Para Além do Bem e do Mal: Leitura Possível
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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
Filosofia do Direito
Para Além do Bem e do Mal: Leitura Possível
Filipa Lira Machado de Almeida Nº. 28166 1º Ano, 2º Semestre Turma B Subturma 15
Índice Para Além do Bem e do Mal: Leitura Possível ......................................................... 3 Bibliografia ............................................................................................................ 12
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Para Além do Bem e do Mal: Leitura Possível Dizemos-lhe o apriorismo. Gabamos-lhe a faculdade – dela, ou nossa? – de se constituir apesar de nós, reivindicando ainda, e no entanto, a sua existência para além de nós, condicionando-a sempre à nossa geografia. Arrancamo-la a custo, arremessamo-la contra os vivos, os não vivos, os mortos e os inqualificáveis. Ideamos, frequentemente distraídos, a experiência de estar vivos. E dizemos depois que ideamos o produto da experiência, esquecendo a qualidade de estar vivo, como se a Ideia nos outorgasse a imortalidade e por isso se dispensassem redundâncias circunstanciais. Sintetizamos, confrontamos, dialetizamos, racionalizamos!, num esforço templário por afastar das coisas o seu contrário, como se as purificássemos, como se elas nos pedissem que as purificássemos, como se só nuas, expostas, cruas as quiséssemos, num helenismo asfixiante. Depois, já cansados – mas ardendo como nunca -, escrevemos livros. E apertamos muito as mãos dos que nos lêem e dos que não lêem, porque somos tolerantes. Como se a Ideia não pudesse ser senão tangível, iminentemente palpável, expressão marmórea de uma existência intelectual sempre vigorosa, sempre progressista, sempre germânica. Há-de estar ali, como todos nós, à espera da torrada, à espera do metro, à espera do tempo de pôr a roupa a secar. Havemos de poder conversar com ela, de lhe elogiar a firmeza de carácter que se antecipava na testa alta que herdara do pai, nos olhos azuis que lembram a avó, não havia mulher como ela. O seu aperto de mão é o mais firme de todos. Tudo isto, claro está, apesar de ser mulher1 (Nietzsche, 1887). Entretanto, desculpamo-nos pelas nossas Ideias, repetindo frequentemente que aquilo a que reportam é inapreensível. Afinal, só temos impressões, vislumbres turvos, sonhos confusos, febris. Afinal, as Ideias não são puras, são quimeras. Tolos que fomos, tamanha hybris, afinal não queremos nada, só Paz – a culpa, sempre a culpa, a roer-nos por dentro. Negamos a genealogia da Ideia, lutamos contra a sua recondução até nós, queimamos tudo em redor, e fazemo-nos pequenos, insignificantes, poeira cósmica. Desacreditamo-nos, na histérica tentativa de nos afastarmos do doloroso enredo em que nos envolvemos. Se se reporta ao objecto, a Ideia de ideia reporta-se a si mesma. A ironia alastra: a Ideia reporta à única Ideia que não se reconduz a nada, a não ser talvez ao que está fora Nietzsche, F. (1887). Para Além do Bem e do Mal. Lisboa, Círculo de Leitores
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de nós, diria Descartes, no esforço derradeiro de salvar séculos de pensamento de futuros séculos de pensamento. Mesmo que, a custo e com artifício, consigamos atribuir conteúdo à Ideia de Ideia – inevitavelmente, através de outras Ideias e de um toque de materialidade, potenciado pelo avanço tecnológico dos últimos duzentos anos – deparamos sempre, e por último, com o maior dos elefantes brancos: a Ideia de Verdade. Deu-se ainda um passo mais ousado. Associou-se a Verdade à moral, tendo já sido a Ideia de moral esculpida sobre a Ideia de bem, que por sua vez escorregou do útil para a Ideia de certo, forjada no mesmo lume que modelou a Ideia de justo. A fragilidade da construção é por demais evidente. Ensinou-se que era só por isto que o homem era Homem, e que só assim nos distinguíamos dos restantes bichos – como se tivéssemos de o fazer, sob pena de demonização, como se o imperativo fosse categórico, e como se, não sendo categórico, fizesse sentido falar em imperativo, precipitando-nos todos para o abismo, não absoluto, mas do absoluto, deixando-nos tragar em nome da Metafísica. Mais dramático tudo se torna enfrentada a fatalidade que representa o pensamento Humano. Por largo que seja o diâmetro, é num círculo que inevitavelmente nos movimentamos – mesmo quando, através de Deus, nos julgamos evadir, quer afirmando que nem sempre fomos assim, tendo sido a sede de conhecimento a atirar-nos para este violentíssimo enredo, quer que não seremos assim para sempre, encontrada enfim a Paz Eterna, ou a eterna dormência do pensar, no Paraíso. Habilidosos somos, sim, senão mais nada. Caberia reflectir acerca do papel organizador, normalizador, conformador, enfim, apaziguador, da Ideia de Verdade na vida colectiva. E concluir o inevitável: os caboucos são instáveis, os alicerces são débeis, toda a construção vacila perigosamente sob o peso de séculos de ficção filosofada, pretensamente mais próxima do Homem e indubitavelmente mais distante do homem, aquele ali, e aqueloutro, que pobre que é, que bem que vive. O homem médio. Sempre o homem médio, a aura mediocritas que nos constrange. Pergunta-se, quem nos votou à simplicidade? Responde-se, ninguém. É tãosomente uma necessidade. Não é o corpo que se rege por instintos, é o intelecto – a mente, a alma, a psique, a razão, o que se quiser chamar àquilo que se chama pensamento (e será o pensamento produto da mente, da alma, da psique, da razão, ou confundir-se-á com elas, o quad effectum do nascer, o sujeito, jamais o predicado?). O instinto é o de pensar, a disciplina está em não o fazer, em negar metodicamente o impulso criativo, a tendência para a cognoscência, para a lucidez. De que nos protegia Deus, ao negar-nos a maçã? De nós, diríamos agora, da voracidade incomportável a que nos obrigou. Queria-nos ascetas,
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fez-nos hedonistas, e carregou-nos com a culpa, de que já falámos, e de que agora dizemos, é cruel. Repare-se que todo o pensamento é refém da Ideia. Se é inata, adventícia, factícia, pouco importa. Pouco importa se resulta dos sentidos ou da razão, se é revelada, criada, descoberta, se tropeçamos nela na rua, se nos surpreende, ou se desde sempre a esperamos, qual Godot, qual Penélope, viúva, talvez, sempre expectante. Filtramo-la, ainda, através de elaborada operação do intelecto – o conceito, síntese unificadora, que vem tornar operável a massa disforme, mundificando-a, mediocrizando-a e, paradoxalmente, tornando-a, quem sabe se pela primeira vez, relevante, porque comunicável. Comunicável? Parcamente. Frequentemente dogmática, assim. Note-se que o exercício que aqui se faz não é, não pretende, nem pode ser construtivo, no sentido de reabilitante, de coisa nenhuma, de nenhuma corrente, de nenhuma linha de pensamento. Quer dizer-se unicamente que a todas as coisas deve ser aplicado o filtro da hiperconsciência, que necessariamente conduz à hiper-relativização. Advoga-se a hipocrisia, a auto-depreciação, o definhar do raciocínio. Devemos agir como se a Verdade fosse viva e simultaneamente sentir em cada gesto a dúvida, crer sobretudo na inverdade, desprezar a ôntica, assumir que o único sentido oculto das coisas é elas não terem sentido oculto nenhum2 (Pessoa, 1925), pressentido também aqui a imprecisão, deixando-nos levar pelo gene metafísico a que nos ataram, ter impressão dele e, ainda assim, prosseguir calmamente, com a frieza de quem sabe exactamente para onde vai, não se preocupando em saber de onde vem. É esta a deontologia que se propõe. Que se esteja sempre para além do bem e do mal, mas só e tão somente na solidão dos nossos quartos. Que se viva de harmonia com a convenção, pontuada de exaltação só frente ao indispensável - o estoicismo arrancado à Natureza, a Natureza arrancada ao estoicismo. O sacrifício de fingir a Verdade e de aprender a viver, intimamente, sem ela. Aqui se demonstra, claramente, o que se diz: fingir – aparentar o que não é? Não. Fingir – fazer. Modelar, dar forma, criar. Fingere. É este o cerne da questão. Preferimos sempre a Verdade. Porque a fabricamos, evidentemente. Nenhuma história nos surpreende – não é possível. Nunca uma história escapa às possibilidades da nossa imaginação e, sendo a imaginação uma fábrica de infinitas associações conceptuais,
2 Pessoa, F. (1925). O Guardador de Rebanhos. Lisboa, Assírio & Alvim
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é Verdade tudo o que imaginamos. Não há portanto nenhuma Verdade que não fabriquemos. Não somos oráculos, mas só porque nos distraímos. E, afinal, que ambição nos instiga? Não a do conhecimento, ou teríamos há muito definhado, aprisionados pelas inverdades que fôssemos encontrando. Não o desejo de inspirar no outro devoção, um esboço de religiosidade, de piedade cândida, ou cultivaríamos apenas a aparência, porquanto a fé se alimenta sempre de ilusões, e aquilo que guerreiramente procuramos é a pretensão de des-ilusão, e o orgulho nela. A imortalidade, a redenção, o perdão? Não. Éramos ousados mesmo antes – sobretudo antes - do advento do Cristianismo. Grita-nos Nietzsche (Nietzsche, 1887)3 - o poder. Não o amor, mas o medo. A propensão para a violência, cuidadosamente disfarçada, e que se manifesta hoje mais subtilmente. Forjamo-nos no confronto, na destruição, na selvajaria. Esgrimimos sem florete, de mãos nuas, arremessando-nos uns contra os outros, e tudo, parece-nos, porque somos incapazes de viver com o que nos deram. Não basta a consciência do infinito, é preciso medi-lo. E é tão grande a incerteza que só dos rugidos da luta sabemos extrair a firmeza que nos falta. Tal como entre os outros bichos, vale só o que se faz valer – o mais possante, o mais aguerrido, o mais violento. A sede é sempre de poder. Traça-se assim a Verdade: a que enviuvou ao Sexto Dia, quando Ele se verteu no Homem e se ausentou para sempre daquele trono celeste que sempre o incomodara – tanto mais que no-lo emprestou, para que o usássemos com moderação, o que em todo o caso nunca sucedeu. Aproveitamos-lhe só a madeira, para fazer cruzes. A Verdade e o Bem. Um pingo de chuva, oblíquo, e o Bem tornou-se predicativo. A Verdade é o Bem. Quão perigosa se pode tornar esta equivalência? Quanto nos custou já esta imprudência? A Verdade ao serviço do Bem, o Bem ao serviço da Verdade. Não declaráramos já o desprezo pelo relativo? O utilitarismo nunca poderia ter chegado tão longe. Estendeu-se muito para além da Crítica da Razão Pura – haverá algo mais Bom que a Felicidade? As operações a que Kant nos submete circunscrevem-nos a um Universo de tal forma organizado que se afigura, numa palavra, inverosímil. Inventou o Homem consigo a Metafísica, subtraindo-se-lhe depois, deixando-a vazia, mas procurando-lhe o conteúdo. Olhando para dentro como se dentro fosse fora – em cima, sobretudo. Encanta-nos, a 3 Nietzsche, F. (1887). Para Além do Bem e do Mal. Lisboa, Círculo de Leitores
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Estética Transcendental. A Epistemologia. Vemo-nos dissecados, escrutinados e, salutarmente egocêntricos, debruçamo-nos mais ainda, irreflectidos Narcisos, reflectidos Narcisos! Cremos naquela Verdade, em todas as Verdades, porque nos vemos sempre nelas - fingere, de novo. Só a Arte pode ser Verdadeira. Só ela é inteiramente construída, inteiramente Humana, sem nada de extrínseco, sem nada de incompreensível – para além do Bem e do Mal, como o estamos nós, sem que o saibamos enfrentar convenientemente. E que consequências teria tal assunção? Aqui reside a verdadeira hipocrisia – nenhumas. Regressemos àquele homem, de que dissemos, que pobre é. Bateram-lhe, cuspiram-lhe, mataram-lhe a mulher, violaram-lhe a filha, queimaram-lhe a casa. Manipularam-no, extorquiram-no, depauperaram-no. Falem-lhe agora em Metafísica. Sentem-no, expliquem-lhe a dúvida metódica, desensinem-no de confiar nos sentidos, discorram sobre a terceira fórmula do Imperativo. Convençam-no da força ordenadora da Vontade. Digam-lhe do Bom, do Justo, da Paz que deles resulta. Ou revelem-lhe, “Gott ist tot” (Nietszche, 1882)4, não há Verdade. E que vos dirá ele? Que tem sede e fome: de água, de pão e de sangue, e talvez não por esta ordem. E o rico, que diz o rico? Diz que sim, diz sempre que sim, sorri, sorri mais se não compreende, faz-se sisudo se a incompreensão se prolonga demasiado, abraça-nos e segue caminho. Inquieto, talvez, mas nunca o bastante. As coisas do pensamento não lhe metem medo. O homem médio diz sempre que tem pressa. E é destas três espécies que se compõe o tecido social. Simplificamos, talvez, demasiado: todo o homem é, simultaneamente, tudo o que se descreveu. As classificações de que nos socorremos são, naturalmente, superficiais, más alegorias. Não deixam ainda assim de ilustrar o que se pretende dizer. As convulsões filosóficas dos últimos séculos pouco influenciam as vidas comuns (ou a vertente comum das vidas, a única que importa, ou que não importa, dependendo da perspectiva, e tanto faz). A satisfazer a tendência, já explorada, para o pensamento, está, frequentemente, a Ideia de Deus – complexa o suficiente para inquietar quando baste, comungando dela a Ideia de Bem, a Ideia de Justiça, de Conhecimento, enfim, todas as Ideias a que já se associou, algo
Nietzsche, F. (1882). A Gaia Ciência. Lisboa, Círculo de Leitores
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displicentemente, as Ideias de Paz, Felicidade, Segurança. Todas elas fortemente (não querendo dizer exclusivamente) povoadas de sensações. A relevância de todas as questões implicadas atrás é, claro, muito relativa. Por elas se batem os académicos, reclamando para si o mérito da descrição mais exacta possível das particularidades humanas. Talvez transformar a sisífica tarefa num exercício despreocupado, num jogo, dê novo alento à questão. Raramente as Ideias dos filósofos mudam o que quer que seja. Podemos, sim, dizer, como o disse Nietzsche5 (Nietzsche, 1887), que quase sempre as Ideias servem um programa, qualquer que ele seja, e que esse programa atrai determinados indivíduos, pertencentes a determinados círculos, que assim recheiam daquelas Ideias os seus discursos, não se dando conta de que se enchem de si mesmos e de que tropeçam em petições de princípio. Repetindo, raramente as Ideias dos filósofos mudam o que quer que seja. São na verdade os programas que se mudam a si mesmos, e têm sempre na base a experiência empírica. Ninguém se bate por nada a menos que o desconforto seja palpável ou que o desejo e a cobiça sejam sensíveis – não que tal seja condenável, formula-se apenas um enunciado descritivo. A crença de que a Ciência valida tudo o que se pensa conduziu à urgência de tudo revestir de teorias, de em tudo encontrar padrões, de para tudo fazer estudos. Depois de vulgarizado o Cientista, vulgarizou-se o Filósofo: chamou-se-lhe primeiro excêntrico, depois visionário, profeta, psicólogo; exigiu-se à Revolução Francesa um conjunto cerrado de Ideais (os filhos armados das Ideias) e impregnou-se tudo com eles, até que perdessem o sentido. E que importância tem tudo isto para o Direito? Em primeiro lugar, talvez se deva olhar com redobrada atenção para a Ciência do Direito. Não com altivez, jamais com desdém, mas sempre com prudência. A Ciência nunca é imparcial – não que pudesse ou devesse sê-lo – e é por isso que devemos esforçarnos por desdivinizar a Ciência. Se o seu grande mérito é procurar a objectividade nas coisas, descrevendo-as, devemos antes de tudo rir-nos dela, exorcizando o temor reverencial que nos assola frente a livros grossos, letras maiúsculas e palavras compridas. Se o seu mérito é o de fazer ou criar, se é de algum modo substantiva, então a Ciência é Arte e deve ser respeitada, mas reconheçamos já que não serve os propósitos que diz servir. É mais uma inverdade confortável e, dizemos, hipocritamente, creiamos nela! Creiamos nela, mas estudemo-la à porta fechada. Tratemo-la como a um inimigo.
5 Nietzsche, F. (1887). Para Além do Bem e do Mal. Lisboa, Círculo de Leitores
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Em segundo lugar, apliquemos ao Direito o exercício da dúvida metódica – para isto nos servem este e outros expedientes filosóficos – recuando sempre na cadeia de nexos de causalidade, e em diversas direcções. Embateremos sempre na questão da probabilidade. O que foi verdade é sempre indeterminável – como dito, já desde o conceito de Ideia. Que fazer? Recorre-se à construção deontológica criada e já explanada: dá-se o salto de fé, afirmando-se convictamente aquilo em que se crê mas não se sabe nem conhece, nem pode conhecer, em nome de algo mais valioso (porque anterior, porque condição sine qua non) que a Epistemologia – a sobrevivência. Sem dar lugar a culpa, já que se fez o melhor com o que se tinha, e basta. Em terceiro lugar, e coroando o que se disse, é preciso compreender o que está implicado quando nos é conferido o poder (sempre o poder) de alterar determinantemente a vida de outrem, sem que esse outrem no-lo tenha permitido. Escusemo-nos de considerações acerca do Contrato Social, a propósito do uso do verbo “permitir”. Fala-se agora do plano mais concreto de que é possível falar-se: não o nosso, mas o meu. Este. Exigem-se generosas doses de empatia, por forma a reconhecer no outro as qualidades que individualmente nos reconhecemos. Só depois de estabelecido este laço é possível compreender inteiramente o que significa compelir, obrigar, vincular, imputar, indiciar, ilibar, presumir, garantir, provar, e toda a miríade de verbos jurídicos que tantas vezes utilizamos e cujo eco, nas paredes dos anfiteatros, é quase sempre inócuo. É preciso sopesar o que se diz. É preciso estar para além do Bem e do Mal, mas não para lá do bom e do mau. A vida quotidiana exige de nós o desprendimento filosófico, ao mesmo tempo que nos exige a consciência desse desprendimento. Chamámos-lhe hipocrisia, noutro plano. Neste plano, chamamos bom senso. Se o relativo for sempre em proporção, rapidamente se torna absoluto, harmónico, sendo o excesso e o defeito eficientemente identificados. O problema sobressai no confronto de relativos e na expressa impossibilidade de se recorrer a um diapasão universal. Convencionamo-lo, assinamos documentos, e esperamos com isso estabelecer uma ordem global, a respeitar incondicionalmente. É a melhor das alternativas, não se encontra outra. A não ser, claro, a opção pelo isolamento, que, reductium ad absurdum, nos reconduziria a todos à solidão das nossas paredes, incapazes de comunicar, quem sabe, até connosco próprios. É preciso não esquecer que o Direito é Cultura. Uniformização significaria sempre subjugação, e somos avessos a experiências desse género – moralmente avessos, o que nos traz de novo ao problema da associação entre o Bom, o Moral e o Justo. Diria o autor, estar para além do Bem e do Mal permitir-nos-ia agir implacavelmente, conquistando o
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monopólio axiológico, pouco importando o seu conteúdo, importando sim a sua universalidade. Eis a verdadeira encruzilhada. Regressemos ao utilitarismo. Agindo cada indivíduo por forma a aproximar-se do bom e a afastar-se do mau – não correspondendo sempre o bom ao Justo, na concepção individual de cada um, ou seja, implicando-se aqui certa abnegação – tendencialmente produz-se um bom cada vez mais amplo. Hipoteticamente, um Bem. Talvez de abnegação seja afinal feito o consenso, contando que o consenso não é em torno da Verdade, mas do Bem, dispensando-se uma das Ideias problemáticas. Abnegação e empatia que, em conjunto, talvez logrem preencher o que se pretende dizer por Justo. Chegam-nos com simplicidade, com naturalidade, como verdadeira faculdade: não de conhecer, mas de reconhecer, de consentir, de ceder. Contrariar os instintos da organização animal está, também, para além da Moral. Chega-nos, e não há razão para explorar mais. Lembremonos, exaltação só frente ao indispensável. E porquê identificar o Justo com a combinação daqueles dois factores? Porque precisamente em resultado esforço de trazer para a ordem animal a Ideia de que toda uma classe de animais é igual, não valendo pela sua robustez, física ou, no nosso caso específico, intelectual, se introduz um desequilíbrio, apenas sanável pela empatia. Substituamos o conceito de Justiça pelo de Harmonia, e preenchamo-lo de coisas simples, compreensíveis: o silêncio, a quietude, o trabalho concertado. Talvez escapemos assim ao fatalismo bélico a que Nietzsche nos condena. Ou as lutas de que se falou devam ser só internas. Em todo o caso, o Direito vem impor consenso. O direito de resistência surge quando o consenso não é mais possível e se pretenda sobrepor à empatia, quando a abnegação não é mais recomendável. A cedência à ordem jurídica é a expressão máxima de abnegação que nos permitimos. Seria talvez relevante discutir se tendemos para o consenso, contrariando a ideia de crescimento através do confronto, para o comodismo, em oposição à tendência para o pensamento, ou se não tendemos para nada, e aceitamos o que nos é oferecido placidamente, despreocupadamente. Discordamos da pertinência da questão por duas razões: por um lado, que importa para que tendemos? Importa apenas para onde queremos inclinar-nos. Por outro, e não esquecendo que se pretende localizar estas questões no âmbito do Direito, seria desadequado pensá-las fora do caso concreto. E no caso concreto impera o circunstancialismo, que facilmente invalida qualquer sombra de teoria que aqui se exponha ou explore. Citando-nos, “a imaginação [é] uma fábrica de infinitas associações conceptuais” – e a acção, plano primordial de toda a prática jurídica, exprime justamente aquela inventividade, dentro dos limites do fisicamente possível, e
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no palco concreto da nossa existência corriqueira. É dessa existência que se ocupa o jurista, e eis então a principal dissemelhança relativamente ao filósofo: este vagueia sem espaço sem tempo, aquele ocupa-se do tempo e do espaço.
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Bibliografia Nietszche, N. (1882). A Gaia Ciência. (M. Rodrigues de Carvalho, M. L. de Almeida, & M. E. Casquinho, Trads.) Lisboa, Portugal: Círculo de Leitores. Nietzsche, F. (1873). Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral. (H. H. Quadrado, Trad.) Lisboa: Círculo de Leitores. Nietzsche, F. (1878). Humano, Demasiado Humano -‐ Um Livro Para Espíritos Livres. (P. Osorio de Castro, Trad.) Lisboa: Círculo de Leitores. Nietzsche, F. (1886). Para Além do Bem e do Mal (Prelúdio a Uma Filosofia do Futuro). (C. Morujao, Trad.) Lisboa: Círculo de Leitores. Nietzsche, F. (1887). Para a Genealogia da Moral -‐ Um Escrito Polémico. (J. M. Justo, Trad.) Lisboa: Círculo de Leitores. Pessoa, F. (1925). O Guardador de Rebanhos. Lisboa: Assírio & Alvim.
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