Para a desambiguação do conceito de embodiment

July 6, 2017 | Autor: A. Nicau Castanho | Categoria: Lingüística Cognitiva
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Para a desambiguação do conceito de embodiment Arlindo José Nicau Castanho

1. Considerações prévias A discussão dos termos mais determinantes, dentro do repertório terminológico das Ciências Neurocognitivas, e a desambiguação dos conceitos que, em princípio, deverão transmitir, são, para o linguista cognitivo, tarefas de certo modo propedêuticas mas, no entanto, essenciais. O conceito de embodiment – ou melhor, o conjunto de conceitos que o termo abrange – reveste-se de uma particularíssima importância no âmbito das Ciências Neurocognitivas, em geral, e no da Linguística Cognitiva, em particular; sendo fundamental, por exemplo, para a compreensão do processo formativo das metáforas conceptuais. Assumindo aqui a perspectiva, própria da Linguística Cognitiva, segundo a qual a componente semântica representa, dentro dela, não apenas um dos diversos planos de análise mas a frente de investigação prioritária, nada é mais apropriado, para concluir esta breve apresentação, do que as seguintes palavras de Patrizia Violi: Embodiment is related in an important way to the problem of meaning processes, and it can help in a decisive way to reframe some of the most controversial questions in semantics (VIOLI 2008, p. 246).

2. O embodiment, um conceito “escorregadio” São muitos os termos técnicos da Semiologia e, dentro desta, da Linguística, que se apresentam carregados de um excessivo peso polissémico, nada favorável ao exercício da clareza e do rigor que as (descrições das) actividades científicas deveriam sempre implicar. Basta consultar uma boa enciclopédia ou um dicionário de Linguística para nos apercebermos da incómoda promiscuidade dos sentidos que convivem, mais ou menos pacificamente ou nem tanto, em termos como anáfora, catacrese, ironia, lexicalização e tantos, tantos outros. O recurso ao termo embodiment e aos seus mais generalizados traducenti 1 nas línguas românicas, tais como vêm sendo empregues nas Ciências Neurocognitivas, demonstra-se ainda mais insidioso: como para os exemplos precedentes, o termo e os seus traducenti podem assumir significados diversos, nesse âmbito específico, segundo o contexto em que se inserem; e, para mais, qualquer desses eventuais significados está em aberto

Termo italiano a que devo recorrer, à falta de um seu equivalente directo em português (por quanto me é dado saber). Na melhor das hipóteses, posso tentar substituí-lo, mais ou menos condignamente, mesmo com a expressão que acabo de empregar, “equivalente directo” – coisa que, aliás, farei mais avante. 1

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contraste com a acepção mais corrente do termo – dando azo assim, não raro, a equívocos em cadeia, alguns deles particularmente embaraçosos. Mesmo sem pensarmos no problema da sua eventual tradução, ou melhor, das suas eventuais traduções, o embodiment é já em si, mesmo quando limitado ao sentido que o termo assume nas Ciências Neurocognitivas, de uma polissemia exuberante e, como tal, em certos casos despistante. Disso se dá conta Rafael Núñez, em NÚÑEZ 1999 (pp. 54-57), e Patrizia Violi, em diversos passos de VIOLI 2003 que serão identificados mais adiante e, em certos casos, discutidos com algum pormenor. O problema ainda se torna mais complexo quando se metem outras línguas de permeio: é o caso do recurso no Português Europeu a embodiment/embodied e – ou – aos seus traducenti mais generalizados como o são por exemplo, entre outros, corporização/corporizado, nos ensaios que recorrem ao conceito da embodied cognition e que são directamente redigidos nesta variedade da língua 2 ou nesta traduzidos. O inglês embodiment presta-se, já de per si, a um uso que podemos classificar, grosso modo, como platonizante: se algo se encontra embodied, na acepção básica (ou, pelo menos, mais corrente) do termo, isso quer dizer, à primeira vista, que vem de fora do corpo e que nele se instala. E o mesmo se passa tanto com corporizado como com os outros traducenti que mais frequentemente se encontram, incorporado e incarnado. Ora, não há nada que as Neurociências tendam a negar mais veementemente do que a hipótese de que a mente “habite” simplesmente o corpo, como um hóspede deste: quando os neurólogos, os filósofos da linguagem e os linguistas cognitivos falam de embodiment, referem-se a um sistema de relações entre o corpo e a mente decididamente inconciliável com a hipótese a que acabo de aludir. Para que o substantivo embodiment e o adjectivo embodied se possam libertar dos significados impróprios a que se prestam – impróprios, nos contextos que directamente nos interessam –, e que já atrás evoquei, procurarei sintetizar, agora, o que por tais termos entendem um biólogo e epistemólogo como Varela, um filósofo como Thompson e uma psicóloga como Rosch, no seminal ensaio The Embodied Mind (VARELA/THOMPSON/ROSCH 1993), verdadeiro manifesto programático, complexo e articulado, de «a new lineage of descent from the fundamental intuition of double embodiment first articulated by Merleau-Ponty» (VARELA/THOMPSON/ROSCH 1993, p. XVII). .

3. Os dois tipos fundamentais do ‘embodiment neurocognitivo’ Como já se pôde perceber da precedente citação de VARELA/THOMPSON/ROSCH 1993, os autores de tal volume declaram-se inequivocamente devedores de Maurice Merleau-Ponty, no que concerne ao conceito de embodiment que pretendem difundir e que é, afinal, um double embodiment: We hold with Merleau-Ponty that Western scientific culture requires that we see our bodies both as physical structures and as lived, experiential structures―in short, as both “outer” and “inner”, biological and phenomenological. These two sides of embodiment are obviously not opposed. Instead, we continuously circulate back and forth between them. Merleau-Ponty recognized that we cannot understand this circulation without a detailed investigation of its A corporização/corporizado recorrem sistematicamente, entre outros, Augusto Soares da Silva (por exemplo, em SILVA 2006, pp. 59 e 133) e Mário Vilela (sempre a título de exemplo, em VILELA 2002, p. 37). 2

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fundamental axis, namely, the embodiment of knowledge, cognition, and experience. For Merleau-Ponty, and for us, embodiment has this double sense: it encompasses both the body as a lived, experiential structure and the body as the context or milieu of cognitive mechanisms (cit., pp. XV-XVI).

O double embodiment em questão, na citação precedente, corresponde, porém, àquilo que passarei a designar como ‘embodiment restrito’, o qual diz respeito, “apenas”, às relações entre o corpo e a mente. É a mesma noção que também transparece numa passagem em que os autores aludem à embodied reflection, adiantando a seguinte explicação para o recurso que aí fazem ao adjectivo embodied: «By embodied, we mean reflection in which body and mind have been brought together» (cit., p. 27). Mas a noção de embodiment é-nos apresentada pelos autores em termos bastante diversos – os do que passo a designar como ‘embodiment generalizado’ – num parágrafo em que se fala do modelo de Filosofia que os mesmos designam como Continental 3, e no qual se atribui um particular relevo às especulações epistemológicas de Heidegger e de Gadamer: «... knowledge depends on being in a world that is inseparable from our bodies, our language, and our social history―in short, from our embodiment» (cit., p. 149). Como se pode ver, aqui o conceito alarga-se, significativamente, a «our language» e a «our social history». Este alargamento do âmbito de aplicação do conceito de embodiment ganha contornos ainda mais precisos quando Varela, Thompson e Rosch assim se referem a cognição, enquanto forma de embodied action: Let us explain what we mean by this phrase embodied action. By using the term embodied we mean to highlight two points: first, that cognition depends upon the kinds of experience that come from having a body with various sensorimotor capacities, and second, that these individual sensorimotor capacities are themselves embedded in a more encompassing biological, psycological, and cultural context (cit., pp. 172-173).

Não nos pode passar despercebida a circunstância de, nestas últimas citações, o conceito de embodiment se apresentar significativamente alargado, em relação ao modo como o mesmo era formulado na citação inicial deste capítulo: os autores passaram a encarar o conceito de embodiment como algo que se estende muito para além das “fronteiras” do corpo. Este conceito alargado do embodiment já tinha sido assinalado por Merleau-Ponty (1945: p. 235): Le corps propre 4 est dans le monde comme le cœur dans l’organisme: il maintient continuellement en vie le spectacle visible, il l’anime et le nourrit intérieurement, il forme avec lui un système.

Esta nova abrangência do conceito de embodiment implica consequências de peso decisivo, para o futuro das Ciências Neurocognitivas. Para um mais completo esclarecimento do conceito de embodiment como relação mente-corpo, por um lado, Classificação que pressupõe uma dicotomia básica, segundo a qual a Filosofia se bifurca em Analítica, por um lado, e Continental, justamente, pelo outro. Os filósofos analíticos são os que dependem da tradição lógico-epistemológica anglo-saxónica; e os continentais são os que, de um modo ou de outro, se podem qualificar genericamente como historicistas, como esclarece Paolo Becchi, na sua Presentazione de JONAS 1999 (p. X). 4 «Le corps propre» não é, simplesmente, o mesmo que le corps (tout court): não é redutível ao corpo como ‘coisa’ ou ‘organismo (biológico)’; é, antes, a experiência subjectiva e original, única, que cada um de nós tem do seu próprio corpo. 3

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e, por outro, da sua acepção alargada ao ambiente circunstante – tanto natural como cultural –, será útil passarmos a considerar um artigo posterior a The Embodied Mind (i. e., a VARELA/THOMPSON/ROSCH 1993), redigido por um dos autores desse mesmo livro. Em 2000, a revista «Pluriverso» publicava um artigo de um dos membros do seu Conselho Científico, Francisco Varela, intitulado Quattro pilastri per il futuro della scienza cognitiva 5. Nesse artigo, o primeiro dos pilastri em questão era, precisamente, o embodiment 6. Julgo conveniente parafrasear, aqui, uma parte do primeiro capítulo do artigo de Varela, citando alguns fragmentos do mesmo. Varela opõe-se à concepção ainda hoje dominante sobre a mente, não só entre o grande público como no seio da comunidade científica, baseada na “metáfora do computador”, segundo a qual a mente é uma espécie de software de que o cérebro e o corpo, no seu conjunto, constituem o hardware. A perspectiva que Varela adopta, em contraste com esta, é justamente a facultada pela teoria do embodiment, segundo a qual a mente «emerge da un’immediata riproduzione, indissolubilmente vincolata a un corpo che è attivo, che si muove e che affronta il mondo» (VARELA 2000: p. 7). Este ponto de vista conduz àquilo que ele designa como «il primo punto-chiave dell’incarnazione (embodiment): la co-determinazione di interno e di esterno» (id., ibid., p. 8). A perspectiva adoptada por Varela e pela maior parte dos actuais investigadores, no âmbito das Ciências Neurocognitivas, implica como corolário aquilo que o neurocientista chileno considera como o seu pessoal «primo slogan», a saber, a asserção de que «la mente non è nella testa» (id., ibid., p. 8). Esta asserção implica o princípio da co-emergência, pelo qual tudo aquilo que definimos como ‘objecto’ – cadeiras, mesas, pessoas, rostos, etc. – emerge da nossa própria actividade, da nossa manipulação sensório-motora: «noi e gli oggetti co-emergiamo, co-deriviamo» (id., ibid., p. 7). Varela (id., ibid., p. 7) ilustra o conceito da co-emergência com o exemplo, hoje considerado um “clássico”, dos dois gatinhos recém-nascidos metidos numa cesta 7. Por dois meses, permitiu-se a um deles que saísse todos os dias da cesta, por alguns minutos, e que deambulasse pela sala, enquanto o outro tinha que ficar sempre dentro da cesta, não lhe sendo concedido, portanto, que explorasse o espaço circunstante. Ambos os gatos eram sãos e da mesma ninhada. Quando foram finalmente soltos, o primeiro corria, brincava e interagia com os objectos de modo absolutamente normal, mas o outro comportava-se como se fosse completamente cego: não reconhecia os objectos, contra os quais ia continuamente esbarrar, caía desamparado pelas escadas, etc. Como Varela sublinha, daqui não se pode inferir que «i gatti vedono con le zampe»; mas deve-se concluir, porém, que «lo spazio (…) sia totalmente inscindibile dal fatto che deve essere manipolato in modo senso-motorio» (id., ibid., p. 7). VARELA 2000. O artigo foi traduzido do inglês para o italiano por Maria Laura Ferrari. Não se conhece, porém, qualquer edição do texto original inglês: mesmo os estudiosos de língua inglesa, quando se lhe referem, se vêem na contingência de citarem a versão italiana. 6 Os outros três “pilares” seriam a emergência, a intersubjectividade e a circulação (termo com o qual o autor designa, antes do mais, a correlação complementar e não-dualista entre a análise científica da mente, por um lado, e, por outro, a análise fenomenológica da experiência pessoal que a mente nos proporciona). 7 Esta experiência já tinha sido exposta em VARELA/THOMPSON/ROSCH 1993, pp. 174-175, mas com pormenores que se destacam sensivelmente dos da descrição proporcionada em VARELA 2000. Só se poderá saber qual das duas versões melhor corresponde à experiência efectivamente realizada se – ou quando – se me proporcionar a possibilidade de consultar o artigo de R. Held e A. Hein Adaptation of disarranged hand-eye coordination contingent upon re-afferent stimulation, publicado no .° 8/1958 de «PerceptualMotor Skills», pp. 87-90 (referência que não nos é fornecida no artigo de Varela aqui parcialmente transcrito mas que consta, pelo contrário, em VARELA/THOMPSON/ROSCH 1993). 5

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A cognição é, pois, não só embodied mas também enactiva, isto é, dependente do modo como interagimos com os objectos e com o ambiente. O princípio do ‘embodiment enactivo’ implica que a mente não está nem “dentro da cabeça” nem “fora” dela, e que a mente não pode ser concebida como separada da totalidade do organismo, uma vez que o cérebro está «intimamente collegato a tutta la muscolatura, all’apparato scheletrico, all’intestino, al sistema immunitario, agli equilibri ormonali e così via» (id., ibid., p. 8). Este modo de ver, e de nos vermos, nega qualquer pertinência às especulações baseadas na possibilidade teórica de cultivar “cérebros em imersão”, desligados do respectivo corpo: (...) con un cervello in immersione non possono esserci cose come la mente. Sarebbe attività neuronale completamente incoerente, in quanto non potrebbe avere la funzionalità di quello che effettivamente fa, il costante rapporto con il corpo e con l’ambiente che ne costituisce il senso (id., ibid., p. 7) 8.

Varela afirma, logo a seguir, que é, precisamente, a consciência dessa permanente e quase inextrincável relação entre o cérebro, o (resto do) corpo 9 e o ambiente circunstante que constitui «il primo punto chiave delle’incarnazione (embodiment): la co-determinazione di interno e di esterno». O período continua, e concluise, com a pontualização – a este ponto redundante, mas por aí se vê a importância que Varela dá ao conceito – de que «non dovremmo dimenticare che questo [la codeterminazione di interno e di esterno] si riferisce tanto all’ambiente esterno quanto allo stesso corpo» (id., ibid., p. 7). Essa perspectiva já se encontrava claramente expressa nos trechos das pp. 149 e 172-173 de The Embodied Mind (VARELA/THOMPSON/ROSCH 1993), anteriormente citados; trechos nos quais – note-se bem – a noção de ambiente externo não se limitava ao chamado ambiente natural mas implicava, ainda, o ambiente cultural. Resumindo e concluindo, deparamo-nos, pois, com dois tipos de embodiment neurocognitivo ou neurofenomenológico: (1) um ‘embodiment restrito’, centrado na noção de «profondo radicamento del pensiero nella carne stessa» (VIOLI 2003, p. 57) – radicamento já sugerido no título de um livro de Lakoff e Johnson, Philosophy in the Flesh (LAKOFF/JOHNSON 1999): um in the flesh que, por sua vez, pode ser felizmente traduzido em Português com ‘em carne e osso’ – expressão metafórica, esta, que infunde perfeitamente a noção de que o corpo e a mente ‘são unha com carne’, para usar outra metáfora corrente portuguesa; (2) um ‘embodiment generalizado’ que implica tanto a interacção entre o encéfalo e o (resto do) corpo – o ‘embodiment restrito’ – como a interacção entre o corpo e o ambiente, considerado, este último, nas suas duas dimensões básicas, a natural e a social.

Também António R. Damásio se refere a esta «experiência filosófica imaginária conhecida por », a pp. 235-236 de DAMÁSIO 1996, adiantando críticas à mesma que não diferem substancialmente das de Varela. 9 «Corpo e cervello non sono la stessa cosa, per lo meno non lo sono nella tradizione fenomenologica, né in Husserl né in Merleau-Ponty» (VIOLI 2003, p. 60); ainda que, sempre segundo Patrizia Violi, em Lakoff, Johnson e Núñez – por vezes, pelo menos, e provavelmente o mesmo se poderá dizer de outros investigadores – «cervello e corpo vengano accomunati e trattati sostanzialmente come intercambiabili», e esta «potenziale ambiguità (...) potrebbe rivelarsi fonte di pericolose confusioni» (id., ibid.). 8

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4. Embodiment e materialismo Os dois tipos de embodiment a que acabo de me referir – o ‘generalizado’ e o ‘restrito’ – encontram-se intimamente associados aos conceitos de ENACÇÃO (a qual é, no fundo, como já tivemos ocasião de ver, embodied cognition) e de COEMERGÊNCIA; os quais, por sua vez, ainda que não impliquem uma perspectiva filosófica decididamente materialista, não raro acabam por encorajá-la, se bem que sub-repticiamente, e insinuá-la aqui ou ali, de forma algo hesitante mas indubitavelmente intencional. É verdade que o materialismo não é nomeado – nem sequer para o atacar – uma vez que seja, em The Embodied Mind; e, com efeito, o materialismo – pelo menos, o materialismo “puro e duro” – está longe de informar a perspectiva filosófica adoptada pelos seus autores; mas já o mesmo se não pode dizer de outros investigadores e de outros estudos cuja importância, para a definição do actual estado da arte, também não é de desprezar. Por exemplo, a sobredita “tentação materialista” é sugerida na seguinte asserção de Patrizia Violi: In termini molto generali e semplificati potremmo dire che l’idea principale alla base del concetto di embodiment è che la mente deriva e si forma dall’avere un corpo che interagisce con l’ambiente (VIOLI 2003, p. 58 – negritos meus).

Derivar de, e formar-se a partir da circunstância de se ter um corpo, são imagens indiscutivelmente equivalentes ao irromper, ao jorrar, ao emergir (e já não necessariamente ao co-emergir) da mente a partir da matéria, que são pontos firmes do “credo” materialista. Para que não restem dúvidas sobre a presença, no ensaio em questão, da sobredita “tentação materialista”, a autora exprime de novo os mesmos conceitos quase a seguir, no início do subcapítulo imediatamente sucessivo àquele que contém a frase acabada de citar: Ripartiamo dunque da quella che, come si è detto, può essere presa come l’idea di base delle varie teorie dell’embodiment. Cosa significa esattamente dire che la mente è incarnata e che emerge e deriva dal corpo? (VIOLI 2003, p. 59 – negritos meus).

Patrizia Violi publicou, em 2008, um seu ensaio em inglês, Beyond the body: Towards a full embodied semiosis, ao qual passarei a referir-me como VIOLI 2008. Este está longe de ser uma tradução para inglês de VIOLI 2003, ainda que algumas partes de um e de outro sejam praticamente idênticas, como sucede com os trechos acabados de transcrever e aqueles que agora passo a citar: In very general terms we could say that the main idea behind embodiment is that mind derives and takes shape from the fact that we have a body that interacts with our environment (VIOLI 2008, p. 247 – negritos meus). So let us now return to the issue of what might be considered the basic idea underlying the various approaches to embodiment. What exactly does it mean to say that the mind is embodied, and that it emerges and derives from the body? (VIOLI 2008, p. 248 – negritos meus).

Seja em VIOLI 2003 seja em VIOLI 2008, a autora parece assumir-se, pois, como partidária da versão mais desassombradamente materialista do ‘embodiment 6

neurocognitivo’. Digo que o parece, apenas, porque não há, em ambos os artigos, outros elementos que corroborem a perspectiva insinuada nos passos transcritos – os quais, assim, acabam por deixar algumas dúvidas sobre o grau de convicção pessoal que terá presidido à sua formulação. Aliás, como se verá mais adiante com o caso de uma outra publicação (on line) em que a mesma autora se refere, em 2006, ao ‘embodiment neurocognitivo’ como «ancoraggio corporeo», parece que, adoptando tal expressão, aí tenha feito uma espécie de “marcha-atrás” em relação à posição materialista assumida em 2003 – não sendo decisivo, como prova de uma sua eventual “reconversão” ao materialismo, o artigo em inglês de 2008, uma vez que os passos do mesmo, acima transcritos, são uma mera tradução (não se sabe até que ponto consciente do “retorno ao materialismo” que implicavam) dos precedentes passos equivalentes, em italiano, de VIOLI 2003. Materialistas convictos são-no porém, decerto, estudiosos como Daniel Dennet, Richard Dawkins, Francis Crick, Paul e Patricia Churchland. Se Patrizia Violi não parece querer claramente inscrever-se na clique dos referidos incréus, terá boas razões – historicistas, pelo menos – para isso: com efeito, esse ‘embodiment materialista’ não corresponde em tudo e por tudo à prototípica incarnation de Merleau-Ponty, nem ao embodiment de epígonos de Merleau-Ponty como é o caso, por exemplo, de Varela, Thompson e Rosch. A incarnation de Merleau-Ponty e o embodiment de Varela não são completamente estranhos, com efeito, às acepções teológicas que mais comummente são atribuídas a tais termos. Seja como for, há algo inegavelmente em comum no ‘embodiment neurocognitivo’, ou melhor, nos ‘embodiments neurocognitivos’ de um, de outro, de todos eles, e é esse traço comum que pretendo anunciar já, algo estentoreamente, no título do capítulo que se segue.

5. Uma certeza (pelo menos): o ‘embodiment neurocognitivo’ é ANTI-IDEALISTA Tudo quanto referi, no cap. 3, sobre os dois tipos fundamentais do ‘embodiment neurocognitivo’, partia de – e limitava-se a – uma perspectiva relativa aos âmbitos de aplicação de tal conceito. Mas do que é que se está, precisamente, a falar, quando falamos de embodiment? A questão é ainda mais complicada do que aquela que foi tratada no sobredito capítulo. Patrizia Violi inclui o embodiment na categoria dos ‘termos guarda-chuva’ (VIOLI 2003, p. 59) e, como resposta à questão de «cosa significa esattamente dire che la mente è incarnata e che emerge e deriva dal corpo» (id., ibid.), apresenta-nos quatro sentidos possíveis, que vão desde «una prima accezione estremamente debole» (id., ibid.) até ao «embodiment ‘completo’ (full embodiment), o cognizione incarnata radicale (radical embodied cognition)» (id., ibid., p. 60). Quanto a esses quatro sentidos, remeto o leitor para VIOLI 2003. Núñez, por sua vez, em NÚÑEZ 1999 (pp. 55-6), apresenta três distintos graus de implicação do corpo que determinam três tipos de embodiment: um embodiment dito trivial, um outro dito material e, por fim, o integral (full embodiment), que é o que ele prefere (e eu, também). Quem quiser saber mais a tal propósito deverá, porém, recorrer directamente a VIOLI 2003 e NÚÑEZ 1999. Aqui, limitarme-ei a uma breve indagação de base sobre a génese do uso do termo embodiment na literatura filosófica e científica e sobre as principais acepções genéricas que em tais âmbitos lhe são atribuídas.

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Inicialmente, com Merleau-Ponty, não havia embodiment mas, como seria aliás de esperar, incarnation: Le Cogito jusqu’à présent dévalorisait la perception d’autrui, il m’enseignait que le Je n’est accessible qu’à lui-même, puisqu’il me définissait par la pensée que j’ai de moi-même et que je suis évidemment seul a en avoir au moins dans ce sens ultime. Pour qu’autrui ne soit pas un vain mot, il faut que jamais mon existence ne se réduise à la conscience que j’ai d’exister, qu’elle enveloppe aussi la conscience qu’on peut en avoir et donc mon incarnation dans une nature et la possibilité au moins d’une situation historique (MERLEAU-PONTY 1945, p. VII – negritos meus).

O que será porém, concretamente, esta incarnation de Merleau-Ponty? A incarnation, tal como os portugueses encarnação/incarnação e o italiano incarnazione, possui dois significados básicos: 1) o encarnar-se/incarnar-se como entrar na/descer dentro da carne, que tem o seu caso típico na ideia cristã da “instalação” do Verbo divino num corpo humano; 2) a extensão desse conceito que permite que a incarnação possa designar, também, a personificação: ‘Ela é a Virtude incarnada’ = ‘Ela é a personificação da Virtude’ = ‘Ela é a Virtude em pessoa’. Mas é necessário ter em conta que os termos incarnation/incarné têm um terceiro sentido em Francês, que é o dos nossos encravarse/encravado: ‘J’ai un ongle incarné’ dever-se-ia traduzir, em italiano e em português, respectivamente com ‘Ho un’unghia incarni ta/incarna ta’ e ‘Tenho uma unha encravada’. Em princípio, não seria impossível, pois, que fosse esse ‘sentido médico’ aquele que Merleau-Ponty estava dando ao termo, extensivamente, em Phénoménologie de la perception 10, onde o mesmo não continha decerto o menor resquício da noção de descer ou penetrar no corpo, vindo de fora (e, sobretudo, de cima), que os termos equivalentes mais ou menos espontaneamente evocam, em português ou em italiano. Esse sentido do ‘descer ou penetrar no corpo’ encontra-se, aliás, nos antípodas da incarnation de Merleau-Ponty e do embodiment dos ensaios de Ciências Neurocognitivas em língua inglesa. Com efeito, Merleau-Ponty manifestava, já aos tempos da primeira edição de Phénoménologie de la perception, a firme intenção de passar a opor-se, programaticamente, a «toute espèce d’idéalisme» (MERLEAU-PONTY 1945, p. VIII); um combate espiritual que continuou a alimentar ao longo de toda a vida e através de toda a sua obra (veja-se a tal propósito, por exemplo, SAINT AUBERT 2009). Essa oposição sistemática a «toute espèce d’idéalisme» far-me-ia propender, em princípio, para a hipótese de que fosse mesmo o sobredito terceiro sentido, o ‘sentido médico’ de incarnation, aquele que Merleau-Ponty tinha em mente: o mesmo sentido que está na origem da metáfora portuguesa do ser unha com carne com outrem. A hipótese da afinidade conceptual entre o incarné e o ser unha com carne é tentadora, mas perfilhá-la equivaleria a laborar pesadamente em erro – uma vez que a incarnation de Merleau-Ponty, apesar de decididamente anti-idealista, tem, afinal, muito mais que ver com a incarnation teológica do Cristianismo do que poderia parecer, a uma primeira impressão. Apesar de nunca se ter declarado cristão, Merleau-Ponty colocou ao centro da sua reflexão filosófica o conceito cristão de incarnação, que foi beber a Gabriel Marcel. Deus, se existe, deve existir na carne; o Espírito não pode existir fora do Corpo, só pode existir no Corpo, pelo Corpo, como Marcel afirmava já antes de Merleau-Ponty e Este incarné no sentido de ‘encravado’, ‘engastado’, ‘fincado’, estaria, aliás, muito mais perto daquele embedded que caracteriza muitas descrições neurofenomenológicas – veja-se a tal propósito, por exemplo, HAUGELAND 1995 – e, também, da noção de ancoraggio (corporeo) evocada por Patrizia Violi numa sua entrevista ao «Giornale di Filosofia», à qual tornarei a referir-me mais avante. 10

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este, por sua vez, afirmava em Fevereiro de 1946 – menos de um ano após a publicação de Phénoménologie de la perception –, em Foi et bonne foi: L’Incarnation change tout. [...] Le christianisme est en ce sens aux antipodes du “spiritualisme”. Il remet en question la distinction du corps et de l’esprit, de l’intérieur et de l’extérieur. [...] Enfin l’âme est si peu séparable du corps qu’elle emportera dans l’éternité un double rayonnant de son corps temporel 11.

O anti-idealismo de Merleau-Ponty de modo algum o atira, pois, para os braços do materialismo. Já em Marcel como, depois, em Merleau-Ponty, a originalíssima ideia cristã da I ncarnação ultrapassa a sua condição salvífica de amálgama Deus-Homem e alarga-se a toda a Carne, passando a (poder) ser também, simplesmente, i ncarnação. Com efeito, podiam perfeitamente ser de Merleau-Ponty as palavras que Marcel já antes pronunciara numa conferência que acabou por ser publicada em 1939, L’être incarné, repère central de la réflexion métaphysique: «Etre incarné, c’est s’apparaître comme corps, comme ce corps-ci, sans pouvoir s’identifier à lui, sans pouvoir non plus s’en distinguer» (cit. em DE WAELHENS 1950, p. 372). O ‘embodiment restrito’ encontra-se, portanto, já em Merleau-Ponty. Não se trata, porém, de um embodiment materialista: Si donc nous disons que le corps à chaque moment exprime l’existence, c’est au sens où la parole exprime la pensée. (...) ...le corps exprime l’existence totale, non qu’il en soit un accompagnement extérieur, mais parce qu’elle se réalise en lui. Ce sens incarné est le phénomène central dont corps et esprit, signe et signification sont des moments abstraits (MERLEAU-PONTY 1945, p. 193).

Como se vê, estamos perante um embodiment em que o elemento da ‘irradiação espiritual’ é uma espécie de mais-valia, em relação ao seu substrato físico; no entanto, a misteriosa, inextrincável e irredutível complementaridade que MerleauPonty afirma caracterizar o conjunto desses dois factores, «corps et esprit» 12, está bem longe de oferecer a mínima concessão a quaisquer veleidades de cariz idealista. Como também já tivemos ocasião de verificar, a Merleau-Ponty não era sequer estranho o conceito de ‘embodiment generalizado’. Tanto no caso do ‘embodiment restrito’ como no do ‘embodiment generalizado’, as co-emergências implicadas não pressupõem, porém, qualquer ideia de precedência ou de prevalência de um dos factores de cada uma dessas realidades dicotómicas, ou double-faced, sobre o outro. No fundo, talvez não interessasse muito a Merleau-Ponty a determinação da ordem de emergência dos factores corps e esprit mas antes, sobretudo, o postular a sua íntima correlação. Compreende-se, aliás, que a ordem de precedência não tenha tido para ele um particular interesse – pelo menos, de um ponto de vista estritamente operacional: do mesmo modo que, num passado ainda relativamente recente, era indiferente optar pelo sistema ptolomaico ou pelo sistema copernicano, para resolver os cálculos astronómicos de maior interesse prático; e num passado ainda mais recente, que em certos aspectos se prolonga pela actualidade, o mesmo se pode dizer da equivalência prática, para muitos cálculos físicos, entre os sistemas newtonianiano e einsteiniano. Já de um outro ponto de vista, que não é só filosófico (na acepção mais banal do termo) mas também altamente pragmático (porque envolve escolhas a Cit. em SAINT AUBERT 2009, pp. 151-152. Conjunto, esse, a traduzir em português com ‘corpo e espírito’, ou com ‘corpo e mente’? – ver o que a tal propósito observo mais avante, no cap. 4, sobre o título da tradução francesa de The Embodied Mind de Varela/Thompson/Roch. 11 12

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nível simbólico que acarretam, por sua vez, consequências sociopolíticas não despiciendas), a opção entre o sistema ptolomaico e o copernicano, entre o sistema newtoniano e o einsteiniano, ou entre a noção idealista da “precedência do espírito” e a materialista da “precedência da matéria” é, simplesmente, fundamental. Com VARELA/THOMPSON/ROSCH 1993, como já pudemos verificar, os dois embodiments, o ‘restrito’ e o ‘generalizado’, continuam a manifestar uma forte componente a que, faute de mieux, chamarei extática; mas, no caso destes três autores, o pólo mais propriamente religioso do diálogo, que alimentam, entre a Ciência e a Tradição Espiritual, é representado não pelo Cristianismo mas pelo Budismo. Vejase a tal propósito, em VARELA/THOMPSON/ROSCH 1993: antes do mais, os acknowledgments iniciais (pp. XI-XIII); depois, todo o décimo capítulo, “The Middle Way” (pp. 217-235); e, por fim, os apêndices – a) “Meditation Terminology”; b) “Categories of Experiential Events Used in Mindfullness/Awareness”; c) “Works on Buddhism and Mindfullness/Awareness” (pp. 255-260). Em tempos mais recentes e em Itália, esta profícua e consolidada frente de diálogo manifesta-se, por exemplo, em VENTURINI 2002. Passemos agora aos aspectos práticos que, no caso presente, se concentrarão na problemática da tradução das acepções ‘restrita’ e ‘generalizada’ do embodiment.

6. Como – e quando – traduzir o embodiment das Ciências Neurocognitivas Que não deixa de ser problemática a tradução do embodiment para outras línguas, quando se trata das acepções complexas e algo flutuantes que o mesmo tem nas Ciências Neurocognitivas, é algo de que já se dera bem conta a tradutora para italiano de VARELA 2000; e isto, ao ponto de – certamente levada pela consciência da insuficiência e, até, da insidiosa distorção ideológica activada pela tradução que propunha – ter deixado o termo original inglês entre parênteses, logo a seguir àquela. Foi o que fez logo no título do capítulo de VARELA 2000 parafraseado em 3. 2 (o da experiência com os dois gatinhos) – que em «Pluriverso» era “Il punto chiave dell’incarnazione (embodiment)” – e no parágrafo final desse mesmo capítulo: «Così, in breve, questo è il primo punto chiave dell’incarnazione (embodiment)» (VARELA 2000, p. 39). Demonstram a mesma preocupação as tradutoras portuguesas do livro de António Damásio Descartes’ Error – Emotion, Reason and the Human Brain, Dora Vicente e Georgina Segurado, que também fazem seguir ao termo incorporação o original embodiment, entre parênteses: É muito provável que a mente não seja concebível sem incorporação (embodiment), uma noção que tem lugar de destaque nas propostas teóricas de George Lakoff, Mark Johnson, Eleanor Rosch, Francisco Varela e Gerald Edelman, e, evidentemente, nas nossas próprias (DAMÁSIO 1996, pp. 240-241).

Para que não restem dúvidas sobre a pertinência – e sobre a necessidade absoluta, até – deste tipo de discriminações semânticas, se quisermos reduzir ao mínimo as margens de equívoco interpretativo no seio dos trabalhos de investigação científica, pontualize-se que o uso dos termos embodiment e embodied, nos seus sentidos primários de ‘incorporação enquanto (re)encarnação’ e de ‘incorporado enquanto

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(re)encarnado’, se encontram também em estudos linguísticos que se podem considerar “de vanguarda”. É o que acontece, por exemplo: (1) numa passagem dum artigo de Yael Ravin e Claudia Leacock em que as autoras se referem à teoria “clássica”, aristotélica, do significado: A modern linguistic embodiment of the classical approach is found in the rationalist and intensionalist theory of semantics developed by Katz and Fodor (1963) and later refined in Katz (1972) 13;

(2) numa passagem de um artigo de Anna Wierzbicka, em que a autora se refere à noção subjacente ao inglês emotion como a uma «characteristic combination of three components (related to feeling, thinking and body)», já que «in fact it [i. e., essa ] embodies a concept which is itself an artifact of the English language» – WIERZBICKA 1999, p. 24 (negrito meu). A ninguém – e, portanto, nem sequer aos linguistas que acabo de citar – se pode vetar o emprego de embodiment e de to embody nestas últimas acepções, cuja legitimidade não está em questão: basta que se possa saber, sem margem para equívocos, que são esses os sentidos em jogo, no documento que estamos consultando ou no discurso que estamos ouvindo. Nos casos dos exemplos precedentes, aliás, embodiment não poderia ter outro significado senão o de ‘incarnação’, ‘manifestação’, e to embody o de ‘personificar’, ‘dar forma concreta a’, visto o contexto específico em que está integrado cada um dos termos. O que já me parece pouco adequado, porque sugere uma perspectiva platonizante da relação entre o corpo e a mente, é o estabelecimento de pretensas “equivalências semânticas” entre o embodiment e vocábulos tais como incorporação, incarnação, corporização, etc., em contextos nos quais o termo embodiment deveria exprimir, pelo contrário, a radicação material – corpórea e ambiental – de todos e quaisquer processos cognitivos. Isabella Blum, a tradutora da edição italiana de The Embodied Mind 14, conseguiu resolver egregiamente o problema da tradução de embodiment/to embody/embodied, como se pode desde logo perceber pela leitura da inicial Advertência do tradutor: Nel testo originale inglese ricorrono i (...) termini (...) embodiment, to embody, embodied (...). (...) volendo mantenere anche in italiano il riferimento diretto all’idea di corpo (body), e non essendo però adeguato il calco diretto dall’inglese all’italiano (per es.: embodiment si tradurrebbe incorpamento), in accordo con gli autori, abbiamo diversificato la traduzione a seconda dei contesti e dei casi: corporeità, radicamento nel corpo, incarnato/disincarnato... – VARELA/THOMPSON/ROSCH 1992, p. 7 (negritos meus).

O par antitético incarnato/disincarnato é correctamente aplicado, aí, nos casos em que os autores do livro se referiam precisamente à crença – culturalmente

Yael Ravin e Claudia Leacock, Polysemy: An Overview, in RAVIN/LEACOCK 2002 (pp. 1-29), p. 8 (negrito meu). 14 La via di mezzo della conoscenza. Le scienze cognitive alla prova dell’esperienza, indicado na bibliografia – e daqui por diante – como VARELA/THOMPSON/ROSCH 1992. 13

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marcante, mas que lhes é de todo alheia – numa mente desincarnada e que, por conseguinte, se poderia eventualmente incarnar 15. Dos equívocos provocados por versões como incorporação, incarnação, corporização, etc., bem se guarda igualmente Patrizia Violi, no seu fundamental ensaio Le tematiche del corporeo nella Semantica Cognitiva (VIOLI 2003), onde embodiment e embodied são empregues no original inglês ao longo de todo o artigo. As edições de The Embodied Mind noutras línguas que não a original merecem, no entanto, ainda um pouco da nossa atenção – e não irei, de qualquer modo, além das suas versões italiana e francesa. Em relação à edição italiana, acabo de me referir ao modo como nela se procedeu, conscienciosamente, à tradução de embodied, e das outras palavras com a mesma raiz lexical, recorrendo a diversos termos, consoante o contexto em que surgem; mas não devemos ficar-nos por aí: um outro aspecto digno de consideração é o do título atribuído ao livro de Varela/Thompson/Rosch, tanto em italiano como em francês. Em italiano, preferiu-se contornar os aspectos problemáticos suscitados pelo título – quer pela sua difícil tradução quer, provavelmente, pelo “desconforto” que o próprio conceito de embodiment, em si, provoca ainda numa parte significativa da intelligentzia do país. É bastante significativo, creio, que na edição italiana se tenha optado por substituir uma expressão “forte” como The Embodied Mind, eventualmente tida como polémica, com uma expressão aparentemente conciliatória, La via di mezzo della conoscenza. Apesar de perfeitamente justificada no âmbito da perspectiva budista, que os autores do livro consideram muito compatível com a da Neurofenomenologia, a escolha de uma expressão que invoca uma via intermédia parece sugerir ao eventual leitor, à primeira vista, uma atitude morigeradora, tendente, talvez, a alguma espécie de tranquilizante “solução de compromisso”. O título da edição francesa de The Embodied Mind é, por sua vez, L’inscription corporelle de l’esprit 16, com o que se põe claramente o acento sobre o ‘sentido restrito’ que atrás defini para o conceito neurofenomenológico de embodiment. É certo que se deixou de parte, com essa solução, a acepção ‘generalizada’ do termo – mas a restrição do sentido é compreensível, porque quase inevitável, se se pensa na complexidade e, até, na vagueza que caracterizam essa mesma acepção ‘generalizada’; e a mesma restrição do sentido é patente, aliás, no título original inglês. Por que é que os responsáveis pela edição francesa preferiram traduzir o adjectivo embodied com inscription corporelle – expressão que, aliás, suscita os mesmos equívocos interpretativos que embodied, incorporado, incarnado, corporizado, incorpato, incarnato, etc.? Os francófonos teriam, até, todas as razões histórico-filológicas para reconverterem o embodied no seu “progenitor”, o incarné de Merleau-Ponty. No entanto, a tradução à letra de The Embodied Mind teria conduzido a um autêntico Como sucede, por exemplo, a pp. 51-53 da edição italiana (VARELA/THOMPSON/ROSCH 1992), e a pp. 27-28 da original inglesa por mim consultada, que não é a primeira absoluta (VARELA/THOMPSON/ROSCH 1993). 16 L’inscription corporelle de l’esprit, Paris, Seuil, 1993. Por agora, não me é dado conhecer mais nada sobre a tradução francesa do livro de Varela/Thompson/Rosch senão o título, uma vez que em Itália – segundo o site do Istituto Centrale per il Catalogo Unico – o único exemplar disponível, numa biblioteca pública, se encontra na Universidade de Turim. O meu primeiro contacto – e único, por ora – com esta edição francesa foi indirecto, pois que a encontrei referida na Introduzione de Massimiliano Capuccio a CAPPUCCIO 2006, onde este professor de Filosofia afirma, inclusivamente (p. 58, nota 8), que a versão francesa do texto é «più completa» do que a original. Essa alegada superioridade é confirmada por Domenico Jervolino, o qual, em Ricoeur: la fenomenologia della memoria e il confronto con le scienze cognitive (em CAPPUCCIO 2006, pp. 397-407), esclarece (na nota 15 à p. 405) que «l’edizione francese presenta arrichimenti e modifiche sostanziali rispetto alla precedente edizione americana». 15

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desastre semântico, não só por causa da manutenção dos equívocos ínsitos em embodied/incarné mas, sobretudo, pela potenciação inevitável dos mesmos, com a subsequente tradução de mind: não dispondo os francófonos de termos como mente/mind, vêem-se constrangidos a recorrerem a esprit – ou (ainda pior, no caso) a âme... Portanto, a tradução francesa, literal, de The Embodied Mind seria L’esprit incarné; em suma, um despropósito, em tais circunstâncias: já que um título do género seria mais adequado, em princípio, a uma espécie de catecismo ou de ensaio teológico. Não podendo evitar o recurso a esprit, procurou-se então, nesse aperto, reduzir os danos semânticos ao mínimo possível, optando por L’inscription corporelle de l’esprit. Criticar as escolhas tradutivas alheias sem apresentar, em seguida, alternativas válidas para as mesmas, é absolutamente legítimo mas, no fundo, algo frustrante (ou irritante, até), porque estéril – ou, pelo menos, não directamente produtivo. Que soluções se me afiguram mais apropriadas, então, para substituir da maneira mais adequada embodied e embodiment, nos estudos cognitivos redigidos em português, ou nas traduções portuguesas de textos em inglês (ou noutras línguas) em que tais termos comparecem? Uma solução é fazer como Patrizia Violi em VIOLI 2003, deixando-os em inglês. Porém, como já se sabe, também o original inglês se presta a leituras distorcidas. A própria Patrizia Violi deve ter-se posto o mesmo problema, uma vez que também ela se decidiu, em seguida, a propor uma alternativa tradutiva para o embaraçoso embodiment, que ocorre numa das respostas à entrevista que concedeu a Giulia Piredda para o «Giornale di Filosofia» 17: a semióloga bolonhesa recorre, aí, à expressão «ancoraggio corporeo», que podemos traduzir à letra com ancoragem corpórea. São soluções, a de Violi e a sua tradução literal portuguesa, que não alimentam aquelas “tentações materialistas” que a dita autora manifestava alhures (ver as minhas observações, em 2. 1, a propósito de VIOLI 2003); mas, dentro da “perspectiva indecisa” ou via do meio escolhida quer por Merleau-Ponty quer por Varela, Thompson e Rosch, é, afinal, do melhor que se possa encontrar... Procurando, pois, “arrumar” conclusivamente – mas não definitivamente, porque alternativas melhores se poderão apresentar no futuro – as soluções que me parecem mais adequadas para os problemas terminológicos em apreço, abalanço-me a formular as seguintes sugestões: (1) Para o ‘embodiment restrito’: radicação corpórea da mente, ou radicação somática da mesma, ou ancoragem etc.; e, para embodied, radicado/ancorado no corpo ou somaticamente radicado/ancorado. (2) Para o ‘embodiment generalizado’: a problemática complexidade do conceito nada de melhor me sugere do que radicação sómato-eco-social da mente ou radicação somática, física e social da mesma (assumindo o física na sua acepção etimológica); ou, talvez melhor ainda, radicação sómato-ecológica da mente (assumindo que o ecológico já envolve o social ou antrópico). Quanto ao adjectivo embodied, na mesma acepção ‘generalizada’, as possibilidades que reputo mais cabais são as de – na linha da última sugestão para a 17 Revista on-line: . A entrevista foi publicada em 13/7/06 e manteve-se livremente consultável até aos finais de 2014, pelo menos. Actualmente, porém – isto é, em finais de Junho de 2015 –, todas as páginas do dito «Giornale», publicadas na Rede, deixaram de poder ser abertas, ainda que continuem a comparecer as respectivas URLs, (por) agora inservíveis, quando se empreende uma qualquer pesquisa booleana que lhes diga respeito. Continuo a dispor, porém, de uma cópia integral, em Word, da entrevista em questão.

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tradução do ‘embodiment generalizado’ – nos atermos às fórmulas, necessariamente longas mas apropriadas, de somática, física e socialmente radicado, ou ancorado. No entanto, nem sempre convirá traduzir. É claro que, se, numa frase ou num parágrafo, um autor tiver que recorrer ao conceito de ‘embodiment restrito’ ou de ‘embodiment generalizado’ diversas vezes, a tradução repetida do mesmo com uma das longas expressões acima sugeridas acabaria por dilatar o texto e torná-lo, além de deselegante, muito dificilmente compreensível. Em tais casos, nada mais lhe restará fazer do que ater-se ao inglês embodiment, relegando para uma nota – inicial ou final, mas algo corposa, necessariamente, em qualquer dos casos – a explicação do que é que pretende significar com tal termo, em cada um dos casos em que dele se tiver servido.

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