Para além da imagem técnica_por uma circularidade das imagens sensoriais

May 27, 2017 | Autor: Thembi Rosa | Categoria: Vilem Flusser, Dance, Dance and Technology
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Arquitetura, tecnologias digitais e cultura contemporânea NPGAU – Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFMG Prof. Dr. José dos Santos Cabral Filho Aluna: Thembi Rosa Leste

Para além da imagem técnica _ por uma circularidade das imagens sensoriais “A história da cultura não é série de progressos, mas dança em torno do concreto. No decorrer de tal dança tornou-se sempre mais difícil, paradoxalmente, o retorno para o concreto. Tal conscientização do absurdo da abstração caracteriza o clima do último estágio (end game) no qual estamos.” (Flusser, 2008: 20) Vivemos em uma sociedade pós-histórica, puramente informacional, sob o domínio das imagens técnicas, fotografias, filmes, imagens de TV e terminais de computadores que assumem o papel de portadores de informações, outrora desempenhado por textos lineares. Tal constatação, explicitada na década de 1980, pelo filósofo tcheco, naturalizado brasileiro, Vilém Flusser (1920-1991) já sinalizava a revolução da sociedade informacional, identificada e problematizada pelo autor em uma série de ensaios. Para Flusser com essa mudança de paradigma teríamos duas tendências a seguir: uma delas seria rumo ao totalitarismo, agindo como funcionários programados por imagens. A segunda

opção,

seria

uma

sociedade

telemática

dialogante

dos

criadores

e

colecionadores das imagens. Estamos no século XXI, no ano de 2014, e este debate continua atual, não por acaso as leituras de Flusser estão na agenda dos nossos dias, e parecemos migrar constantemente entre as duas opções, do pessimismo zoombie, imersos nas imagens, sob um controle totalitário, uma espécie de estado descrito no livro admirável mundo novo de Aldoux Huxley. E no outro extremo, temos infinitas bibliotecas textuais e imagéticas, fazemos o uso máximo do diálogo globalizado, tomando as redes sociais para saltar da letargia de sermos os receptáculos de imagens, para aturamos diretamente na produção de novas imagens. Utilizando-se da nossa ubiquidade para derrubar governos autoritários, concretizando a primavera árabe, manifestando contra aumentos abusivos, contra a corrupção brasileira, e a truculência da polícia retratada ao vivo em canais streaming, mídia ninja, com o uso de aparelhos técnicos e centrais de transmissão cada vez menores e mais acessíveis. No fluxo das imagens culturais essa distinção entre sermos apenas funcionários

dos aparelhos, ou então, inventores de novas imagens, capazes de burlar, produzir arte, que não estava programada no aparelho, também está na ordem dos debates. A cultura de massa apropria-se das imagens em um eterno retorno das mesmas imagens, programando uma estética e comportamentos abstraídos de uma vivência concreta do corpo. Uma sensualidade, uma sexualidade que não foi vivida, tornando-se apenas uma reprodução no campo dos modelos das imagens. Nestes casos, a distância entre o olhar e a ação corporal delatam esse salto para a zerodimensionalidade. Flusser (2008: 17) ao traçar uma genealogia histórica entre as imagens tradicionais e as imagens técnicas cria uma trajetória linear, criticada por ele próprio, em que aponta um percurso rumo ao abstrair. Utiliza-se da mão, que pega, e cria, e assim, sendo o gesto, aquilo que transforma o homem em um ente abstraidor. “Entretanto, as mãos não manipulam cegamente: elas estão sob o controle dos olhos. A coordenação das mãos com os olhos, da práxis com a teoria é um dos temas da existência humana.” Justamente essa coordenação parece se perder quando as imagens passam a ser meras reproduções, esse olhar que perde a conexão com o gesto, aquilo que não passou pela sensorialidade, por um encarnar, corporificar das experiências que precede o apertar o gatilho, as teclas para a (re)produção de imagens técnicas com o uso de aparelhos. São os autômatas que agem de acordo com o programa. “Mão-olho-dedo-ponta de dedo” Ou: “objetivação do mundo e subjetização do homem” - “imaginação do mundo e ritualização do ato” - “desintegralização do mundo e autoconsciência do homem” - “historização do mundo e autoconsciência do homem” “desintegração do mundo e existencialização da consciência humana”. Ou ainda: “tridimensionalidade/bidimensionalidade/unidimensionalidade/zerodimensionalidade”. Citando Flusser (2008: 19) no que tange aos quatro estágios, ou a saída do concreto rumo a abstração. O autor afirma que essa trajetória não é de modo algum linear, mas são movimentos que avançam e retrocedem continuamente. Basicamente, a mudança das imagens tradicionais, superfícies abstraídas de volumes, para as imagens técnicas, superfícies construídas por pontos, são fenômenos, segundo Flusser sem paralelo no passado. Sustentando, por isto, a seguinte tese: as imagens técnicas não ocupam o mesmo nível ontológico das imagens tradicionais.

DANÇA E TECNO-IMAGENS No campo da dança, a produção das tecno-imagens remonta ao período da criação do cinema. Loie Fuller (1862-1928), uma das dançarinas pioneiras da dança moderna americana, adotava um amplo tecido que era ao mesmo tempo figurino e tela de projeção em movimento para luzes e imagens. Em suas pesquisas, a fim de conseguir uma imagem fosforecente neste tecido, Loie esteve em contato com o cientista Thomas Edison que, na época, pesquisava o fluoroscópio, do qual, em breve, originaria o raio x. Utilizando-se desse material radioativo, Fuller criou a The Phosphorescent Dance. Neste período, Edison estava ainda envolvido em sua pesquisa na produção de imagens em movimento, e um de seus filmes, Annabelle Serpentine Dance (1897) foi feito como uma das imitadoras de Fuller, e ficou conhecido como uma das primeiras imagens coloridas no cinema, em uma técnica que consistia na pintura feita a mão na película. Atualmente, há uma série de reconstruções das danças de Fuller, além de descrições e reflexões acerca do trabalho dessa artista que podem ser consultadas no livro História do Corpo, vol 3. e no aritigo: Loïe Fuller: Movimento e Captura, escrito por Lucila Vilela1. Esta breve introdução sobre dança e tecno-imagens vem apenas situar que as relações entre dança e mídias digitais tem sido estabelecidas desde a invenção do cinema, e elas seguem em desenvolvimento nas artes digitais, através da vídeo dança, dos sistemas de captura de movimentos, e no desenvolvimento de softwares para criação e registros nesta área. Exatamente, neste espectro se situa a pesquisa Motion Bank2 desenvolvida pela Forsythe Dance Company, 3 em parceria com coreógrafos da dança contemporânea, e com diversos laboratórios, universidades, e programas de pesquisa dedicados as ciências e as mídias digitais. Trata-se de um olhar bem específico para as imagens técnicas da dança, já que no amplo site que o projeto disponibliza, sua intenção é justamente dar relevância a essas imagens técnicas. Todavia, sem abstrair-se das características específicas que distinguem a dança, no estudo dos seus processos de criação e na sua produção de imagens sensoriais. Coloca-se, assim, em evidência os procedimentos neuro-sensório-motores para a criação dos repertórios técnicos da dança, e são propostas memórias em vídeos específicos que demonstram tais procedimentos. Há toda uma produção de textos, um arquivo vasto sobre o processo da artesania do desenvolvimento de todo o projeto, com reflexões, entrevistas e filmagens com os coreógrafos, dançarinos e pesquisadores envolvidos neste extenso projeto, proposto por 1 http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/apcg/edicao10/Lucila.vilela.pdf 2 http://motionbank.org/en 3 http://www.theforsythecompany.com/thecompany.html?&L=1

um período de quatro anos de duração, 2010 a 2014. Porém, antes de seguir no diálogo com o Motion Bank, vamos retroceder com três perguntas relevantes para suscitarmos uma reflexão acerca das imagens em dança. O que é produzir uma imagem em dança? A dança trabalha com produções de imagens em movimento, com imagens sensoriais que acionam no espectador a sensação dos movimentos. Pois, ver, falar, pensar, agir, todos estes verbos de ação estão implicados no acionamento de milionéssimas conexões neurais que se estabelecem por segundos. Mesmo que não estejamos dançando, mas sim, assistindo ou pensando em movimentos, áreas cerebrais envolvidas nas partes motoras serão ativadas, são os neurônios espelhos em plena atuação4. Assim, ver é produzir imagens, ser sensorialmente tocados por elas. Quais as características das imagens que são vistas e produzidas em dança? A gradação da variação dessas imagens é de uma amplitude que foge a descrição neste texto. É certo que incluí de fato a experiência do observador, a recursividade das suas histórias com movimentos e com a prática em ver danças. Ainda está em jogo, a relação que cada coreógrafo, dançarino estabelece com o universo das imagens em sua criação. Há coreógrafos que trabalham diretamente com a produção de imagens, de um modo próximo ao cinema, construindo imagens trazendo à baia todos os aparatos técnicos disponíveis para evidenciar esta característica imagética. Cenários, figurinos, luzes, música têm a função de ressaltar as imagens produzidas no instante. Outros lidam com a proposição da exploração do movimento no tempo e espaço de um modo mais conectado com a própria investigação do fluxo do mover-se. Assim, as imagens são imagens de segunda ordem, consequências e rastros de movimentos, e, em geral, tendem a ser mais abstratas, não se encaixam tão facilmente em categorias préestabelecidas. Isto não quer dizer que uma imagem possa ser considerada mais sensorial do que a outra, parece que a circularidade dessa sensorialidade das imagens é da ordem de uma coerência da experiência. Ou quando reconhecemos que a produção da imagem não está fixada em um reportório que segue um programa prévio. Uma espécie de poiéses da imagem, ou princípio autopoiético da imagem, apropriando-se da noção de autopoiese dos cientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, como sendo aquilo que 4 Allain Berthoz, Antônio Damásio, Ramachadran, Miguel Nicolelis, Alva Noe, Francisco Varella são cientistas referenciais para o estudo sobre os neurónios espelhos, as relações corpo mente e a noção de embodiment.

ao se produzir, reproduzir a si mesmo, tais como as células e os demais sistemas autopoiéticos. Uma dança que prescindisse do corpo e fosse feita apenas por imagens, deixaria de ser uma dança? Ao adotar a criação do software Life Forms, na década de 80, o coreógrafo da dança pósmoderna americana Merce Cuningham, viabilizou um modo de criar danças sem os corpos dos dançarinos. Fez esse processo invertido, da abstração para o concreto. Uma partitura, gerada por imagens técnicas, que após sua concepção como dança retornava para os dançarinos. No trabalho Cédric Andrieux (2009), obra dirigida pelo francês Jerome Bell, o dançarino Cédric, que dançou com Cunningham, diz em certo momento da performance, como era impossível e frustrante dançar as coreografias de Cunningham. Isto se dava justamente pelo fato da concepção dessas coreografias não estarem ancoradas pela lógica de movimentos estabelecidas pelo corpo no momento da criação. Mas, sim, por serem concebidas por um software, que conseguia criar conexões motoras, em geral inacessíveis aos nossos padrões de movimentos. Esta estratégia de Cunningham tinha como meta elevar a taxa de complexidade em dança, ele diz que nosso cérebro fica programado para dizer que determinadas combinações de movimentos são impossíveis, e através da visualização dessa sequência em 3D, isto engana o cérebro, e possibilita novas formas. Em parceria com o compositor John Cage, a trajetória de Cunningham e de diversos coreógrafos da dança pós-moderna americana formados nessa tradição, tem na investigação e experimentação, incluindo uma série de jogos que envolvem a aleatoriedade, sorteios e improvisações o material para as suas composições. Essa busca assenta-se muito mais em um estado de presença, da atenção do dançarino naquela ação em que se envolve naquele preciso instante, do que em uma mera virtuose, ou em uma idolotria as imagens técnicas. Por fim, Cédric irá afirmar que mais importante do que conseguir realizar aquela movimentação impossível, Cuningham interessava-se pela persistência, pela consciência durante o fazer, e pela possibilidade do novo. É neste sentido que a dança mantém uma circularidade das imagens sensorias, e potencializa um estado de liberdade. MOTION BANK Para o Motion BanK, dança, coreografia, processos de criação e improvisação são os materiais a serem estudados, analisados, sistematizados e digitalizados. A própria

metodologia, ou seria uma epistemologia sobre o modo específico de se abordar cada conhecimento em dança, já é o próprio objeto de estudo. Em seguida, ou simultaneamente, divididos em equipes multidisciplinares o levantamento destes dados são transformados em fontes utilizadas para a geração de elaborados gráficos e vídeos com sistemas de captura de movimentos. Algumas configurações em vídeos e animações estão por vezes, diretamente interconectadas com a dança e, em outros casos, os dados são transcriados em gráficos, e outras imagens técnicas da mais alta abstração daquilo que era movimento no tempo e espaço, ou o material concreto do corpo. No Motion Bank a inquietação pela inoperância de uma única fórmula de registro e visualização dos diversos pensamentos coreográficos envolvidos neste projeto, faz com que sua visualização assuma diversas configurações. Por isto, no caso dos três projetos envolvidos nessa pesquisa, as partituras on line disponibilizadas são bem diversas. Os coreógrafos convidados, Debora Hay, Jonathan Burrows e Matteo Fargio, Bebe Miller e Thomas Hauert, embora estejam integrando o mesmo projeto tiveram, na medida do possível, suas características idiossincráticas de produção preservadas e difundidas nas suas diferenciações. O primeiro projeto piloto ao Motion Bank, foi o Synchronous Object5, com a coreografia One Flat Thing do coreógrafo William Forsythe, que desde a década de 1990, tem suas pesquisas atreladas as mídias digitais 6. Em Synchronous Object sua coreografia, gravada de diversos ângulos, foi totalmente mapeada circunscrevendo a trajetória dos movimentos de cada dançarino. Sendo que, cada um deles, mantinha uma cor específica em um gráfico que representa o percurso, a dinâmica e outros traços dos seus movimentos. No vídeo explicativo, é possível reconhecer as diversas estruturas das células coreográficas, bem como sua gradação de abertura para improvisação dentro do material coreográfico que fora estabelecido previamente. Ainda em parceria com a Universidade de Ohio, o projeto utilizou os princípios organizativos desta coreografia aplicados a outras disciplinas, em especial, a computação gráfica, design e arquitetura. Foram geradas novas configurações a partir da coreografia One Flat Thing. Animações, objetos construídos de madeira, e outros inspirados na lógica dos princípios de movimentos estudados. A coreografia acaba virando um pretexto para outras criações artistícas se, por um lado, ao ser decupada ela não perde em sua complexidade, por 5 http://synchronousobjects.osu.edu/ 6 Forsythe em 1994, em parceria com educadores e programadores lançou Improvisation Technologies: A Tool for the Analytical Dance Eye, desenvolvido com o ZKM / Zentrum für Kunst und Medientechnologie Karlsruhe. Trata-se de uma ferramenta para aprendizagem, análise e documentação baseada em sua prática de criação em dança, que vem sendo utilizada em várias partes do mundo tanto por dançarinos profssionais, quanto adotada por universidades e programas de pós-graduação em dança, arquitetura e demais áreas de ensino e pesquisa.

outro, sabemos bem que todas as obras, qualquer criação estará sempre imersa em díalogos constantes, sejam eles conhecidos, ou obscuros. Não há tábula rasa, nem originalidade capaz de emergir de vácuo algum de inspiração. Sobre isto, Flusser (2008: 23) afirma: “Toda imagem produzida se insere necessariamente na correnteza das imagens de determinada sociedade, porque toda imagem é resultado de codificação simbólica sobre código estabelecido. Por certo: determinada imagem pode propor símbolos novos, mas estes serão decifravéis apenas contra fundo “redundante” do código estabelecido. Imagem desligada da tradição seria indecifrável, “ruído”. Mas, ao inserir-se na correnteza da tradição, toda imagem propele por sua vez a tradição rumo a novas imagens. Isto é: toda imagem contribui para que a mundividência da sociedade se altere.” Considerar a produção teórica de Vilém Flusser para dialogar com projetos fantásticos como o Mation Bank pode ser um modo eficaz para se escapar da idolotria das imagens, e ainda lidar com a interdisciplinaridade criticamente, problematizando questões referentes aos meios digitais e ao seu funcionamento. Flusser é notadamente reconhecido por ser um filósofo que ampliou o debate sobre os meios de comunicação. Das suas teorias emana uma certa futurologia, por muitas vezes, pessimismista, mas que tem como ponto de fuga, uma análise acurada sobre o tempo no qual ele escrevia. Uma espécie de aviso de segurança, enquanto ainda se havia chance de escaparmos do programa, furar a sua previsibilidade, engajar-se em prol de situações jamais vistas, adentra-se em “aventuras”. Assim, interagir com o Motion Bank e o Synchronous Object levando em consideração o pensamento Flusseriano tem como foco trazer à tona uma experiência de diálogos, um constante exercício para vislumbrar a superfície dessas imagens, seus modos de produção coletivo, os sentidos da abundância e da variedade das informações que emergem no contexto específico deste projeto de pesquisa. E ainda, como Flusser continua a escrever no parágrafo supracitado, cada nova imagem transforma o imaginário da sociedade, quebra uma rigidez anterior e a subsituí por fluidez e maleabilidade. A dança no que concerne as suas possibilidades de memória e registros necessita flexibilizar-se, romper com paradigmas de uma pretensa fidelidade das suas imagens prévias e transitar pelos fluxos da inventividade, de novos diálogos potentes para a produção de novas imagens. Isto sim, irá transformar o poder da sua imaginação. Estabelecer alianças com os aparelhos nas quais não sejamos funcionários dos seus

programas, mas acima de tudo artistas, rompendo e criando novas regras a cada novo jogo. Flusser, ao buscar a etimologia de diversas palavras chaves, amplia noções perdidas, tal como “poder” - possibilidade, tornar possível; dominar - dommus casa, tal ordem da casa é programa legível (leges=lei). Cibernética é o núcleo dos significados de nossas categorias político-éticas. Assim, o autor define cibernética enquanto arte de pilotar e dirigr sistema complexo (caixa preta) tendo em vista a transformação dos acasos que ocorrem no interior do sistema em situações informativas. Cibernética assim definida implica política e ética despida de ideologia. (Flusser: 2008, 172) Ambos os projetos, Synchronous Object e Motion Bank, trazem à tona o debate em torno de questões referentes as imagens técnicas. Este tema de amplo debate na bibliografia de Flusser, traz no seu bojo, a reflexão acerca da idolotria das imagens, do domínio das imagens técnicas na sociedade futura 7. O autor define as imagens tradicionais como superfícies abstraídas de volumes, que vão do concreto para o abstrato. Ou seja, surgem da linearidade da escrita, para a bidimensionalidade do desenho. Já as imagens técnicas, ou tecno imagens são superfícies construídas por pontos. Isto implica em um não retorno da unidimensionalidade para a bidimensionalidade, em uma saída da unidimensionalidade como um salto para o abismo da zero dimensionalidade. Jogando assim com a lógica da linguagem computacional do zero ou um, com o fenômeno da caixa preta, em referência ao título do seu famoso livro sobre a câmera fotográfica, Filosofia da caixa preta. Na caixa preta ocorre algo desconhecido para nós, há um input de entrada, em seguida, um processo que acontece dentro da caixa preta, o qual, em geral, ignoramos, mas que irá gerar um output, uma saída da qual não temos um controle total, pois as imagens produzidas seguem a previsão de um programa. Segundo Flusser, estamos imbricados em uma sociedade programada, efetuamos nossas funções, como funcionários, regidos por aparelhos, apertando teclas, produzindo imagens que, por sua vez, informam os aparelhos e os tornam mais eficientes para as suas funções, seja enquanto aparelhos artísticos, jornalísticos, publicitários, culturais, sociais, aparelhos políticos e econômicos. Ou seja, metaprogramas cósimicos que convergem para um totalitarismo. O que o projeto Motion Bank propõe parece problematizar algumas questões acerca das imagens técnicas já que se insere em um amplo debate sobre movimento, cognição, processos de criação, documentação, desenvolvimentos de softwares e outros 7 Flusser, Vilém. O Universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Anablume, 2008.

temas pertinentes as possibilidades técnicas de se 'transportar', transcriar, dialogar com uma coreografia, que inclui, partituras de movimentos e estruturas de improvisação para um um novo meio, o digital. Aqui, a arte pode ser vista tal como postulada por Flusser (2008:133) como um fazer limitado por regras que são modificadas pelo fazer mesmo. Em Motion Bank a arte, as práticas coreográficas são problematizadas, e limitadas por suas estruturas prévias, suas configurações antecedentes a esse projeto. Todavia, ao se relacionarem com o contexto do projeto, estas obras coreográficas são modificadas, estão abertas ao acaso. Ao serem gravadas e se tornarem fontes para análises computacionais, necessariamente, a coreografia será içada a esse novo estatuto de imagem técnica, que irá gerar, novas composições em outras mídias ampliadas, que não apenas o corpomídia. Motion Bank foi um projeto de quatro anos de duração (2010-2014) cujo foco principal era oferecer um amplo contexto para a pesquisa em práticas coreográficas visando criar partituras digitais on line de obras coreográficas produzidas a partir de abordagens distintas. A primeira etapa desta pesquisa foi dedicada aos trabalhos coreográficos de Debora Hay, Bebbe Miller &Thomas Hauert, Jonathan Burrows & Matteo Fargion. O projeto converge um amplo espectro de pesquisas que vão desde questões cognitivas referentes à criação, memorização, repetição de movimentos, práticas coreográficas ao entrelaçamento com temas referentes a filmagem, sonorização, desenvolvimento de softwares, documentação, designer, dentre outros. Voltando as questões iniciais deste ensaio: O que é uma imagem em dança e em qual categoria ela poderia ser lançada? Pelo que vimos até agora, no contexto em discussão, as imagens de dança se transfomariam em imagens técnicas pois se tornam superfícies de pontos e se colocam mediada pelos aparelhos: filmadoras e computadores. Todavia uma imagem em dança, se levarmos em conta a exploração do movimento, das experiências sensoriais desprovidas da intenção de uma representação, de uma linearidade, elas não estariam no campo das imagens tradicionais que partem do concreto rumo a abstração. Talvez elas já estejam no abismo da zero dimensionalidade para acompanhar as proposições de Flusser no que tange as imagens técnicas. Usando a metáfora da caixa preta, um coreógrafo ou dançarino seria a própria caixa preta recebendo inputs, processando em seu corpomídia caixa preta, e gerando outputs a outros corposmídia caixa preta que, por sua vez, se conectam com outros em uma rede de sistemas hiper conectados na geração de uma multiplicidade de imagens sensoriais. Enfim, ativando sistemas sensório motores capazes de decidir, de recombinar informações, quiçá, gerando “informação nova”, momentos criativos, transmitindo acasos pouco prováveis. Flusser (2008: 160) “afirma que dado “eu” está preparado para o acaso

pouco provável pela sua participação intensa na comunicação humana. Em outros termos: quanto maior a soma das informações recebidas, tanto maior a probabilidade de se receberem acasos pouco prováveis. Obviamente, esta ainda não é a resposta satisfatória à pergunta quanto a distinção entre novas e informações redundantes.” Ao colocarmos o projeto Motion Bank em diálogo com tal preceito de Flusser da máxima comunicação para a aparição de informação nova faz todo o sentido o intercruzamento entre todas essas mídias propostas no projeto. Além de outra noção desenvolvida pelo autor no que se refere ao limiar da criatividade nova, que não está condenada a criar empiricamente, mas sim disciplinadamente. Ao olhar para a esturutra do Motion Bank chama a atenção justamente esse aspecto de uma criação disciplinada no sentido flusseriano como uma abertura para o novo, diferente de uma sociedade disciplinar tal como descrita por Michel Foucault. Embora esse aspecto de se disciplinar uma coreografia possa até ser colocado em questão no caso de algumas obras coreográficas e a sua transposição para a gravação em um estúdio, controlada pelos meios técnicos e desprovidas da interação com o público. Mas, este seria tema para outro debate. Para o elogio da superficialidade na questão da criatividade, Flusser coloca que “a telemática é a técnica que permite trocar sistematicamente acasos pouco prováveis a fim de sintetizar com eles acasos ainda menos prováveis.” Para o autor o núcleo da criatividade está precisamente na decisão em prol do pouco provável em meio ao muito provável. Para não chamar sistemas artificiais de criativos, ou admitir que somos sistemas programados, respostas inaceitáveis segundo Flusser, ele irá propor uma terceira via, os filtros, a crítica ou a censura que irá decidir o que será uma informação nova. Motion Bank se destaca por colocar uma série de informações novas, um jogo que se empenha, a cada lance para um enriquecimento e há modificações constantes das regras do jogo. Sem contudo, esquecer-se da corporalidade, levando essa em conta tanto quanto à superfície da tela, ambas tem os mesmos valores, se alimentam reciprocamente. O corpo não é minimizado por um super cerébro, pelo contrário as superfícies corporais e cerebrais se

interconectam em sistemas computacionais que geram múltiplas

possibilidades de edições compositivas no futuro dos netos de Flusser. Não há robôs que alimentam corpos hiperconectados, a futurologia nefasta não se cumpriu e os encontros presenciais e virtuais continuam, cada qual com o seu status, a ubiquidade não reduz o tato. Ainda é o contato e a ativação de todos os sentidos gerados nas potencialidades dos encontros sejam eles virtuaispresenciais que nos estimulam, e estabelecem os circuitos para a circularidades das imagens sensorias.

Brincar _ Liberdade _Jogo “A sociedade informática revela-se então supercérebro e supermente infra-humanos. Em vez de possibilitar a produção de novas informações, de aventuras, do impróvavel, ela produz kitsch, comportamento robô, cultura de massa, tédio, entropia. Trata-se de sociedade que não permite a liberdade.” (FLUSSER: 2008, p.129) Enquanto digitava o páragrafo supracitado, refletia, simultaneamente, se, ao apertar as teclas para inscrever tal citação, não estou justamente caindo no abismo criticado. Ou seja, por que não me aventurar? Por que repetir sempre os mesmos comportamentos para a produção de um artigo acadêmico? Será que realmente existe um modelo acadêmico? Ou, hoje, no início do século XXI, tais definições estão tão ampliadas e borradas, que o aparelho acadêmico espera e urge por “erros”, nos quais poderíamos dispor de variações, enfim, elas seriam até mesmo previsões esperadas para alimentar os aparelhos: acadêmicos, técnicos, científicos, artistícos. O filósofo Vilém Flusser (19201991) perseguiu o seu e se aventurou pelas mais diversas disciplinas, reconhecido por um robusto pensamento sobre os meios de comunicação em uma era pré redes sociais. A casca da cebola Flusseriana pode ser angustiante, ou então, tomada como pressuposto, como jogo aberto, para a qual possamos criar estratégias prontas para serem desfeitas, desmanchadas, transformadas no vazio. Um jogo sem ganhador, cujo objetivo, seja a sofisticação, jogar cada vez melhor, conhecer as melhores estratégias que possam até mesmo ser desfeitas, pois elas não têm profundidade, estão na superficialidade. Não são imperativos, mas são trocas de informações dialógicas. Para adentrar-se neste universo é necessário se haver com uma dissipação, com uma flexibilização, com o desapego por ideias aparentemente consensuais em torno de conceitos, muito em voga, tais como: informação, automação, programação, aparelho, caixa preta, dentre outros, que, aqui no jogo flusseriano estão longe de serem prontos, dados e estabelecidos. É esta a impressão que se tem na sua escrita vertiginosa, que constrói e descontrói, desvelando uma manipulação do texto, circunscrita ainda no contexto dos aparelhos, da sua crítica explícita ao nosso funcionamento inconsciente em prol dos aparelhos, de uma sociedade programada. “Será “jogo aberto”, isto é, jogo que modifica suas próprias regras em todo lance. Os seus participantes, os jogadores com informações, serão livres precisamente por se submeterem a regras que visam modificar cada lance. Eis precisamente uma das

definições de “arte”: um fazer limitado por regras que são modificadas pelo fazer mesmo.” Este lugar da liberdade, do imprevisível, tal como exposto por Flusser, de uma sociedade utópica, sociedade deliberada, artificial, obra de arte, da mudança do homo faber para o homo ludens, daquele que joga, que negará a profundidade e elogiará a superficialidade. Sociedade dominada ciberneticamente será, ipso facto, sociedade livre, como é livre o artista que se orienta por regras. (Flusser 2008: 192) John Cage, Merce Cunningham, Trisha Brown, Anne Terese de Keersmaeker, Yvonne Rainer, William Forsythe, a arte minimalista, as vanguardas, o movimento Oulipo de literatura e tantas outras artes consistentes tomam como lema a disciplina, a criação de sistemas e metodologias que ampliam e lançam estruturas para novos jogos. “Empenho-me em jogo de pergunta e resposta, em diálogo criativo: esse jogo é a estrutura do meu universo. Assumo-me jogador de jogo cuja estratégia é a de que todos os jogadores sejam vencedores: a cada lance o universo do jogo fica enriquecido, a cada lance as regras do jogo se modificam. Perco-me neste jogo, perco-me nos outros e com os outros.” (Flusser: 2008, 204)

Referências: FLUSSER, Vilém. O Universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Anablume, 2008. FLUSSER, Vilém. A Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Hucitec, 1985.

Links: Acessado em 14/05/2014. Acessado em 14/05/2014. Acessado em 14/05/2014.

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