destacados na agenda de discussão sobre o meio ambiente refere-se aos resíduos sólidos, sobretudo nos grandes centros urbanos. Diferentes publicações científicas têm enfocado variados fenômenos relacionados à geração, coleta, disposição e reciclagem do lixo urbano (BERTHIER, 2003; PIETERS, 1991). Zanin e Mancini (2005) listam 28 universidades e centros de pesquisa brasileiros, com forte concentração na região Sudeste, que desenvolvem investigações relacionadas à reciclagem e reutilização de resíduos, sobretudo em relação ao desenvolvimento tecnológico. No caso brasileiro, acompanhando a expansão do trabalho dos catadores de recicláveis nas últimas décadas, uma série de publicações discute suas condições de trabalho, modus operandi, natureza organizativa e constituição como sujeitos de cidadania (CARMO; OLIVEIRA e MIGUELES, 2003; GRIMBERG e BLAUTH, 1998; REIS et al, 2005; SANTOS, 2003). Ao mesmo tempo em que, no ambiente empresarial, as iniciativas da chamada logística reversa parecem adquirir cada vez mais importância para as estratégias corporativas de competitividade sustentada, percebe-se uma lacuna na literatura voltada ao estudo do papel dos catadores na cadeia de reciclagem. Os estudos concentram-se no espaço interno das organizações empresariais e na sua capacidade de implementar políticas de reutilização e reciclagem de resíduos (LEITE, 2003; ZIKMUND e STANTON, 1971). Outra parcela relevante das pesquisas desenvolvidas no ambiente acadêmico analisa políticas públicas de tratamento dos resíduos e atores envolvidos no equacionamento do problema (AMADEU et al, 2005; GRIMBERG e BLAUTH, 1998). Revista de Administração da FEAD-Minas, v. 4, n 2, dezembro/2008

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Assim, torna-se fundamental uma reflexão sobre o processo de reciclagem de resíduos sólidos, de forma a compreender a lógica sob a qual está fundamentada a cadeia que forma o circuito econômico da reciclagem. Procura-se então abordar a reciclagem de resíduos sólidos dentro da lógica societal do capital, procurando entender quais são os elementos que a estimulam e fazem com que se torne crescente em relação a alguns materiais. A reciclagem, vista como possibilidade de recuperação lucrativa dos resíduos sólidos para o circuito de consumo das mercadorias, conduz a uma desmistificação com relação aos ganhos ambientais por ela proporcionados, já que o seu principal estímulo é a obtenção de lucro e não a preservação ambiental (LEAL et al, 2002). O presente artigo discute as possibilidades, limites e desafios para os catadores nas cadeias reversas de embalagens pós-consumo no Brasil. As idéias que estão pontuadas aqui não são de forma alguma depreciativas em relação às ações desenvolvidas pelos mais diversos agentes sociais com relação à reciclagem, mas pretende-se despertar um debate a respeito da forma como vem sendo tratada e entendida a questão. A base sob a qual se funda a separação dos materiais para a reciclagem também é abordada, revelando ser a maior parte do material reciclado fruto do trabalho dos catadores que trabalham nos lixões e coletam os resíduos nos centros urbanos, o que denuncia também um alto grau de exclusão desta parcela da sociedade, que se vê obrigada a trabalhar várias horas por dia e em condições insalubres para obter o seu sustento (CARMO et al, 2003; LEAL et al, 2002; SANTOS, 2003). Para tanto, busca-se entender a ação dos atores envolvidos no retorno dos produtos ao ciclo produtivo, e em especial entender o papel dos catadores. Como fundamentação teórico-conceitual, o trabalho recorre à discussão da natureza e alcance da reciclagem, analisando as estratégias para articulação da cadeia produtiva, governo e ONGs. Foram adotadas diferentes estratégias para a coleta de dados, envolvendo fontes secundárias (periódicos, documentos, estudos e informação disponível em portais da Internet) produzidas por órgãos públicos, instituições especializadas e mídia, além de entrevistas semi-estruturadas com especialistas na área. Os resultados apontam que, apesar das dificuldades, a reciclagem tem fortes apelos nas dimensões ecológica e econômica, além do papel social no Brasil. A capilaridade dos catadores como agentes da reversão das embalagens dos produtos consumidos torna mais amplos o alcance e a viabilidade dos volumes reciclados. Além disso, sua presença cotidiana nas metrópoles traz importantes desdobramentos, tanto em relação às normas de regulação da atividade, quanto às estratégias de inovação tecnológica e gerencial, e sobretudo às interações dos atores na cadeia. No entanto, perduram importantes questionamentos sobre a inserção social dos catadores. 2 Resíduos urbanos como vilões na sociedade de consumo O Brasil produz diariamente 149 mil toneladas de resíduos sólidos, mas apenas 13,4 mil, ou 9%, são recicladas, segundo o Informe Analítico da Situação da Gestão Municipal de Resíduos Sólidos no Brasil, do Ministério das Cidades (INSTITUTO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - IDEC, 2006). O restante, 135,6 mil toneladas, é destinado a aterros sanitários (32%) e aterros clandestinos (59%), ou Revista de Administração da FEAD-Minas, v. 4, n 2, dezembro/2008

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lançado diretamente nas ruas e terrenos baldios, causando problemas ao meio ambiente e gerando sérios riscos à saúde pública. As embalagens de alimentos representam cerca de dois terços do volume total de resíduos sólidos produzidos pela população brasileira, o que representa um desperdício anual de R$ 6,3 bilhões, ou seja, 31.640 toneladas de material reciclável (ou reaproveitável), que é descartado (IDEC, 2006). Além disso, aumentou a produção per capta de lixo, que passou de 500 gramas para 1,2 kg por pessoa todos os dias no Brasil (LEITE, 2003). O PET (Politereftalato de Etileno) é um dos plásticos mais questionados pelos movimentos ambientalistas, sendo considerado o grande “vilão” dos resíduos sólidos, porque obstrui galerias, rios e córregos, prejudicando o sistema de drenagem das águas das chuvas e agravando as conseqüências de enchentes. O COMPROMISSO EMPRESARIAL PARA A RECICLAGEM - CEMPRE (2005) contabilizou que somente as regiões metropolitanas do Brasil com 15 milhões de domicílios e 50 milhões de pessoas consumiram, em 2004, 6 bilhões de embalagens PET. Para esta instituição, o correto equacionamento da logística reversa das embalagens é que vai viabilizar a reciclagem de diversos materiais. Além disso, uma separação minuciosa de todos os resíduos sólidos urbanos permitiria um reaproveitamento da maior parte do lixo, uma vez que para a reciclagem da grande maioria dos materiais utilizados na composição das embalagens de alimentos já existe tecnologia (PIVA e WIEBECK, 2004; ZANIN e MANCINI, 2005). Sob outro ponto de vista, Zikmund e Stanton (1971, p. 34) ressaltam que “reciclagem consiste em encontrar novas formas de uso para o material previamente descartado”. Entretanto, mesmo quando a reciclagem é tecnologicamente possível, o grande desafio reside na logística reversa: “mais especificamente, reciclagem é primariamente um problema de canais de distribuição, porque o maior custo da reciclagem do lixo é sua coleta, seleção e transporte” (ZIKMUND e STANTON, 1971, p. 34). Enquanto em alguns países da União Européia esse embate levou a legislação e a própria iniciativa empresarial a assumirem responsabilidade sobre o ciclo de vida daquilo que é gerado, em outros países permanece um vácuo. No caso brasileiro, a própria sociedade, através de iniciativas como as das cooperativas, assume o ônus e alguns bônus da reciclagem. Permanece o debate sobre o papel da indústria de embalagens, da indústria dos produtos embalados, dos governos e dos consumidores nesse processo. 3 A alternativa da reciclagem A reciclagem tem ganhado muita importância como método de tratamento do resíduo sólido dentro deste contexto; da mesma forma que o aterro sanitário tornou-se, na metade do século XX, a solução, tida como definitiva, para o problema do lixo urbano. A reciclagem surgiu para reintroduzir no sistema uma parte da matéria - e da energia - que se tornaria lixo (GRIMBERG e BLAUTH, 1998). Reciclar, do inglês “recycle”, significa “re” (repetir) e “cycle” (ciclo), ou seja, repetir o ciclo. Entretanto, o conhecimento científico e tecnológico na área de resíduos sólidos urbanos é bastante recente, existindo ainda muito a ser feito. Na verdade, a grande solução para os resíduos sólidos é aquela que prevê a máxima redução da quantidade de resíduos na fonte geradora (MANZINI e VEZZOLI, 2002). Revista de Administração da FEAD-Minas, v. 4, n 2, dezembro/2008

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Os primeiros estudos relacionados ao problema do lixo urbano iniciaram-se na segunda metade do século XX. Nos países desenvolvidos, as pesquisas se voltam para o desenvolvimento de tecnologias ligadas à coleta, ao transporte, ao armazenamento, bem como ao reaproveitamento e industrialização. Desta forma, compreende-se a subsistência da coleta de resíduos como uma atividade que tenderia a se extinguir, mediante a mecanização do processo (BERTHIER, 2003). Nos países em desenvolvimento, por sua vez, tais estudos levam em consideração a forte presença dos atores que subsistem da catação, em detrimento de estudos relativos à tecnologia do reaproveitamento (BERTHIER, 2003; KASEVA e GUPTA, 1996). Os plásticos vêm substituindo cada vez mais os materiais tradicionais, como exemplo disso podemos citar a porcentagem de materiais plásticos nos automóveis e na construção civil, que gradativamente substituem a madeira. As crescentes aplicações dos materiais plásticos no setor de embalagens de rápido descarte têm proporcionado um grande aumento destes materiais nos resíduos sólidos urbanos, domésticos e industriais. Atualmente há uma grande preocupação com os danos gerados ao ambiente por esses materiais que apresentam tempo de degradação muito longo. Lembramos que, diferentemente de outros materiais, o reaproveitamento do plástico ainda está em fase de implantação, mas tem crescido constantemente. Há uma grande variedade de materiais poliméricos (PET, Polypropileno, polietileno de alta densidade, polietileno de baixa densidade, PVC e outros) que são usados de diversas formas (extrudados, injetados ou moldados), muitas vezes na forma de compósitos ou de blendas poliméricas (MANRICH, 2005). Considera-se que é um mercado novo e em ascensão, já que 29% das empresas atuam há menos de cinco anos no mercado (CERQUEIRA e FREITAS, 2000). As unidades recicladoras normalmente evitam trabalhar com a sucata proveniente de lixões, por ser de difícil tratamento, principalmente quanto à limpeza. Estas sucatas, além de possuírem menor valor comercial, se apresentam em grande variedade. Portanto, para agregar valor a estes materiais é importante um controle eficiente da limpeza da matéria prima, bem como um controle rigoroso na separação dos materiais, para evitar contaminação de um tipo de polímero com outro, o que pode inutilizar lotes inteiros de materiais, como é o caso do PVC quando misturado ao PET. De fato, as pequenas recicladoras não contam com nenhum apoio técnico, no sentido de identificar ou atestar a pureza e a qualidade dos materiais que compram para processar, tampouco dos materiais que produzem. Entretanto, as vantagens ambientais da reciclagem, quando comparada ao processo de produção a partir de matéria-prima virgem, podem ser vista no QUADRO 1: QUADRO 1 Gasto de recursos naturais e índice de poluição na reciclagem de alguns materiais Redução em (%) Uso de energia * Uso de água Poluição de água Poluição do ar

Papel 23-74 58 35 74

Vidro 4-32 50 20

Ferro(sos) 47-74 40 76 85

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Alumínio 90-97 97 95

Plástico 89 -

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Uso de matéria-prima

20 pés eucalipto por t

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100

90

75

-

Fonte: SHEA, 1987. Obs.: *A variação nos valores deve-se aos diferentes processos industriais envolvidos.

O QUADRO 1 deixa claro que, apesar de apresentar menor impacto ambiental que o processo de produção original de cada material, a reciclagem, como qualquer atividade industrial, também consome água e energia, polui o ar e a água, e ainda gera seus próprios resíduos. A reciclagem de papel, por exemplo, embora polua o ar e a água menos que o processo tradicional - 35% e 74%, respectivamente -, produz um efluente com fibrículas e sulfato de alumínio, libera gases como monóxido de carbono e dióxido de enxofre, quando da queima de combustíveis durante a secagem, e fuligem, se for usada lenha (CEMPRE, 1995). Grimberg e Blauth (1998) esclarecem que a reciclagem como solução para a diminuição de resíduos apresenta muitos aspectos a serem mais bem elucidados, não só quanto aos seus reais benefícios, mas quanto ao escoamento dos resíduos recicláveis. Se todos os resíduos produzidos mundialmente fossem inteiramente recuperados, não se teria hoje um parque industrial reciclador para absorvê-los. Assim, tanto pelo lado econômico quanto pelo ambiental, é necessário que se realizem estudos mais aprofundados dos processos de reciclagem antes de intensificar a separação de resíduos domésticos. As iniciativas políticas, ao introduzirem sistemas de coleta seletiva de lixo, ou mesmo as empresas que fazem o marketing da reciclagem para neutralizar o impacto da produção de resíduos, merecem a atenção da sociedade. Sendo mais imediata a visualização dos fluxos de matéria consumidos em curto prazo, tem-se a impressão de que algo está sendo feito para resolver o problema, e as questões realmente estruturais e de fundo ficam à margem. Contudo, a reciclagem como uma maneira de reaproveitamento dos materiais não deve ser desprezada. Apenas é importante discutir algumas questões relacionadas à sua base fundamental, procurando estabelecer, mais do que uma idéia de reciclagem, uma idéia de reintrodução dos resíduos na cadeia produtiva, uma concepção emancipadora de sociedade e conseqüentemente uma relação metabólica entre sociedade/natureza, pautada em fundamentos mais humanos e por essência ambientais (LEAL et al, 2002). Por fim, um ponto que depõe a favor de uma profunda reestruturação do atual padrão de produção são as implicações da reciclagem, na forma como ocorre hoje: é uma atividade, em geral, poluente e dissipativa, que merece pesquisas e estudos mais aprofundados quanto aos seus reais benefícios para o ambiente e para a economia (GRIMBERG e BLAUTH, 1998). A questão da reciclagem se torna mais importante quando se observa o benefício social que a atividade permite (CZAPSKI, 2003). Além dos desafios de natureza sócio-econômica, a reciclagem tem também forte impacto nas estratégias gerenciais, exigindo novas configurações das relações que se estabelecem na cadeia de produção, consumo e reutilização de materiais, trazendo à tona uma necessidade de repensar a atuação e o papel da empresa frente a este cenário. 5 Estratégias metodológicas

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O trabalho se insere no campo do estudo de caso e seu desenho está baseado em Yin (2005). A coleta de dados se pautou tanto no levantamento de dados secundários sobre o mercado de reciclagem, quanto na realização de entrevistas semi-estruturadas e na visita a uma cooperativa de catadores em São Paulo. Foram entrevistados três pessoas que atuam em associações envolvidas com a reciclagem de embalagens, duas delas têm vínculos com a Associação Brasileira da Indústria de PET (ABIPET) e uma com o Compromisso Empresarial para Reciclagem (CEMPRE). Ambas as instituições são de caráter nãogovernamental, formadas a partir da congregação de empresas privadas, e têm como missão central a divulgação e a expansão dos processos de reciclagem no país, elegendo como alvo principal a atuação das indústrias brasileiras. 6 Novos olhares sobre a reciclagem de resíduos sólidos Catadores pertencem ao cenário urbano brasileiro há décadas, mas sempre à margem da economia formal e sem noção do seu papel para a conservação ambiental. Esta é uma particularidade do cenário brasileiro: a existência dos “catadores” ou “sucateiros” na atividade de recolhimento de materiais recicláveis. Ainda no início do século XXI, em todo o país muitos permanecem “amarrados” a depósitos que freqüentemente emprestam carrinhos, mas pagam valores irrisórios pelos materiais coletados (CZAPSKI, 2005). Ao contrário do que poderíamos imaginar, a existência do trabalho de catação de resíduos sólidos recicláveis nas cidades não é fruto da vontade e da ação dos próprios trabalhadores (LEAL et al, 2002; SANTOS, 2003). De fato, esse trabalhador completa e faz parte de uma engrenagem muito mais ampla e complexa do que podemos conceber. Essa organização é composta por uma série de outros participantes, que desempenham atividades e papéis dos mais diferenciados, compondo um imenso circuito produtivo, ou a cadeia produtiva ligada à reciclagem, em que o catador de material reciclável ocupa um lugar de importância (LEAL et al, 2002). O ciclo do reaproveitamento começa nas mãos dos catadores, muitas vezes passa por atravessadores, vai para as fábricas de reciclagem e indústrias de transformação. Existem atualmente meio milhão de pessoas no Brasil que sobrevivem do papel, papelão, plástico e outros materiais recicláveis CEMPRE (2005). Uma multidão de trabalhadores sem qualificação que buscam alternativas para escapar do desemprego e da miséria absoluta. A este respeito é interessante destacar que: [...] quando estão a bordo de seus instrumentos de trabalho, carrinhos, carroças ou mesmo catando com as mãos, eles estão trabalhando duro, resolvendo o problema na escala individual e na escala da sociedade, como um importante ´agente` das políticas municipais de resíduos sólidos. (...) As questões ambientais participam dessa dinâmica, seja como causa, seja como efeito (SANTOS, 2003, p.103).

Mão de obra marcada muitas vezes pela pouca qualificação, produz o seu sustento e o de sua família com a venda dos produtos coletados no lixo das ruas das cidades e dos lixões. De forma silenciosa, eles lentamente se organizam em associações, cooperativas e buscam ter seus direitos reconhecidos, impondo um sistema de coleta alternativo aos serviços contratados e/ou executados pelas Revista de Administração da FEAD-Minas, v. 4, n 2, dezembro/2008

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próprias prefeituras. O Movimento Nacional de Catadores de Recicláveis (MNCR) contabilizou, em 2005, as seguintes situações entre as cooperativas e associações cadastradas, conforme o QUADRO 2:

QUADRO 2 Situações das cooperativas e associações cadastradas pelo MNCR Situação Cooperados 01 Grupo organizado em associação ou cooperativa com prensa, balança, carrinhos e galpão próprio, podendo ampliar sua estrutura física e de 1.381 equipamentos a fim de absorver novos catadores e criar condições para implantar unidades industriais de reciclagem. 02 Grupo organizado em associação ou cooperativa, contando com alguns equipamentos, porém precisando de apoio para a aquisição de outros 2.753 equipamentos e/ou galpão. Estes grupos estão numa fase intermediária, necessitando de reforço de infra-estrutura para ampliar a coleta e assim formalmente incluir novos catadores. 03 Grupo em organização, contando com poucos equipamentos, alguns 5.720 próprios, precisando de apoio para a aquisição de mais equipamentos e/ou galpão próprio. 04 Grupo desorganizado, em rua ou lixão, sem possuir qualquer 25.783 equipamento, e freqüentemente trabalhando em condições precárias para atravessadores. Total 35.637 Fonte: MOVIMENTO NACIONAL DOS CATADORES DE MATERIAL RECICLÁVEL – MNCR, 2006.

% 4%

8%

16%

72% 100%

Nas quatro situações supracitadas existe também a necessidade de provimento de assistência técnica e capacitação dos cooperados, que varia em conteúdo e grau a depender da evolução em que se encontra cada grupo e/ou cooperativa /associação. Dentro deste contexto, os catadores são hoje os responsáveis pelos significativos índices de coleta seletiva no país, fazendo do Brasil um dos campeões mundiais em reciclagem de diversos materiais (CAMPOS, 2000). O QUADRO 3 apresenta alguns dados sobre cada material reciclável. Estão descritos o percentual (em peso) no lixo brasileiro, exemplos de produtos recicláveis e não recicláveis (rejeito), e a taxa atual de reciclagem de cada material no país. QUADRO 3 Panorama dos materiais recicláveis no Brasil Material

Peso relativo no lixo domiciliar brasileiro

Papel

25%

Metais

4%

Produtos recicláveis

Rejeito

papel branco, papel misto, papelão, jornais, revistas e impressos latas e tampas, ferragens, arames e chapas

Carbono, celofane plastificados, parafinados e metalizados Embalagens de aerossol

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Taxa de reciclagem no Brasil * 2004 37% papel 77% papelão ondulado 92% alumínio 18% aço

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Garrafas e copos, Cristal, espelho, frascos, potes e lâmpadas, 35% cacos Louça e tubos de TV Garrafas, frascos, Isopor, espuma, Plásticos 15% potes, acrílico, 17,5% plásticos Tampas, adesivos e fraldas 48% PET brinquedos, peças, sacos e sacolas Fonte: Elaborado pelos autores a partir de GRIMBERG; BLAUTH (1998); CEMPRE (2005). Obs.: * Inclui material reciclado proveniente também de refugo industrial e de catação informal; não há informação específica sobre o quanto deste total é oriundo exclusivamente de programas de coleta seletiva. Vidro

3%

Os índices alcançados com a reciclagem de alguns resíduos, no Brasil, advêm não da consciência ambiental, mas sim da pobreza em que se encontra boa parte dos excluídos (MAGERA, 2003). Apesar das inúmeras dificuldades, os catadores vêm dando uma resposta para a população não habilitada nas atividades profissionais tradicionais (CAMPOS, 2000). No entanto, contraditoriamente, trabalham em condições precárias, subumanas e não obtém ganho que lhes assegure uma sobrevivência digna. O catador participa como elemento base de um processo produtivo ou de uma cadeia produtiva bastante lucrativa, para outros é claro, que tem como principal atividade o reaproveitamento de materiais que já foram utilizados e descartados, e que podem ser reindustrializados e recolocados novamente no mercado para serem consumidos. Além de ser uma atividade lucrativa para os que detêm o controle de parte dessa cadeia produtiva, a reindustrialização dos resíduos sólidos recicláveis, de forma a torná-los novamente consumíveis, é amplamente difundida como uma ação essencialmente benéfica, que ajuda a diminuir danos ambientais, pois permite o reaproveitamento de parte dos resíduos sólidos, principalmente domésticos, colaborando para a solução de um dos maiores problemas urbanos da atualidade, o do que fazer com o lixo. A idéia da benesse da reciclagem se pauta ainda na preservação de certos recursos naturais que seriam gastos na fabricação de novos produtos. No entanto, a reciclagem, ou seja, a reintrodução dos resíduos sólidos no circuito produtivo da economia, principalmente a realizada em grande escala, apesar de se beneficiar do discurso da preservação ambiental, não tem nessa idéia o seu objetivo principal, que é, pois, o da reprodução ampliada do capital empregado. Basta ponderarmos o fetiche que existe em torno do lixo, pois a magnitude do estranhamento presente na sociedade em geral tem como resultado o distanciamento da compreensão dos processos produtivos (destrutivos) e das formas pelas quais ela mesma, a sociedade de consumo, se move diante das transformações tecnológicas responsáveis pela alteração da durabilidade, toxidade, volume e descarte, que influem diretamente na produção de lixo. “A produção de lixo é tão antiga quanto o processo de ocupação da terra pelo homem. [...] Porém, [...] alteraram-se suas características (durabilidade, volume) no processo de desenvolvimento industrial” (RODRIGUES, 1998, p. 141). Há também outro elemento que deve ser lembrado, que é o fato de que a sociedade industrial gera também dejetos industriais, e altera a composição do lixo doméstico, não sendo mais composto de material orgânico, mas por diversos tipos de vidros, plásticos, metais, etc. Chama a atenção, pois, o fato de que, em Revista de Administração da FEAD-Minas, v. 4, n 2, dezembro/2008

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vários casos já registrados, para os gestores da política, a responsabilidade pela geração dos resíduos tem sido atribuída apenas ao consumidor final (GONÇALVES, 2000). A escala do problema aumenta, tendo em vista que a transferência de responsabilidades demonstra o descaso reinante em relação à produção de lixo e aos problemas advindos da deposição final; bem como a seletividade dos interesses, despertados por apenas alguns produtos descartáveis. O principal indicativo é que não são todos os resíduos que despertam a atenção das empresas recicladoras (LEAL et al, 2002). Elas se voltam apenas para aqueles materiais que garantem a lucratividade do negócio. Utilizando-se assim dos mesmos métodos que fundamentam e dão direção a qualquer outra atividade industrial inserida no mercado capitalista. A indústria da reciclagem apropria-se do imaginário social que afirma a importância de se proteger a natureza, tornando um argumento valorativo dos seus produtos o fato de que eles foram ou podem ser reciclados (LEAL et al, 2002). Como afirma Legaspe: Tudo que é produzido pelo processo industrial não pode ser entendido sem vincularmos a ele o consumo, um não vive sem o outro (dentro do modelo capitalista), a necessidade de reciclagem é conseqüência disto tudo. A reciclagem é apresentada de forma distorcida para a sociedade, pois o cidadão pensa que ele é o beneficiário direto dela, esta associação da idéia de que reciclando o cidadão urbano contribui com sua parcela, como agente ambiental, é reforçada pelos meios de comunicação [...]” (LEGASPE, 1996, p. 123).

Assim, somente aqueles materiais que reúnem todas as condições necessárias ditadas pelo mercado, como o baixo custo, a grande oferta da matéria prima e o mercado consumidor garantido, são alvos da indústria da reciclagem. Pouco importa se são esses que trazem maiores ou menores prejuízos ao ambiente. Assim, se o papel reciclado é certeza de bons negócios, recicla-se o papel, se a reciclagem de um outro material qualquer não dá lucro, o melhor é enterrá-lo. É de acordo com essa lógica que os resíduos sólidos recicláveis tornam-se matéria-prima da indústria da reciclagem, que, ao resgatar o valor daquilo que há pouco era considerado inútil, estimula a criação de um imenso circuito a jusante do circuito industrial (LEAL et al, 2002). Este circuito acaba sendo composto pelos catadores; pelos intermediários, que procuram acumular a maior quantidade de material para revender; e pelas indústrias de reciclagem. Toda essa organização, articulando os mais diferentes sujeitos, toma então uma forma física e se territorializa nos centros urbanos, sobretudo das cidades de países formados por um número grande de pobres e desempregados; cidades que são locais de consumo por excelência, onde os resíduos passíveis de serem recicláveis são descartados em grande quantidade, onde há também uma força de trabalho vivendo em condições precárias, totalmente desassistida, que se vê obrigada a coletar o material que pode ser reciclável e comercializá-lo com forma de sobreviver. Percebe-se então um entrelaçamento entre a lógica de aumentar a produção e estimular o consumo, própria do sistema produtor de mercadorias, e a geração de uma grande quantidade de resíduos sólidos nas cidades, o lixo, juntamente com a estruturação de um complexo de articulações que visa a reintrodução de parte desse material na cadeia produtiva como mercadoria. Isso nos estimula a Revista de Administração da FEAD-Minas, v. 4, n 2, dezembro/2008

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dirigir uma atenção especial para a complexa trama de relações que povoa o metabolismo social da sociedade do capital. Portanto, não é por acaso que alguns resíduos se tornam atrativos para a indústria da reciclagem, pois, juntamente com suas propriedades físicas e químicas, o tratamento industrial recupera também o valor do trabalho que foi utilizado em sua produção, e que nele continua incorporado. Mais do que o valor de uso dos materiais, este processo recupera o valor de troca das mercadorias. A participação dos catadores de recicláveis na segregação informal dos resíduos, seja nas ruas, através do processo de separação prévia ou catação tradicional, nos vazadouros a céu aberto ou nos aterros sanitários, é o ponto mais crucial da relação dos resíduos com a questão social. Trata-se de um elo perfeito entre o material sem serventia, ou seja, os resíduos, e a população marginalizada da sociedade que, em meio aos resíduos, identifica o objeto a ser trabalhado na condução de sua estratégia de sobrevivência (RIBEIRO e QUALHARINI, 2004). Desta forma, o que os trabalhadores dos lixões, como também aqueles que perambulam pelos centros urbanos coletando os materiais recicláveis, recolhem, não é um amontoado de lixo, mas sim trabalho humano socialmente utilizado e incorporado naquilo que era, ainda há pouco, dentro de um determinado contexto social, mercadoria, tendo sido por um momento dispensado, tornando-se lixo. A partir da apropriação feita pelo catador, que o levou até o depósito para trocar por dinheiro, e de onde sairá para as indústrias, também trocado por dinheiro (e este poderá então ser trocado por outras mercadorias), o material torna-se novamente, no contexto dessa relação social marcada pela lógica do valor de troca, uma mercadoria (GONÇALVES, 2000). Uma mercadoria que passará por um processo de reindustrialização que o revitalizará, colocando-o em condições de assumir novamente o seu caráter de valor de uso, que é a base, é claro, de sustentação do seu valor de troca. Aquilo que por um momento foi dejeto, agora será revitalizado pelo trabalho. O despertar do valor de uso contido no material reciclável, que por hora foi lixo, no âmbito da reciclagem industrial e no contexto da sociedade capitalista, não tem a ver com a busca de satisfação primeira da necessidade de qualquer elemento da sociedade, nem mesmo dos trabalhadores que o despertam, ou com a preservação da natureza. O objetivo do capital, nesse processo que procura revitalizar alguns tipos de resíduos sólidos, ou seja, “despertá-los dentre os mortos”, é tornar, como lembra Bihr (1999), o valor de uso suporte para valor de troca. Os resíduos recicláveis, que, apesar de estarem abandonados e poderem ser coletados livremente pelos trabalhadores catadores, não brotam naturalmente aqui ou acolá feito erva daninha; são produtos do trabalho, matérias sob as quais incidiu a energia e o potencial criativo humano, que as transformou em objetos, mercadorias. Mesmo depois de terem sido utilizados e descartados, continuam contendo em si essa qualidade que os diferencia dos demais objetos sobre os quais ainda não houve a incidência do trabalho humano. Os materiais potencialmente recicláveis, como a lata, o papel, o ferro e o alumínio, mesmo depois de terem sido transformados em lixo, carregam em sua forma corpórea a síntese do trabalho socialmente dividido e organizado sob a lógica do sistema produtor de mercadorias. Como sabemos, várias são as etapas que compõem o processo de sua produção; da obtenção das matérias primas a outras tantas ações de trabalho socialmente necessário e combinado para se Revista de Administração da FEAD-Minas, v. 4, n 2, dezembro/2008

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chegar ao produto final, a mercadoria, que terá o seu valor determinado pelo quantum de trabalho. É com esse objetivo, o de se reproduzir ampliadamente, que o capital estabelece toda a estrutura para a reciclagem. Uma estrutura que vai além da planta fabril, territorializando-se nos centros urbanos, onde há material reciclável em abundância; articulando e envolvendo depósitos e vários outros trabalhadores além dos catadores. Uma estrutura que conta com um esquema de transporte do material, dos depósitos em que ele é acumulado, nas mais diversas cidades, para o local onde está sediada a indústria que irá realizar o processo de reciclagem industrial (LEAL et al, 2002). A expressão e a organização territorial das atividades de coleta e reciclagem obedecem à lógica da reprodução ampliada do capital. Uma mesma lógica que, no entanto, diversifica as formas desse fenômeno, ao combinar as determinações econômicas mais amplas com as especificidades econômicas e sociais locais. Assim, em cada cidade, a distribuição e a quantidade de depósitos, como também a composição da força de trabalho, terão expressões que corresponderão a essa lógica. 7 Considerações finais O ciclo do reaproveitamento começa nas mãos desses catadores, muitas vezes passa por atravessadores, vai para as fábricas de reciclagem e indústrias de transformação. Desta forma, ainda é necessário desenvolver mecanismos de inclusão e organização dessas pessoas em cooperativas. Outra condição para a expansão da reciclagem é o desenvolvimento de ações exemplares de articulação entre educação ambiental, coleta seletiva e responsabilidade social, envolvendo escolas, empresas e organizações não governamentais. Tal articulação viabiliza o ciclo completo da reciclagem, além de beneficiar entidades sociais (GALVÃO, 2000). No processo de gestão de resíduos sólidos, considerando os materiais gerados e descartados diariamente por uma população, a reciclagem passa a ser uma fonte geradora de benefícios ambientais; não somente por causa da minimização dos impactos provocados por sua disposição e pela economia apresentada na utilização de matérias-primas não-renováveis, como também pela economia de energia nos processos produtivos e pelo aumento da vida útil dos aterros sanitários (RIBEIRO e QUALHARINI, 2004). Nesse universo temático, constata-se que nem sempre foram encontradas alternativas técnicas e, mais ainda, comerciais para o reaproveitamento do lixo. A sociedade de consumo (aliás, definição primorosa e erigida sob os pilares da desigualdade) produz reveses que estão impactando sobremaneira a qualidade de vida nos quatro cantos do planeta. Diante disso, todos os sinais indicam que a relação entre a quantidade do lixo produzido e a do lixo reaproveitado é extremamente irrisória. Acredita-se ser necessário realizar um amplo debate sobre o molde em que está fundado hoje todo o processo de reciclagem de resíduos sólidos no Brasil, que se assenta em grande parte na exploração de uma massa de trabalhadores miseráveis, que são obrigados, pelos mais diferentes instrumentos coercitivos, econômicos e sociais, a buscarem no trabalho realizado no e com o lixo formas de sobrevivência. Um fato que por vezes está escondido, camuflado, por de trás das idéias de preservação e conservação ambiental, e que nunca é apresentado como Revista de Administração da FEAD-Minas, v. 4, n 2, dezembro/2008

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principal fator do aumento sempre crescente do número de toneladas de resíduos reciclados anualmente no Brasil. A compreensão da trama que envolve a tensa relação que a sociedade contemporânea expressa na forma de degradação ambiental, incluindo desde a contaminação de mananciais, passando pelo assoreamento de rios e chegando à deposição final inadequada para o lixo, é extremamente desafiadora. Apreender esse processo pressupõe muito esforço, arrojo e determinação política, para construir relações capazes de constituir uma interlocução com diversos segmentos sociais comprometidos com a temática e com pesquisadores das diferentes áreas do conhecimento. As diferentes faces do problema exigem que pensemos na trama social que envolve o descarte, a coleta e a acomodação de resíduos sólidos (secos e úmidos). É bom lembrar que não devemos respeitar as fronteiras desse ou daquele campo do conhecimento, mas sim considerarmos um amplo leque de contribuições, capazes de ajudar a compreender o complexo de relações que envolvem a reciclagem, a inertização, o manuseio adequado dos inservíveis (material radiativo e outros tipos de contaminantes), a industrialização dos recicláveis e a correta utilização do material orgânico. Além disso, sabe-se que esse crescimento do processo de reciclagem no Brasil nada tem a ver com a conscientização da população brasileira com relação à questão da geração e destinação final de resíduos sólidos; o que não significa, é claro, desprezar o papel educacional que alguns agentes envolvidos com a questão ambiental vêm realizando nesse sentido. É fato também que os maiores poluidores são também os maiores consumidores, sejam os industriais ou os residenciais. No entanto, os prejuízos e problemas causados por um consumismo exacerbado e descontrolado são socializados com aqueles que acabam enfrentando problemas inversamente proporcionais à sua capacidade de consumo (GONÇALVES, 1990). Em suma, as populações pobres e excluídas, ou a grande maioria dos trabalhadores, são as que mais sofrem com os problemas derivados dessa estrutura societal vigente. Todavia, o negócio da reciclagem não pode ser desprezado, tanto em termos econômicos quanto em termos sociais. Os materiais como os metais, vidros e papéis já são tradicionalmente recicláveis, e há toda uma rede comercial e industrial em funcionamento para o reaproveitamento desses resíduos. No entanto, é necessário melhorar a eficiência do aproveitamento desses resíduos e, conseqüentemente, minimizar os prejuízos ambientais. Desta maneira, tanto quanto estimular e discutir novas formas de reciclagem, de diminuição dos impactos ambientais causados pela sociedade (de consumo) atual, deve-se atentar para a possibilidade de transformação da estrutura e da lógica de organização da sociedade. Caso contrário, as medidas implantadas serão meramente paliativas, já que essas ações buscam resolver ou administrar o problema e não anular a sua fonte causadora. De acordo com Thomaz Jr.: Trata-se de colocar em cheque a estrutura organizacional da sociedade, enraizada sob os postulados capitalistas que se fundamentam na redução sistemática do valor de uso à simples função de suporte de valor de troca, sendo que o trabalho se constitui em uma das fontes de valor de uso e a natureza também foi submetida aos efeitos nefastos dessa redução e a crise ecológica como enunciado na mídia através dos periódicos e nos ambientes Revista de Administração da FEAD-Minas, v. 4, n 2, dezembro/2008

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acadêmicos e políticos, deve nos estimular a um repensar do próprio movimento da sociedade (THOMAZ JR., 2000, p. 16).

O reaproveitamento do material descartado, colocado novamente no circuito produtor de mercadorias, e todas as relações e mediações sociais, econômicas, políticas e culturais envolventes, revelam importantes desafios para pesquisas futuras. Desvendar, por dentro da exclusão social da classe trabalhadora, as contradições que marcam a sociedade do capital no início do século XXI, remete ao incansável esforço da pesquisa e da investigação científicas. Numa outra lógica, os resíduos têm um ciclo de vida a cumprir, o que implica valorizá-los na cadeia produtiva da reutilização e da reciclagem. Geração de trabalho e de renda, e economia de recursos são desdobramentos da lógica do não-desperdício. Além disso, sob a lógica da sustentabilidade, deve-se investir em políticas públicas para a educação da população, com vistas à mudança de atitudes e valores, e não em gastos elevados com a disposição de resíduos. Referências AMADEU, F. B. et al. Políticas públicas e resíduos na “Região Araraquara - São Carlos”. In: ENCONTRO NACIONAL DE GESTÃO EMPRESARIAL E MEIO AMBIENTE, 8., 2005, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: EBAPE/FGV; EAESP/FGV; FEA/USP, 2005. [CD-Rom] BERTHIER, H. C. Garbage, work and society. Resources, Conservation and Recycling, n. 39, p. 193-210, 2003. BIHR, A. Da grande noite à alternativa. São Paulo: Boitempo, 1999. CAMPOS, H. K. Projeto lixo e cidadania. In: Seminário de Resíduos Sólidos, 2000. São Paulo: Secretaria do Meio Ambiente, 2000. Disponível em . Acesso em: 20 maio 2005. CARMO, M. S. F.; OLIVEIRA, J. A. P.; MIGUELES, C. P. A semântica do lixo, o estímulo à reciclagem e o trabalho dos catadores do Rio de janeiro: um estudo entre significado e ação econômica. In: ENCONTRO NACIONAL SOBRE GESTÃO EMPRESARIAL E MEIO AMBIENTE – ENGEMA,7., 2003, São Paulo. Anais ... São Paulo: EAESP/FGV; FEA/USP, 2003. [CD-Rom] COMPROMISSO EMPRESARIAL PARA A RECICLAGEM - CEMPRE. Reciclagem e negócios: polpa Moldada. São Paulo: CEMPRE, 1995. ______. O sucateiro e a coleta seletiva. Reciclagem e Negócios: mercado de sucatas, CEMPRE, São Paulo, 2005. CERQUEIRA, L.; FREITAS, E. Reciclagem um mercado promissor. Revista Saneamento Ambiental, n. 62, p. 12-19, jan./fev. 2000. CZAPSKI, S. Pet reciclado ainda é alvo de rejeição: indústria teme reação do público a fibras reaproveitadas. Valor Econômico: Valor Online, v. 4, n. 911 , 2003. Revista de Administração da FEAD-Minas, v. 4, n 2, dezembro/2008

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