“Para Acordar a Casa-Grande”: A Literatura Insubmissa de Conceição Evaristo em Becos da Memória

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Ana Cláudia dos Santos São Bernardo
Prof. Sophia Beal
PORT 5930
Final paper
Dec. 22, 2015
"Para Acordar a Casa-Grande": A Literatura Insubmissa de Conceição Evaristo em Becos da Memória
Introdução
A escritora afro-brasileira Conceição Evaristo, afirmou em entrevista de 2015 que a escrita negra feminina é um ato de insubmissão que vai na contramão da literatura tradicional: enquanto esta serve para "adormecer os da casa-grande" a literatura feminina negra quer acordá-los. Nesse breve ensaio, proponho-me a analisar o romance Becos da Memória (2006) de Conceição Evaristo de forma a mostrar como o caráter de insubmissão se faz visível, e o que essa obra nos oferece de tão perturbador à ordem tradicional das coisas, ou seja, o que incomodaria o sono da sociedade branca, herdeira do colonialismo e maior beneficiada do sistema patriarcal no Brasil. Trata-se de uma luta por justiça social empreendida por meio da literatura e que, com frequência, ainda é negligenciada pela crítica literária e mercado editorial.
Em certa medida, esse projeto entra em diálogo com o artigo "Mulheres Marcadas: Literatura, Gênero, Etinicidade" (2010) do Prof. Eduardo de Assis Duarte, um dos maiores especialistas em literatura afro-brasileira da atualidade. Nesse trabalho, o Prof. Duarte faz uma revisão da mulher afrodescendente na literatura brasileira mostrando como é a representação dessas mulheres em literaturas de grupos racializados e não-racializados, e de como ganha um caráter totalmente subversivo da representação tradicional quando a autoria é feminina e negra, como no caso de Conceição Evaristo. Ele fala da "desconstrução de um estereótipo," em que a mulher afro-brasileira aparece incessantemente hiper-sexualizada e desligada de aspectos femininos que a humanizam, como, por exemplo, a maternidade. Neste ensaio, fixo minha análise em apenas um romance indo além da representação da mulher negra para entender de forma mais ampla quais são os meios utilizados por Evaristo para dar concretude ao caráter de "insubmissão" que ela reclama. Busco evidenciar os possíveis impactos dessa obra para o cânone brasileiro de forma geral e como ela contribui para o projeto de sociedade que as comunidades afro-brasileiras têm em mente, cujas armas de formação são o combate ao racismo em suas mais variadas manifestações.
É importante, porém, que comecemos abarcando duas funções sociais da literatura e que são opostas. Em 1981, O acadêmico e autor Ngugi wa Thiong'o, em seu artigo intitulado "Literature in Schools" afirmou que a literatura serve basicamente a dois propósitos: "in literature there have been two opposing aesthetics: the aesthetics of oppression and exploitation and of acquiescence with imperialism; and that of human struggle for total liberation." (citado por Harlow 1987, pp. 181). A literatura afro-brasileira moderna é notavelmente parte importante e ativa do segundo grupo. No entanto, de acordo com a pesquisadora Regina Dalcastagnè (2014), a literatura é um território em disputa entre essas duas vertentes em que a literatura negra e sua perspectiva única precisa existir.
Ricardo Riso, no artigo "A Escrita Insubmissa das Mulheres Negras" (2015), foi outro crítico literário que utilizou as metáforas de insubmissão e de "acordar" a casa grande para rever a literatura de autoras afro-brasileiras. Porém, sua revisão abarca um apanhado de autoras. Sua conclusão é bastante parecida com a de Regina Dalcastagnè em que as autoras negras são vistas como agentes enriquecedores do cânone brasileiro por sua capacidade de proporcionar a este um ponto de vista distinto do que vem sendo disseminado. A conclusão a que chega, é a seguinte:
Essa é a literatura produzida por mulheres negras que mostra a complexidade das experiências dessas mulheres, rompendo com o isolamento, o silenciamento da literatura feminina canônica. É essa literatura desenvolvida por mulheres negras que obriga, exige a revisão de conceitos que estão para além da literatura, que revela uma subjetividade ainda excluída dos principais meios de comunicação, mas que procura circular com a força das redes de mulheres negras, atingindo um público leitor cada vez mais amplo e sedento pela diversidade da literatura a partir de outros agentes, e que a autoria feminina negra revela outras perspectivas, também enriquecedoras, de ser e fazer literatura.
Meu ponto de vista, contudo, é a de que a prática literária das autoras afro-brasileiras precisa ser problematizada em diversas esferas. A presença da obra dessas escritoras numa possível revisão do cânone não pode estar limitada a uma outra perspectiva a que autores fora desse grupo não têm acesso. Trata-se, principalmente, de justiça social em que práticas culturais são democratizadas como resultado de muita luta. A complexidade dessa presença passa pela revisão do cânone, da historiografia brasileira e necessita de uma análise mais requintada das intersecções de raça, classe e gênero que são únicas no Brasil. Num ensaio tão curto e que analisa apenas uma obra, não posso ter a pretensão de alcançar objetivos tão complexos, mas espero contribuir de alguma forma para aumentar o conhecimento sobre a literatura de autoras afro-brasileiras.

Resistindo a História para recriar a historiografia
O processo de embranquecimento pelo qual passou a sociedade brasileira a partir do fim da escravidão corrobora para o entendimento da literatura negra como literatura de resistência. Com o fim da escravidão em 1888, os escravos foram vistos como o maior impedimento para o progresso do Brasil por políticos, escritores e pensadores (Caldwell 2007, Brookshaw 1986). Embranquecer o país foi entendido como uma solução plausível para acabar com a negritude. Dentre as políticas adotadas, duas chamam atenção pela magnitude e o pelo impacto que tiveram na formação do Brasil: a importação de mão-de-obra europeia branca e a proibição de manifestações da cultura negra por meio de leis oficiais. É o segundo grupo de políticas públicas que nos interessam mais, pois reconhecem o poder da cultura para a composição de uma nação. Proibir rituais como o Candomblé e práticas como a capoeira atestam poderosamente para o alcance do racismo no Brasil ao mesmo tempo em que revelam as bases de uma sociedade que continuamente tentou se embranquecer. Os efeitos dessas políticas ainda podem ser vistos hoje e não se pode negar que influenciam a maneira como os brasileiros veem e o que valorizam dentro do cânone cultural de forma mais geral, e na literatura especificamente.
O embranquecimento atesta concretamente a intensão dos herdeiros do colonialismo português de apagar a herança africana no Brasil, incluindo seus descendentes. Como afirmou o pensador e ativista Abdias do Nascimento em 1978 em O Genocídio do Negro Brasileiro, houve durante décadas a tentativa de retirar a marca negra do Brasil e de torná-lo branco, ou seja, uma prática genocida que aniquilaria um grupo inteiro e sua contribuição sociocultural para a formação nacional. O embranquecimento é prova de que o afrodescendente no Brasil é aquele que não deve ser visto, seja na literatura ou na sociedade.
Desse ponto de partida podemos entender como Conceição Evaristo constrói "insubmissão" em Becos da Memória. Ela quebra com normas sociais relacionadas às estruturas de poder que agem sobre raça no Brasil de forma a ir contra e responder a políticas que nascem com o embranquecimento. De forma muito simples, as técnicas de insubmissão, ou de luta por justiça social, de Evaristo podem ser resumidas da seguinte maneira: (1) mostrar o que não deve ser visto reconstruindo o imaginário relacionado ao negro (como ela mesma afirma em entrevista) por meio da visão não fetichizada do olhar negro sobre o negro; (2) dar voz àqueles que não deveriam falar mostrando tanto agência quanto intelectualidade, o que reumaniza o grupo racializado; (3) usar experiências coletivas e individuais (ficcionalizadas ou não) que respondam às formas de opressão da sociedade nos âmbitos culturais e socioeconômicos; (4) ter o cuidado de utilizar uma linguagem apropriada ao que se propõe; (5) procurar meios para que essa reconstrução seja disseminada, ou seja, a publicação.
É muito importante fazer uma pausa para ressaltar que faço aqui um apanhado dos métodos mais visíveis na obra de Conceição Evaristo. Trata-se, sim, de uma essencialização, para que comecemos a entender melhor como a literatura brasileira é modificada para se transformar em arma de luta por justiça social e racial. Essas técnicas se modificam de acordo com a autoria, espaço e tempo, mas consistem basicamente na alteração da representação do negro por meio das mais variadas técnicas. Ressalto, portanto, que há temas e aspectos que legitimam a excelência literária da obra de Evaristo e que são já estudados por alguns acadêmicos.

O Renascimento Negro
A negra e o negro na literatura brasileira
Como já foi apontado por autores como David Brookshaw in Race and Color in Brazilian Literature (1986), existe uma gama grande de personagens negros na literatura brasileira. Brookshaw divide essas obras pela raça do autor, a primeira parte do livro trata de escritores identificados como brancos e que escreveram obras em que personagens negros são personagens sem profundidade psicológica que seja digna de nota. É o caso, por exemplo, de autores como Gregório de Mattos Guerra e José de Alencar. Ou seja, personagens negras fazem parte da literatura brasileira desde longa data, mas não são representadas com a complexidade que seu papel na sociedade lhes devia garantir.
O segundo grupo é o de autores negros onde as personagens da mesma raça são apresentadas com profundidade psicológica ou crítica ou, pelo menos, como vítimas de uma sociedade que promoveu políticas de embranquecimento. David Brookshaw, no entanto, apesar de situar esses autores no contexto brasileiro abarcando os enredamentos raciais da sociedade brasileira, falha ao não abranger autoras afro-brasileiras. A inclusão desse grupo é importante por diversos fatores. Entre eles estão a relevância e impacto das mulheres negras para o contexto brasileiro e o completo entendimento de raça no Brasil.
O embranquecimento foi notadamente mais perverso com as mulheres negras, forçadas a carregar em seus ventres a raça mestiça, parte principal do projeto para embranquecer a nação. Como a mulher branca é geralmente vista como propriedade do homem branco, era a mulher negra a utilizada para as relações inter-raciais. Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala é o exemplo mais clássico da maneira como as mulheres negras eram vistas: dependendo do tom da pele, eram usadas para cuidar da casa ou como ama-de-leite, ou para relações sexuais. Apesar da longa distância temporal que se interpõe entre os escritos de Gilberto Freyre e a contemporaneidade, os efeitos do embranquecimento na sociedade brasileira ainda são notáveis. Há dados suficientes para mostrar que as injustiças sociais recaem com maior intensidade sobre esse grupo. A marginalidade a que as mulheres negras são submetidas no Brasil, no entanto, vai além do aspecto social e alcança práticas culturais impedindo a essas mulheres que produzam ou propagem representações culturais de si próprias.
Mulheres negras que escrevem são insubmissas, reconstroem sua função social e o imaginário que as acompanham desde a escravidão. Apesar de uns poucos casos, a literatura somente começa a fazer parte da reconstrução da função social imposta à mulher negra na sociedade na segunda metade do século XX com Carolina Maria de Jesus. Assim como De Jesus, uma das mais significativas contribuições de Evaristo diz respeito à maneira como essas mulheres são retratadas pela história e, consequentemente, a forma como são cristalizadas no imaginário brasileiro. Essa contribuição fia-se primariamente na imagem da mulher negra na sociedade.
Carolina Maria de Jesus, por exemplo, através do título de seu livro, Quarto de Despejo, deixa claro que a população leitora da década de 60 está sendo forçada a olhar para a parte da sociedade que eles escolhem descartar confinando-a nesse espaço de abandono e esquecimento. O quarto de despejo foi a metáfora perfeita para a favela e elementos como a negritude, construção de gênero e pobreza, que a constituem. Conceição Evaristo também escolhe olhar para a favela e seu extermínio, que pode ser entendido como uma alusão ao projeto brasileiro para os negros, ou seja, o embranquecimento.
Em Becos da Memória, o negro é visto e, assim, revisto. Em diferentes momentos no livro, as personagens negras se tornam o foco da narrativa de Maria-Nova e são sempre protagonistas de suas próprias histórias. É interessante, por exemplo, que até mesmo a estrutura linguística de certas passagens contribuam para que o negro seja visto. A passagem mais emblemática dessa característica é a descrição de Negro Alírio por Maria-Nova. Ela não somente acha o rapaz "muito bonito, tinha características negras bem marcantes." (pp. 59), como enfatiza a negritude, parte de sua beleza, através da reiteração da palavra "negro": "Ele disse se chamar Negro Alírio. Negro deveria ser apelido e Alírio o nome, mas ele dissera Negro Alírio. Gostou de ouvir a palavra negro pronunciada por um negro, pois o termo negro, ela só ouvia na voz de branco, e só para xingar..." (pp. 133)
A sexualidade da mulher negra, sendo ou não avaliada em relação à do homem branco, é extremamente fetichizada pela sociedade brasileira. Como é possível ver em exemplo clássicos da literatura existe a tendência de hiper-sexualizar a afro-brasileira. Eduardo de Assis Duarte, discorreu suficientemente sobre a redução da imagem da mulher afrodescendente em estereótipos ligados à sexualidade em seu artigo "Mulheres Marcadas: Literatura, Gênero, Etnicidade" (2009) Vale ressaltar, no entanto, que em Becos da Memória, há uma tentativa de naturalização da sexualidade da mulher negra que começa com a personagem Cidinha-Cidoca, odiada pelas outras mulheres por conta de sua liberdade sexual. Um trecho digno de nota é aquele em que a "moça virgem," traída pelo namorado afirma sua própria sexualidade: "Pensa que mulher também não gosta, também não quer? Mulher vive abafando a vontade, os desejos, ..." (pp. 37)
Mais adiante, Dora, em um relacionamento com Negro Alírio, revê suas experiências de sexualidade abertamente e constata que "Aprendeu cedo a deixar a passividade da mulher que só recebe a mão do homem sobre si e começou a vasculhar o corpo dos homens." (pp. 130). Não só reconhece o quão prazerosa essas experiências foram, mas reclama a agência da experiência sexual para si e não a deixa ou a vê em função dos homens. Numa sociedade em que a sexualidade da mulher negra foi vista como alvo passivo de um projeto genocida, reimaginar e reinvindicar sua sexualidade como fez Evaristo é crucial para seu projeto de "insubmissão," para a construção de imagens não estereotipificadas da mulher negra em que essas apareçam hiper-sexualizadas e fetichizadas pelo olhar masculino ou com sexualidade completamente sublimada para evitar os estereótipos.

A voz que acorda a casa grande
Dentre os itens sublinhados, um dos mais relevantes é a posição do negro enquanto pensador. Aqui a insubmissão aparece com bastante força porque é essa marca que permite a inclusão do afrodescendente e, portanto, surge como pré-requisito para que as outras "insubmissões" aconteçam. É a posição assumida que, a autores negros, precisa ser reclamada, como o fez Carolina Maria de Jesus na década de 60 ao se colocar como escritora num meio em que muitos a rejeitavam como tal. É também a posição assumida por Evaristo. Em entrevista (2015) ela afirma que usou de seus próprios recursos financeiros para publicar sua primeira obra, ou seja, sua posição como escritora vem de sua própria agência e da reinvindicação da posição. Evaristo usa sua literatura como "espaço de luta e de empoderamento." (Dalcastagnè 2014, pp. 296). É essa mesma agência de produtor de conhecimento que ela transfere para suas personagens. Apesar de não escreverem como Maria Nova, as pessoas na favela constroem sua própria produção cultural através de recontos orais de experiências vividas.
Com narradores que se encontram no espaço da favela e são, em sua maioria, afrodescendentes, Becos da Memória dá voz a uma gama de personagens negras. São pessoas que têm experiências variadas e que, consequentemente, apresentam saberes diversos que as auxiliam no enfrentamento das injustiças a que são expostas, como a pobreza extrema e a alienação social.
Maria Nova e Tio Totó, nas trocas de experiências em que se envolvem constantemente ao longo da história explicitam vivências que são transformadas em saberes próprios e únicos. Aparecem como produtores de conhecimento sofisticado que se baseia em experiências de um grupo. Um exemplo aparece no autodidatismo de Tio Totó que aprende a ler e escrever por meio de manuais que encontra ao acaso. Uma das frases que anota é a seguinte: "Os sonhos dão para o almoço, para o jantar, nunca." (pp. 73) Ele passa anos ruminando sobre o sentido da frase até chegar a uma conclusão que revela a sofisticação de seu pensamento, o que se vê também nas outras personagens:
Hoje sei que o escrito fala do sonho. Sonho que é uma vontade grande do melhor acontecer. Sonho que é a gente não acreditar no que vê e inventar para os olhos o que a gente não vê. Eu já tive sonho que podia e não podia ter. Eu tive sonho que dava para todo o meu viver.
Hoje descobri a verdade do dizer daquele ditado. Sonho só alimenta até a hora do almoço, na janta, a gente precisa de ver o sonho acontecer. Tive tanto sonho no almoço de minha vida, na manhã de minha lida, e hoje, no jantar, eu só tenho a fome, a desesperança... (pp. 74-74)
Tio Totó enche de significados uma frase que encontra num almanaque. A frase é adaptada a sua realidade e renova-se ao entrar em contato com sua visão singular de mundo.
Maria-Nova aparece no mesmo patamar. É uma receptora ativa de histórias e pensamentos, ou seja, apropria-se de conhecimentos exteriores a sua realidade para reformá-los de acordo com suas experiências únicas. Uma cena significativa é quando a menina valida suas experiências como atualização do conhecimento institucional da escola:
A professora já estava acostumada com as constatações da menina. Esperou. ... Maria-Nova levantou-se dizendo que, sobre escravos e libertação, ela teria para contar muitas vidas. ... Tinha para contar sobre uma senzala que hoje, seus moradores não estavam libertos, pois não tinham nenhuma condição de vida. (pp. 209)
Maria-Nova responde ao conhecimento tradicional sobre senzala com a experiência coletiva de "muitas vidas." Assume a posição de "pensadora" ao atualizar a historiografia sobre o significado e fim das senzalas. Trata-se de outra "insubmissa" que adota um lugar de fala e visibiliza o apagamento dos moradores da favela na sociedade e do próprio espaço.
Não podemos também deixar de apreciar o papel mágico que assume Vó Rita na narrativa. É a personagem que é ligada ao amor, é quem faz os partos na favela, cuida dos doentes. Sua presença é notada até mesmo pelos bebês de Negra Tuína ainda em seu ventre. O caráter insubmisso de Vó Rita está tanto na representação da figura divina por meio de uma idosa negra que mora na favela quanto pela sugestão de que essa figura seria homossexual, como sugere a primeira frase do livro: "Vó Rita dormia embolada com ela." (pp. 27) Vó Rita não só produz conhecimento, vai além: dá vazão ao amor que, de certo modo, está na essência da favela de Evaristo.

Formas de "Escrevivências"
Muito já se disse sobre o termo "escrevivência" cunhado por Conceição Evaristo sobre o qual não me alongarei muito. Trata-se de uma combinação entre a escrita ficcional e a experiência vivida, um reconhecimento de que as experiências únicas que grupos marginalizados sofrem no Brasil precisam ser recontadas para diversos fins, entre eles, para que se democratize a perspectiva literária e para que o traumático passado histórico desses grupos possa ser resgatado e reavaliado.
Para além dos propósitos mais aparentes, repensar essas memórias e inscrevê-las na literatura pode ser um estopim para um novo formato de escrita. A escrita dessas "ficções da memória" ou memórias ficcionalizadas requer atenção especial para com a estrutura linguística. É notável o esforço das escritoras afro-brasileiras para evitar o vocabulário fetichizado a que muitos autores canônicos recorreram. Em Becos da Memória, por exemplo, Conceição Evaristo usa uma prosa bastante refinada que se aproxima da prosa poética em determinados momentos. O olhar cuidadoso que recai sobre as personagens é o olhar do negro sobre o negro, ou seja, não existe a oposição entre binários que permite a construção de narrações mantendo a dicotomia opressor e oprimido. Essa característica contribui para a utilização de uma linguagem mais criteriosa. Vejamos um exemplo que vem das cenas mais dolorosas da história:
A mulher silenciou de vez. Fuizinha ainda muito haveria de gritar. Ia crescendo apesar das dores, ia vivendo apesar da morte da mãe e da violência que sofria do pai carrasco. Ele era dono de tudo. Era dono da mulher e da vida. Dispôs da vida da mulher até à morte. Agora dispunha da vida da filha. Só que a filha ele queria bem viva, bem ardente. Era o dono, o macho, mulher é para isto mesmo. Mulher é para tudo. Mulher é para a gente bater, mulher é para apanhar, mulher é para gozar, assim pensava ele. O Fuinha era tarado, usava a própria filha. (pp. 112-113)
A narrativa da violência sofrida por Fuizinha e sua mãe é narrada como fruto de uma patologia social, ou seja, o pai é um "tarado." Sobre ele recai o foco narrativo permitindo que a situação seja problematiza ao invés de fetichizada. A narradora não dá muito espaço para que a narração se concentre nessa perspectiva claramente vista como doentia. Essa passagem exemplifica que mesmo em cenas de violência e abuso sexual, o cuidado com a linguagem em associação com a perspectiva singular daqueles que são geralmente os alvos de violências permite que escritoras afro-brasileiras exponham essas violências sem torná-las atrativas para o leitor.

A publicação
A coroação do ato de insubmissão das autoras afro-brasileiras é definitivamente a publicação. O mercado editorial brasileiro é notavelmente branco, se consideramos a identificação racial da maioria dos autores que tem alguma publicação de caráter ficcional, como mostrou a pesquisa de Regina Dalcastagnè. Levando em conta também a má distribuição de renda que se vê no país, a maior parte dos afrodescendentes ainda se vê marginalizada economicamente. Isso faz com que a maioria do público leitor, ou seja, aqueles com condições sociais e financeiras para desfrutar de leitura contemporânea, sejam também de maioria branca. O desafio da publicação é, portanto, gigantesco e passa pelo descaso que as grandes editoras têm pela literatura ficcional que propaga as experiências de grupos marginalizados no país. Ainda quando a publicação acontece, geralmente por meio de editoras com uma proposta que vai além da alta vendagem, é preciso se contentar com nichos de leitores ou forçar uma entrada no mercado editorial tradicional.
O caso de Carolina Maria de Jesus é exemplar da dificuldade que é a publicação de obras de autoras negras no Brasil. Uma das maiores autoras afro-brasileiras precisou que seu trabalho fosse "descoberto" por um jornalista. Conceição Evaristo também atesta a mesma dificuldade na entrevista já citada aqui. Lá ela reafirma a publicação como um ato de resistência que, apesar das dificuldades, precisa ser levado a cabo ainda que com os recursos próprios. Para "acordar os da casa grande" há que se fazer ouvir, há que fazer com que histórias de grupos marginalizados cheguem até eles. É uma maneira de forçá-los a olhar para a parte da população que eles ajudam a oprimir.

Conclusão
A insubmissão de Evaristo é latente em toda obra. Lá encontramos não apenas a representação do negro, mas personagens desenhados com a profundidade psicológica necessária para que se reinscreva o afro-brasileiro na literatura conforme o proposto pela literatura negra. Alguns questionamentos críticos, contudo, são importantes nesse momento para repensarmos a literatura negra escrita por afro-brasileiras dentro do cânone. São questionamentos que críticos literários geralmente evitam devido à posicionalidade problemática ou por receio da recepção crítica. Encaixo-me nos dois casos.
Primeiramente, identifico-me como afro-brasileira ex-moradora da periferia que reconhece todas as opressões sofridas pelas mulheres negras na sociedade brasileira. Assim, tenho uma atitude muito protecionista em relação às escritoras afrodescendentes brasileiras que publicam, propagam a voz de grupos marginalizados e são bem sucedidas em reconstruir um imaginário em torno da mulher negra. A pergunta que me faço é: O quanto minha posicionalidade impacta minha visão crítica das obras dessas autoras?
Apesar do importante papel que tem a literatura escrita por afro-brasileiras na revisão do imaginário relacionado ao negro e, em particular a mulher negra, bem como do cânone nacional, é importante evitar idealizações. Na busca por justiça em que a literatura é utilizada como ferramenta, os aspectos revisionistas que são usados com sucesso saltam aos olhos de qualquer crítico literário. No entanto, ainda há que se discutir dissenções na forma e conteúdo usados nas composições dessas obras. A maioria dessas dissenções são criadas por uma brecha entre o formato da literatura eurocêntrica que requer familiaridade com modelos eurocêntricos de educação. Carolina Maria de Jesus chama atenção, entre outras coisas, porque quebra esse modelo em suas obras e nos faz, inclusive, questioná-los. Realmente "acordou a casa-grande." Já Conceição Evaristo em Becos da Memória, parece seguir esses modelos buscando romper tradições através de uma "insubmissão" no conteúdo e não necessariamente na forma. Seria o modelo para a literatura negra diferente do modelo eurocêntrico de literatura? Há possibilidade de construção de um formato que seja mais adequado às propostas da literatura afro-brasileira? A resposta a essas questões depende basicamente de experimentação literária que autores buscando entrar num mercado editorial tão seletivo nem sempre estão dispostos a fazer. Além disso, desafiar o cânone por meio dos temas e das formas parece insubmissão demais até mesmo para a literatura negra. Daí o papel tão importante de coletivos negros que incentivam a produção literária. Parece estar nesse modelo tão recente uma possibilidade para uma literatura negra brasileira que seja também inovadora.


Works Cited
Brookshaw, David. Race and Color in Brazilian Literature. London: Scarecrow, 1986.
Caldwell, Kia Lilly. Negras in Brazil: Re-envisioning Black Women, Citizenship, and the Politics of Identity. New Brunswick, New Jersey, and London: Rutgers UP, 2007.
Dalcastagnè, Regina. "Por que precisamos de escritoras e escritores negros?" Africanidades e Relações Raciais: Insumos para Políticas Públicas na Área do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas no Brasil." Ed. Cidinha da Silva. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2014. 66-69.
-- "Para não ser trapo no mundo: as mulheres negras e a cidade na narrativa brasileira contemporânea." Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. 44 (2014): 289-302.
Duarte, Eduardo de Assis. "Mulheres Marcadas: literatura, gênero, etnicidade." Falas do Outro: Literatura, Gênero, Etnicidade. Belo Horizonte: Nandyala, 2010. 24-37.
Evaristo, Conceição. Becos da Memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.
--. Conceição Evaristo no Espaço Público, TV Brasil. Espaço Público. TV Brasil. Brasília, Jul. 2015. Television. Available at: < http://tvbrasil.ebc.com.br/espacopublico/episodio/espaco-publico-destaca-a-vida-luta-e-perseveranca-da-escritora-conceicao >
Harlow, Barbara. Literature Resistance. New York, London: Methuen, 1987.
Nascimento, Abdias do. O Genocídio do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
Riso, Ricardo. "A Escrita Insubmissa das Mulheres Negras." Geledés: Instittuto da mulher Negras. Available at: < http://www.geledes.org.br/a-escrita-insubmissa-das-mulheres-negras/?fb_ref=16f724d58a1b4570b6d2fd042539a7c0-Facebook > 13 Mar. 2015.


Dos Santos São Bernardo 12


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