Para a história da disciplina de Ciências Físico-Químicas: os programas da reforma liceal de 1947

June 7, 2017 | Autor: Carlos Beato | Categoria: História Da Educação, Historia da Educação, História das Disciplinas Escolares
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Para a história da disciplina de Ciências Físico-Químicas: os programas da reforma liceal de 1947 Introdução A apresentação deste artigo insere-se no contexto de um trabalho de investigação que começou tentando dar resposta à questão “como se ensinava física e química antes do 25 de Abril” e que rapidamente se estendeu a domínios que o levam a situar-se na área conhecida pela designação de “história das disciplinas” tendo originado, como primeiro passo de um projecto em construção, uma dissertação1 sobre a disciplina de Ciências Físico-Químicas no âmbito da reforma liceal de 1947, em particular nos seus anos iniciais. Muito do que aí se desenvolve resultou de um trabalho de aturada pesquisa em fontes primárias como são os relatórios anuais que os professores auxiliares e agregados elaboravam por obrigação estatutária. Esses relatórios deveriam conter uma descrição pormenorizada de todo o “serviço prestado,” a actividade específica nas disciplinas leccionadas e as actividades complementares, em particular as de suporte ideológico ao regime. Nem sempre isso era respeitado e por vezes era ultrapassado como se verá. As concepções teóricas que enquadram o trabalho referenciado podem ser encontradas na matriz do pensamento de Chervel (1988, 1998) e na respectiva análise à história das disciplinas escolares enquanto parcela capaz de clarificar aspectos importantes da História da Educação. Contudo, para algumas situações específicas o contributo trazido por Goodson (1983, 1991, 1993, 1997, 2001) foi de grande utilidade, já que estes dois autores apesar das diferenças de posicionamento acabam por apresentar uma certa complementaridade. Como refere Bittencourt (1999, p. 147), o percurso da análise de André Chervel parte das disciplinas, “abordando as questões epistemológicas, buscando a génese e os diferentes momentos históricos em que se constituem os saberes escolares, para então inserir estas problemáticas na constituição dos currículos” ao contrário de Ivor Goodson, cujas pesquisas se iniciam pela história dos currículos e que a partir daí chega às disciplinas escolares embora nem sequer considere adequado o termo de “disciplina escolar” que substitui por “matéria escolar”.

A origem da “história das disciplinas” A “história das disciplinas” é um campo de investigação que tem vindo a adquirir crescente notoriedade no âmbito da História da Educação. É uma área de estudos que se formou recentemente podendo considerar-se que o seu “decreto” fundador é, precisamente, um artigo de Chervel (1988) publicado na revista Histoire de l’Education há menos de trinta anos (Júlia, 2000). A razão da

reflexão aí apresentada terá estado relacionada com as perplexidades que surgiam na interpretação clássica do surgimento das disciplinas escolares por via de uma filiação directa nos saberes universitários. Essas perplexidades surgiram a partir da constatação da criação de disciplinas escolares sem relação com qualquer das áreas académicas universitárias existentes. Chervel (1988) avança a ideia de que a escola não deve ser entendida como o local institucional cuja missão é transmitir saberes ou servir de iniciação às ciências de referência, o que de algum modo se configura como paradoxal, e justifica com a apresentação de casos concretos. O exemplo da história da gramática escolar mostra, contudo que é uma afirmação verificável. A escola ensina, sob este nome, um sistema, ou melhor um conjunto de conceitos mais ou menos ligados entre si. Três resultados da análise histórica interditam definitivamente que se considere estas matérias como uma vulgarização científica. Primeiro mostra-nos que, contrariamente ao que se poderia crer, a teoria gramatical ensinada na escola não é a expressão de quaisquer ciências ditas, ou presumidas como de referência, e que é sim um produto historicamente criado pela escola, na escola e para a escola. Isto já seria suficiente para a distinguir de uma vulgarização. Em segundo lugar, o conhecimento da gramática escolar não faz parte da cultura do homem culto – com excepção de alguns conceitos gerais como os de substantivo, de adjectivo ou de epíteto –. . . . Por fim a própria génese desta gramática escolar não permite quaisquer dúvidas sobre a sua finalidade real. A criação destes diferentes conceitos coincidiu, constantemente no tempo com o seu ensino, assim como com o da ortografia, tudo incluído num vasto processo pedagógico, que é o da escola primária da Restauração. . . . Na realidade didáctica do quotidiano, como nas suas finalidades, a gramática escolar francesa é, de facto, parte do grande empreendimento nacional de aprendizagem da ortografia o que não tem nada a ver com uma qualquer vulgarização. (p. 66)

Chervel nas suas investigações sobre a história da disciplina de língua francesa mostra claramente que esse estudo começou e fortaleceu-se nas escolas básicas e secundárias sem qualquer conexão com as universidades. A disciplina foi sendo construída na escola, com os professores, com a comunidade escolar e todo o conjunto de pessoas e instituições envolvidas no ensino que a elaboraram a pouco e pouco até ela se cristalizar. Obviamente que havia todo o interesse social e político por trás que era a questão da nacionalidade, a questão da formação dos estados modernos em que a “unidade nacional” exigia, para lá das fronteiras imaginadas, algo comum aos que estavam no seu interior, exigia que as pessoas se sentissem com a mesma pertença e com as mesmas origens o que passava muito e continua a passar pela questão da língua. Já Pessoa dizia que “a minha pátria é a língua portuguesa” e, não sem razão, nesse verso ele expõe todo um programa que mostra a importância da fala para cimentar as comunidades e os povos e forjar as nações. Ao longo do século XIX, em paralelo com a emergência de novos modos de governo e a afirmação dos Estados-Nação, a escola transforma-se num elemento central do processo de homogeneização

cultural e de invenção de uma cidadania nacional. Cidadania, Nacionalidade, Soberania: eis a tríade de referência de um projecto sociopolítico que vai conceder ao Estado o monopólio da violência simbólica, que se quer “legítima”. Através da atribuição a um dado arbitrário cultural de todas as aparências do natural, a escola desempenha um papel central neste processo de transformação das populações em nações. (Nóvoa, 1995, p. XX).

Foi a esse desafio que a escola respondeu com sucesso e desde aí tem sistematizado o seu percurso de interacção com a globalidade dos interesses sociais, políticos e económicos nunca deixando de ostentar a sua autonomia mesmo que, por vezes, extremamente limitada pela sociedade. Poder-se-ia admitir que este processo seria singular dada a especificidade do contexto histórico, e que só teria validade na área das disciplinas literárias. Não é o caso, várias outras situações podem ser enquadráveis nesta perspectiva, e na medida em que os estudos se alarguem a evidência será, presumivelmente, maior. Caso notável é o das matemáticas e da sua disciplina escolar que se crê comummente ser uma versão simplificada do conhecimento científico apenas “lubrificada” pela pedagogia para melhor compreensão dos espíritos jovens. No entanto, como refere Chervel (1988): Os conceitos matemáticos, há uma vintena de anos, introduzidos no primeiro ciclo do secundário pouco têm a ver com os homónimos saberes científicos que lhes serviram de caução: entre os saberes científicos e os ensinados vai uma distância que os próprios didactas das matemáticas hoje constatam. (p. 67)

Na realidade desde que a abordagem ao estudo das disciplinas seja mais minuciosa aquela ideia apresenta crescentes dificuldades de sustentabilidade e obriga o historiador a tomar precauções acrescidas para distinguir o ser do parecer.

História das disciplinas e cultura escolar Como área de investigação a “história das disciplinas” tem, como se viu, uma existência relativamente curta. É tanto assim que ainda não há três décadas podia afirmar-se, em França, que eram “ainda, raros os trabalhos que se dedicam à história das disciplinas escolares, procurando, nomeadamente, elucidar a sua evolução e a estabelecer a relação que mantém com o estado das ciências donde são originadas” (Choppin, 1980, p. 11), e mesmo alguns anos mais tarde continuava a reconhecer-se que “a história dos conteúdos do ensino e, sobretudo a história das disciplinas

escolares, representa a lacuna mais grave na historiografia francesa do ensino” (Chervel, 1988, p. 68). Segundo Belhoste (2002, §1), a história do ensino das disciplinas (da área das ciências naturais, físicas e matemáticas) foi negligenciada durante muitos anos. A razão encontrar-se-á no facto de ser, por um lado, pouco interessante para os historiadores das ciências e, por outro, por se situar numa perspectiva marginal face aos historiadores da educação. No entanto, hoje em dia, o grande desenvolvimento das investigações no campo da didáctica das ciências e o novo interesse com que os historiadores das ciências encaram a divulgação e socialização do conhecimento científico, a situação tende a alterar-se e, segundo este investigador, o trabalho está a desenvolver-se a bom ritmo e o número de pesquisas não pára de crescer como, aliás, o próprio Chervel (1998, p. 209) confirma ao referenciar novos trabalhos em curso, numa nota escrita para a reedição de “L’histoire des disciplines scolaires.” O aparecimento da área e seu posterior desenvolvimento, como lembra Bittencourt (2003) vem na sequência e em articulação aos processos de discussão e transformação curricular das décadas de 1970 e 1980, altura em que “se repensava o papel da escola em suas especificidades e como espaço de produção de saber e não mero lugar de reprodução de conhecimentos impostos externamente” (p. 11). Entretanto, o ter despontado no decurso desse importante processo que atravessou os espaços escolares, e que continua na agenda da actualidade, possibilita-lhe pôr em movimento o seu potencial de elucidação, de compreensão e de transformação e daí a tendência à consolidação. A escola tem sido encarada como um lugar de cultura, quer numa perspectiva idealista de transmissora de conhecimentos e normas, ditas universais, quer sob uma visão crítica, no papel de inculcar ideologias e como factor de reprodução social. Pouca atenção tem sido prestada à produção interna de uma “cultura escolar, que está em relação com o conjunto de culturas em interacção numa dada sociedade, mas que contém especificidades próprias que não lhe podem ser atribuídas unicamente a partir da determinação pelo mundo exterior” (Nóvoa, 1998, p. 34). É de facto a história das disciplinas escolares, em plena expansão actualmente, que procura eliminar esta lacuna. Ela tenta detectar e salientar, através das práticas de ensino na sala de aula e das grandes finalidades que conduziram à constituição das disciplinas, o núcleo duro que poderá originar uma história da educação renovada. É ela que permite, usando uma metáfora aeronáutica, a abertura da “caixa negra” da escola procurando compreender o que se passa neste espaço particular. (Julia, 1995, p. 356)

Para André Chervel que reivindica a autonomia da área “história das disciplinas” em relação aos domínios históricos tradicionais do ensino, há uma menorização do objecto disciplinar que não é aceitável se o objectivo for tornar compreensível, não só as disciplinas em si, como a própria

história do ensino em geral. Para este autor, no entanto, não se trata de recuperar um elo perdido já que, na sua perspectiva, o fazer e dar importância à história das disciplinas não irá completar e/ou aperfeiçoar a história do ensino, mas antes poderá mesmo contestar a própria concepção geral de história do ensino. Enquanto a recusa em reconhecer a realidade específica das disciplinas durar, o sistema escolar não terá direito a outro tratamento do ponto de vista dos historiadores. . . . Tudo se altera, evidentemente, a partir do momento em que se renuncia a identificar os conteúdos de ensino com simples vulgarizações ou adaptações. Porque as disciplinas são, em si, irredutíveis, por natureza, às categorias historiográficas tradicionais. (Chervel, 1988, p. 69)

Assim como a escola não está isolada da sociedade, as disciplinas não têm um funcionamento isolado como poderá parecer a uma observação mais descuidada da estrutura curricular ou das competências profissionais dos professores; de facto, existem múltiplas interacções, podendo dizer-se que elas estão como que envolvidas numa teia de muitos fios que se desdobram de algumas direcções principais. Uma disciplina escolar, na realidade, nunca se encontra isolada na escola: é solidária, em primeiro lugar, com as restantes disciplinas . . . em segundo lugar, é solidária com a pressão dos exames e concursos que, à partida, condicionam o funcionamento das classes que os precedem . . . finalmente é solidária com toda uma série de dispositivos pedagógicos, sem dúvida menos formais, mas que contribuem para a sua eficácia. (Julia, 2000, p. 71)

O segundo aspecto que é referido pelo autor anterior é classicamente uma das formas que a sociedade tem para tentar controlar o que se passa nas escolas. Bastará assinalar que para alguns é mesmo quase o único recurso: Como fomentar uma maior responsabilização dos professores relativamente às suas práticas e em relação ao cumprimento do programa? Dever-se-á recorrer a uma aferição cuidada dos resultados dos exames a nível nacional? (Fernandes, 2004, p. 43)

Verificou-se na segunda metade do século passado que por todo o mundo “ocidental” grandes projectos de reforma do ensino das ciências fracassaram. No que respeita à Física, “ciência muito complexa, relacionando intimamente técnicas matemáticas e experimentais complexas de conceptualização abstracta” as tentativas de renovação referidas “não conseguiram transferi-las para o ensino, quer seja na Grã-Bretanha (projecto Nuffield), nos Estados Unidos (o PSSC, por exemplo) ou em França (os trabalhos da Comissão Lagarrigue)” (Toussaint, 1995, p. 307). Toussaint interroga-se sobre a validade da aplicação da “transposição didáctica do saber científico para o

conhecimento a ensinar em Física” (p. 308), em contraste com o que lhe parece ser a sua eficácia noutras disciplinas, como a Matemática. Contudo, até na Matemática é preciso ir além da ideia de transposição didáctica, mesmo quando relativizada pelas considerações de Develay (1995, p. 26), para se fazer uma aproximação ao entendimento global dos processo sobrevenientes. A concepção da “transposição didáctica” aceita que a escola é apenas uma parte menor e desvalorizada de um sistema no qual estando colocada numa das extremidades – o ponto de chegada – se limita a recepcionar o conhecimento que é originado em ambiente mais nobre, nas instituições universitárias e outras, sob a forma de saber erudito e científico. A intermediar há uma nuvem mais ou menos densa de agentes sociais externos que garante o fluxo dos saberes. Nesta perspectiva justifica-se a necessidade da existência de uma didáctica cujo móbil é tornar mais acessível e simples o conhecimento que assim se transfere dum estatuto a outro, de erudito para o de saber escolar, bem mais modesto. Com sentido lógico esta operação que permite evitar o distanciamento entre a produção científica e o que deve ser ensinado é chamada de transposição didáctica (Bittencourt, 2003). Num trabalho de dissertação sobre o ensino das matemáticas no Brasil começa-se pelo registo de que “a teoria da transposição didáctica é hoje útil, até mesmo imprescindível, para que os didactas trabalhem no sentido do aperfeiçoamento do ensino da matemática e também analisa com sucesso algumas reformas recentes da matemática” (Tavares, 2002, p. 15), para logo de seguida se afirmar: Entretanto, no caso específico do estudo da unificação das disciplinas matemáticas entre nós, seria interessante examinar como o saber próprio da escola secundária interage com o saber científico decretado. Além disso, as considerações de Chervel . . . parecem actualmente mais propícias para um acompanhamento da dinâmica de funcionamento da disciplina escolar matemática ao longo dos anos anteriores e posteriores à unificação. (p. 16)

Como diz Allieu (1995) o professor do ensino básico e secundário enfrenta uma situação muito complexa que o obriga a ter que gerir e coordenar a fusão de “variáveis dizendo respeito aos conteúdos, à moral, às relações interpessoais, aos objectivos puramente cognitivos, às regras de funcionamento de grupo, aos constrangimentos institucionais... É um actor de um sistema que funciona como um organismo vivo” (p. 156). Assim, este sistema, como qualquer outro ser vivo, consome e produz, e a partir da criação da necessária vulgata, entendida como o conteúdo que é comum ao conjunto dos professores de uma dada disciplina, no caso a disciplina de História: Um fenómeno de produção autónoma de saber pela escola põe-se em andamento: a partir de documentos históricos, de factos citados, elabora-se uma sequência narrativa, espécie de produto escolar que só de muito longe tem a ver com o conhecimento científico de referência. (p. 157)

Muitas das disciplinas escolares não possuem a mesma estrutura que o correspondente conhecimento científico de referência da cadeira universitária, utilizam conceitos que por vezes divergem largamente e metodologias que não se assemelham. Maior afastamento existe ainda quando se verifica que, em várias situações, muito do que se trabalha na escola nem sequer possui uma disciplina base ou ciência de referência. Esta instrução . . . tinha por objectivo ensinar aos jovens nobres o estado actual dos mais importantes principados europeus assim como a história nacional, incluindo a mais recente: tratava-se, na realidade, de formar os futuros servidores do Estado, que ocupariam, quando adultos, os postos chave da administração, do exército e das embaixadas. Não é por acaso que as aulas específicas de história aparecem primeiro nos colégios cujo público é maioritariamente nobre . . . e nas escolas militares do século XVIII. Precisamente quando a formação dos futuros oficiais exige uma verdadeira profissionalização, aparece um par de disciplinas associadas destinadas a um futuro grandioso: a história e a geografia. (Julia, 2000, p. 54)

Na realidade, continua a existir uma certa concepção de “disciplina escolar” diferente da aqui enunciada com consequências, quer na prática dos professores, quer sobre as conclusões que se retiram da investigação. Esse “ideal” não se compadece com um olhar mais próximo do que se passa de facto na instituição escolar, como refere Correia (2000) ao fazer a destrinça entre o que é e o que parece ser nas disciplinas escolares: A ideia que tem prevalecido é a de que os conteúdos ou matérias de ensino correspondem aos saberes científicos e culturais mais significativos de uma dada sociedade, assumindo a escola e as disciplinas a função de simplificar e tornar acessíveis às crianças e aos jovens esses saberes. Ora a consequência, tanto para os educadores como para os investigadores, é que se perde de vista a necessidade de recuperar os processos de constituição dos saberes escolares como uma criação cultural da própria escola e não questiona directamente os saberes em si mesmos, conferindo à pedagogia uma lógica normativa e prescritiva muito marcada. A consequência desta vinculação directa que é feita das disciplinas escolares aos saberes instrumentais ou valorizados socialmente é que todos os desfasamentos entre uns e outros passam a ser atribuídos a imperativos de simplificação e vulgarização de saberes extensos e complexos, em nome da adequação a um público jovem. (p. 13)

Reforçando a ideia da escola como local com uma produção própria e onde os professores desfrutam de uma certa autonomia, Nóvoa (1998) lembra como o falhanço de diversas iniciativas reformadoras “é atribuído à elaboração histórica de uma gramática da escola que tende a instaurar como legítimas certas maneiras de educar e de organizar os estudos”. Dando ênfase a este aspecto acrescenta ainda uma conclusão muito significativa a que chegaram Tyack e Tobin: “os

reformadores acreditaram que com as suas inovações iam mudar as escolas, mas, de facto, foram as escolas que mudaram as reformas. De cada vez, os agentes do ensino escolheram, de modo selectivo, como trabalhar ou modificar as reformas” (p. 37) A resistência às “inovações” não tem que ser vista como uma reacção de pura inércia, devendo, pelo contrário, ser entendida como uma defesa activa pela escola dos seus interesses. E em determinadas ocasiões, essa defesa está tão presente que não pode passar despercebida para um observador atento, como assinala Grácio (1998) a propósito da reforma do ensino técnico de 1948, ao evidenciar que nessa conjuntura se manifestou com “especial acuidade a tendência da instituição escolar para promover os valores que lhe são específicos e sustentam as suas práticas, demarcandoa de outros universos sociais” (p. 123). Os programas nas disciplinas institucionalizadas não são uma criação espontânea da escola que nem sequer faz essa reivindicação. O que se passa na escola é um confronto com o que do exterior chega provocando uma reelaboração permanente, produzindo cultura, a cultura escolar detectável nas disciplinas, em função de uma autonomia que lhe permite não só colocar em novo contexto as solicitações exteriores, como também retroagir sobre a comunidade e a sociedade em que está inserida. Encaradas deste modo, as disciplinas escolares contribuem, com as suas características próprias, para uma socialização adequada das novas gerações. Não se tratará tanto do ensino da literatura, da história, das ciências, matérias que são fortes candidatas ao esquecimento, como todas as outras, mas sim de garantir uma certa memória, uma certa capacidade de discernir, de assegurar o que será permanente no indivíduo. Ao contrário do ensino superior, caracterizado por uma transmissão tão directa quanto possível do saber científico como é o das “cadeiras” através de uma prática solidariamente unida aos objectivos, o ensino das “disciplinas” escolares do ensino não superior tem a particularidade de combinar, em proporções variáveis, conteúdos culturais e formação intelectual e cívica dos alunos.

A aculturação de que a escola é o agente é, portanto, um fenómeno mais complexo que o que se pensa muitas vezes. A cultura que a escola fornece à sociedade é constituída por duas partes. Por um lado há o “caderno de encargos”, isto é, o programa oficial e explícito, o qual é, em princípio, o objectivo fundamental, a finalidade educativa que lhe é confiada. . . . Há por outro lado, um conjunto de efeitos culturais não previsíveis, engendrados com toda a independência pelo sistema escolar. Como designar toda esta parte da cultura que resulta da acção da escola, e que não está inscrita nas grandes finalidades que a sociedade lhe atribui? Uma expressão impõe-se aqui, por muito mal entendida que seja no seu uso corrente, a de “cultura escolar”. A cultura escolar, propriamente dita, é toda aquela parte da cultura adquirida na escola, que encontra na escola não só o seu modo de difusão, mas também a sua origem. (Chervel, 1998, p. 191)

Deste modo a escola, sendo considerada uma estrutura para a reprodução social, promove a

sua própria cultura específica, a qual não deixa de ser uma criação da sociedade, tal como outras culturas parcelares que se poderiam identificar como, por exemplo, a cultura religiosa, a cultura política ou a cultura popular. A escola não está em oposição à sociedade, apenas usa a sua criatividade e a sua capacidade de adaptação para, alterando a visão simplista que por vezes se tem dela, ser parte significativa na produção cultural da sociedade. Isso poderá ser revelado se se “analisar cuidadosamente as transferências culturais que se operam da escola para outros sectores da sociedade em termos formais e de conteúdo e, inversamente, as transferências que se operam de outros sectores da sociedade para a escola” (Julia, 1995, p. 377). À escola, pode arriscar-se dizer, ficou o encargo de construir/cimentar a própria sociedade, dando-lhe as características ideológicas que servem os interesses dominantes, assimilados como o interesse da sociedade global. Como diria Julia “a cultura escolar é efectivamente uma cultura conforme e seria necessário encontrar em cada período os limites que desenham a fronteira entre o possível e o impossível” (p. 372). O facto de a cultura escolar estar limitada exteriormente mostra como ela é um produto da própria sociedade que, por vezes, a quer enjeitar. A sociedade controla a escola, mas esta usufrui autonomia suficiente para se permitir tentar “uma remodelação dos comportamentos . . . uma moldagem em profundidade dos caracteres e das almas que passa por uma disciplina dos corpos e uma direcção das consciências” (Julia, 1995, p. 364), e que lhe dá a capacidade para continuar a manter as transferências culturais bidireccionalmente. No seu notável trabalho sobre a “produção” do aluno liceal, Ramos do Ó (2002) constata que os manuais escolares que apareceram no ensino secundário pelos finais do século XIX, nunca mais de lá saíram e interpreta esse facto de modo a distinguir a produção da cultura escolar dos saberes eruditos como o mesmo nome:

Por seu intermédio, se jogava uma partida fundamental: a de criar uma verdade de conhecimento distinta da verdade que a ciência falava, apesar da coincidência onomástica das disciplinas. No liceu, o Português, a Matemática, a História eram efectivamente outra coisa e remetiam para uma mundivivência particular. (p. 873)

Com a perspectiva acima exposta sobre história das disciplinas é possível detectar e tentar compreender acontecimentos e factos que de outro modo permaneceriam “de fora” ou encontrariam explicações triviais. Para chegar a esse objectivo é importante caracterizar o papel que cabe ao investigador: O estudo dos ensinamentos efectivamente dispensados é a tarefa essencial do historiador das disciplinas. Compete-lhe dar uma descrição pormenorizada do ensino em cada uma das suas etapas, retratar a evolução da didáctica, procurar as razões da mudança, revelar a coerência interna dos diferentes procedimentos aos quais faz apelo e estabelecer a relação entre o ensino dispensado e as

finalidades que presidem ao seu exercício. (Chervel, 1988, p. 80)

Deste modo ao estudioso destes assuntos cabe-lhe assumir como sua principal tarefa a de deslindar os conteúdos explícitos do ensino (Chervel, 1988, p. 94), e como cada disciplina “é constituída na base de um conjunto de discursos e de práticas que definem a sua identidade” é “a análise dos programas, dos manuais, dos métodos e dos exercícios escolares [que] permite desenvolver, para cada caso, um perfil de evolução e fornece as bases para uma avaliação mais global da história da disciplina” (Belhoste, 2002, §7). Uma das vias que Julia (1995, p. 361) refere como itens interessantes para a investigação histórica das disciplinas escolares é a “análise dos conteúdos ensinados e [das] práticas escolares.” Mais à frente com igual intencionalidade acrescenta: Convém examinar atentamente a evolução das disciplinas escolares tendo em conta os diversos elementos que com importâncias variáveis compõem esta estranha alquimia: os conteúdos de ensino, os exercícios, as práticas de motivação e de estimulação dos alunos que fazem parte dessas “inovações” que não se vêem, as provas de natureza docimológica que asseguram o controlo dos conhecimentos adquiridos. (Júlia, 1995, p. 375)

Estes três investigadores, André Chervel, Bruno Belhoste e Dominique Júlia, convergem assim na elaboração de um programa de investigação necessário ao desenvolvimento do conhecimento nesta área da história das disciplinas.

A reforma de 1947, os programas de Ciências Físico-Químicas e os professores Na investigação a que se faz referência no início deste texto foram analisados alguns aspectos que promovem a caracterização da disciplina, em particular, os programas e os manuais, e ainda as práticas pedagógicas dos professores. Neste último caso realce para a verificação da grande influência sofrida através do uso dos manuais. Dos programas estudou-se o processo que levou ao seu aparecimento, mas também os seus conteúdos e questões polémicas daí decorrentes (fórmulas e equações químicas, expressões matemáticas) e quanto aos manuais, para lá dos conteúdos, analisouse a legislação do livro único e o modo como foi aplicado na prática concreta. Ao estudar o processo de implantação da reforma liceal de 1947 revelam-se-nos sinais inequívocos da presença de uma cultura escolar que coloca a necessidade de uma compreensão mais próxima como urgente. Entre os mais significativos está a discussão que se gerou sobre a introdução dos novos programas na disciplina de Ciências Físico-Químicas onde é possível evidenciar aspectos característicos da autonomia relativa da cultura escolar e dos seus protagonistas. A escola mostra nas circunstâncias do momento a sua capacidade de intervenção e parece dar

provas de que as alegações que a comprometem com atitudes de simples reacção negativa não serão as mais apropriadas e tendem a revelar incompreensão sobre o quotidiano real das escolas. Antes da reforma apareceram alguns sinais da necessidade de mudança e é assim que na primeira metade dos anos 1940, ainda em tempo de guerra, aparecem na revista oficial Liceus de Portugal alguns artigos referindo o ensino liceal das disciplinas de ciências. Especial importância para um autor, Álvaro Machado, professor liceal, que publicou uma série de artigos todos eles altamente críticos da situação vivida. Por exemplo, em 1942 o diagnóstico da situação era traçado nos seguintes termos: “com a actual organização do ensino em Portugal, os alunos passam mal preparados de ciclo para ciclo, de grau para grau, resultando daí a ineficácia da organização da educação nacional, que é preciso remediar” (Machado, 1942, p. 1017). Em artigo anterior o autor comenta um conjunto de assuntos que vão da carga horária aos trabalhos práticos, ou dos conteúdos aos exames, colocando-se na perspectiva de uma reforma necessária e inevitável. Nas suas próprias palavras os temas sobre os quais exerce a crítica são enumerados: Sobre a execução dos programas de Física e de Química nas escolas secundárias, sobre as provas de exame e sobre a eficiência do ensino dessas disciplinas no regime vigente, quanto à preparação para a vida social e para o seguimento de estudos superiores (Machado, 1941, p. 856).

Não foi a única voz, outras se fizeram ouvir ecoando a exigência de reformas e de consequentes alterações nos programas disciplinares. Só bastante mais tarde, numa época difícil em que após a euforia esperançosa do pós-guerra as nuvens escuras da opressão voltavam a obscurecer o horizonte, é que a movimentação legal se concretizou, dando vez à necessidade interna de alguma adaptação aos novos tempos, com a emergência das tendências industrialistas, e à influência crescente do controlo burocrático do sistema sobre o controlo mais directamente ideológico da reforma anterior. Quando a resposta do legislador surgiu, alguns anos depois, foi porque, segundo a indicação oficial: “reconheceu o Governo a urgência de uma reforma do ensino liceal . . . por terem sido numerosos e fundamentados os reparos ao actual regime.”2 No que se refere às alterações ao programa na disciplina de Ciências Físico-Químicas não parece ter havido a preocupação de obter a aquiescência da generalidade, e cedo se instalou a polémica no seio do respectivo grupo pedagógico a propósito dos programas, obra individual dos professores nomeados para os elaborar e que, naturalmente, fizeram verter no articulado dos programas as suas ideias sobre a disciplina e respectiva pedagogia. Como dirá mais tarde uma professora num contexto em que sugeria formas de melhorar os programas, não deixaria de ser “oportuno que, antes de publicados os programas e postos em execução eles fossem discutidos por comissões de professores de cada especialidade” (Magalhães, 1952, p. 425). Os pontos principais que estiveram na origem da discussão foram, no que se refere à Química, a ausência de Trabalhos Práticos no 2º ciclo, o tempo de duração das aulas práticas no 3º

ciclo e o respectivo número de tempos semanais, o uso dos símbolos e fórmulas químicas no ensino elementar da Química, principal tema a tratar neste texto, e o uso de expressões matemáticas (fórmulas) na Física. Os dois primeiros pontos não estão directamente relacionados com os conteúdos programáticos propriamente ditos mas agem sobre eles enquanto condicionantes e decorrem directamente do Estatuto do Ensino Liceal3, publicado juntamente com o decreto da reforma. Teixeira (1951a), professor do liceu de Aveiro, escreve na revista publicada nesse liceu, a Labor que no 3º ciclo “sessões de trabalho de 55 minutos são uma prova contra-relógio. Desaparece a única oportunidade de fazer ensino individualizado. O ambiente é de alarme: não há tempo para justeza; também não há para contrôle e crítica dos resultados” (p. 39). Por outro lado a ausência de aulas práticas no 2º ciclo foi acolhida “com grande surpresa, mágoa e discordância absoluta” por um outro professor que os considera “indispensáveis num aprendizado regular das referidas Ciências”. E acrescenta que “sem o trabalho executado ‘pelas mãos do aluno’ em colaboração com o cérebro” as Ciências Físico-Químicas passam a ser apenas “‘mais uma disciplina’ que é forçoso aprender, dê por onde der, para fazer o exame e libertar-se dela... se puder ser.”4 A questão sobre o uso ou não de fórmulas químicas no ensino elementar de Química relaciona-se, essa sim, directamente com os programas e esteve na origem de um debate público que envolveu, entre outros, Teixeira (1951a, 1951b, 1951c) e Carvalho (1951a, 1951b), dois professores, na altura, com alguma visibilidade no sistema, José Augusto Teixeira enquanto impulsionador e director da nova série da Labor e Rómulo de Carvalho enquanto autor dos programas e do manual de Química em uso oficial no 3º ciclo.

A discussão de Rómulo de Carvalho e José Teixeira na Labor Rómulo de Carvalho propugnava a limitação ao mínimo imprescindível do uso das fórmulas, no que era contestado por José Augusto Teixeira autor, posteriormente, dos manuais de Química do 2º ciclo e de Física do 3º ciclo. Defendia Teixeira que, pretendendo combater, muito justamente, o abuso que se tinha tornado habitual de, por tudo e por nada, recorrer às fórmulas, mesmo em níveis de iniciação, o programa desenvolvia-se com o pecado original de cair no extremo oposto de nunca, ou quase nunca, exigir o uso de fórmulas. Pior ainda, acontecia que por vezes nos exames eram feitas exigências incompatíveis com as do programa a esse nível. A discussão entre estes dois prestigiados professores do ensino liceal durou desde o número 112 (Abril 1951) até ao número 116 (Novembro 1951) da revista Labor. Durante e depois deste processo o debate alargou-se a outros professores que manifestaram as suas opções sobre o tema apoiando um lado ou outro, ou tentando fazer a ponte entre as duas posições. De qualquer modo, o confronto directo a dois terminou abruptamente com recriminações mútuas de pouca elevação no

debate. No primeiro dos textos da polémica Teixeira (1951b) vai direito ao assunto e, depois de citar as observações ao programa onde é dito que o que interessa é que o aluno do 2º ciclo compreenda o significado das fórmulas e não que as saiba de cor, escreve o seguinte: Em face disto, repetimos que se foi longe demais neste caminho. Pois não é verdade que a Química tem uma linguagem própria, que é a simbologia? As fórmulas e equações químicas não complicam o estudo da Química; simplificam-no. É a orientação de todas as ciências: logo que a complexidade dos problemas avulta, constituem-se os resumos, as formas condensadas, as fórmulas. Foi por força da maior vastidão dos conhecimentos da sua época que Berzélius sentiu mais a necessidade da notação química do que Priestley. Ensinar química durante três anos, procurando evitar as fórmulas com a ideia de que os alunos lhe têm horror, torna-se difícil. As fórmulas são um apoio da memória e até do raciocínio. Torna-se operoso explicar certos assuntos sem o bordão formular. E ousamos dizer francamente: não temos dado pelo horror dos alunos às fórmulas químicas, quando delas se faz criterioso e moderado emprego. O que é preciso é refrear os excessos. Esperemos que os actuais programas, com os mínimos excessivos, venham a ter a virtude de conduzir ao reconhecimento dos máximos excessivos. A solução do problema, como em tudo, está na dose. (p. 118)

O autor do programa de Química encontrava dois motivos para replicar: sobre o conteúdo do novo programa do 4º ano que o seu opositor achava impossível de concretizar no “espírito preconizado” e sobre a questão das fórmulas e equações químicas. Foi só sobre este último que decidiu pronunciar-se. No entanto começou por colocar uma questão prévia: Todas as considerações prévias me parecem inúteis por não assentarem na resposta à indispensável pergunta: qual é a finalidade do ensino liceal no 2º ciclo? Só depois de construída a resposta poderemos apreciar se tais ou tais assuntos e processos serão aconselháveis. Em meu entender . . . a discussão começará nestes termos: qual a finalidade do ensino no 2º ciclo liceal?, seguida de : como atingir essa finalidade?. Então, e só então, se discutirá se um dos instrumentos indispensáveis à consecução do desiderato, que já estará definido, será o ensino das fórmulas e das equações químicas. (Carvalho, 1951a, p. 199)

Segue-se um esboço de definição dos objectivos do ensino liceal básico. Aquilo que os professores devem fazer no 2º ciclo é pegar “nesses rapazinhos inexperientes e ignorantes . . . fazer deles cidadão conscientes das realidades que os rodeiam” através de metas parciais como ensinarlhes “a conhecer e a apreciar os fenómenos físicos e químicos que a Natureza ou a experiência põem facilmente ao nosso alcance, dando-lhes conta do esforço do Homem para tirar deles o máximo proveito, e outros assim sucessivamente” (p. 199). Depois de fazer apelo às práticas mais recentes a nível internacional vem a resposta ao seu interlocutor:

Como explicar este desprezo pelas fórmulas? Como justificar esta blasfémia didáctica? Sem querer, o Dr. José Teixeira dá-nos uma das principais razões quando escreve: “...logo que a complexidade dos problemas avulta, constituem-se os resumos, as formas condensadas, as fórmulas”. Assim é. As fórmulas resumem, condensam, sintetizam; os principiantes da Química, desfazem, separam, analisam. Não se inicia sintetizando. Além disso as fórmulas são simbólicas; articule-se bem: “simbólicas”. Não nos distanciemos do conteúdo filosófico do termo. Uma coisa é o símbolo; outra coisa é o que o símbolo representa. “Manipular os símbolos na Química – diz o professor Philbrick . . . não significa dominar as coisas que os símbolos representam. Este pensamento do inglês traduzido em português significa que: saber quantos litros de anidrido carbónico à temperatura de 20ºC e à pressão de 782 mm se obtém a partir da glicose resultante da transformação de 540 g de celulose com 5% de impurezas, não é saber Química. (p. 203)

Este conjunto de argumentos não impressionou o director da Labor que retorquiu contestando desde logo a postura do opositor: O tom do artigo do professor Dr. Rómulo de Carvalho é essencialmente de dissertação. Tem esta como oportuna certamente por força do conceito (ou preconceito) que elaborou acerca das posições assumidas em pedagogia da química elementar pelos diferentes professores liceais portugueses, posições que resolveu extremar da seguinte forma: adeptos “duma certa corrente de ideias e processos” na qual me inclui; e adeptos (em pequeno número estes) “duma corrente oposta” cujo pendão arvora com entusiasmo. (Teixeira, 1951c, p. 273)

Passando ao centro da questão as próximas palavras manifestam o desacordo quanto à necessidade de esclarecer a finalidade do ensino liceal: Não era nem é no quê, mas no como, que eu situava e situo o pomo da discordância. Não tinha, pois, qualquer interesse o assunto, tanto mais que a definição dos objectivos concernentes não é coisa assaz simples. Não seríamos nós arrastados para a definição do conceito mais fundamental ainda – o de Educação – a respeito do qual, nós, educadores encartados, correríamos grave risco de não saber precisamente o que dizer? (p.274)

Realçando que apesar de levantar a questão dos objectivos do ensino liceal básico o seu opositor não a resolve, Teixeira contrapõe argumentos que desvalorizam as teses do adversário e que, de algum modo, remetem para a identificação entre as disciplinas e as ciências de referência: Nem por ser elementar o alcance dos programas do 2º ciclo, deixará de ser química o estudo dos elementos e compostos; deixará de ser matemática o estudo dos logaritmos e da semelhança dos

triângulos; ou deixará de ser português tudo aquilo que visa, conforme se estabelece nos actuais programas: “1º Levar o aluno a conhecer e exercitar mais profundamente a arte de falar e escreverem língua portuguesa; 2º Desenvolver as suas faculdades de crítica e de criação no domínio da estética literária; 3º Criar nele a admiração pelo valor e beleza dos nossos escritores.” (p. 275)

Continuando com o objectivo anterior tenta o autor desmontar as “provas” da bondade das ideias de Rómulo de Carvalho, nomeadamente um ponto de exame apresentado nas escolas inglesas, concluindo por não entender “por que caprichoso motivo considera o Dr. Rómulo semelhante ponto de exame ‘um exemplo favorável à tese’ do seu artigo” (p. 278). Ainda com o mesmo objectivo José Teixeira socorre-se, também, do exemplo estrangeiro dissertando sobre três livros de texto escrito em inglês onde encontra elementos para reforçar a sua posição: “Eu chamei às fórmulas a ‘gramática da Química’; o que aí fica é um pouco mais: os símbolos, fórmulas e equações são a linguagem da química” (p. 280). Por fim coroa o seu artigo com a análise do livro proposto por Rómulo de Carvalho, de parceria com Riley da Motta para o 2º ciclo liceal que encontra pleno de símbolos e fórmulas químicas levando-o a exclamar em tom desafiante que o seu oponente sendo o autor de um programa que prescreve o ostracismo da simbologia química ao fazer a “interpretação efectiva e concreta desse plano, através de um livro que segue a orientação habitual, coloca-se surpreendentemente e chocantemente em conflito consigo próprio” (p. 282). No número seguinte da Labor, Rómulo de Carvalho encerra, pelo seu lado, a polémica, num texto impregnado de amargura em que faz diversas observações sobre o mal-estar causado pelas observações que considera teatralizadas e de forte “censura pessoal” de José Teixeira. Faz no entanto o ponto da situação no que se refere ao aspecto central da troca de opiniões: Resumo o assunto em questão : no ensino da Química do 2º ciclo, conforme se ministrava até à publicação dos programas actuais, insistia-se exageradamente no emprego das fórmulas e das equações químicas; segundo as Instruções dos actuais programas . . . “não se deseja que os alunos (desse ciclo) as saibam de cor,” sem que isso impeça apresentação das fórmulas sempre que o professor entenda ser isso conveniente. . . . Depois, no 3º ciclo, deverá “insistir-se sobre as equações químicas” Esta inocente restrição dos actuais programas, que apenas denota a preocupação de evitar condenáveis exageros, tem tomado, apaixonadamente, tais proporções que, a propósito dela, se fala no terrível preconceito de demolir o que estava estabelecido. (Carvalho, 1951b, p. 55)

Ao esclarecimento de R. Carvalho seguiu-se o comentário do esclarecimento por J. Teixeira que, depois de argumentação vária em torno da polémica, remata com um tema lateral em busca do consenso: “Química sem experimentação não é moderna nem arcaica; não é química. E actividade do professor onde possa haver actividade do aluno não é pedagogia nova nem renovadora: é inválida” (Teixeira, 1951d, p.250). Esta referência faz sobressair outro tema muito presente na

discussão pedagógica e que, pelo menos uma vez, já fora abordado explicitamente no artigo anterior deste autor quando escrevia que “o actual plano de estudos, reduzindo ou quase anulando aos alunos do curso geral dos liceus, as oportunidades de experimentarem por si, afastou-nos mais da escola activa” (Teixeira, 1951c, p. 283), em consonância com preocupações manifestadas anteriormente (Teixeira, 1951a). Verificamos que na controvérsia de 1951 sobre os programas de Química do 2º ciclo dos liceus se encontram campos bem demarcados. No confronto das duas posições não há grande discussão sobre os conteúdos programáticos em si. O que se discute é a forma de abordagem. Como dizia Teixeira (1951b), “na disposição, na orientação, é que o programa actual, se não é radicalmente oposto, é, pelo menos, diferente” (p. 116). Esta constatação era reconhecida nas próprias “observações” que acompanham o programa publicado afirmando-se aí que “em muitos pontos e, em particular, no 2º ciclo envereda o programa por caminhos novos, mais novos, aliás, na disposição do que no assunto. Em geral . . . pouco se alterou no assunto.”5 Finalmente em 1954, meia dúzia de anos depois do início da reforma os programas foram sujeitos a uma remodelação que vai no sentido de atender às razões daqueles que são os defensores do uso mais sistemático da simbologia química na prática de ensino, no entanto, como seria previsível não atenderam a todas as expectativas: “embora algumas alterações tenham sido introduzidas, durante o ano lectivo anterior nos programas desta disciplina, essas alterações foram tão ligeiras, que praticamente subsistem os problemas resultantes da extensão demasiada.”6

Os programas de Química nos relatórios dos professores Em simultâneo com o decreto da reforma, foi publicado o Estatuto do Ensino Liceal (EEL),7 documento enorme e minucioso nos seus 573 artigos que tinha por objectivo a regulamentação da vida escolar até ao mais ínfimo pormenor. Voltou a ser obrigação dos professores auxiliares e agregados a “elaboração e remessa” de “um relatório circunstanciado do serviço . . . prestado no ano escolar findo” “sob pena de não poder ser classificado de bom” esse serviço.8 O termo “circunstanciado” remete para o cumprimento dos deveres9 e estes para a necessidade de “a classificação de serviço” ser “sempre fundamentada” na “competência profissional e acção do professor.”10 Os relatórios eram enviados para a Inspecção do Ensino Liceal (IEL), organismo criado pela reforma, e que tinha como função principal obter para o Ministério da Educação os elementos necessários ao controlo político e burocrático dos professores. O Ministério podia, assim, “conhecer e fiscalizar o serviço docente e graduar e classificar os professores segundo os seus verdadeiros méritos”. Desde que devidamente organizada, a IEL seria “um órgão imprescindível de natureza disciplinar” assim como “um precioso auxiliar do Ministro no que respeita a trabalhos e

observações de natureza pedagógica, à organização de estatísticas, à elaboração de pontos de exame, etc.”11 Relativamente aos participantes na polémica da Labor não há muitos relatórios disponíveis, apenas três, todos de Rómulo de Carvalho. De José Teixeira não existe nenhum impedindo assim um conhecimento mais próximo do modo como teria exposto as suas reivindicações nesse meio privilegiado de comunicação “íntima” com as autoridades. Realce-se que os professores efectivos tinham o “direito” de apresentar relatórios, mas não o “dever” de o fazer, ao contrário dos professores auxiliares e agregados para quem esse “direito” era também um “dever”. Rómulo de Carvalho não era ainda professor efectivo dos liceus quando, por incumbência governamental, elaborou os programas liceais de Química. Devido a essa circunstância teve a “obrigação” de anualmente apresentar o seu relatório. O último conhecido data de Agosto de 1949, e refere-se ao ano lectivo de 1948/49 quando os programas começaram a ser aplicados nas escolas. No essencial, para lá de outras referência como a da não existência de manuais adaptados aos novos programas, antecipa a apresentação das posições que viriam a ser conhecidas publicamente através da discussão, de que fizemos eco, com José Teixeira. Ao dar conta da sua actividade os professores, de uma maneira geral, respeitam o esquema rígido de obrigações que lhe são impostas. Nos relatórios, aparecem então como itens principais a data da nomeação e da entrada em serviço, o serviço lectivo atribuído e a respectiva distribuição horária assim como o serviço em exames e outros. Uma descrição dos métodos e material didáctico utilizados e dos processos de avaliação é conveniente Há ainda informações sobre a assiduidade e pontualidade pessoais incluindo o número de faltas dadas e respectiva justificação, sobre o tipo de relações estabelecidas com os alunos e a prática disciplinar, a estatística do rendimento do ensino (inscritos, desistentes e transferidos, aprovados e reprovados, no ano lectivo e em exames), os cargos exercidos e as actividades circum-escolares em que participa o professor. No entanto, e tendo como base alguns itens mais genéricos do articulado do EEL, alguns professores arriscam considerações várias sobre alguns aspectos da sua vida profissional nos liceus não estritamente enumerados como obrigação. Nos relatórios de serviço alguns professores deixam perceber o modo como entendiam o programa e a sua concretização. Embora por vezes crítico, o tom dos relatórios guarda uma certa contenção, dado a função dos relatórios na avaliação profissional dos professores, devendo primeiro receber o aval do reitor e, depois, serem apreciados pela Inspecção. Mesmo assim alguns professores arriscam a ponto de “confessarem” ter infringido as normas. “Em vários casos alterei a ordem das rubricas do programa; se o fiz foi porque em minha consciência me pareceu que assim conseguiria uma ordem mais racional que permitiria uma melhor sistematização,”12 informa uma professora no seu relatório com plena consciência de ter contrariado uma norma taxativa do Estatuto13. “No estudo da Química [no 5º ano] fiz notar aos alunos as vantagens que lhes adviriam

de fixar certas fórmulas fundamentais, o que muitos fizeram e lhes facilitou bastante o estudo,”14 escreve um outro professor em oposição às recomendações15 explícitas dos programas em vigor. Imersas no debate aparecem algumas referências que indiciam posturas ideológicas tendencialmente democráticas, nomeadamente a defesa do “ensino para todos” como, por exemplo, a do professor que escrevendo na Labor recorre ao “que se faz lá fora” para lembrar que "é matéria assente nos países modernos fornecer, gratuitamente e para todos, um ensino geral que dê a qualquer cidadão normal uma cultura em concordância com o respectivo nível de vida" (Brito, 1947, p. 38). Também nos relatórios se encontram opiniões que vão neste sentido da necessidade de uma certa democratização. Aliás, a própria legislação apela ao aproveitamento dos melhores mesmo que com algumas dificuldades económicas, defendendo que se devem conceder “isenções de propinas aos que demonstrem regular aproveitamento e careçam de recursos.” 16 Neste tempo as turmas eram organizadas por critérios que valorizavam a homogeneidade ao nível das classificações obtidas previamente, ou seja, havia as turmas dos “bons” e as dos “maus”, que se vinha sobrepor àquela que se obtinha através de outra instância bem mais decisiva, uma espécie de “pecado original”, a selecção social no acesso ao ensino. Assim a generalidade das posições democráticas que transparecem pelo debate fora vão no sentido da defesa de uma certa meritocracia e não é de estranhar que um professor possa afirmar que “tornar o 2º ciclo, pela dificuldade de aprendizagem, acessível só a alguns, seria desvirtuar a finalidade dum curso geral, que poderemos até considerar como uma instrução primária superior. Esse deve ser acessível a todos.”17 Há, de facto, uma diversidade grande de tópicos a que os professores se referem, mas aqueles em que são mais críticos, são os mesmos que aparecem realçados na polémica publicada, na qual os opinantes tiveram possibilidades de se contraditar, a questão das fórmulas químicas e, em menor grau, a das expressões matemáticas na Física. Veja-se então quais são os principais tópicos deste debate, por interposta instância, que aflora nos relatórios de serviço dos professores. Os professores que se referem aos programas fazem-no de vários modos. Há os que referem a extensão dos programas: Na disciplina de Ciências Físico-Químicas do 6.º ano deparou-se-me um programa novo e o respectivo ensino foi uma experiência, e uma árdua experiência. . . . O programa não era só grande... não era só vasto... era mais do que isso, era “enorme” parecia elaborado de tal maneira que se deveria contar com as 4 horas semanais para a disciplina “Física” e outras 4 horas por semana para a disciplina “Química”, constituindo portanto estas duas partes duma só disciplina, duas disciplinas diferentes, independentes e ambas anuais.18 É minha opinião que o programa de Ciências Físico-Químicas do 3º ano poderá ser dado por quem se preocupe exclusivamente com dar o programa, mas não pode ser ensinado, com um verdadeiro e

fecundo ensino experimental, nas escassas 3 horas semanais a ele atribuídas.19

Outros professores falam acerca da existência de aulas de trabalhos práticos, do tempo que lhes é atribuído ou do conteúdo programático que lhes corresponde: Já é para qualquer professor do 7º grupo, indefensável a existência dum programa do 2º ciclo sem trabalhos práticos, isto é, sem contacto directo do aluno com o material (com a observação e experimentação individuais, embora dirigidas pelo professor). Muito mais indefensável é que, no 6º e 7º anos, para trabalhos cujo título implica investigação séria, se atribua um tempo de 55 minutos para cada sessão. A “boa-vontade” e o critério do professor vão, com sacrifício próprio e dos alunos, remediando o mal, mas o remédio não elimina a deficiência.20 Outra coisa a que quero fazer referência é a discordância que existe entre o programa de trabalhos práticos e a teoria. Porquê dar-se o calorímetro (na prática) quando as alunas ainda não podem perceber exactamente o que se dá? E outros exemplos poderia apresentar nessas condições. Será difícil, mas não impossível, alterar a ordem dos trabalhos práticos, coordenando-os e acertando-os.21

Alguns professores não se abstêm de fazer comentários sobre os aspectos concretos do programa a leccionar, tanto em Física como em Química, quer no segundo quer no terceiro ciclo: No respeitante às ciências físico-químicas do 2º ciclo, continuamos a verificar, apesar de todos os esforços empregados pelo Professor, pouco aproveitamento que atribuímos à falta de conhecimentos de fórmulas, para traduzir por equações químicas os fenómenos observados, o que muito lhes facilitava compreender a formação dos produtos das reacções e sistematizava os conhecimentos. Acresce ainda que os alunos ao entrarem nos cursos complementares não têm a preparação suficiente. . . . É uma transição brusca que conduz a uma sobrecarga, que nem todos os alunos podem suportar. . . .Para os alunos que . . . não seguem cursos em que entre a disciplina de ciências físicoquímicas, achamos bem a orientação dos programas do curso geral; mas para os que continuam, a preparação que adquirem é insuficiente.22 Foi no ensino da Química do 4º ano que este ano encontrei maiores dificuldades. A maior parte dos assuntos não me parece de grande interesse, no entanto procurei com o máximo empenho o seu lado formativo, sem descurar os elementos informativos que julguei importantes. Não desci a pormenores nos fabricos dos produtos a que o programa se refere porque não me parece que interesse encher a cabeça dos alunos com tais pormenores, sobretudo não podendo na maior parte dos casos observá-los nem interpretá-los quimicamente.23 Verifiquei que poucos são os alunos que conseguem apreender bem o sentido dessa definição [densidade] e muito menos são ainda aqueles que conseguem compreender a relação entre a massa

específica e a densidade em relação à água. Também logo no princípio do programa do 3º ano se fala na diferença entre calor e temperatura. . . . Não consegui ainda em nenhum ano do meu exercício, que os alunos do 3º ano o entendessem bem. . . . Será realmente assunto para se tratar no 3º ano do liceu? Eu não sei, mas sei que, apesar de parecer que sim, os alunos chegam a este ponto e decoram as palavras que vêm no livro e nada mais.24

Muitas críticas ao longo dos anos incidem sobre a discrepância entre os programas do 2º ciclo considerados muito ligeiros para quem vai prosseguir no 3º ciclo e, eventualmente, seguir para a Universidade; os objectivos de cada ciclo são, aparentemente, esquecidos, e os alunos que não vão prosseguir, também: De modo que, volto a afirmar o que já havia concluído no ano anterior, a passagem do 2º ciclo para o 3º é, no que diz respeito ao programa de Físico-Químicas, quase aquele “salto no desconhecido” de que falam os filósofos. . . . No meu modo de pensar, acho que estamos a tornar o estudo no 2º ciclo muito leve e o 3º ciclo aparece-lhes com dificuldades que a maior parte é incapaz de vencer. Urge uma reforma e as Ciências Físico-Químicas têm de ser encaradas no 2º ciclo, com um carácter mais sério e profundo.25

Também aspectos mais genéricos sobre o ensino são contemplados nas reflexões que os professores expõem nos relatórios. Repare-se num relatório em que é informada a importância das ciências no seio da cultura moderna, e, por isso, na opinião do autor, até os que seguem Letras deveriam aprendê-las, é que, “ter uma ideia sobre a estrutura da matéria e constituição do átomo faz parte de uma cultura geral e são conhecimentos necessários mesmo aos alunos que seguem cursos de Letras, especialmente nas licenciaturas em Filosóficas.”26 Outros professores limitam-se a referir, e já não é pouco, o seu descontentamento pela extrema rigidez das normas que não lhes permitem atingir os objectivos que traçaram para a sua prática de ensino: Propus em Conselho que fosse autorizada a iniciar as aulas do 7º ano pelo estudo da química. . . . A minha proposta não foi aceite por ser obrigatório iniciar os trabalhos escolares pela ordem dos programas. . . . Parece-me, a meu ver, que haveria mais vantagem em dar ao professor a faculdade de iniciar os seus trabalhos de acordo com o que fosse mais conveniente ao bom aproveitamento dos alunos.27

Constata-se que os professores avançam comentários e críticas, por vezes muito contundentes, sobre diversos aspectos relacionados com os programas das disciplinas que leccionam. No entanto, aqui e acolá, como perpassa em algumas das citações apresentadas, algo mais parece estar em causa, e alguns professores fazem comentários, sugestões e críticas que, fora

do âmbito escolar em que os relatórios se inserem, dificilmente seriam aceites.

Conclusão Se a história não pode ser entendida apenas como um repositório de histórias particulares – e só na complexidade das relações que se estabelecem entre os vários segmentos é possível dar-lhe coerência – nada impede que se conheçam, antes pelo contrário, as diversas histórias “locais” e fruir a sensação de incompletude que transmite o seu isolamento. O “objectivo essencial dos que estudam o passado – mesmo que ele nunca seja completamente realizável: [é] a ‘história total’, não a ‘história de tudo’, mas a história como teia indivisível em que todas as actividades humanas se encontram interligadas” (Hobsbawn, 2004, p. 2). Para se fazerem pontes é indispensável que existam margens e é também isso que reforça a importância do conhecimento da história das disciplinas cuja actualidade manifesta-se em alguns sinais que se vão registando.28 Relativamente aos tempos iniciais da reforma liceal de 1947 em que nos situámos e ao tema alvo da nossa reflexão parece ficar bem patente pela transcrição de algumas intervenções escritas de professores a riqueza da escola enquanto local de debate onde se fazem, modelam e criam as concepções que cristalizam enquanto disciplinas. A autonomia aqui presente também se manifestava nesse período pela produção dos manuais escolares sob a legislação do livro único. Os professores, isto é, a escola estavam em todo o processo, pois que era deles a grande responsabilidade tanto na forma como no conteúdo e mesmo na certificação. Como se viu o programa de Química foi elaborado por um professor que na altura nem sequer era professor efectivo, e na sequência desse programa e das indicações que fornecia eram professores que elaboravam todo o manual desde a sua parte escrita à ilustrada e inclusivamente a concepção de montagem era por alguns claramente reivindicada e no seguimento do processo eram ainda professores do ensino liceal quem tinha a incumbência de avaliar esses manuais sendo eles voz decisiva a partir das suas conclusões para a respectiva aprovação, ou não. O Estado enquanto representante da sociedade oficial delegava na escola competências que reforçam a consciência das capacidades que a escola demonstra ter na construção das disciplinas, e a escola não se fazia rogada assumindo os professores o papel principal e activo no processo correspondendo de alguma forma a um grau de consciência mais ou menos difuso no professorado do seu poder e capacidade de encaminhar, inflectir e mesmo alterar a direcção que a forma e o conteúdo da disciplina adquirem no contexto liceal. É verdade que a reforma é algo que não nasce do nada e que vem na sequência, como se reconhece o preâmbulo do decreto que a instituiu, de uma necessidade sentida e denunciada pela escola. Continua ainda a ser verdade que a remodelação programática (em CFQ) em 1954 a vai ao encontro das reclamações que eram feitas por parte assinalável do professorado.

Nesse processo acabou por sair vencedor do debate Rómulo / Teixeira o director da Labor que viu consagrada grande parte do conjunto das suas ideias embora enquadradas na moldura programática criada pelo professor poeta. José Teixeira atingiu o cume neste processo quando a partir da altura em que se deu a modificação passou a ser o autor privilegiado dos manuais de Química do 2º ciclo mas também dos de Física do 3º ciclo, sendo de assinalar que anteriormente nem sequer participara nos concursos que ditavam a escolha do livro único. As suas teses são consideradas nas alterações de 1954 de tal modo que veio, como se verifica, a ser uma personagem da qual se poderia dizer, sem qualquer segundo sentido, que era um dos “autores do regime.”

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Beato, C. A. d. S. (2003). A disciplina de Ciências Físico-Químicas na reforma liceal de 1947. Dissertação de mestrado, Universidade de Lisboa, Lisboa. 2 Preâmbulo, DL (Decreto Lei) 36507 de 17/9/47, DG (Diário do Governo) 216, I série. 3 DL 36508 de 17/9/47, DG 216, I série. 4 RP (Relatórios de professores), Fundo DGEL (Direcção Geral do Ensino Liceal), AHME (Arquivo Histórico do Ministério da Educação), nº 102 (1947/48), caixa nº 3/2. 5 Observações ao programa de Química do 2º ciclo, DL 37112 de 22/10/48, DG 247, I série, p. 1161. 6 RP, Fundo DGEL, AHME, nº 1567 (1955/56), caixa nº 3/29. 7 DL 36508 de 17/9/47, DG 216, I série. 8 Artº 184º, nº 1 e nº 2, DL 36508 de 17/9/47, DG 216, I série. 9 Artº 170º, nº 1, DL 36508 de 17/9/47, DG 216, I série. 10 Artº 183º, nº 1, DL 36508 de 17/9/47, DG 216, I série. 11 Preâmbulo, ponto 12, DL 36507 de 17/9/47, DG 216, I série. 12 RP, Fundo DGEL, AHME, nº 616 (1950/51), caixa nº 3/12. 13 Artº 170º, nº 1, alínea l, DL 36508 de 17/9/47, DG 216, I série. É dever do professor dos liceus “não reduzir o âmbito do ensino estabelecido nos programas nem alterar a ordem por que as matérias neles se encontram distribuídas.” 14 RP, Fundo DGEL, AHME, nº 768 (1951/52), caixa nº 3/14. 15 Observações ao programa de Química do 2º ciclo, DL 37112 de 22/10/48, DG 247, I série, p. 1162. 16 Artº 312, ponto 1, DL 36508 de 17/9/47, DG 216, I série. 17 RP, Fundo DGEL, AHME, nº 292 (1948/49), caixa nº 3/5. 18 RP, Fundo DGEL, AHME, nº 298 (1948/49), caixa nº 3/5. 19 RP, Fundo DGEL, AHME, nº 618 (1950/51), caixa nº 3/12. 20 RP, Fundo DGEL, AHME, nº 517 (1949/50), caixa nº 3/9. 21 RP, Fundo DGEL, AHME, nº 1698 (1956/57), caixa nº 3/32. 22 RP, Fundo DGEL, AHME, nº 611 (1950/51), caixa nº 3/12. 23 RP, Fundo DGEL, AHME, nº 613 (1950/51), caixa nº 3/12. 24 RP, Fundo DGEL, AHME, nº 621 (1950/51), caixa nº 3/12. 25 RP, Fundo DGEL, AHME, nº 1884 (1957/58), caixa nº 3/36. 26 RP, Fundo DGEL, AHME, nº 1709 (1956/57), caixa nº 3/32. 27 RP, Fundo DGEL, AHME, nº 626 (1950/51), caixa nº 3/12. 28 No III Encontro de História da Educação (Porto, 2005) subordinado à temática de “A história da educação em Portugal: balanço e perspectivas”, a “mesa 3” tem a designação “História do currículo e das disciplinas escolares.”

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