Para a Guerra Santa: as Cruzadas e o direito da guerra justa

May 25, 2017 | Autor: Henrique Gomes | Categoria: Medieval History, Just War Theory, Legal Philosophy, Filosofia do Direito, Historia Medieval
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Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: [email protected]
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Pelo fato dos francos tomarem as linhas de frente, os muçulmanos convencionaram por nomear todos os cruzados de franj (termo árabe para francos), independentemente de sua origem. A expressão continuou sendo usada durante outras Cruzadas (HUTTO, 2015).
"A formação do conceito de guerra justa passa por vários estágios, mas encontra em Santo Agostinho, reconhecidamente um dos pilares da Igreja cristã, seu ponto chave, a base que influenciará por toda a Idade Média, o pensamento militar diretamente relacionado ao Cristianismo, e que, posteriormente, alcançará o seu clímax com a ideia de guerra santa" (RIBEIRO; REIS, 2012, p.5).

SALGADO, 2009, p. 153 – 154
Pesquisa no sítio eletrônico https://www.ufrgs.br/bioetica/guerra.htm. Acesso em: 28-set.-2016
Op. cit.
DE MATTEI, 2002, p. 18
A teoria dos dois gládios afirma que o gládio (espada) espiritual governa as almas, enquanto o gládio temporal governa os corpos. O gládio espiritual por governar o espírito é superior ao gládio temporal que governa os corpos. Assim, o poder espiritual detido pela Igreja prevalecia sobre o poder temporal dos príncipes.
Os historiadores tentam se debruçar sobre as poucas informações relativas à biografia do jurista Graciano, porém com pouco sucesso. Para mais informações, confira o artigo "Where Gratian Slept: The Life and Death of the Father of Canon Law", que pode ser lido no site https://www.academia.edu/14880995/Where_Gratian_Slept_The_Life_and_Death_of_the_Father_of_Canon_Law. Acesso em: 03-dez.-2016.
BRUNDAGE, 1977, p. 118


Para a Guerra Santa: as Cruzadas e o direito da guerra justa
Álvaro Monteiro Mariz Fonseca
Henrique Gomes e Silva
RESUMO
Este paper trabalha com a vinculação entre as Cruzadas e a Teoria da guerra justa - mais especificamente o subsistema da guerra santa-, evidenciando a influência do movimento expansionista cristão sobre o robustecimento da teoria da guerra na Idade Média, e vice-versa. Apontam-se também os desafios da reconstrução de uma teoria milenar que se adequou às demandas do período, num grande esforço teórico de grandes juristas e teólogos, para juridicizar construções eminentemente teológicas. Por fim, procura-se exemplificar as consequências jurídicas de uma guerra santa, com base na teoria da guerra construída para tal.
Palavras-chave: Cruzadas - guerra justa - guerra santa

ABSTRACT
This paper deals with the link between the Crusades and the theory of just war - more specifically the subsystem of holy war - showing the influence of the Christian expansionist movement on the strengthening of the war theory in the Middle Ages, and vice-versa. The challenges of the reconstruction of a millenary theory that was adapted to the demands of the period, in a great theoretical effort of great jurists and theologians, to juridicize eminently theological constructions are also pointed out. Finally, it seeks to exemplify the legal consequences of a holy war, based on the theory of war built for it.
Keywords: Crusades - just war - holy war

1. Introdução
Momento histórico único, e que até hoje compõe o imaginário popular acerca da Idade Média, é o das Cruzadas. Mais do que um empreendimento bélico, a luta pela Terra Santa representou o primeiro passo do Ocidente para além do isolacionismo continental e também a gênese de uma unidade europeia (LE GOFF, 2007).
A cristianização da filosofia levou à reinterpretação do próprio conceito de guerra, com as definições de Paz de Deus e Trégua de Deus, os quais restringiam os dias e lugares em que se era permitido lutar (DERKSEN, 2004). Neste sentido, até a guerra dependia da vontade e permissão divinas, logo, para serem vistas como legítimas as Cruzadas deveriam emanar do comando de Deus.
As Cruzadas, como movimento militar e religioso, tinham a tarefa de conciliar a campanha de conquista da Palestina com os ideais pacifistas da fé cristã, e para isso foi utilizada como base a já difundida teoria da guerra justa. No entanto, mesma essa doutrina ganharia, no período, um forte aporte teórico para respaldar o novo contexto religioso de guerras. Portanto, era preciso que o conflito armado tivesse uma casus belli adequada para motivar sua deflagração, afinal, a guerra não deveria ser apenas justa, mas também santa.
A teoria da guerra justa é anterior ao Cristianismo, o homem antigo já tinha a preocupação de encontrar a moralidade nas armas. Autores como Platão, Aristóteles e Cícero previamente definiram suas visões sobre as circunstâncias em que a guerra era permitida, e quiçá necessária. No Medievo essa doutrina ganhou nova roupagem através da escolástica, que utilizava uma abordagem não apenas teológico-política, mas sobretudo jurídica com o robustecimento do direito canônico. No caso das Cruzadas era preciso recorrer às Sagradas Escrituras para encontrar a necessária permissão divina que as legitimariam, ainda mais tendo em vista que a própria religião era o móvel da campanha.
O seguinte trabalho tem por objetivo analisar a guerra justa dentro da conjuntura das Cruzadas e está orientado da seguinte forma: primeiramente far-se-á uma breve síntese histórica do movimento cruzadista, apontando suas origens e desenvolvimento, em seguida iremos nos direcionar para a leitura dos principais expoentes da doutrina da guerra justa no período medieval, para assim em um terceiro momento aplicar esse pensamento no contexto das Cruzadas e ver como o discurso da guerra justa era utilizado para legitimar as pretensões do clero e da nobreza.

2. As Cruzadas
A historiografia costuma marcar o início formal das Cruzadas com o notório discurso do Papa Urbano II no Concílio de Clermont-Ferrand em 1095. Na ocasião, o bispo de Roma convocou uma multidão de diversos reinos europeus a marcharem para a Terra Santa, prometendo a salvação a todos os mortos em combate contra os pagãos. Os motivos elencados pelas palavras do Sumo Pontífice eram a proteção dos cristãos e dos locais de culto no Oriente, verbis:
"Dos confins de Jerusalém e da cidade de Constantinopla um horrível conto tem avançado e muito frequentemente tem chegado aos nossos ouvidos, a saber, uma raça do reino dos persas (...) invadira a terra dos cristãos e os despovoara pela espada, pilhagem e fogo (...) Ela tem ou destruído inteiramente as igrejas de Deus ou as apropriado para os ritos de sua própria religião (...) A quem é, portanto, incumbido o trabalho de vingar essa injustiça e de recuperar esse território, se não sobre vós?" (apud CARNATHAN, 2011, p. 2, tradução livre).
Evidentemente, as motivações que levaram ao início das Cruzadas eram diversas, datadas de diferentes momentos históricos, e iam muito além da profissão de fé. As peregrinações, a busca por pontos mercantis estratégicos no Mediterrâneo e territórios para os nobres sem terra na Europa, a contenção do avanço islâmico no continente e a experiência da Reconquista ibérica eram parte das razões que levaram a Europa cristã a se movimentar para o leste a fim de lutar contra os muçulmanos.
Le Goff assim disserta sobre a expansão da Cristandade:
"Paralelamente a esta expansão interior, a Cristandade passou por uma expansão exterior. É provável mesmo que tenha preferido esta, as soluções militares lhe parecendo mais fáceis que as soluções de valorização pacífica.
Assim nasceu um duplo movimento de conquista, que teve como resultado a ampliação das fronteiras da Cristandade na Europa e as expedições longínquas em terras muçulmanas: as cruzadas." (2005, p. 60-61).
Inseridas no contexto das peregrinações, as Cruzadas eram vistas como uma peregrinação armada. Na mentalidade do homem medieval o ato de peregrinar era parte integrante da passagem terrena, necessária para a salvação da alma (FOGA, 2014). Peregrinar para a Terra Santa era uma das formas mais apreciadas de aproximação com o divino, e matar ou morrer pela fé era visto como um meio de expiação dos pecados, um verdadeiro martírio tal qual o dos santos. A atuação dos nobres em cederem seus batalhões para compor o exército cristão era positiva tanto do ponto de vista político, para manter boas relações com a Igreja, quanto do moral, pois era uma forma indireta de participar dos planos divinos.
Todo esse empreendimento era parte do projeto de expansão da Cristandade para a eventual criação e consolidação da comunidade cristã mundial (Res publica christiana). Ele começou no século X através do avanço cristão nos Balcãs ao leste e nas terras nórdicas, em conjunto com o início da retomada da Península Ibérica (LE GOFF, 2005). Com a Europa já em processo de cristianização tardio, a atenção da Igreja se voltava então para o Oriente, berço da própria fé monoteísta, mas que ainda se mostrava como território intocado.
No total ocorreram oito Cruzadas que se estenderam até o fim do século XIII, tendo apenas as três primeiras obtido grande destaque. Os palcos de batalha não compreendiam somente a Palestina, eis que iam da Anatólia - na atual Turquia - até o atual Egito. O exército cristão era formado principalmente por súditos dos Reinos dos Francos e da Inglaterra e do Sacro-Império Romano-Germânico. Os antagonistas dos guerreiros cruzados, apesar de receberem a alcunha generalizada de sarracenos, compreendiam inúmeros povos de cultura distinta - árabes, curdos, persas e seljúcidas - que mantinham em comum a fé islâmica.
A Primeira Cruzada, ocorrida entre 1096 e 1099 e liderada por nobres francos, obteve êxito em suas pretensões militares, consagrado com a conquista de Jerusalém. Encerrou-se com a formação do Reino de Jerusalém e diversos Estados Cruzados. Na virada do século XII, os maometanos avançaram sobre os cruzados para retomar os territórios perdidos, dando início ao contra-ataque europeu conhecido como a Segunda Cruzada. Em 1187, Jerusalém foi tomada pelo sultão egípcio Saladino, dando início a Terceira Cruzada, que contou com figuras ilustres como Frederico Barbarossa e Ricardo Coração de Leão. A Quarta Cruzada desviou-se de sua intenção primordial, eis que o atrito entre gregos e latinos culminou no saque de Constantinopla (LE GOFF, 2005).
De acordo com historiadores islâmicos, o que ocorreu foi de fato uma invasão dos francos para sitiar e saquear suas cidades. Nessa perspectiva também é afirmado que a Primeira Cruzada só obteve êxito devido ao fator surpresa e ao dissenso entre os diferentes califados. Posteriormente,
"O sucesso inicial das Cruzadas causou um esforço através de Zengi, Nur al-Din, e finalmente, Saladino. Além disso, foi a percepção de que os europeus estavam travando sua própria guerra santa que serviu como ímpeto por trás da própria jihad deles." (HUTTO, 2015, p. 10, tradução livre).
Convém distinguir ainda as Cruzadas do Jihad (a guerra santa islâmica). Jihad é o dever muçulmano de defender o Islã através da luta, a qual pode ocorrer de quatro formas: 1) pelo coração (através da purificação da alma), 2) pela língua e pelas mãos, 3) espalhando a palavra, e 4) pela espada que diz respeito à guerra física. Trata-se de um conceito basilar para os seguidores de Maomé que tem a expansão da fé como princípio essencial de sua doutrina, visto que, em cinco séculos de existência, o islamismo já conquistara toda a península arábica, o norte da África, a península ibérica e ameaçava adentrar o leste europeu por meio dos portões do Império Bizantino.
A Quinta Cruzada iniciou-se com os exércitos europeus aportando no Egito para abrir caminho em direção à Jerusalém. São Francisco de Assis também esteve lá, com objetivo de converter o sultão e solucionar o conflito através do diálogo. Os exércitos, porém, nunca conseguiram deixar o Egito (DERKSEN, 2004). Na Sexta Cruzada, iniciada em 1228, Frederico II do Sacro Império Romano-Germânico garantiu a conquista de Jerusalém através de tratados, o que durou até 1244. Já a Sétima e a Oitava Cruzadas, ocorridas conjuntamente e lideradas por Luís IX de França, posteriormente São Luís, foram um desastre que culminou na morte do monarca e o fim dos esforços europeus na Palestina (DERKSEN, 2004).
Diversos outros movimentos cruzadistas ou campanhas militares em locais distintos ocorreram durante todo Medievo, sendo responsáveis por consolidar a hegemonia cristã na Europa, mas incapazes de manter controle sobre o Oriente e expandir o projeto da Cristandade.
O conjunto da obra foi um completo fracasso em seus objetivos principais. A falta de unidade entre diversos reinos cristãos se acentuou, ao passo que os turcos só se fortaleceram, conseguindo posteriormente conquistar Constantinopla e desfazer o Império Bizantino, controlando, assim, a porta de entrada para a Ásia, o que levou a Europa a seguir novos rumos, o que levou alguns séculos depois ao início das grandes navegações.

3. A teoria da guerra justa
A teoria ou doutrina da guerra justa ganhou seus mais relevantes contornos, para o entendimento cristão, com o trabalho de Santo Agostinho, a partir do século V da nossa era. E daí em diante, todas as obras que enfocaram ou discorreram sobre o tema da paz e da guerra, de uma forma ou de outra, remetiam aos delineamentos traçados pelo Bispo de Hipona.
Quando Agostinho examina a matéria da guerra em seus trabalhos, parte da discussão anteriormente levantada sobre a aparente incompatibilidade do pacifismo cristão primitivo com o recente belicismo, a qual já se encontrava superada, no contexto fático. É que àquela época já havia sido assinado o Edito de Milão (313) e o Edito de Tessalônica (380), que acabaram por conferir aos cristãos o dever de defender Roma.
No século IV, pois, o uso de armas e a guerra já se faziam presentes no Império cristianizado. Isso faz com que Santo Agostinho não enfoque mais o cabimento ou não de a guerra ser feita por cristãos, mas como ela deveria, ou como fazê-la de forma justa.
3.1. A concepção de paz e de guerra
No nosso entendimento, não é possível tratar com correção a guerra na ótica introduzida por Santo Agostinho sem abordar a própria noção de paz. Isso, porque os conceitos de paz e guerra estão intimamente correlacionados.
Na obra "A Cidade de Deus", Agostinho explana que o fim buscado pela guerra é a "paz gloriosa" tanto individual, quanto coletivamente:
"Quem quer observe um pouco as questões humanas e a nossa comum natureza reconhecerá comigo que, assim como não há quem não procure a alegria, também não há quem não queira possuir a paz. Realmente, mesmo quando alguém faz a guerra, mais não quer que vencer; portanto, é a uma paz gloriosa que pretende chegar, lutando. Na verdade, que mais é a vitória senão a sujeição dos que resistem? Logo que isto se tenha conseguido, será a paz. As próprias guerras, portanto, são conduzidas tendo em vista a paz, mesmo por aqueles que se dedicam ao exercício da guerra, quer comandando quer combatendo. Donde se evidencia que a paz é o fim desejado da guerra. Efetivamente, todo homem procura a paz, mesmo fazendo a guerra; mas ninguém procura a guerra ao fazer a paz." (apud RIBEIRO; REIS, 2012, p. 4).
Ora, Santo Agostinho concebe a guerra como consequência do pecado, e em conseguinte, um mal menor, inevitável e necessário. Em razão da corrupção da natureza humana a paz completa é entendida como impossível neste mundo.
Porém, neste mundo o pecado, o mal e a injustiça precisavam ser combatidos pelos cristãos, tornando a guerra uma ferramenta divina para esse intento (FITZ, 2003).
Karine Salgado, ao comentar sobre a concepção de justiça em Santo Agostinho, aponta que "a paz pode ser desejada na vida terrena e na vida celeste e não há nenhum impedimento no desejo em ambas, embora aí resida a diferença entre os dois tipos de homem, pois alguns desejam exclusivamente a paz terrena". Daí a crença na paz como "pedra fundamental" sobre a qual a sociedade se assenta.
É necessário que se diga ainda que a guerra não possuía àquele tempo toda a conotação de negatividade dada hoje. Em razão disso, faz-se mister ter cautela nas análises que se faça do período. Numa sociedade voltada para a religião, a guerra não era vista – pelos defensores da guerra justa – como fonte de destruição e morte, mas enquanto busca do pacifismo e da ordem numa sociedade marcada pelo caos. E na condução histórica desse processo e da realização da guerra está Deus.
E mais: a guerra e suas fundamentações foram objeto no período medieval de sérias delimitações e teorizações. Ou seja, havia, pelo menos em nível doutrinário-teológico, uma preocupação em tratar adequadamente a matéria.
3.2. O arcabouço teórico da guerra justa
Santo Agostinho definiu, basicamente, dois requisitos para a consideração de uma guerra como justa, e que respondiam às seguintes questões:
- Quando é permitido travar uma guerra? (jus ad bellum)
- Quais as limitações na maneira de travar uma guerra? (jus in bello)
À primeira questão podemos resumir o requisito da "autoridade adequada" e o segundo o da "causa adequada". Sobre a autoridade competente para declarar a guerra Agostinho diz que "a ordem natural, que é dirigida para a paz das coisas morais, requer que a autoridade e a deliberação para realizar uma guerra estejam sob o controle de um líder".
Para o Bispo de Hipona, a autoridade legítima para declarar a guerra poderia tanto ser o príncipe, quanto Deus na figura da Igreja (RIBEIRO, REIS, 2012). Parece-nos, por outro lado, que com isso Agostinho pretendia uma afinação de posturas entre o poder temporal e o poder espiritual, tendo o poder temporal a missão de proteger o poder espiritual.
E sobre a justiça na motivação "costumam ser definidas como justas as guerras destinadas a castigar as injustiças; ou seja, aquelas em que se trata de vencer um povo uma cidade que descuraram punir os malefícios dos seus súditos, ou que não entregaram aquilo que tinha sido tirado injustamente".
Já para Santo Tomás de Aquino, o Doutor Angélico, a grande referência da Escolástica, a guerra justa, possuía também alguns requisitos, vejamos:
"1) Que seja declarada por um príncipe, ou seja, por uma autoridade pública legítima, já que não compete ao particular declarar guerra, pois tem superiores a quem recorrer para a salvaguarda de seus direitos;
2) Que sua causa seja justa, isto é, que seus inimigos realmente mereçam que se lhes declare guerra;
3) Que haja reta intenção por parte dos combatentes, de modo que o bem seja promovido e o mal evitado." (COSTA; SANTOS, 2010, p. 8).
A questão em torno da autoridade competente para declarar a guerra se torna assim numa das mais prementes no período medieval, na medida em que impactará na legitimidade ou não da realização da guerra. Já que apenas a autoridade com a "espada temporal" poderia declarar a guerra, a posse legítima dessa "espada" se fazia como de extrema relevância.
Com efeito, a juridicidade da guerra ocasionava não apenas em efeitos espirituais e religiosos para aqueles que a levassem a cabo, mas acima de tudo - para o que aqui nos interessa - implicava também em consequências jurídicas significativas, como efeitos no "direito de propriedade" e no "direito penal".
Cabe mencionar ainda as referências às Escrituras Sagradas utilizadas pelos teóricos do período para construírem os parâmetros para a guerra, e mais que isso, para a guerra justa. Os autores foram cuidadosos ao mencionar as ambivalências, por exemplo, quando Paulo se refere a Jesus como o autor da vitória, mas também como Deus da paz.
Igualmente, frases de Jesus Cristo como "todos os que pegam a espada pela espada perecerão"(Mt, 26:52) e "não cuideis que vim trazer a paz à terra, não vim trazer paz, mas espada" (Mt, 10:34) também são lembradas, assim como menções à lei judaica que permitia a retaliação em caso de ataque.

4. A legitimação das cruzadas pela guerra justa
No mesmo período em que se trava a guerra das investiduras, que resulta na primazia do Papado sobre o poder temporal, o direito canônico começa a se sofisticar muito no tratamento da guerra. Entre os anos 1000 e 1300, os intelectuais começaram a se debruçar em relação à matéria em muitos detalhes e sobre vários aspectos da guerra (BRUNDAGE, 1977).
De fato, o que marcou esse novo tratamento da matéria foi uma transição da consideração da guerra como um problema moral e teológico para um problema jurídico. Por exemplo, tanto os teólogos quanto os juristas se preocuparam com a licitude ou ilicitude da guerra e com a autoridade para declarar a guerra, mas com fundamentos diversos. Já questões como direitos de propriedade, responsabilidade por danos, legitimidade da conquista interessaram mais aos juristas.
Foi, portanto, nesse contexto de fundamentação jurídica da doutrina da guerra justa que as Cruzadas se iniciaram e que tomou corpo um subsistema da guerra justa: a guerra santa.
4.1. A doutrina da guerra santa
O conceito de guerra santa vai além do de guerra justa, pois não pressupõe a mera legitimidade, mas que seja justificável e espiritualmente benéfica para todos os que participavam dela. Isso faz com que toda guerra santa seja automaticamente justa, mas nem toda guerra justa seria necessariamente santa.
Em relação às matrizes de tratamento da guerra, a de Santo Agostinho se amoldava perfeitamente para explicar quando uma guerra será justa e quando não será, pois apontava como as guerras seriam moralmente toleráveis e não repreensíveis em si mesmas. Todavia, não fornecia um padrão de consideração da guerra como santificante e meritória espiritualmente para o guerreiro cristão.
É inevitável a consideração de que as primeiras guerras medievais cristãs contra os pagãos, ainda no período Carolíngio e depois, foram fatores determinantes para o desenvolvimento da ideologia da guerra santa.
Sem dúvida, o mais importante teórico da guerra santa no período tratado foi Graciano ( -1144/1145), considerado o pai do direito canônico, o qual estabeleceu um marco no tratamento da matéria, influenciando todos os canonistas após ele. Na Causa 23 do seu Decretum, Graciano reaplicou a metáfora dos dois gládios, para concluir que a Igreja romana possuía o direito de usar ambas as espadas para assegurar obediência e legitimar comandos.
No entanto, o poder coercitivo atribuído à Igreja a partir de então estava sujeito a uma limitação significativa: a violência não poderia ser exercida direta, nem imediatamente pelo clero. Era necessário o concurso do agente da lei, autoridade temporal, para executar em nível mais direto a força física (BRUNDAGE, 1977).
A partir daí, o papa se torna uma autoridade legítima para declarar guerra, e direcionar, ainda que remotamente, o exército cruzado, que é visto como um exército próprio da Igreja, a fim de reconquistar a Terra Santa (DE MATTEI, 2002).
A "guerra romana" se torna assim a modalidade de guerra que equivalia à guerra santa, que, por sua vez, correspondeu às Cruzadas. Essa categoria criada por Henrique de Susa ou Hostiensis, o qual a definia como a guerra entre o religioso e o infiel, o que se tornou a guerra santa.
4.2. A utilização de armamentos e consequências jurídicas da guerra santa
Se hoje, nós vemos as mínimas normatizações para a realização da guerra como algo estranho ou mesmo paradoxal, no período medieval, pelo contrário, essas delimitações eram encaradas com a máxima seriedade, pois marcariam como de fato a guerra se organizaria nos campo de batalha.
Os juristas do período tinham algumas preocupações teóricas que se refletiam em consequências práticas de natureza jurídica, como por exemplo, na diferenciação dos tipos de adversários: inimigos públicos e salteadores/assaltantes; pois bens e pessoas capturados dos inimigos públicos eram considerados propriedade dos conquistadores (BRUNDAGE, 1977).
Talvez o jurista que mais tenha vislumbrado os efeitos do estado de guerra tenha sido o civilista Cino de Pistoia (1270 - 1336/1337), o qual pontuou a diferença entre um período de paz e um período de guerra, antecipando uma discussão que somente ganharia corpo após a Revolução Francesa.
Com efeito, as implicações do direito nesses dois períodos serão substancialmente diferentes tanto para a jurisdição civil, quanto para a criminal. Durante a guerra justa, matar em batalha não era considerado crime e nenhuma medida legal poderia ser tomada contra o homicida. Ou seja, matar um inimigo público em tempo de guerra é um homicídio lícito (BRUNDAGE, 1977).
Outra questão jurídica era a responsabilidade pelos danos causados. Numa guerra contra os infiéis, como as Cruzadas, os inimigos que perdessem suas propriedades não poderiam pleitear restituições. Por outro lado, se a guerra era injusta, o causador dos danos era responsável por todos os danos decorrentes do ato ilícito.
Em relação aos armamentos empregados havia uma interessante regulamentação para o tema, que tinha como parâmetro a eficácia do armamento e seu potencial de provocar mortes - em especial dois armamentos: a besta e a catapulta.
Além disso, avaliava-se qual desses instrumentos militares poderiam ser usados contra povos cristãos e não-cristãos. A besta e a catapulta não poderiam ser empregadas em guerras cristãs, todavia eram permitidas contra os infiéis nas guerras santas, justamente pelo seu potencial lesivo. Na prática, no entanto, essas armas foram largamente utilizadas nos conflitos europeus (BRUNDAGE, 1977).
Ressaltamos, evidentemente, que apesar de todas essas possíveis conquistas materiais decorrentes de uma empresa bélica vitoriosa, a principal recompensa buscada pelos combatentes cristãos era o mérito espiritual, expressa pela indulgência a todos os pecados que recaiam sobre o homem. Se aventurado de conquistá-la, o cristão teria a salvação de sua própria alma.
5. Conclusão
A Igreja, em ascensão no final da Alta Idade Média, reformulou o antigo conceito de guerra justa para os moldes cristãos, a fim de legitimar suas pretensões nas Cruzadas. Os discursos de legitimação das Cruzadas acabaram por se encaixar na teoria dos teóricos do clero. As condutas dos islâmicos na Terra Santa foram consideradas uma injustiça que precisava ser corrigida, a Igreja e os monarcas, eram detentores legítimos da autoridade para conduzir os exércitos cristãos para a guerra santa, e os combatentes possuíam a digna intenção de defender a fé cristã. Essa, portanto, foi a combinação ideal dos requisitos da doutrina da guerra santa que permitiram a realização das Cruzadas.

6. Referências bibliográficas
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CARNATHAN, Sean. The First Crusade and Just War Theory: An Evaluation of the Justification of the First Crusade. Disponível em: http://honors.rmu.edu/intersections-journal-2011. Acesso em: 22 set. 2016.
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