Para além da maioridade penal

Share Embed


Descrição do Produto

PARA ALÉM DA MAIORIDADE PENAL De tempos em tempos a história se repete: algum artigo ou editorial de um grande jornal brasileiro, pretendendo-se isento de “paixões e ideologias”, apresenta sua posição em relação ao ECA (Estatuto da Criança e Adolescente), quase sempre reduzindo sua atenção a um ponto específico: os adolescentes em conflito com a lei e a consequente necessidade da redução da maioridade penal. O editorial em questão, cujo título é “ECA não recupera menor infrator e desprotege sociedade”, é do jornal O Globo, de 15 de fevereiro de 2015. Não há dúvidas que a questão da maioridade penal mereça ser continuamente debatida pela sociedade, mas isolada, ela tende minimizar a responsabilidade do poder público em zelar pelo bem estar integral das crianças e adolescentes. Mais do que uma abstração, esse conceito de bem estar integral envolve a implementação de ações e políticas que garantam um desenvolvimento físico, emocional e intelectual saudável às crianças e adolescentes, além de proteção contra quaisquer violações desses direitos. Enquanto tivemos nossos olhos voltados exclusivamente para uma discussão na esfera criminal, chamada frequentemente de “situação irregular”, não vamos compreender (e nem nos preocupar) com as demais questões envolvidas na implementação daquele que é um exemplo internacional de legislação. O ECA nunca foi pensado para “recuperar menor”, como o editoral equivocadamente sugere. O título do artigo é pobre conceitualmente, porque não compreende o papel do estatuto em sua inteireza, e tendencioso ideologicamente porque reduz a discussão em torno da criminalidade, insinuando que o ECA “protege menor infrator“. O editor escreve que “a lei revelou-se incapaz de fazer o poder público cumprir obrigações no resguardo de jovens infratores“!! O ECA, assim como qualquer outra legislação, depende do compromisso do poder público e da sociedade como um todo para colocá-la em prática, e não o contrário. A Lei obriga, mas diante da sistemática negação de seu cumprimento, muitos concluem que é mais fácil dizer que ela é ineficaz do que cobrar providências daqueles que são os responsáveis por implementá-la; no caso do ECA, todos nós! Falamos exaustivamente – muitas vezes

desqualificadamente – sobre a necessidade de punição do adolescente em conflito com a lei (e não “menor infrator”), mas discutimos pouco a responsabilização do Estado (em todas as esferas) e da sociedade na efetivação do ECA. Invertemos a lógica! Tente pensar a afirmação acima do editorial em relação à Constituição Brasileira. Diante do fracasso em cumprí-la, vamos simplesmente dizer que ela é fraca, paternalista e repleta de falhas? Vamos nos eximir da responsabilidade de colocá-la em prática e dizer que o caos se instaurou porque a lei é “branda”, e não porque não nos comprometemos o suficiente com ela? Tais perguntas não querem sugerir que não exista a necessidade de aprimoramento das leis, mas apenas questionam a inversão da lógica da responsabilização no cumprimento delas. O ECA é um ótimo exemplo dessa dinâmica de aprimoramento, cuja revisão de conceitos, textos e expressões, demonstram que não se trata de uma lei inflexível e ultrapassada, como o editorial de O Globo predente mostrar. O ECA, do ponto de vista legal, é um documento de vanguarda. No entanto, como qualquer lei, depende não somente que as políticas públicas atreladas a ele sejam de fato implementadas, mas também de um questionamento dos paradigmas que mantemos sobre as crianças e adolescentes. Culturalmente, como diz o psicólogo e amigo Gustavo Sales, parece que estamos alguns milênios atrasados, porque socialmente nós endossamos certos paradigmas que supostamente pretendemos superar, como o conceito da criança como uma “propriedade” dos pais e tutelada pelo Estado, e não como sujeito de direitos e pessoa em condição peculiar de desenvolvimento. Há um conflito direto e constante entre esse paradigmas. Um outro paradigma poderosíssimo é o já mencionado “menor infrator“, cuja atenção está voltada para a “situação irregular” da criança e do adolescente, ignorando todo um contexto que produz e sustenta tal situação. Gustavo aponta o paradoxo ao afirmar que, se por um lado pedimos avanços (seja no texto da lei ou na efetivação das políticas públicas elaboradas com base nessa mesma lei), por outro não rompemos de fato com os velhos paradigmas. Tratamos a criança e o adolescente social, política e economicamente como objetos de posse da família ou de intervenção do Estado, e não como pessoa em condições e necessidades específicas. Nos fixamos no que a criança e o adolescente fazem de errado, e não no que nós adultos deixamos de fazer, enquanto sociedade, para garantir que seus direitos sejam reconhecidos e respeitados. Ou

seja, gostamos de debater o ECA, mas ainda não nos desapegamos dos paradigmas do antigo Código de Menores, que só olhava para o “menor” quando ele estivesse fora da esfera moral estabelecida pelo Estado: fora da escola, fora de casa, vivendo nas ruas ou cometendo crimes, ou seja, quando estivesse incomodando a sociedade. Por exemplo, o editoral de O Globo se mune de estatísticas para alarmar a sociedade, fomentando uma sensação de descontrole social, fruto de uma suposta impunidade que o ECA provoca. Mas onde é que tudo isso começa mesmo? O governo federal acaba de cortar cerca de R$ 8 bi da educação, praticamente todos os governos estaduais e municipais tem enormes dificuldades em elevar o nível da escolarização e qualidade de ensino. Tenhamos o exemplo do governo do estado de São Paulo em vista, que tem fechado salas de aula a ponto de colocar 80 alunos no mesmo espaço, isso sem falar da desvalorização do professor, da falta de acesso à cultura e oportunidades reais de mudança de vida, não somente para os adolescentes (erroneamente[?] chamados de “menores” no artigo), mas também para suas famílias. O que põe em xeque a eficácia do ECA não é o“paternalismo do Estado”, nem a curva ascendente da criminalidade, como diz o editorial, mas a negligência sistêmica em cumprir o que está previsto em lei e uma tendência constante de criminalização da juventude. O editorial ainda diz que o ECA é “pródigo em listar direitos de menores de idade, [percebem o velho paradigma?] mas parco em lhes cobrar responsabilidades.” Só diz isso quem não leu ou não compreendeu o objetivo do estatuto, que apresenta medidas sócio-educativas (debatíveis, é verdade) as mais variadas para adolescentes em conflito com a lei. Como disse uma vez o amigo Gustavo, “não conheço nenhum adolescente que foi passar férias na Fundação Casa”. Além do mais, o próprio conceito de direitos da criança e do adolescente é a porta de entrada pela qual deve-se abordar o estatuto: o princípio da reciprocidade. Ou seja, sendo esses direitos individuais e coletivos, as crianças e os adolescentes que deverão ter seus direitos reconhecidos e respeitados são também os indivíduos que deverão reconhecer e respeitar os direitos de outras crianças e adolescentes. Esse é um processo educativo de médio e longo prazo, cuja responsabilidade não poderá ser delegada a outrem, senão assumida integralmente pela família, pela sociedade e pelo Estado. Quanto à questão da criminalidade, cabe perguntar: se nem o sistema penitenciário é

bem sucedido na ressocialização de detentos adultos, por quais motivos se cobra tanto que as instituições como a Fundação Casa sejam melhores, sendo que estas intituições tem o mesmo Estado como responsável pela qualidade do serviço? Além disso, há outras questões de fundo, como a pobreza e o status dos envolvidos. Compare os crimes de colarinho branco ou cometidos por adolescentes ricos com aqueles cometidos por adultos e adolescentes negros e pobres. Agora verifique a taxa de condenação e encarceramento entre essas populações. O Estado brasileiro – que já tem a terceira maior população carcerária do mundo, ficando atrás somente de EUA e China – é que é pródigo em descumprir com suas obrigações, e tenta nos convencer de que a redução da maioridade penal, que jogará um número maior de adolescentes nas prisões para lá apodrecerem, é a solução para a acabar com a criminalidade. Caso a proposta de redução da maioridade penal venha a ser aplicada, o Estado contribuirá significativamente para inviabilizar o processo de ressocialização dessa população. Não se trata, evidentemente, de simploriamente dizer que o Estado é o grande produtor da criminalidade, embora não se possa negar que tem boa parcela de responsabilidade por ela. Também não se pode negar que testemunhamos diariamente a realidade de crimes (por vezes hediondos) praticados por adolescentes, cujas motivações são as mais distintas. Mas não nos enganemos: sempre haverá crimes de grande impacto cometidos por adolescentes que serão cinicamente e oportunamente capitalizados por alguém a fim de comover e convencer a população de que a redução da maioridade penal é a solução para a onda de violência. No entanto, esse mesmo alguém pouco ou nada discutirá o que de concreto e prático deverá ser feito para a efetivação do ECA no que diz respeito ao desenvolvimento integral de todas as crianças e adolescentes. A doutrina da prioridade absoluta, por exemplo, significa, dentre outras coisas, a disponibilidade de recursos públicos, e a falta deles é uma ótima medida para observar o quanto o Estado viola os direitos das crianças e adolescentes. Como certa vez bem disse a professora e defensora do ECA em uma sessão solene na câmara de vereadores da cidade de São Paulo, Maria Amélia Azevedo, “a maior violência contra as crianças e adolescentes começa nessa casa!” E completou: “Por isso elas precisam ser também prioridade no orçamento público.” Entretanto, quando se noticia o envolvimento de adolescentes com o tráfico ou com algum

crime extremamente violento, somos bombardeados por estatísticas que no final das contas acabam responsabilizando somente o indivíduo (o vagabundo, o preguiçoso, o trombadinha, o psicopata juvenil) ou culpabilizando a famíla pela “má educação” que deu ao/à filho/a. Não consideramos as variáveis que levam a cada indivíduo a cometer um crime, e concluímos apressadamente que se trata simplesmente de uma questão de decisão pessoal. Assim somos induzidos a crer em um padrão, no qual todos os adolescentes, e especialmente aqueles em conflito com a lei, são indevidamente inseridos. Generalismos do tipo “o adolescente sabe muito bem o que está fazendo”, “se tem idade para votar, tem consciência sobre seus atos”, etc., fazem parte dessa dinâmica de culpabilização exclusiva do indivíduo que não considera outros fatores que podem ser determinantes para suas atitudes. Enfim, não há respostas fáceis, mas penso que o foco na criminalidade é reducionista, equivocado, e atende a muitos interesses, menos os daqueles chamados na letra da lei de “sujeitos de direito”, mas que na prática acabam servindo apenas como bodes espiatórios da ineficácia e negligência do Estado e da sociedade em geral, embora há que se reconhecer que existem ótimas iniciativas em curso, boa parte delas executadas pela sociedade civil. Portanto, as discussões pontuais sobre a violência cometida por crianças e adolescentes devem ser precedidas ou concomitantes a uma discussão mais ampla sobre a violência cometida contra crianças e adolescentes, especialmente a negligência institucional que adia a implementação integral do ECA. Qualquer debate que esteja focado na criminalidade é míope em relação às condições que geram e mantém essa mesma criminalidade.

Alexandre Gonçalves

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.