PARA ALÉM DA PRATICIDADE Um estudo sobre o curta metragem “Eletrodoméstica”, de Kléber Mendonça Filho Laura Carone Cardieri Prof. Dr. Alex Moreira Carvalho Disciplina: “O cinema e a (des)construção das subjetividades contemporâneas” Especialização em Estéticas Contemporâneas – Universidade Mackenzie
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O premiado curta de 2005 trata da banalidade do cotidiano da
classe
média
protagonista,
a
recifense, atriz
no
Magdale
bairro
do
Alves,
Setúbal.
apresenta
A um
encadeamento de ações prosaicas e domésticas, como passar o aspirador e lavar roupa. A estranheza
- que torna o filme especial – fica por
conta da exagerada importância dada aos eletrodomésticos. Nesta hipervalorização de máquina está implícito, por sua vez, o afastamento entre os humanos.1 Por
esses
aspectos,
e
também
pela
maneira
como
se
apresenta a narração, descrição e narrativa, pode-se situar este
curta
no
que
Deleuze
chamou
de
“imagem-tempo”,
característica do cinema moderno: 1
http://ornitorrincocinefilo.wordpress.com/2013/02/03/eletrodomestica-klebermendonca-filho-2005/
“Na banalidade cotidiana, a imagem-ação e até mesmo a imagem-movimento tendem a desaparecer em prol de situações óticas puras, mas estas descobrem ligações de um novo tipo, que não são mais sensório-motoras, e que colocam os sentidos libertos em relação direta com o tempo, com o pensamento.” (MACHADO, p.276)
O SETÚBAL Esse “não-bairro” é pano de fundo de uma das possíveis críticas do curta: espaço público/espaço privado. O Setúbal não é oficialmente um bairro do Recife, e sim uma parte de Boa Viagem, só que com gabarito mais baixo, devido à proximidade do aeroporto. Um bairro “independente”. Segundo o cineasta, “trata-se
de um ‘não lugar’ com pessoas”2. OITO FIAT UNOS E A CLASSE MÉDIA NOS ANOS 90 Cena
que
abre
o
filme:
perspectiva
de
uma
rua.
Estacionados no meio fio, oito Fiat Unos, automóveis típicos da década de 90, dos mais populares entre a classe média, que por sua vez já começa a ter poder de compra, graças à facilidade
bancária
do
credito
pessoal
e
o
pagamento
em
prestações da maioria dos bens de consumo.
2
http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/suplementos/arrecifes/noticia/2012/10/21/s etubal-o-bairro-independente-60718.php
Para o sujeito da classe média, substituir o transporte público e coletivo pelo meio de locomoção privado era (e é), mais do que fator de status, uma forma de manter-se afastado do “vuco” (expressão recifense): do popular, da turba, e ao fim e ao cabo, das pessoas. A cena torna-se profundamente irônica também pela canção de fundo,“Eu queria morar em Beverly Hills”, da banda Paulo
Francis
vai
pro
céu,
reforçando
ainda
mais
o
desejo
de
pertencer a uma classe privilegiada. Portanto,
este
quadro
que
abre
o
curta
é
uma
imagem
percepção, termo cunhado por Deleuze, ou primeiro aspecto material da subjetividade, que compreende, segundo Roberto Machado: “(...)uma imagem movimento especial, uma imagem viva que percebe isoladamente ou por subtração, por um enquadramento, o que lhe interessa numa coisa.” (MACHADO,p.256)
Aqui e em outras cenas de planos abertos, o enquadramento mostra muito além do que se vê. É o que Deleuze chama de
vidência: “a imagem ótico-sonora pura revela o que não se vê, o imperceptível.” (MACHADO,p.274)
DO PÚBLICO AO PRIVADO, DO COLETIVO AO INDIVIDUAL A sequência que leva da rua ao interior do apartamento é – além de sublime – uma passagem do público ao privado.
São quadros fixos, sempre com a perspectiva dos fundos do edifício.
Esta
“inversão”
mostra
trabalham no serviço doméstico:
o
ambiente
dos
que
as grades nas janelas, as
lavanderias escuras, as roupas nos varais. O muro com lanças de ferro é emblemático. Vai muito além da óbvia separação física, da barreira: torna-se elemento estético, dividindo o quadro na horizontal.
Assim, o olhar objetivo e “ativo” da câmera, em bird’s
eye, torna visível as duas cenas, de lá e de cá do muro,
transpondo-o.
A
perspectiva
que
tudo
vê,
da
câmera,
apresenta novamente a vidência de que fala Deleuze. VIVENDO APRISIONADA O espectador entra no apartamento pela janela, através do close da protagonista. Este plano começa ao longe, de onde se vêem muitas janelas com grades brancas. Numa delas, está a mulher, fumando. Há uma lenta aproximação, um travelling
in, em direção a seu rosto, passando do que seria uma imagem percepção (o todo) para a imagem afecção (o close).
Inicialmente, a mulher apresenta um olhar perdido – o que Deleuze chamou de rostidade reflexiva ou qualitativa, em que “traços permanecem agrupados sob o domínio de um pensamento fixo e sem devir, exprimindo uma qualidade pura comum a coisas diferentes.” (MACHADO, p.263) Em seguida, procura algo interessante naquela paisagem monótona,
e
seu
olhar
pára
num
casal
que
se
beija,
apresentando a primeira subjetiva da protagonista. Neste segundo momento da cena, em que a mulher reage, há a rostidade intensiva ou potente, aquele onde “traços de rostidade escapam do contorno, exprimem uma potência pura
que
passa
de
uma
qualidade
a
outra
numa
escala
de
intensidade.” (MACHADO, p.263) Esta rostidade de série reflexiva aparece em outras cenas do filme, expressando o afeto em entidade, ou potência de qualidade (MACHADO, p. 263). Aqui, a entidade expressa é, principalmente,
o
tédio.
Tédio
do
trabalho
doméstico,
de
cuidar dos filhos, de viver num apartamento que mais parece uma prisão. A
hostilidade
ao
outro,
ao
estranho,
desconhecido,
aparece em outras cenas, evidenciando a impossibilidade de se
viver
livre
das
tais
grades
brancas.
O
ponto
alto
é
quando oferece água a um rapaz através do portão de grades. Para
não
abri-las,
passa
o
copo
por
entre
as
barras
de
ferro, mantendo a barreira entre eles. ELETRODOMÉSTICOS PENSANTES Em muitos momentos do filme, é evidenciado um estranho ponto de vista: o dos eletrodomésticos.
Nesta cena a subjetiva é do microondas, é ele quem olha os personagens e a comida dentro dele.
Aqui é possível uma analogia com a narrativa cristalina e seu discurso indireto livre, que cria uma imagem subjetiva indireta livre: “Um personagem age na tela e supõe-se que veja o mundo de certa maneira, mas o mesmo tempo, a camera o vê e vê seu mundo de um outro ponto de vista que pensa, reflete e transforma o ponto de vista do personagem....a câmera não oferece apenas a visão do personagem e do seu mundo, ela impõe outra visão na qual a primeira se transforma.” (MACHADO, p.287)
O mesmo se aplica no percurso frenético do carrinho a pilha comandado por controle remoto pelo filho da mulher. Inicialmente é apenas uma brincadeira que usa todo o espaço da sala de estar, em cortes rápidos; a câmera que persegue o carrinho, numa alucinante sequência, que culmina na colisão com um ônibus lotado. Novamente
a
questão
público-privado:
a
primazia
do
automóvel, do privado, atropelando o transporte público, até numa brincadeira de criança. E então, transforma-se a visão primeira, inicial, da ingenuidade infantil. Cabe aqui a citação de Deleuze sobre o “cine-olho” de Dziga Vertov: “(...)a visão de um olho não humamo, um olho que estaria nas próprias coisas, um olho de matéria, porque capaz de superar a imobilidade relativa do olho que faz todas as imagens variarem em torno de uma imagem viva: uma percepção objetiva.” (MACHADO, p.260)
Há duas outras cenas em que o movimento de câmera “imita” o movimento do eletrodoméstico. Uma delas faz referência ao liquidificador, reproduzindo o giro de sua hélice.
Na outra, o aspirador de pó suga uma moeda de um real, que tem seu movimento de passagem pelo duto replicado pela câmera. Em ambas nota-se a presença de uma anomalia no movimento, um movimento aberrante, que segundo Deleuze: (...) testemunha uma anterioridade do tempo, que ele nos apresenta diretamente, do fundo da desproporção das escalas, da dissipação dos centros, do falso raccord das próprias imagens” (MACHADO, p.283)
A cena do liquidificador também trata da questão públicoprivado.
Ao
fazer
um
suco,
o
impacto
de
força
do
liquidificador ligado faz cair a energia do apartamento. Este impacto toma esferas públicas, apresentadas através de imagens que invertem a sequência inicial (do público ao privado),
mostrando
apartamento
até
a
perspectiva
imagens-percepção
que do
vai
da
bairro,
cozinha sem
do
energia
elétrica. Atitudes individuais afetando o coletivo. PARA ALÉM DA PRATICIDADE A
protagonista
se
utiliza
dos
eletrodomésticos
para
aliviar sua tediosa manhã, tomada de repetitivos afazeres domésticos. O marido está no trabalho; os filhos, em casa, obrigados
por
ela
a
cumprir
suas
atividades
da
escola,
permeados pelo desejo de também usar os eletroeletrônicos como alívio.
Auxiliada
pelo
ventilador
e
pelo
aspirador
de
pó,
a
mulher fuma maconha enquanto faz faxina em um dos quartos. O eletrodoméstico é seu cúmplice, aspirando o odor da fumaça proibida. O aspirador é também fonte de prazer – assim como a máquina de lavar – quando brinca de sugar a própria pele, e estende esse prazer ao filho, supreendendo-o enquanto estuda no computador. A faca elétrica é banalizada como o cotidiano em que se vive:
corta
o
pão
com
ela,
em
uso
desnecessário
e
barulhento. Aqui se encaixa a ideia do ciborgue, aquele que se utiliza do aparato tecnológico para existir: “(…) eu abarcaria todas estas manifestações da nova condição humana em uma expressão bastante genérica: a Humanidade Expandida. Esta nova condição humana parte do princípio de que o corpo é a plataforma física a partir da qual o ser humano se expande e se manifesta diante do mundo utilizando de vários recursos tecnocientíficos disponíveis.” (VÁZQUEZ,p.2)
A cena da masturbação no canto da máquina de lavar é o suprassumo da elevação do eletrodoméstico ao humano. E é consequência de outras estranhezas e “contravenções” , como a utilização do aspirador para mascarar o cheiro da maconha fumada.
É principalmente um mergulho no privado, na intimidade, no que não é permitido ser visto, de tão íntimo. Aquilo que ninguém quer mostrar, e aqui é banalizado pelo contexto. O tratamento é de climax, como a principal cena de ação de um western – a luta final e o desfecho do filme, em que se exacerba a condição do eletrodoméstico como substituto do humano. O desvendar da intimidade da mãe é concomitante com a ingênua contravenção da filha: comer pipoca de microondas antes do almoço. Tudo isso coincide com o toque vibrante de um celular Motorola “tijorola”, excitado em cima da mesinha de centro. Os
gozos
aprontando
são a
todos
pipoca,
ao
mesmo
mulher
tempo:
tem
microondas
orgasmo
no
apita
canto
da
lavadora, celular cai no chão. Gozo dos eletrodomésticos que se equipara ao do humano. O cineasta se vale de recursos recorrentes em sua obra: os cortes rápidos, o faux raccord, o olhar de vários ângulos em um mesmo espaço, as elipses curtas e a quebra de eixo3. Nesta
sequência
final,
estão
presentes
todos
estes
componentes, como que fazendo um apanhado de seu estilo. Assim,
“Eletrodoméstica”
mostra
um
retrato
da
classe
média no Recife, mas que poderia ser em qualquer lugar, com qualquer
um.
A
genialidade
do
cineasta
está
justamente
nisso: em falar de situações, e não de uma “trama”; de não 3
http://www.revistacinetica.com.br/curtas22.htm
contar uma história, afinal, nada há para ser contado4. O filme apenas apresenta, cena após cena, o que Deleuze chama de
“método
do
‘e’”:
apresentação
de
situações
de
forma
direta e ativa.
Bibliografia MACHADO, R. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. ANDREW, J. D. As principais teorias introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. VÁZQUEZ, Rodolfo Garcia. para a Revista Alberto.
do
cinema:
Uma
Por um teatro expandido. Artigo
http://www.revistacinetica.com.br/curtas22.htm http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/suplementos/arrecifes/ noticia/2012/10/21/setubal-o-bairro-independente-60718.php http://ornitorrincocinefilo.wordpress.com/2013/02/03/eletrod omestica-kleber-mendonca-filho-2005/
4
http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/suplementos/arrecifes/noticia/2012/10/21/s etubal-o-bairro-independente-60718.php