Para além do Véu de Maia: Bioética e Direito Animal sob o prisma da ética da compaixão de Arthur Schopenhauer

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UNIVERSIDADE DA REGIÃO DE JOINVILLE – UNIVILLE CURSO DE DIREITO – NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

PARA ALÉM DO VÉU DE MAIA: BIOÉTICA E DIREITO ANIMAL SOB O PRISMA DA ÉTICA DA COMPAIXÃO DE ARTHUR SCHOPENHAUER

LUCAS SCAGLIUSI MIGUEL

Orientadora: Profª. Drª. Fernanda Brandão Lapa

Joinville (SC), julho de 2015.

UNIVERSIDADE DA REGIÃO DE JOINVILLE – UNIVILLE CURSO DE DIREITO – NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

PARA ALÉM DO VÉU DE MAIA: BIOÉTICA E DIREITO ANIMAL SOB O PRISMA DA ÉTICA DA COMPAIXÃO DE ARTHUR SCHOPENHAUER

LUCAS SCAGLIUSI MIGUEL

Monografia submetida à Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientadora: Profª. Drª. Fernanda Brandão Lapa

Joinville (SC), julho de 2015.

Meus agradecimentos:

À minha orientadora, Professora e Doutora Fernanda Brandão Lapa, por ter desempenhado sua ocupação com excelência. Aos Professores desta instituição, por terem me ajudado a desvendar os caminhos do Direito.

Dedico esta obra:

Aos meus pais Roberto dos Santos Miguel e Vânia Scagliusi, pela educação e carinho; Ao meu amigo Guilherme Waldrigues Werpachowski¸ responsável por ter feito eu conhecer a obra de Arthur Schopenhauer.

Em especial ao meu pequeno irmão, Enzo Scagliusi, por ter me ajudado e motivado a tolerar a vida, algo que nenhuma filosofia pode ensinar.

“A primeira regra do bom estilo, uma regra que praticamente se basta sozinha, é que se tenha algo a dizer”. Schopenhauer, A Arte de Escrever.

PÁGINA DE APROVAÇÃO

A presente monografia de conclusão de Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE, elaborada pelo graduando LUCAS SCAGLIUSI MIGUEL, sob o título PARA ALÉM DO VÉU DE MAIA: BIOÉTICA E DIREITO ANIMAL SOB O PRISMA DA ÉTICA DA COMPAIXÃO DE ARTHUR SCHOPENHAUER, foi submetida em _____de __________de 2015 à Banca Examinadora, obtendo a média final _____ (______________________________________), tendo sido considerada aprovada.

Joinville, _____ de _________________ de 2015.

_________________ Prof.

__________________ Prof.

___________________ Prof.

DECLARAÇÃO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE, a Coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora, o Orientador e o Co-Orientador (se houver) de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

Joinville (SC), _____ de _________________ de 2015.

LUCAS SCAGLIUSI MIGUEL GRADUANDO

ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CRFB

Constituição da República Federativa do Brasil

CONCEA

Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal

CEUAs

Comissões de Ética no Uso de Animais

UNIVILLE

Universidade da Região de Joinville

AUTORIZAÇÃO DE PUBLICAÇÃO PARA FINS CIENTÍFICOS

Autorizo a publicação do presente trabalho, para fins unicamente científicos, na rede mundial de computadores, sítio da Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE, sem quaisquer ônus a esta.

Declaro, ainda, ter sido informado de que a presente autorização não me foi colocada de forma obrigatória e que a aprovação do presente conteúdo perante a Banca Examinadora não depende daquela.

Joinville (SC), _____ de _____________ de 2015.

LUCAS SCAGLIUSI MIGUEL GRADUANDO

SUMÁRIO

RESUMO .......................................................................................................... xi INTRODUÇÃO ................................................................................................. 1

Capítulo 1 BIOÉTICA 1.1. CONTEXTO HISTÓRICO.............................................................................. 2 1.2. NOTAS CONCEITUAIS .............................................................................. 13 1.3. PARADIGMAS E PRINCÍPIOS BIOÉTICOS .............................................. 17 1.3.1. Principialista ........................................................................................... 18 1.3.2. Paradigma libertário ............................................................................... 23 1.3.3. Paradigma das virtudes ......................................................................... 24 1.3.4. Paradigma casuístico............................................................................. 24 1.3.5. Paradigma fenomenológico e hermenêutico ....................................... 25 1.3.6. Paradigma narrativo ............................................................................... 26 1.3.7. Paradigma do cuidado ........................................................................... 26 1.3.8. Paradigma do direito natural ................................................................. 28 1.3.9. Paradigma contratualista....................................................................... 28 1.3.10. Paradigma antropológico personalista .............................................. 29 1.4 NOTA CONCLUSIVA................................................................................... 29

Capítulo 2 SUJEITO E PESSOA 2.1. ANÁLISE CRÍTICA ..................................................................................... 31 2.2. PRESSUPOSTOS KANTIANOS ................................................................ 40 2.3. FILOSOFIA SCHOPENHAUERIANA ......................................................... 41 2.3.1 Introdução ao pensamento ..................................................................... 42

2.3.2 Vontade, ideia e objetos; essência e diferença .................................... 44 2.4. PERSPECTIVAS ......................................................................................... 45 2.4.1 Perspectivas kantianas ........................................................................... 45 2.4.2 Perspectivas schopenhauerianas e singerianas .................................. 52 2.5 NOTA CONCLUSIVA................................................................................... 62

Capítulo 3 BIOÉTICA ANIMAL EM SCHOPENHAUER 3.1. MORAL E DIREITO .................................................................................... 64 3.1.1. Moral ........................................................................................................ 64 3.1.2. Direito ...................................................................................................... 67 3.2. FUNDAMENTOS PARA UMA BIOÉTICA ANIMAL ................................... 71 3.3. OS ANIMAIS E A ÉTICA DE SCHOPENHAUER NO MUNDO ATUAL ..... 76 3.3.1. Os animais enquanto fenômenos ......................................................... 76 3.3.2. Os animais enquanto vontade .............................................................. 85

CONCLUSÃO ................................................................................................ 99 REFERÊNCIAS ........................................................................................... 102 REFERÊNCIAS LEGISLATIVAS ............................................................ 106

RESUMO

A presente pesquisa está direcionada a uma análise ética acerca das condutas que os seres humanos, no decorrer dos tempos, vem tomando em face dos animais. Com efeito, com o escopo de esclarecer o assunto, foi desenvolvida uma análise histórica e conceitual envolvendo o termo Bioética de uma maneira em geral, abrangendo assim termos como pessoa, autoconsciência, consciência e senciência, bem como foi explanada a teoria da moral kantiana, que torna os animais alheios à ética, para confrontá-la com as teses de Schopenhauer e Singer, nas quais os animais já são considerados como seres morais autônomos. Ademais, foi preciso elucidar o sistema moral e jurídico de Schopenhauer, que por sua vez serviu como diapasão para se avaliar as ações dos homens diante dos animais, positiva e negativamente, narrando para tanto exemplos de testes realizados com animais, além de expor as legislações que almejam protegê-los. Com o término do estudo, constata-se que não existe um entendimento consolidado acerca do real estatus jurídico dos animais, no entanto, o mesmo parece não ocorrer quanto ao estatus moral dos animais, porquanto a senciência vem servindo como um forte argumento para abrangê-los sob esta ótica.

INTRODUÇÃO

O objeto deste Trabalho de Conclusão de Curso é a investigação acerca do movimento jurídico que vem chamando a atenção de muitos na atualidade, a saber, a consideração Ética pelos animais e, consequentemente, uma investigação sobre a fundamentação da Bioética Animal e do Dreito dos Animais. O seu objetivo institucional é a produção de Monografia para a obtenção de título de Bacharel em Direito pela Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE. O objetivo geral do trabalho é mostrar aos leitores o resgate da filosofia ética de Arthur Schopenhauer para enxertar suas ideias no âmbito jurídico, o que acaba por salutar as colocações feitas por juristas e filósofos sobre o tema, alentando assim que mais pensadores cogitem sobre essa possibilidade de estudar a situação dos Animais. Os objetivos específicos são: estudar a Bioética, seu contexto histórico, conceito e princíoios; revisar o conceito de pessoa e sua suposta relevância para questões éticas; por fim, abordar aspectos morais e jurídicos envolvendo os animais. Desta forma, os objetivos específicos desta pesquisa estão diretamente relacionados com a importância que se tem de revisar a condição do animal em face das ações especistas do ser humano. Adotou-se o método dedutivo, operacionalizado com as técnicas da pesquisa bibliográfica e fichamentos, dividindo-se o trabalho em três capítulos. O primeiro capítulo tratará da Bioética, exponto sua história, definição, paradigmas e princípios. Na segunda parte será abordado o conceito de pessoa, tanto o adotado na dogmatica jurídica, quanto nas filosofias de Kant, Schopenhauer e Singer. Já no Capítulo 3 expor-se-á a filosofia moral e jurídica de Schopenhauer, colimando availiar a condição dos animais diante dos seres humanos, tanto em seus momentos de sofrimento, quanto nos momentos nos quais são tutelados pela Lei. Findando o conteúdo investigatório, nas considerações finais apurar-se-á o que foi possível concluir da pesquisa.

Capítulo 1 BIOÉTICA

1.1. CONTEXTO HISTÓRICO

A Bioética, sendo uma vertente do século XX, surgiu em razão de que determinados fatores, sob o paradigma vigente, não foram abordados com propriedade, ou mesmo ignorados, e colocaram em risco a sobrevivência do homem, como apontado por Potter.1 O paradigma vigente, tradicionalmente, nada mais foi do que a Ética antropocêntrica, isto é, aquela voltada para o homem em relação a outro homem sob a ideia do valor do bem (“o que é correto fazer diante de outro ser humano?”), desconsiderando, assim, conforme o autor, a preocupação da ética em voltar-se para a natureza, para o meio ambiente e, o que é de mais relevância para Potter, para a ciência biológica. O contexto histórico da Bioética só tem sentido se observado o contexto anterior (que foi a sua razão de ser) na medida em que ela veio com o fito específico de resolver algo até então ignorado pelo status quo e que acabou por se tornar um sério problema para todo mundo. E para reportar esta informação, vide que, em seu artigo Bioética, a ciência da sobrevivência, Potter diz o seguinte acerca desses problemas:

O meio ambiente natural do homem não é ilimitado. A educação deveria estar desenhada para ajudar a que a gente entenda a natureza do homem e sua relação com o mundo. (...) O homem é considerado como uma máquina cibernética exposta ao erro. (...) A sobrevivência do homem pode depender da ética embasada no conhecimento biológico, daí a Bioética. (tradução livre)2

1

POTTER, Van Renssealer. Bioética, la ciencia de la supervivência. Disponível em: . p.121 2 POTTER, Van Renssealer. Bioética, la ciencia de la supervivência. Disponível em: . p.121

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Diante do excerto suso, evidente fica que até então a ética não abrangia determinadas questões, sendo que logo em seguida Potter exorta que O que agora devemos enfrentar é que a ética humana não pode ser separada de um entendimento realista da ecologia no sentido mais amplo da palavra. (...) Temos uma grande necessidade de uma ética da terra, de uma ética da vida selvagem, de uma ética da população, de uma ética do consumo. De uma ética urbana, de uma ética internacional, de uma ética geriátrica etc.3 (tradução livre, sem grifo no original)

Para ele essas éticas dariam conta do que até agora tinha sido ignorado pela ética tradicional. Mas no momento isso seria apenas uma apresentação introdutória da Bioética que será mais bem compreendida quando demonstrada a transição de paradigmas, começando pelo que se segue. No século XVI e XVII o Ocidente passou por um processo chamado Iluminismo, tendo como intelectuais conspícuos desse período Descartes, Galileu, Newton e Bacon. Por consequência, o homem passou a ter uma visão mecanicista da realidade4, abandonando para tanto a visão organísmica adotada até então 5. Nesse contexto, Grün assevera que a noção aristotélica da natureza como algo animado e vivo, na qual as espécies procuram realizar seus fins naturais, foi substituída pela ideia de uma natureza sem vida e mecânica6. O surgimento do mecanicismo que paulatinamente afastava o organicismo da consciência dos homens foi um consectário da proposta de Galileu em perfilhar que, o homem, em face da natureza, tem que deixar de lado as qualidades dos objetos e voltar-se tão somente ao aspecto formal, a saber, ao movimento, forma e quantidade7. Tal postura ensejou que se considerasse a matemática como o fundamento de tudo8 e, a partir dela, que tudo fosse purificado e objetivado, pois as formas existem por si, independentes do sujeito cognoscente; já as qualidades, ao contrário, dependem da sensibilidade deste mesmo sujeito, logo, são subjetivas, o mesmo que dizer, não são “dignas de consideração” em virtude de que a natureza mecânica é o que é pela sua característica primária, a saber, a formalidade, o que é de real nos corpos, como 3

POTTER, Van Renssealer. Bioética, la ciencia de la supervivência. Disponível em: . p. 122 4 OS PENSADORES. História da filosofia. p 183 5 GRÜN, Mauro. Ética e educação ambiental. A conexão necessária. p.28 6 GRÜN, Mauro. Ética e educação ambiental. A conexão necessária. p.28 7 GRÜN, Mauro. Ética e educação ambiental. A conexão necessária. p 30 8 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia. Do humanismo a kant. Vol 2. p 281

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extensão, figura, solidez etc. tal como postulara Locke9, e não por suas características secundárias. Outrossim, Grün, no que tange a Bacon, explana que:

O projeto baconiano era o de converter a natureza (orgânica) na Nova Atlântida. Assim, Bacon começava a desenhar a linha divisória moderna entre natureza e cultura. Uma linha que acabaria se inscrevendo fortemente na história, cindindo de modo irremediável os seres humanos e a natureza. Cisão esta que tomaria as proporções de um abismo nos séculos subseqüentes.10

Ainda no que toca a Bacon, consoante Grün, aquele professava que o ser humano deveria ser o senhor de seu destino, motivo pelo qual ele também deveria ser senhor de todas as coisas do mundo.11 Assim, esses ideais condicionaram os homens ao domínio da natureza. Com efeito, a razão instrumentalizou-a com o objetivo de racionalizar a realidade. O ponto em que há esse anelo pelo Racional foi tão nevrálgico que houve uma dispersão em várias ciências, sendo um meio de potencializar esse imperium rationis sobre a realidade, pois reduzindo a atenção cada vez mais a um âmbito epistêmico específico, em que pese limite a percepção externa da realidade (em suma, quanto mais se estuda só física, ou só química, ou só biologia etc., estudando os componentes mais elementares da realidade oferecidos pelas respectivas ciências, menos se sabe das outras ciências), favorece o homem a um conhecimento mais percuciente, interno, sendo que a dispersão justamente se deu para compensar essa carência de percepção externa, mas ainda assim não se levava em conta as interferências entre as disciplinas que estavam progredindo12, como bem lembrado por Morin (p. ex.: aprofunda-se na química e na biologia, mas a rede entre ambas é imperceptível). Por conseguinte, o século XIX (que foi uma consequência do projeto instrumental) exigia as ciências como parte do currículo educacional em razão da sociedade estar industrializada e voltada ao comércio, assim, a educação tornou-se obrigatória13, e ainda existem resquícios disso no modelo de lecionar hodierno. Impondo a aludida obrigação, todo indivíduo estaria cônscio de sua autoridade sobre o mundo, todos 9

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia. Do humanismo a kant. Vol 2. p 514 GRÜN, Mauro. Ética e educação ambiental. A conexão necessária. p, 33 11 GRÜN, Mauro. Ética e educação ambiental. A conexão necessária. p, 33 12 MELMEIDA, Elimar Pinheiro; VEGA, Afredo Pena (orgs.). O pensar complexo: Edgar Morin e a crise da modernidade. p. 22 13 GRÜN, Mauro. Ética e educação ambiental. A conexão necessária. p, p, 39 10

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conheceriam a natureza. Logo, o cogito cartesiano, o “eu”, neste contexto, era o usuário da natureza que já estava “desnudada”, “despida”, diante dos olhos do sujeito que a conhece, estando passível de manipulação, podendo ser reordenada e reorganizada14. O racionalismo de Descartes, por exemplo, almejou simplificar a natureza, pois a razão, mediante teorizações, queria conhecer e dominar o mundo, unificando-o num modelo mecânico que facilitava tal desiderato15. Pode-se asseverar que nesse contexto o que predominou intelectualmente foi o reducionismo16, mecanicismo17, o racionalismo18 e o individualismo19. Essas quatro características compunham a tessitura ética dos renascentistas. Logo, pode-se inferir o seguinte corolário: a ética apenas tinha um caráter antropocêntrico, ou seja, havia uma espécie de torpor moral em relação aos animais e ao ecossistema, pois o Sujeito epistemológico estava desvinculado do Mundo e a razão ao instrumentalizar a natureza (abrangendo aqui os animais) tornou-a uma “coisa”, sem vitalidade, algo devasso, em suma, um Objeto20. Milaré complementa com a seguinte passagem

o antropocentrismo teve grande força no mundo ocidental, em virtude das posições racionalistas, partindo-se do pressuposto de que a razão (ratio) é atributo exclusivo do homem e se constitui no valor maior e determinante da finalidade das coisa. A tradição judaico-cristã reforçou esta posição de suposta supremacia absoluta e incontestável do ser humano sobre todos os demais seres. Por fim, o racionalismo 14OS

PENSADORES. História da filosofia. p 202 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia. Do humanismo a kant. Vol 2. p 378 16 Reducionismo advém de redução, que, conforme o Dicionário de Filosofia de Abbagnano é uma “explicação que consiste em considerar que certas ordens de fenômenos estão sujeitas a leis mais bem estabelecidas ou mais precisas que uma outra ordem de fenômenos, p. ex., a que consiste em considerar que os fenômenos orgânicos estão submetidas às leis dos fenômenos físicos, enquanto estes últimos estão sujeitos às leis dos fenômenos mecânicos” 17 Abbagnano conceitua mecanicismo como uma “explicação (...) que utiliza exclusivamente o movimento dos corpos, entendido no sentido restrito do movimento espacial. (...) Como concepção filosófica do mundo, o mecanicismo apresentou-se desde a Antiguidade como atomismo. A concepção do mundo como um sistema de corpos em movimento, como uma grande máquina” e, em termos científicos, conceitua-o como uma “tese de que todos os fenômenos da natureza devem ser explicados pelas leis da mecânica, e que, portanto, a própria mecânica deve ter um status privilegiado entre outras ciências, porquanto lhes fornece os princípios explicativos”. 18 De acordo com o Dicionário de Filosofia, de Abbagnano, entende-se por uma “atitude de quem confia nos procedimentos da razão para a determinação de crenças ou de técnicas em determinado do campo (...) sem sua significação genérica, pode ser usado para indicar qualquer orientação filosófica que recorra a razão”. Por sua vez, no Dicionário de Filosofia de Durozoi e Roussel, entende-se que para o racionalismo o “pensamento racional é capaz de alcançar a verdade absoluta na medida em que suas leis são igualmente aquelas às quais o real obedece”. 19Durozoi e Roussel dizem que o individualismo é “qualquer atitude que coloca em qualquer domínio o indivíduo em primeiro plano” 20PELIZZOLI, Marcelo (org.). Bioética como novo paradigma. Por um novo modelo biomédico e biotecnológico. In: _____. A bioética como novo paradigma: Crítica ao cartesianismo. p, 141 15

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moderno e o desenvolvimento dos segredos da natureza ensejaram ao homem a posição de arrogância e de ambição desmedida que caracterizaram o mundo ocidental contemporâneo. E o desenvolvimento cientifico tecnológico, submetido ao controle capital para efeitos de produção e criação de riquezas artificiais, desembocou nessa lamentável "coisificação" da natureza e dos seus encantos21. (sem grifos no original)

Ao abordar o contexto histórico do renascimento deve-se fazer uma ressalva e reconhecer que o ser humano, como animal, horizontalmente encontra-se enraizado na natureza (ao lado de qualquer outro ser vivente), todavia, verticalmente, em razão de sua qualidade racional, realmente se encontra numa posição vertical em relação ao mundo22. Porém, uma diferença biológica não equivale a uma diferença moral, só que no que tange aos animais, desde os fundamentos da cultura ocidental, o ser humano, por intermédio do judaísmo23, legitimou uma ética antropocêntrica ao colocar-se como centro da natureza, como uma criação peculiar sobre outros seres vivos, algo que perdurou durante a Modernidade, e até entre os conservadores do século XXI. Em relação aos animais, alguns autores24, como se verá nos Capítulos II e III, imputam ao judaísmo e ao cristianismo a responsabilidade pela ética mencionada e reprocham-nos pelas consequências que daí dimanaram, pois como um fator cultural eles foram uma base determinante, mesmo que durante a Idade Média, sob a influência da filosofia aristotélica jungida ao próprio cristianismo, o ser humano ainda mantinha uma perspectiva organicista do Mundo, no entanto, no que tange aos animais já havia uma indiferença. Porém, com o decorrer do tempo, essa perspectiva não foi mais palatável e começou a enlanguescer em virtude de eventos extemporâneos, conseguintemente, o arcabouço racional solapou. Oportunamente o argumento de Kuhn elucida o porquê que a Luz da Modernidade se extenuou. O filósofo Kuhn, mais precisamente, um sociólogo da epistemologia, é pertinente para uma alumiação da gênese da Bioética, mesmo que no fundo seja feita apenas uma analogia. Para isso é necessário apontar as seguintes premissas:

21

MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. A gestão ambiental em foco. doutrina. jurisprudência. glossário. p. 77 22 FILIPO, Selvaggi. Filosofia do mundo. Cosmologia filosófica. p. 31 23 FELIPE. Sônia T. Por uma questão de princípios. Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais, 2003. p. 26 24 Sonia T. Felipe, Peter Singer, Danielle Tetü Rodrigues e Arthur Schopenhauer.

7

1.

A ética, não obstante não ser uma ciência propriamente dita, tem um

objeto de estudo, sendo este o bem e o mal; 2.

Kuhn denomina, no âmbito dos paradigmas, a “ciência comum”, sendo

“as práticas teóricas e experimentais que são regidas pelas regras ou princípios do paradigma vigente”25. Em outras palavras, “as leis ou teorias estabelecidas não podem contradizer estes princípios ou regras”26. Neste sentido, paradigma pode ser traduzido como um olhar predominante sobre a realidade, sobre o orbe, seja social (ética), seja natural (física); é um modelo de diretrizes que influenciam o campo de percepção do ser humano e limitam suas considerações por alguns determinados fatos; 3.

O paradigma começa a mudar a partir das seguintes considerações

citadas pelo filósofo, a saber:

Devemos agora perguntar como podem surgir tais mudanças, examinando em primeiro lugar descobertas (ou novidades relativas a fatos), para então estudar as invenções (ou novidades concernentes à teoria). [...] A descoberta começa com a consciência da anomalia, isto é, com o reconhecimento de que, de alguma maneira, a natureza violou as expectativas paradigmáticas que governam a ciência normal27

Nesse momento, como explica Kuhn, ainda não há uma mudança do prisma pelo qual o homem vê o mundo, pois há quem tome uma postura conservadora (para, com base no paradigma vigente, lidar com essa anomalia, seja com honestidade, seja com ad hoc’s ou mesmo com desconsideração por ela) e há quem queira propor algo novo em vista dessas anomalias. Muitas vezes nessa situação a resistência em face do novo dá-se por questões de foro íntimo, como motivos religiosos e/ou emocionais, em suma, por questões extrínsecas à metodologia científica, negando o caráter da anomalia de contraexemplo do paradigma, em outras palavras, quem era para ser crítico e almejar uma episteme (um conhecimento objetivo) acaba sendo dogmático e resvalando para o dogma (uma crença que quer ter estatuto de conhecimento)28; 25OLIVA,

Alberto (org.) Epistemologia: a cientificidade em questão. In: EPSTEIN, Isaac. Thomas s. Kuhn: a cientificidade entendida como vigência de um paradigma. p. 108 26OLIVA, Alberto (org.) Epistemologia: a cientificidade em questão. In: EPSTEIN, Isaac. Thomas s. Kuhn: a cientificidade entendida como vigência de um paradigma. p. 108 27 KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. p. 78 28 Por “dogma”, em consonância com o significado apresentado no dicionário Aurélio (“Ponto fundamental e indiscutível de uma crença religiosa”) entende-se por uma fé (numa acepção além da religiosa) em certo juízo sobre algo, que se acredita ser sempre verdadeiro, até mesmo em face outras informações contra exemplares, justamente por mera postura de crença. O cientista tem fé (que se

8

4.

As invenções surgem quando o paradigma vigente acaba por não ser

mais viável para solucionar certas questões essenciais que são suscitadas. As anomalias não são absorvidas pelo paradigma que se manteve até então29 causando, por conseguinte, uma crise. 5.

O paradigma em crise não se transforma em outro cumulativamente, isto

é, o antigo paradigma não emerge numa roupagem nova; ele se transforma pela criação de novos princípios, ocorrendo assim uma revolução científica. Kuhn é muito claro ao dizer que a transição

é antes uma reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações.30

Com efeito, a partir dessas considerações pode-se adentrar historicamente no (novo) paradigma da Bioética na medida em que foi compreendido seu processo, o seu vir a ser. Pelizzoli, semelhante à Sauwen e Hryneiwicz, diz que a bioética surge dentro de um grande paradigma nascente que abrange vários eventos, a saber: movimento pela paz; atrocidades da II Guerra mundial e Tribunal de Nuremberg; direito humanos; volta à natureza e a questão ecológica; desenvolvimento sustentável; movimento feminista; defesa e da diferença e alteridade; renascimento da sabedoria oriental antiga no Ocidente, por exemplo, a não-violência e a compaixão do budismo; movimentos culturais de protesto e movimentos sindicais, de luta pela terra, de reformas, revoluções sociais etc31 32., e complementa que É diante disso que se conclui pela emergência do paradigma ecológico (oikos e logos, a racionalidade e sentido da casa, no amplo e interdependente sentido do termo, envolvendo vizinhança, polis e o planeta, começando igualmente na mente humana). A bioética não pode ser separada deste “espírito do tempo”, e tomada apenas como novo ramo da biologia ou mesmo da teoria ética. Suas implicações e assemelha à religiosa, mas com esta não se confunde) numa “verdade” e acredita sê-la indiscutível, mesmo que refutada. Em contraste, o cientista propriamente dito mantém-se aberto às críticas e aos fatos contra-exemplares de que fala Kuhn. 29 OLIVA, Alberto (orgs.). Epistemologia: a cientificidade em questão. In: EPSTEIN, Isaac. Thomas s. Kuhn: a cientificidade entendida como vigência de um paradigma. p. 112 30 KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. p. 116 31 PELIZZOI, Marcelo. Bioética como novo paradigma. Por um novo modelo biomédico e biotecnológico. In: _____. A bioética como novo paradigma: Crítica ao cartesianismo. p, 145-5 32 SAUWEN, Regina Fiuza; HRYNIEWICZ, Severo. O Direito “in vitro”. Da bioética ao biodireito. p, 31

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ilações são revolucionárias na raiz da questão, mesmo sem armas (com grifo no original)33

De acordo com Diniz o neologismo foi engendrado por Van Rensselaer Potter, na Universidade de Wisconsin em sua obra Bioética: uma Ponte para o Futuro de 197134. Ao menos o seu marco histórico é reconhecido como criador do termo, porém, como emprego institucional da palavra “bioética”, Pessini e Barchifontaine atribuem a Andre Hellegers, na Universidade de Georgetown outro marco histórico, que designou a área de pesquisa ou campo de aprendizagem específico sob o termo. 35 Potter, ao criar o neologismo, tinha em mente um acuro com a sustentabilidade do ecossistema e com a convivência racional do homem com o meio-ambiente. Consequentemente, o uso da palavra “bia” deu-se em razão de sua pretensão da união das ciências biológicas com as humanas e com a filosofia. Sgreccia é quem melhor explica acerca do raciocínio de Potter em erigir uma “ponte para o futuro” tendo como ponto de partida o contexto histórico cartesiano já citado, bem como auxilia a conceituar a Bioética. O autor transcreve que

A clara distinção entre os valores éticos (ethicalvalues), que fazem parte da cultura humanista em sentido lato, e os fatos biológicos (biologicalfacts) está na raiz daquele processo científico-tecnológico indiscriminado que, segundo Potter, põe em perigo a humanidade e a própria sobrevivência da vida sobre a terra. O único caminho possível de solução para essa iminente catástrofe é a construção de uma “ponte” entre as duas culturas, a científica e a humanístico-moral. Em outros termos, a ética não deve se referir somente ao homem, mas deve estender o olhar para a biosfera em seu conjunto, ou melhor, para cada intervenção científica do homem sobre a vida em geral.36 (sem grifo no original)

Todavia, a Bioética como se entende hoje condiz parcialmente com o que Potter queria, pois ela acabou por ser ampliada e o que se tinha como o desiderato potteriano no início passou a estar paralelamente, sempre com a mesma razão de ser, ao lado de outros objetivos.

33

PELIZZOI, Marcelo. Bioética como novo paradigma. Por um novo modelo biomédico e biotecnológico. In: _____. A bioética como novo paradigma: Crítica ao cartesianismo. p, 146. 34 DINIZ, Deboora; GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. P. 11 35 PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p. 18 36 SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Fundamentos e ética biomédica. p, 24

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Mas Heck atribuiu à medicina como sendo a origem da Bioética37. Seu argumento é fatual: Em 1954, com o primeiro transplante renal bem-sucedido, a medicina não mais conhece óbices intransponíveis e vê-se obrigada a lidar sistematicamente com os mecanismos de aquisição e distribuição de órgãos. Com isso, os critérios até então majoritariamente aceitos em relação à morte cerebral tornaram-se duvidosos e moralmente controvertidos. A descoberta da técnica de depuração sanguínea, em 1961, pelo Dr. B. Scribner, em Seattle, confrontou os operadores da Saúde com a indução da morte de pacientes em razão de falta de acesso à máquina de hemodiálise. A introdução da pílula anticoncepcional no mercado deflagrou uma mudança radical no comportamento sexual e criou possibilidade de planejamento familiar e profissional, consideradas inconcebíveis até a década de 1960. O desenvolvimento de técnicas mais seguras e legalmente acessíveis de interrupção da gravidez levou a uma reavaliação normativa das práticas usuais do aborto38

Conforme as palavras de Heck, percebe-se o fenômeno que foi descrito pelo raciocínio supramencionado de Kuhn, na medida em que esses novos fatos (símile às anomalias) desembocaram em desafios para os médicos, desafios estes que não foram satisfatoriamente resolvidos. Com efeito, Heck assevera que a ética tradicional dos médicos simplesmente “ordenava prioritariamente as relações dos profissionais da medicina entre si e prevê, apenas subsidiariamente, indicativos para condutas externas, de modo que a relação médico-paciente permanece secundária”39. O termo “tradicional” tem que ser assinalado porque, mesmo que Heck esteja enganado no que tange à gênese da Bioética, seu raciocínio descreve como ela ocorreu independentemente de quem tem a razão (e acaba elucidando o pensamento de Kuhn, que, por sua vez, descreve o próprio processo que deu origem a Bioética), pois de certo modo todos compreendem que a principal diferença é que a Bioética, diferentemente da ética per si, é complexa. Logo, o novo paradigma que se impôs (antitético ao tradicional) foi de reivindicar uma relação transparente e responsável, com o escopo de “buscar resoluções dos conflitos entre a ética médica deontológica e as reivindicações dos cidadãos por maior transparência e responsabilidade pública, a par das conquistas biológicas”40.

37

HECK, José. Bioética: autopreservação, enigmas e responsabilidade. p. 13 HECK, José. Bioética: autopreservação, enigmas e responsabilidade. p. 14 39 HECK, José. Bioética: autopreservação, enigmas e responsabilidade. p. 15 40 HECK, José. Bioética: autopreservação, enigmas e responsabilidade. p. 15 38

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Além de Heck, é do alvitre de Pessini, Barchifontaine e de Diniz que a medicina é o berço histórico da Bioética. Esta afirma que Mas, por que bioética? Que é e para que serve o biodireito? Essas indagações surgem em razão da perplexidade e do forte impacto social provocado pelos problemas decorrentes das inovações das ciências biomédicas, da engenharia genética, da embriologia e das altas tecnologias aplicadas à saúde.41 (sem grifo no original)

Paralelamente a Heck, Diniz também aborda a ética tradicional como o norte do modus operandi dos profissionais da saúde. A exposição dela é igualmente fatual: A bioética, enquanto novo semblante da ética médico-científico, desenvolveu-se, portanto, a partir: dos grandes e avassaladores avanços da biologia molecular e da biotecnologia aplicada à medicina ocorridos nos últimos 30 anos; da denúncia dos abusos cometidos contra o ser humano pelas experiências biomédicas; do perigo das aplicações incorretas da biomedicina e da engenharia genética; da incapacidade dos códigos éticos e deontológicos para guiar a boa prática médica; do pluralismo moral que reina na sociedade atual; da maior aproximação dos filósofos e teólogos com os problemas relacionados com a qualidade da vida humana, assim como com seu início e fim; do posicionamento e das declarações dos organismos internacionais e de instituições não governamentais sobre os temas voltados à nova ética médica e das intervenções do Judiciário, Legislativo e Executivo sobre questões envolvendo direitos fundamentais do homem relacionados à sua vida, saúde, reprodução e morte42

Pessini e Barchifontaine afirmam que em meados dos anos 60 do século XX ocorreu algo até então inovador: os pacientes agora decidiam se faziam ou não um determinado tratamento médico, quer dizer, eram providos de autonomia. Além disso, citam outros fatos: i) no julgamento de Nuremberg constataram-se experimentos humanos por parte dos médicos nazistas, algo que desrespeitou o bem-estar dos indivíduos; ii) houve o primeiro caso de transplante de um coração nos anos 60, mas quanto a isso, veio junto a indagação: “de quem era o coração, de um humano em óbito sem relação com essa intenção, ou morto para isso?”; iii) os envolvimentos de teólogos nas questões médicas, em especial o aborto e eutanásia, pois o que está em análise é uma vida, isto é, um ser que tem alma; por fim, iv) a nova definição de morte, a saber, de que a morte cerebral equivale a morte em si, entretanto, isso 41 42

DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. p. 1 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. p, 6.

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levanta a seguinte reflexão para casos de pacientes inconscientes: “mas estar vivo biologicamente (em virtude das tecnologias respiratórias, renais e cardíacas) é diferente de estar vivo sapiente e conscientemente, passível de gozos e sentimentos”. 43

Após essas interpretações históricas aparentemente divergentes, não se pode titubear ao afirmar que independentemente de sua origem ser especificamente devida à medicina ou à preocupação com a vida em si (até porque ambos os momentos são essenciais a Bioética, pouco importando, de facto, quando, exatamente, originou-se, sendo que, até Heck afirma que Potter, com sua máxima “valores éticos não podem estar separados de fatos biológicos”, foi quem teve impacto no establishment científico44), é indubitável que o cerne da Bioética é constituído pelo pensamento sistêmico justamente porque em seu contexto histórico, o derradeiro século XX, deu azo à compreensão, por parte dos indivíduos, a) da complexidade da relação do homem com a natureza numa acepção ampla e b) dos relacionamentos entre médico e paciente, ou seja, da a) importância da abordagem organicista e qualitativa que fora abandonada em favor da primazia do mundo mecânico e formal, e da reaproximação do sujeito com o objeto, b) bem como em tratar o paciente com humanidade, com ser autônomo. Por sinal, Capra, símile a Heck (em que pese este se especificar com a complexidade na medicina) e a Potter, aponta que Quanto mais estudamos os principais problemas de nossa época, mais somos levados a perceber que eles nãos podem ser entendidos isoladamente. São problemas sistêmicos, o que significa que estão interligados e são interdependentes. Por exemplo, somente será possível estabilizar a população quando a pobreza for reduzida em âmbito mundial. A extinção de espécies animais e vegetais numa escala massiva continuará enquanto o Hemisfério Meridional estiver sob o fardo de enormes dívidas. A escassez de recursos e a degradação do meio ambiente combinam-se com populações em rápida expansão, o que leva ao colapso das comunidades locais e à violência étnica e tribal que se tornou a característica mais importante da era pós-guerra fria. Em última análise, esses problemas precisam ser vistos, exatamente, como diferentes facetas de uma única crise, que é, em grande medida, uma crise de percepção. Ela deriva do fato de que a maioria de nós, e em especial nossas grandes instituições sociais, concordam com os conceitos de uma visão de mundo obsoleta, uma percepção da realidade inadequada para lidarmos com o nosso

43 44

PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p. 22-3-4. HECK, José. Bioética: autopreservação, enigmas e responsabilidade. p, 18.

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mundo superpovoado e globalmente interligado45 (sem grifo no original)

O que se pode concluir preliminarmente é que a Bioética surgiu num contexto emergencialmente complexo, dinâmico, orgânico e holístico, contrariamente à ética tradicional que se elaborou de um contexto linear, estático, mecânico e reducionista, como exposto acima. Em razão de seu contexto é complicado para a Bioética até mesmo se definir, pois sequer é legítimo impor um limite, devido ao fato de que seu próprio supedâneo deixa margens às incertezas em relação a sua abrangência. A Bioética foi um dos passos para a reforma proposta por Morin que defende uma revolução em “tentar, de alguma forma, constituir as ciências sistêmicas onde só havia disciplinas fechadas”46, uma vez que o próprio Potter diz que ela “poderia ser chamada de ética interdisciplinar, definindo ‘interdisciplinar’ de uma forma especial para incluir tanto as ciências como as humanas” (tradução livre)47. A consolidação acadêmica da Bioética deu-se em 1974 com a “Comissão Nacional para a Proteção de Sujeitos Humanos na Pesquisa Biomédica e Comportamental”. O resultado das pesquisas foi um documento denominado Relatório Belmont48 e todos os seus participes elegeram, nesse ensejo, os princípios da Bioética (que posteriormente seriam revisados).49 Para ser mais exatos, nos anos 70 do aludido século encetou-se a publicação de artigos e livros sobre o tema. Sistemas teóricos acabaram por ser elaborados com o objetivo de desenredar a Bioética dos conflitos morais existentes.

1.2. NOTAS CONCEITUAIS

O termo em si já induz à indagação: em se tratando de Ética, o que a diferencia da Bioética? Pois aquela tem como objeto os juízos de valor acerca do bem e do mal,

45

CAPRA, Fritjof. A teia da vida. Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. p 23. MELMEIDA, Elimar Pinheiro; VEGA, Afredo Pena (orgs.). O pensar complexo: Edgar Morin e a crise da modernidade. p. 32 47 POTTER, Van Renssealer. Bioética, la ciencia de la supervivência. Disponível em: . p. 124 48 Para conferir o Relatório de Belmont, em inglês, acesse: http://www.hhs.gov/ohrp/humansubjects/guidance/belmont.html; em espanhol, acesse: http://www.anis.org.br/Cd01/Comum/DocInternacionais/doc_int_06_reporte_belmont_esp.pdf; 49 DINIZ, Debora; GUILHEM, Dirce. O que é bioética. p. 32. 46

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ela é o ramo da filosofia que versa a axiologia, ou, como diria Potter, “a ética constitui o estudo dos valores humanos, o ideal de caráter, moral, ações e metas humanas em termos históricos: mas sobretudo a ética implica ação segundo padrões morais”50 (tradução livre), então, é obvio que esses juízos devem manter-se na análise conceitual da Bioética. Assim sendo, na medida em que a palavra “bio” foi aglutinada ao conceito da Ética, significa que houve um aumento qualitativo neste conceito, pois aprofunda as especulações filosóficas pertinentes ao âmbito axiológico, na medida em que se pergunta o que da “vida”, bem como houve uma ampliação quantitativa das abordagens éticas pela razão de que há outros seres não-humanos que são providos de vida. E isso é uma colocação lógica. Ou seja, a Bioética tem em vista outros elementos que são analisados também sob o bem e o mal. Nesta senda, Diniz explana que

A bioética seria então uma nova disciplina que recorreria às ciências biológicas para melhorar a qualidade de vida do ser humano, permitindo a participação do homem na evolução biológica e preservando a harmonia universal. Seria a ciência que garantiria a sobrevivência na Terra, que está em perigo, em virtude de um descontrolado crescimento da tecnologia industrial, do uso indiscriminado de agrotóxicos, de animais em pesquisas ou experiências biológicas e da sempre crescente poluição aquática, atmosférica e sonora. A bioética, portanto, em sua origem, teria um compromisso com o equilíbrio e a preservação da relação dos seres humanos com o ecossistema e a própria vida do planeta51

O que até então é digno de uma consideração particular na ética passa a fazer parte de algo maior na Bioética. A ética que se embasa na vitalidade perde o aspecto antropocêntrico e versa a vida em si para realizar reflexões filosóficas. O conceito de Bioética emerge da síntese do léxico grego bios (vida) e ethike (ética) e assim se encontra a sua razão de ser, a saber, o que seu conceito representa, em outras palavras, o prisma moral sobre uma relação complexa entre tecnologia, medicina, sociedade, meio-ambiente, animais, ecologia, ecossistema, o ser humano em ato ou em potencial (os que são e os que estão por vir) etc. O conceito da Bioética enseja, por conseguinte, uma análise sistêmica das interações de organismos vivos e seres

50POTTER,

Van Renssealer. Bioética, la ciencia de la supervivência. Disponível em: . p. 122 51DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. p. 9-10

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humanos, mas isso apenas mostra a imprecisão de seu conceito52 em virtude de que a palavra “vida”, como gênero, abarca várias espécies, todos os quais num modo de consideração diferente, ou seja, em relação a palavra “vida”, Correia diz que “decorre daí a dificuldade de se dar à bioética uma definição sumária e adequada, uma vez que as definições tendem sempre a fixar fronteiras e a bioética não tem fronteiras”53, outrossim, Potter, ao classificar Bioética como sendo interdisciplinar releva que “este termo é rechaçado porque seu significado não é evidente em si”54 (tradução livre), não sendo evidente em si, é verdade, porque é necessário ter uma visão sistêmica para assim compreender o conceito de Bioética. É bom trazer a lume que se quiser uma definição mais “exata”, encontra-se na Enciclopédia de Bioética de 1978: “um estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e do cuidado da saúde, quando esta conduta se examina à luz dos valores e dos princípios morais”55, definição esta da primeira edição da enciclopédia. Já em sua segunda edição é “o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão, conduta e normas morais – das ciências da vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar” 56 que aliás veio para modificar a conceito tido até então porque o termo “princípio” denotava uma atenção especial para a ética racionalizada, deixando de lado as emoções, narrativas, imagens, as pessoas envolvidas57, uma vez que estas têm suas intimidades e uma existência significativa para suas consciências que só elas sabem senti-las, assim, “dimensões morais” abrangem mais elementos importantes nas relações clínicas, elementos que referencialmente a alguns pensamentos são mais ou menos relevantes. No

Dicionário

da

Bioética

(diferente

do

Dicionário

de

Bioética

supramencionado), dispõe que

52

HECK, José. Bioética: autopreservação, enigmas e responsabilidade. p. 27 PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de (orgs.). Fundamentos da bioética. In: CORREIA, Francisco de Assis. Alguns desafios atuais da bioética. Disponível em: . p, 31 54 POTTER, Van Renssealer. Bioética, la ciencia de la supervivência. Disponível em: . p. 124 55 BARBOZA, Heloisa Helena; MEIRELLES, Jussara M. L. de; BARRETO, Vicente de Paulo. Novos temas de biodireito e bioética. In: BARBOZA, Heloisa Helena. Princípios do biodireito. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 2003. p 52 56 PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. p, 32 57 PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. p, 33 53

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a palavra designa um conjunto de investigações, de discursos e de práticas, geralmente pluridisciplinares, tendo como objeto clarificar ou resolver questões de alcance ético suscitada pelo avanço e a aplicação de tecnociências biomédicas”58

Certo é que se for excluída a palavra “biomédica” da definição, o remanescente condiz facilmente com o pensamento de Potter como visto acima, que usava a palavra “bio” num sentido mais amplo do que simplesmente querer abranger a seara médica, que na verdade é tão somente uma parte do todo, pois, para Potter “a bioética se movimenta a partir de uma situação de alarme e de uma preocupação crítica a respeito do progresso da ciência e da sociedade”,59 ou seja, se o “progresso científico” passa por um crivo crítico significa que o futuro do homem numa relação sistemática com a vida (que por sua vez desdobra-se em ingentes assuntos) é que está em análise implicitamente. Nos três conceitos apresentados, se ignoradas as menções aos termos médicos, encontra-se um conceito de Bioética mais apropriado, porque o que vale para gênero vale para a espécie, mas a recíproca não é verdadeira (toda biomedicina é Bioética, mas nem toda Bioética é biomedicina). O detalhe é que toda definição parece focar na medicina por mera arbitrariedade, conservando concomitantemente um conceito geral de Bioética, já que não especifica necessariamente o foco da biomedicina, isto é, o conceito nada diz sobre a peculiaridade da referida área. É preciso notar que as duas primeiras definições colocam a espécie ao lado do gênero sem qualquer necessidade, podendo excluir a espécie sem nenhum estorvo para a conceitualização. Por exemplo, dizer que a Bioética designa um conjunto de investigações, de discursos e de práticas, geralmente pluridisciplinares, tendo como objeto clarificar ou resolver questões de alcance ético suscitada pelo avanço e a aplicação de tecnociências biológicas, e não biomédicas, sustenta melhor a incidência da palavra bio (vida), abrangendo assim até mesmo os animais (que do contrário estariam fora do alcance da Bioética segundo a terceira definição). Assim, o conceito de Bioética, quando compreendido, ensina ao ser humano o manejo do conhecimento científico-biológico em vistas às consequências no mundo, na natureza, nos animais, porque “o ‘instinto’ de sobrevivência não basta: é preciso

58HOTTOIS,

Gilbert; PARIZEAUS, Marie Helene. Dicionário da Bioética. p, 58 Elio. Manual de Bioética. Fundamentos e ética biomédica.p, 24

59SGRECCIA,

17

elaborar uma ‘ciência’ da sobrevivência, que o autor (Potter) identifica como bioética”60. Conclusivamente se pode dizer que o caminho apropriado a se percorrer para conceituar a Bioética (que aliás Sgreccia optou em seguir) já é dado no próprio título do artigo apresentado por Potter à revista Biology and Medicine, em 1970, a saber, “Bioética, a ciência da sobrevivência” e o que se deduz desta ciência, ou seja, que ela é uma

sabedoria para a sobrevivência do homem e para o melhoramento da qualidade de vida. Este conceito da sabedoria como um guia para a ação poderia ser chamado “ciência da sobrevivência”, seguramente o pré-requisito para o melhoramento da qualidade de vida. A ciência da sobrevivência deve ser construída sobre a ciência da biologia, ampliada mais além de suas fronteiras tradicionais para incluir os elementos essenciais das ciências sociais e humanas. Uma ciência da sobrevivência deve ser mais que uma ciência isolada, e por conseguinte se propõe o termo “bioética” para poder enfatizar os dois mais importantes componentes para lograr a nova sabedoria: conhecimento biológico e valores humanos61 (tradução livre)

Conceituada a Bioética, abordar-se-ão seus princípios.

1.3. PARADIGMAS E PRINCÍPIOS

Na abordagem principiológica da Bioética é imprescindível que se ressalte a impossibilidade de se separar princípios de um determinado paradigma, e alocá-los lado a lado, para, assim, falar de cada um particularmente. O conceito de paradigma analiticamente dá o conceito de princípio, pois este pressupõe aquele, e aquele, em si, sem princípios, não tem razão de ser. Todo paradigma abarca determinados princípios, princípios estes que são diretrizes e pontos de partidas para a exequibilidade da praxe (ética, científica, mercantil etc.), mas todo paradigma supostamente também é contingencial, ou seja, não é absoluto, porque não há garantias de que um modo de ver o mundo seja de fato o correto (conforme Kuhn), assim, é viável que haja tantos paradigmas o quanto sejam possíveis. Logo, ao

60

SGRECCIA, Elio. Manual de bioética. Fundamentos e ética biomédica.p, 24 POTTER, Van Renssealer. Bioética, la ciencia de la supervivência. Disponível em: . p. 121 61

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abordar a Bioética é silogístico afirmar que seus princípios são relativos, referenciais, com

efeito, faz-se

necessário

abordar os paradigmas da

Bioética

para

concomitantemente abordar seus princípios que, em lato senso, compõem a Bioética, todavia, em estrito senso, compõe determinada Bioética. O paradigma, como visto anteriormente, é um padrão, um modelo, ou mesmo um olhar sobre o mundo. Para isso, deve respaldar-se numa suposição geral que fundamente essa perspectiva perfilhada; os princípios, ao contrário, embora compartilhem dessa mesma qualidade conjectural (não sendo geral, mas específica), são plurais e postos com validade a priori dentro do paradigma que debuxa, no caso da Bioética, como proceder e o que observar no momento da prática médica, por exemplo. Nos anos 70, ainda sem adentrar no enfoque dos paradigmas, quando houve o Relatório de Belmont, os participantes elegeram três princípios básicos da Bioética, que, de acordo com eles, faziam parte da história do pensamento ocidental, a saber, i) respeito pelas pessoas; ii) beneficência; e iii) justiça.62 O primeiro desdobra-se em: tratar os indivíduos como agentes autônomos e proteger os que têm a autonomia diminuída (pessoas socialmente vulneráveis). A eleição desses princípios foi o estopim para que se elaborassem os paradigmas da Bioética, uma vez que a partir daqueles começaram as especulações de outros princípios, bem como suas revisões. Em suma, a Bioética passou a ser composta academicamente por alguns modelos.

1.3.1 Principialismo

O

primeiro

paradigma,

de

origem

norte

americana,

denominou-se

Principialista63, surgido logo após o Relatório de Belmont. É da autoria de Tom Beauchamp e de James Childres, por intermédio da obra Princípios da Ética Biomédica, os quatro princípios de tal paradigma (autonomia, beneficência, nãomaleficência e justiça). Diniz, em que pese não mencionar o paradigma, leciona que esses princípios são os “princípios básicos” da Bioética64 e sintetiza com propriedade:

62DINIZ,

Debora; GUILHEM, Dirce. O que é bioética. p, 32-3-4. Debora; GUILHEM, Dirce. O que é bioética. p, 38. 64DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. p, 14. 63DINIZ,

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O princípio da autonomia requer que o profissional da saúde respeite a vontade do paciente, ou de seu representante, levando em conta, em certa medida, seus valores morais e crenças religiosas. Reconhece o domínio do paciente sobre a própria vida (corpo e mente) e o respeito à sua intimidade, restringindo, com isso, a intromissão alheia no mundo daquele que está sendo submetido a um tratamento. Considera o paciente capaz de autogovernar-se, ou seja, de fazer suas opções e agir sob a orientação dessas deliberações tomadas, devendo, por tal razão, ser tratado com autonomia. [...] Autonomia seria a capacidade de atuar com conhecimento de causa e sem qualquer coação ou influência externa.65 (com grifo no original)

A autonomia, para os capazes, significa estar cônscio das reais condições e informações a respeito dos procedimentos médicos (para agir esclarecidamente), ou seja, ter o consentimento livre; e, para os incapazes (autonomia reduzida) uma proteção de como as decisões devem ser tomadas em favor destes. A autonomia adveio da influência da filosofia kantiana em considerar o ser humano como um ser racional e livre para agir, sendo irrelevantes as contingências empíricas (inclinações, paixões, contexto social etc.) no momento de agir, pois com o atributo da razão são autodeterminantes, embora como corpo façam parte do mundo empírico e, por conseguinte, estão suscetíveis da ação da causalidade, mas essas condições seriam em tese superáveis. O indivíduo, estando bem informado e em condições que não obstem sua “livre decisão” deixa de ser heterônomo. O segundo princípio é o da beneficência, ou seja, ele “requer o atendimento por parte do médico ou do geneticista aos mais importantes interesses das pessoas envolvidas [...] para atingir seu bem-estar”66. Pode ser traduzido como o objetivo de potencializar o bem alheio, em outras palavras, os médicos, observando esse princípio, profissionalmente se colocam ao dispor dos pacientes para satisfazer suas necessidades, propiciando assim um benefício. Deste princípio deriva-se o princípio da não-maleficência que nada mais é do que uma exigência para efetivar a beneficência, uma vez que estipula que não se pode praticar um dano intencional.67 O último princípio é o da justiça, especificamente a distributiva. Faz-se necessário este princípio porque os iguais devem ser tratados igualmente e os

65DINIZ,

Maria Helena. O estado atual do biodireito. p, 15. Maria Helena. O estado atual do biodireito. p, 15 67DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. p, 16 66DINIZ,

20

diferentes, desigualmente. Para ser mais exato, esse princípio “exige uma relação equânime nos benefícios, riscos e encargos, proporcionados pelos serviços de saúde ao paciente”.68 Sem ignorar o fato da existência dos conflitos entre as reivindicações e interesses particulares em atrito com os da sociedade. A Diniz conclui o capítulo dizendo que “a bioética deverá ter tais princípios como parâmetros de suas investigações e princípios”69, entrementes, deve-se pôr a salvo que eles apenas têm validade plena sob o paradigma Principialista, ou seja, para uma determinada Bioética, que, diga-se de passagem, é “made in USA”70. A propósito, Diniz e Guilhem afirmam que houve duradouramente um equívoco em imaginar que o paradigma Principialista fosse de fato a Bioética em si, ou seja, em confundir a parte com o todo71. Esses princípios passaram por algumas críticas e deram espaço para outras perspectivas. Diniz e Guilhem, apud Clouser e Gert, apontam que o paradigma Principialista peca por três motivos, i) por não estipular uma hierarquia entre seus princípios (p. ex.: num conflito entre autonomia e justiça, um fumante, caso precise de um transplante pulmonar, ficará ou não na frente de outros pacientes não-fumantes na fila de espera pelo tratamento? Ou: num conflito entre autonomia e beneficência, deve-se deixá-lo fumar, ou proibi-lo, pois se tem ciência dos maléficos causados pelo fumo?); ii) seus princípios não assumem um papel de guia para a ação, pois não relevam o campo de atuação, ou seja, são meros “lembretes” para os agentes diante dos casos; e iii) em virtude da influência individualista na cultura norte americana, o paradigma Principialista isola o homem de suas relações e contextos sociais e é indiferente aos aspectos coletivos envolvidos e, em razão do racionalismo, o principialismo ignora as emoções e incongruências, que caracterizam a dúvida moral. No que tange ao primeiro ponto é necessário fazer uma colocação: em que pese a falta de uma hierarquia, o que os caracteriza é que são deveres prima facie, ou seja, quando houver conflitos entre os princípios deve ser feita uma avaliação para evitar que os envolvidos sejam prejudicados72, mesmo que não absolutamente (dos males, o menor).

68DINIZ,

Maria Helena. O estado atual do biodireito. p, 17 Maria Helena. O estado atual do biodireito. p, 17 70PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p, 44 71 DINIZ, Debora; GUILHEM, Dirce. O que é bioética. p, 55-6 72SAUWEN, Regina Fiuza; HRYNIEWICZ, Severo. O Direito “in vitro”. Da bioética ao biodireito. p, 25 69DINIZ,

21

De qualquer modo não é viável que o Principialismo seja transcultural. É inegável que a diversidade cultural afeta a incidência de seus princípios, dado que há realidades e contextos diferentes, alguns totalmente opostos aos dos Estados Unidos da América (do Norte). Não se pode olvidar que a cultura filosófica norte americana é pautada também no pragmatismo, havendo, portanto, certa desconsideração pela fundamentação dos princípios, já que eles são voltados apenas para o procedimento prudente, por exemplo, da autonomia, porém não cogitam em definir o que é a autonomia. Aliás, podem-se apontar duas diferenças para a Bioética europeia: esta se volve para o fundamento, e releva que a ética não trata apenas das ações (ou seja, estas como efeitos), mas aborda também as virtudes e caráter (ou seja, como causas), e que a perspectiva europeia privilegia a dimensão social em relação aos direitos individuais. Por isso, oportunamente Pessini e Barchifontaine refletem que, embora sejam opostas Nada mais útil do que uma boa fundamentação e nada mais fundamental do que um bom procedimento são convicções de grande parte dos bioeticistas europeus. A filosofia na Europa sempre se preocupou muito com os temas de fundamentação, talvez até exageradamente, dizem alguns. Em contrapartida, o pragmatismo norte-americano ensinou a cuidar dos procedimentos. Nesse sentido, pergunta-se se a integração de suas tradições não seria algo a ser perseguido.73

Além do foco europeu, os aludidos autores abordam uma Bioética latinoamericana, ou, nas palavras de Debora e Dirce, uma Bioética “periférica”,74 ou seja, uma Bioética surgida tardiamente nos países, a exemplo do Brasil, em que importam as teorias dos países centrais (onde se originou e consolidou-se a Bioética). Contudo, no que tange a dualidade “centro” e “periferia” os termos não significam juízos de valor como Bioética de boa ou má qualidade, pois o Brasil, ao mesmo tempo em que é periférico em relação à Europa, é central na América Latina. Enquanto que na Europa a abordagem era meramente filosófica, na América Latina a Bioética encontra-se enredada em questões sociais, ou concretas, na medida em que quando os países importam tecnologias para tratamentos, há uma séria desigualdade social que acaba por quase inevitavelmente excluir determinadas

73PESSINI, 74

Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. p, 51 DINIZ, Débora; GUILHEM Dirce. O que é bioética. p, 64

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pessoas, ou, quando incluídas, não são autônomas, suscitando assim conflitos com o princípio da justiça distributiva75. “Quem tem acesso à tecnologia médica?” é o importante e não lucubrações acerca de fundamentos ou utilitarismo. Com efeito, a Bioética latino-americana respalda-se, ao contrário da norte-americana, na equidade, solidariedade e justiça, uma vez que “a maior necessidade nestes países pobres é de equidade na alocação de recursos e na distribuição de serviços de saúde”76, o que corrobora por consectário a crítica feita à hegemonia do paradigma Principialista, que tem o princípio da autonomia quase que inexistente nesse contexto, porque uma pessoa na faixa da pobreza encontra o suste da necessidade, sem falar que é ignara em relação às informações, até porque ninguém duvida que ela seja analfabeta, muito menos uma funcional, fazendo-a permanecer heterônoma. Por fim, Correia assevera que na literatura neolatina, ao invés de usar os princípios da autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça como na literatura anglo-saxão, faz uso de outros princípios, a saber, da defesa da vida física, da liberdade e responsabilidade, da totalidade ou princípio terapêutico e da sociabilidade ou subsidiariedade. 77 Resumidamente, pode-se dizer que a defesa da vida física refere-se ao respeito pela vida, à sua defesa e à sua promoção. Compreendendo aqui o valor da vida digna, em condições favoráveis para o seu bem-estar. A liberdade e responsabilidade tão somente significam que, com o dever do médico em informar o paciente detalhadamente, é necessário que este colabore exercendo a autonomia com responsabilidade. O princípio da totalidade requer que o médico apenas intervenha sobre a parte doente se, e somente se, não houver outros meios para detê-la; que a probabilidade de êxito seja favorável e que obviamente haja consentimento do paciente. O termo totalidade quer dizer que tanto o corpo, quando o aspecto moral e espiritual da pessoa é relevante, ou seja, que se avalie a totalidade da pessoa na execução de uma terapia. Por sociabilidade entende-se que a cada pessoa há um comprometimento em realizar-se a si mesma na participação da realização do bem dos semelhantes, ou

75PESSINI,

Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p, 54 Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p, 56 77PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de (orgs.). Fundamentos da bioética. In: CORREIA, Francisco de Assis. Alguns desafios atuais da bioética.p, 43-6 76PESSINI,

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seja, considerar tanto o seu bem quanto o bem alheio com o mesmo peso, assim, na medida em que cada um adota esse modus operandi a sociedade em si promove o bem comum, garantindo a todos o devido acesso a tutela. E por subsidiariedade um comprometimento da coletividade em ajudar os mais necessitados e em fomentar os grupos que almejam auxiliar as pessoas. Pessini e Barchifontaine na obra Problemas atuais de Bioética expõem vários outros paradigmas. Diferentemente do Principialista, os outros paradigmas não têm muitas bibliografias disponíveis, quiçá porque ainda permaneça a ideia já reprochada e citada por Debora e Dirce de que este paradigma confunde-se com a Bioética em si. Na verdade, isso também está atrelado ao fato de que o Relatório de Belmont foi a gênese principiológica da Bioética, que por sua vez teve apenas ele como suporte até então, e só posteriormente é que conforme o paradigma geral da Bioética foi adentrando

em

realidades

diferentes,

ou

mesmo

revisado

tão

somente

filosoficamente, é que outros modelos foram engendrados.

1.3.2 Paradigma libertário

A nomenclatura já conduz o pensamento por si só: Neste modelo se aposta, radicalizando-o no valor central da autonomia e do indivíduo. Seu maior fautor é Tristam Engelhardt e sua obra clássica The Foundation ofbioethics. Inspirado na tradição político-filosófica do liberalismo norte-americano, está baseado na defesa dos direitos e da propriedade dos indivíduos, justifica não só as ações decorrentes da expressão da vontade livre do paciente, mas até outras mais polêmicas, como as que assumem o corpo como propriedade do próprio, a saber: venda de sangue ou órgãos.78

No que tange ao paradigma há duas colocações: a primeira é que para Engelhardt, embriões e fetos não são pessoas, dado que não têm consciência de si, e a segunda é que o individualismo é o valor central, uma vez que o sujeito, de acordo com o paradigma, é tão livre a ponto de dispor de seu próprio corpo, tornando eticamente ilegítima, por exemplo, a intervenção estatal, para impor um limite ao que se pode fazer sobre si mesmo.

78PESSINI,

Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p, 35

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1.3.3 Paradigma das virtudes

Seus percussores foram Edmund Pellegrino e David Thomasma ao escreverem a obra For the patient’s good. Antitético aos modelos individualistas, este se esmera no aprimoramento do hábito, em abordar o caráter do médico, não apenas como profissional e impessoal, mas sim como um humano que cuida de outro humano.79 Pessini explica que Embasam-se na tradição grega aristotélica da ética das virtudes, aproveitando o contributo de Alisdair McIntyre (com sua obra Aftervirtue). Colocam a tônica no agente, particularmente nos profissionais de saúde, integrado o paciente a seu processo pelo hábito, enfatiza-se a ação pela educação dos profissionais da saúde e pela prática clínica, o que conduziria naturalmente à prática do bem. Essa perspectiva é fecunda no que se refere a casos de mercantilismo ou de recusa de tratamento de pacientes com AIDS doenças infecciosas mortais etc.80

Evidente que dado a natureza humana resvalar-se constantemente ao egoísmo e que o caráter da pessoa dificilmente muda (se é que muda), esse paradigma enfrenta o problema de os profissionais não se motivarem em se voltar ao valor da virtude.

1.3.4 Paradigma casuístico

Também conhecido como Indutivista81. Tem seus alicerces no modelo common Law, logo, sua praxe não depende de precedentes, no caso, de princípios abstratos, para o agir do profissional nas situações clínicas. É defendido pelo Albert Jonsen e Stephen Toulmin em The abuse of casuistry. Por intermédio desse modelo a Bioética: Não se apoia em quaisquer princípios orientadores para a ação. Cada caso deve ser examinado em suas características paradigmáticas, estabelecendo comparações e analogias com outros casos. [...] A ética clínica, defende Toulmin, opera num nível pré-teórico que é mais básico que qualquer axioma teórico ou princípio. O eticista torna-se casuísta médico. A tarefa é: referir aos casos difíceis que surgem de

79PESSINI,

Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de (orgs.). Fundamentos da bioética. In: CORREIA, Francisco de Assis. Alguns desafios atuais da bioética. p 47 80PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p, 35 81 SAUWEN, Regina Fiuza; HRYNIEWICZ, Severo. O Direito “in vitro”. Da bioética ao biodireito. p, 26

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situações marginais e ambíguas a exemplos paradigmáticos mais simples, e considerar quão longe tais exemplos podem nos guiar para resolver os conflitos e ambigüidades que despertam nossa perplexidade moral.82

Não partindo de um norte teórico, o profissional lança mão da intuição que apreende em cada caso a “essência” da situação e, partindo agora do pressuposto de que a essência é perene, casos com parecença provavelmente serão resolvidos se o profissional adotar as mesmas atitudes. Com efeito, considera-se um paradigma indutivista porque postula que de casos particulares vagarosamente se intelige o universal. Seu contraste com a Principialista é manifesto. Este, pressupondo a priori o que deve ser feito de pronto, permanece hipoteticamente sobre os casos particulares para, dedutivamente, o profissional observa-los na conduta; diversamente, o casuísta elabora o universal sempre a posteriori prognosticando o que os outros, ou ele mesmo, deve fazer no mesmo caso ou em casos semelhantes.

1.3.5 Paradigma fenomenológico e hermenêutico A palavra “hermenêutica” pode ser traduzida como uma técnica de interpretação.83 Já “fenomenologia”, por mais que tenha vários significados atribuídos pelos filósofos no decorrer da história, num significado trivial é meramente um estudo dos fenômenos, todavia numa acepção mais elaborada seria aquilo que aparece para o sujeito em sua consciência, não se confundindo, é verdade, com uma ciência psicológica que considera os fenômenos fatuais que o sujeito vivenciou experimentou84. O importante é que a consciência tem um papel ativo na redução dos fenômenos às suas essências, às coisas mesmas que, conquanto obductas, expressam o sentido daquilo que “sobre” elas se manifestam. Assim, para os autores Este modelo enfatiza a necessidade de reconhecer que toda experiência está sujeita a interpretação. Existem sempre duas dimensões em cada situação, uma subjetiva e outra objetiva. A fenomenologia coloca a subjetividade entre parênteses numa tentativa de penetrar da situação em si mesma. Esse processo de clareamento permite a emergência de significados que podem ser 82PESSINI,

Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p, 36 DUROZOI, Gérard; André ROUSSEL. Dicionário de filosofia. p, 226. 84ABBAGNAMO, Nicola. Dicionário de filosofia. p, 438 83

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analisados e partilhados. De forma similar, o modelo hermenêutico não valoriza tanto o caráter bipolar ou circular da experiência humana ao sublinhar a necessidade de aceitar a “alteridade”, que, em cada situação, deve ser engajada como parceira num diálogo respeitoso. Essas abordagens apontam para a superficialidade relativa do modelo principialista. A experiência humana não pode ser facilmente capturada e dirigida a uma escolha moral informada por meio da simples imposição de regras e princípios abstratos (sem grifo no original).85

Ou seja, o ato de redução dos fenômenos às essências tem um forte liame com a hermenêutica em virtude de que ambos consideram a consciência do sujeito desvinculada de princípios normativos, pois estes, de acordo com tal posicionamento, são obstes para atividade interpretativa, sendo que ela mesma é que vai captar, ou intuir, os significados (a objetividade).

1.3.6 Paradigma narrativo

Ressalta que as culturas definem-se com base em suas narrativas, nas suas histórias, no seu existir simbólico, ou seja, criam seus valores na experiência vivida, do mesmo modo que,

existencialmente,

os indivíduos constroem-se (ou

redescobrem-se) analisando as circunstâncias dadas, atribuindo assim valores e significados à realidade. Assim “a riqueza da história e sua capacidade de fazer surgir sentido, que vai além dos meros fatos, tornam o modelo narrativo um complemento poderoso do abstracionismo dos princípios formais”.86

1.3.7 Paradigma do cuidado

Partindo do fato de que o feminino, em razão do estado natural da mulher em ficar com a prole durante um determinado lapso de tempo, é caracterizado por ser zeloso, o paradigma em comento, em analogia, propõe uma mudança moral, da masculina à feminina. Sua fundamentação teórica foi escrita por Carol Gilligan em In a diferente voice defendendo que as mulheres têm mais propriedade em agir com altruísmo e em reconhecer a importância da solicitude. O paralelo é claro:

85PESSINI, 86PESSINI,

Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p, 36 Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p, 36-7

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Enquanto os homens tendem a ver a si mesmos em oposição aos outros – daí a necessidade de estabelecer regras de justiça que ajudem a fixar direitos e deveres –, as mulheres colocam ênfase no tomar cuidado, em contexto de relação de alteridade. A intencionalidade personalista deste modelo tem sido muito valorizada para a superação de uma perspectiva exclusivamente técnica da medicina.87

Há, também, a Bioética de inspiração feminista que não se confunde com uma Bioética feminina elaborada pela Carol Gilligan que apenas sondou as características típicas (ou “típicas”) do sexo feminino como uma alternativa em abordar as questões morais. É necessário expor que a influência de tal paradigma não foi a diferença entre a moral feminina da masculina, mas sim a possibilidade de outras morais88. O raciocínio é que se a ética dos homens preocupa-se com a Justiça (é uma ética austera) e a das mulheres com o Cuidar (é uma ética dócil), há uma oportunidade para se fundamentar um determinado principialismo, ou seja, princípios de caráter geral. Contrariamente, a Bioética de influxo feminista é adversa às vozes que almejam ser uníssonas, mesmo que feminina, porém o que a caracteriza é seu bojo marxista, uma vez que sua postura complexa tem como objeto, num primeiro momento, a relação da mulher em sociedade, da opressão imoral que as mulheres estão passíveis, e, secundariamente, relações mais amplas (econômicas, políticas etc.). De certo modo, dizem elas, a própria noção de que a ética “da mulher” é a do zelo, em si, denota certa opressão, na medida em que se impõem um determinado comportamento “característico” à elas89. Debora e Guilhem arrolam as seguintes características, dentre elas, as mais salientes: 1) Não a uma epistemologia “essencial” da certeza, sim a uma epistemologia situacional da contingência; 2) Não a uma ética feminina do cuidar, sim a uma ética do cuidar associada à ética do poder; 3) Não a um ser humano abstrato, genérico e universal, sim ao respeito pelas diferenças de raça, classe social, etnia, idade, gênero, status marital, condição de saúde, enfatizando que essas mesmas diferenças não são iguais entre os indivíduos de diferentes grupos e comunidades; [...] 5) não à manutenção do discurso dominante que perpetua a opressão, sim ao diálogo como forma de conhecer a intencionalidade e os diferentes posicionamentos morais, na busca de oportunidades para a mediação dos conflitos morais; [...] 9) não ao absolutismo, sim à adoção de um relativismo aberto; 10) não ao 87PESSINI,

Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p, 37 Debora; GUILHEM, Dirce. O que é bioética. p, 104 89DINIZ, Debora; GUILHEM, Dirce. O que é bioética. p, 106 88DINIZ,

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generalismo ético, sim ao relativismo moral; [...] 13) Não ao indivíduo como ponto focal de análise, sim ao indivíduo em sua rede de relações sociais.90

Em suma, negam-se as essências, e atribuem ao ser humano um papel construtivista da realidade social.

1.3.8 Paradigma do direito natural

Proposto por John Finnis em Natural Law and natural rigths. Por natural entende-se determinados bens possuidores de um valor intrínseco que devem ser tratados como fins e nunca usados como meios para só assim haver uma ação moral, pois os admitindo como fins, o que for realizado para garanti-los é Moral. Entrementes, “o reconhecimento da validade moral daqueles bens é consensual. Subsistem questões em relação ao fundamento de cada um” 91, ou seja, talvez não haja um direito natural propriamente dito na abordagem paradigmática, pois se objetivamente o fundamento for dúbio e depender de algum consenso isso contradiz o termo “natural”, em contrapartida, se isso for uma característica subjetiva, no sentido de limitação em cogitar essa natureza, mas tê-la como ideal, o paradigma de fato é jusnaturalista. Ou seja, a Bioética seria aquela em que se averiguam bens com valores em si, aqueles que subsistem por si, como a vida, por exemplo, e que conseguintemente opere visando intermédios que garantam a efetividade desse bem com um respeito especial, pois todo ser humano naturalmente tem esse direito consagrado a priori (e o dever de respeitá-los).

1.3.9 Paradigma contratualista

Criada por Robert Veatch em A theoryof medical ethics infensa à ética hipocrática, ou seja, a encontrada no “juramento de Hipócrates”. Ele “defende um triplo contato: entre médico e os pacientes, entre os médicos e a sociedade, e um contato mais amplo com os princípios orientadores da relação médico-paciente”.92 Com efeito,

90DINIZ,

Debora; GUILHEM, Dirce. O que é bioética. p, 110-12 PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética.p, 37 92PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p, 37 91

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é necessária a observância de determinados princípios, quais sejam, o da beneficência, o da proibição de matar, o de dizer a verdade e o de manter as promessas.93

1.3.10 Paradigma antropológico personalista

Perico, E. Sgreccia, D. Tettamanzi, S. Leone, J. F. Malherbe, C. Viafora, S. Spinsanti são os visionários deste paradigma. Certo é que sob esse paradigma o Homem é visto com tanta dignidade o quanto for possível, sendo assim a ideia mais coesa com as mentes europeias hodiernamente. Pessini e Barchifontaine elucidam que Trata-se de uma antropologia filosófica como conhecemos do homem como sujeito em sua globalidade, e de uma filosofia humanista preocupada em compreender o homem em todas as suas dimensões e, por isso, um humanismo o mais integral possível. Não assume uma natureza descritiva, nem procura estabelecer normas de ação. Antes, desenvolve um raciocínio deontológico, de fundamentação teleológica, que considera o ser humano, em sua dignidade universal, o valor supremo do agir94.

Não há o que se falar em individualismo, mas em transindividualismo, pois ao mesmo tempo em que considera a singularidade da pessoa, o sujeito em si como detentor de um valor inestimável, este também está aberto à alteridade e ao mundo (ele reconhece que é um sujeito, tal como tantos outros sujeitos no mundo), bem como à solidariedade em sociedade, tal como defendia Paul Schotsmans.

1.4 NOTA CONCLUSIVA

Amiúde se questiona sobre a relação dos animais com a ética: estariam eles passíveis também dessa consideração? Conforme visto com as ideias de Potter, a bioética é um “aglomerado de outras éticas”, como, por exemplo, uma ética da terra, uma ética do consumo, uma ética da vida selvagem etc., ou seja, tantas éticas o quanto forem possíveis na exata medida em que o âmbito específico em análise

93PESSINI, 94

Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p, 37 PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p, 38

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possa subsumir-se ao conceito de “vida”. Assim sendo, os animais, tal como homem, são providos de vitalidade, logo, seguindo as premissas potterianas, é legítimo deduzir que os animais são sim dignos de serem suscetíveis a estarem em polo passivo nas cogitações éticas, como meio de ponderar as atitudes dos homens e as consequências que destas dimanarem aos animais. Resta, portanto, delimitar o que seria ou não ético fazer com os animais, algo que cabe, conforme visto, também à Bioética. Todavia, seria primordial fundamentar um critério de demarcação Bioética que justifique o porquê que os animais não podem ser tratados de determinado modo, mas sim de outro, caso se almeje praticar atitudes justas, até porque, como tudo que se pretende emitir juízos, sejam de valor (ética, moral), sejam de fatos (ciência) e de apreciação artística (estética), pressupõe, logicamente, que seu âmbito possa permitir que assim se proceda, uma vez que há um critério (passível de críticas, claro) que atribui validade aos mesmos juízos acerca do objeto versado, que no caso seria as condutas humanas em relação aos animais que, sendo analisadas, são julgadas pela (Bio)ética como boas ou ruins.95 Ver-se-á no Capítulo II, após uma lacônica apresentação do tema tratado por outros pensadores e das questões conceituais envolvidas, que Arthur Schopenhauer fundamentou um critério ético (mormente no Capítulo III) que tem a mesma validade tanto para os homens quanto para os animais, pois ele não salientou o aspecto racional e autoconsciente do homem como condição necessária para a atuação da Ética, mas sim o que há de comum a ambos, a saber, a senciência, ou seja, a capacidade de sofrer – onde há sofrimento, há Ética. Outrossim, o delineamento da filosofia ética de Schopenhauer coaduna-se ao exposto até o momento contextual e conceitualmente acerca da Bioética, até mesmo sobre o estudo que a biologia faz dos animais, ou seja, parafraseado Potter, e esposando a filosofia de Schopenhauer, há sim uma “ética do animal”.

95

O transcrito nesse parágrafo segue uma lógica semelhante à exposta na introdução do subtítulo 1.3 Paradigmas e Princípios.

Capítulo 2 SUJEITO E PESSOA

2.1. ANÁLISE CRÍTICA Antes de transcrever algo acerca dos animais, faz-se mister esclarecer que a Bioética principalmente encontra sua razão de ser na pessoa humana. Mas o que é pessoa? Diniz diz que “para a doutrina tradicional ‘pessoa’ é o ente físico ou coletivo suscetível de direitos e obrigações, sendo sinônimo de sujeito de direito”.96 Sujeito de direito seria uma abstração que sobrepõe aos seus entes deveres jurídicos, pretensão ou titularidade jurídica. 97 No Vocabulário Jurídico consta que pessoa, “derivado do latim persona, no sentido técnico-jurídico exprime ou designa todo ser, capaz ou suscetível de direitos e obrigações”98. Pessoa também se reporta às entidades ou criações jurídicas, assim, no que tange aos seres humanos, são considerados pessoas físicas ou naturais, enquanto que àquelas são atribuídas o termo pessoa jurídica,99 (que são compostas por pessoas físicas). Assim, conforme alguns pensadores100, não se pode confundir “ser humano” com “pessoa”. Analisando os conceitos, dizem, fica claro que o segundo abarca mais elementos, pois o homem em questão é considerado já como um ser consciente e maduro, algo que um feto, por exemplo, não é. Se os termos fossem sinônimos seria mero pleonasmo dizer “pessoa humana”, mesmo que seja comum a coincidência em admitir apenas seres humanos como pessoas, contudo isso fica na dependência de como se elege o conceito de pessoa – o que parece ser necessário é apenas contingencial. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. p, 129 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. p, 129 98 GOMES, Priscila Pereira Vasques; FILHO, Nagib Slaibi. Vocabulário jurídico. p. 1037 99 GOMES, Priscila Pereira Vasques; FILHO, Nagib Slaibi. Vocabulário jurídico. p. 1038 100 Dentre eles, Peter Singer e Sonia T. Felipe 96 97

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A importância em refletir sobre o que está subsumido ao termo é que há quem defenda que os animais também possuem direitos e que, por consectário, a Bioética e o Direito devem observar o devido respeito a eles. Ver-se-á que por um bom tempo a autoconsciência foi o critério para demarcar quem é pessoa, assim, quem deve ser respeitado e ter direitos, porém, de acordo com Felipe, desde Humphry Primatt101, no século XVIII, as considerações éticas passaram a abranger os animais. Ao menos no Ocidente Primatt pode ter sido pioneiro nesse aspecto, uma vez que no Oriente, os animais já eram passíveis de respeito ético por parte dos hindus. Tais considerações que excederam o critério da autoconsciência passaram a relevar a senciência para estremar a incidência ética para além do homem, sem falar que de acordo com novos conhecimentos a autoconsciência supostamente passou a ser um atributo reconhecido a outros seres. É relevante apresentar o que Pessini e Barchifontaine expõem sobre três vertentes explicativas do conceito de pessoa. O primeiro foi elaborado ainda na Idade Média por Boécio que dizia que a pessoa é um indivíduo subsistente numa natureza racional102. A racionalidade é o elemento que constitui o ser humano, pouco importando aqui sua senciência, assim, um feto por ser desprovido de consciência não era considerado pessoa. Razão e alma nessa perspectiva eram termos quase equivalentes. A segunda vertente surgiu no século XX com a fenomenologia em considerar o homem um ser relacional. O termo “fenomenologia” é a base para o existencialismo, pois, como dizia Ortega y Gasset, “a pessoa sou eu e minhas circunstâncias”103, ou seja, conforme explanado no Paradigma da hermenêutica e da fenomenologia, cada pessoa tem sua narrativa pessoal, particular, tendo somente ela a possibilidade de inteligir o valor e os significados das suas experiências vividas. Assim, partindo do pressuposto que a pessoa, para ser o que é, tem que estar numa situação relacional, ela passa a existir apenas a partir do seio materno, pois aqui existiria uma relação afetiva entre a mãe com a prole no momento da amamentação, ou seja, o feto/embrião ainda não seriam pessoas na medida em que são insuscetíveis de relações. Entrementes, se a descendência do casal for planejada, há, de fato, uma

Revista Brasileira de Direito Animal. Vol. 1, n. 1. p, 207. Disponível em: https://www.animallaw.info/policy/revista-brasileira-de-direito-animal-brazilian-animal-rights-review. 102 PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p, 67 103 PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p, 68 101

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relação com o feto, assim, o aborto teoricamente seria inviável, pois o feto seria uma pessoa. Por fim, a terceira noção parte das teorias da evolução. Em suma, explicam que nos primeiros estágios, o embrião humano, embora tenha todos os elementos genéticos do adulto, ainda é pessoa em potencial, ou seja, um processo de personalização. Isto é, os elementos genéticos vão se desdobrando, crescendo em perfeição até serem aptos a fazer atos conscientes e escolhas livres quando o conjunto biológico alcançou maior maturidade. [...] Após um longo itinerário, esse animal alcançou tal grau de aperfeiçoamento de seu sistema nervoso, que começou a pensar, a ter consciência e tomou decisões: é o salto do processo evolutivo determinístico e puramente biológico para o estágio da consciência e da liberdade.104 (sem grifo no original)

Resta clarividente que os fatos assinalados pelas vertentes são próprios do ser humano: razão (alma); autoconsciência dos relacionamentos significativos e existenciais; e o sistema nervoso apenas como apontamento para a consciência (mas não considerando que o sistema nervoso é responsável também pela senciência). Além de que as abordagens dos autores recaem sobre o problema do feto, pois existe a questão da proibição de aborto em alguns países mesmo com a inexistência de autoconsciência, muito menos de consciência e até mesmo de senciência. Com efeito, pergunta-se “se as crianças de mais ou menos 1 ano e 2 meses não têm autoconsciência, não fazem uso da linguagem, não têm expectativa, não fazem planos e não têm metas, e são sujeitos de direitos, por que os animais, então, não merecem o mesmo tratamento?”, a resposta é: por causa do especismo. Porém mesmo que o homem tenha deixado sua presunção de lado e voltado aos animais com um olhar ético como tem feito com mais intensidade nas últimas décadas, deixar de considerá-los como coisas no sentido tradicional para concebê-los como bens ambientais ainda não seria coerente. Por exemplo, vide o argumento de Fiorillo que categoricamente aponta que Os animais são bens sobre os quais incide a ação do homem. Com isso, deve-se frisar que animais e vegetais não são sujeitos de direitos, porquanto a proteção do meio-ambiente existe para favorecer o próprio homem e somente por via reflexa para proteger

104

PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p, 69

34

as demais espécies105 (sem grifo no original)

Conceber o animal como uma res, do acordo com o entendimento do século XXI, é uma postura que se está tentando torná-la obsoleta, ao menos filosoficamente, uma vez que juridicamente, apesar de terem uma proteção legal, os animais ainda são coisas (semoventes e bens ambientais) e só são protegidos tendo o próprio ser humano como fim, porque “a finalidade da fauna é determinada diante do benefício que a sua utilização trará ao ser humano”106, ou seja, resguarda-se o bem-estar dos animais porque eles são necessários para o bem do homem na medida em que eles mantêm o equilíbrio do ecossistema no qual o homem faz parte, em outras palavras, não há uma preocupação com o animal em si, mas sim com o homem. Os “princípios básicos” da Bioética são inaplicáveis a eles. A legiferação continua a ser antropocêntrica mesmo tutelando os animais não-humanos, sendo que sua tutela não é por serem sujeitos de direito, mas por serem objetos de direito107. Todavia, deve-se salientar, conforme Dias, que Se cotejarmos os direitos de uma pessoa humana com os direitos do animal como indivíduo ou espécie, constatamos que ambos têm direito à defesa de seus direitos essenciais, tais como o direito à vida, ao livre desenvolvimento de sua espécie, da integridade de seu organismo e de seu corpo, bem como o direito ao não sofrimento.108

Sua asserção, por exemplo, acaba por reportar ao princípio da nãomaleficência do Paradigma principialista, ou seja, ao percorrer-se nesta senda a Bioética terá sim uma aplicação para os animais. Mas para isso é preciso fundamentar a condição ética e jurídica dos animais, fundamento este que propicie à Bioética coadunar-se a eles os considerando como fins. Na verdade, levando em consideração o próprio conceito de Bioética, por questão de lógica é viável admitir o biocentrismo e em hipótese alguma o antropocentrismo (não excluindo, é verdade, o ser humano, mas sim a sua exclusividade), pois o primeiro também promove “a proteção da vida e da integridade física e psíquica dos Animais”109 que são abarcados pelo conceito de FIORILO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. p, 258 FIORILO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. p, 185 107 RODRIGUES, Danielle Tetü. O Direito & os animais. Uma abordagem ética, filosófica e normativa. p, 70. 108 Revista Brasileira de Direito Animal. Vol. 1, n. 1. p, 120. Disponível em: https://www.animallaw.info/policy/revista-brasileira-de-direito-animal-brazilian-animal-rights-review. 109 RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais. Uma abordagem ética, filosófica e normativa. p, 82 105 106

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bia. Entrementes, o fato é que [...] para a maioria dos doutrinadores, o Direito protege os Animais com intuito de tão somente proteger o homem. Apenas a minoria [...] defende e evoca os ensinamentos da ecologia profunda, a entender que os Animais, independentemente de classificação, são seres vivos com personalidade autônoma sui generis, de forma que devem ser protegidos como sujeitos de direito, dotados de percepções e sensações.110

Mas, contra essa doutrina majoritária é valioso o seguinte entendimento: Rodrigues apud Antunes diz que a incorporação da tutela dos ecossistemas no texto constitucional implica, efetivamente, em uma profunda alteração do próprio conceito de sujeito de direito (...) no interior de um determinado ecossistema, é possível a titularização de direitos por “sujeitos abióticos.”111

O panorama exposto por Rodrigues considera os seguintes fatos: que conforme o art. 129, III, da Constituição Federal112, ser função institucional do Ministério Público a proteção do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; que o dispositivo do art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal atribui ao Poder Público assegurar a proteção da fauna e vedar práticas que coloquem em risco sua função ecológica e provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade; e que o Dec. 24.645/1934 (revogado pelo Decreto 11/91) rezava que a representação dos animais em juízo se daria por intermédio do Ministério Público; assim conclui que para o Direito a ideia de ser pessoa não implica o ser homem, mas sim o ser capaz de ser titular de deveres e direitos, os Animais que são substituídos pelo Ministério Público estariam obrigatoriamente inseridos nessa ótica.113

Asseverar que são autônomos parece não condizer com um raciocínio RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais. Uma abordagem ética, filosófica e normativa. p, 76 111 RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais. Uma abordagem ética, filosófica e normativa p, 97 112 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: 113 RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais. Uma abordagem ética, filosófica e normativa. p. 126 110

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sensato, por isso quando se fala em serem sujeitos de direitos e pessoas (ou outros termos análogos) não necessariamente seja preciso tratá-los com um tipo de igualdade antropóloga, mas sim que pelo menos sejam pessoas sui generis, que tenham uma espécie de personalidade jurídica. Entretanto subsiste o especismo na medida em que se mantem a noção antropológica do Direito, que aparentemente se dá por alguns fatores, dentre eles, i) a influência aristotélica na filosofia de São Tomás de Aquino e, conseguintemente, a influência da religião cristã no Ocidente; e ii) do cartesianismo, tal como visto anteriormente no proêmio histórico ao delinear o paradigma vigente até a metade do século XX. A filosofia de Aristóteles é caracterizada por ser a mãe da lógica formal, da dedução, da hierarquia entre gênero e espécie, da formalização do saber e da argumentação e por considerar a racionalidade do homem como motivo de tê-lo como senhorio da natureza. Felipe diz que para Aristóteles Todos os seres devem não apenas ser classificados [...] mas, de acordo com sua ética, hierarquizar em função da forma de vida que apresentam. A ideia de que tudo o que está sobre a terra tem uma finalidade, e que esta é que confere uma justificativa para seu aparecimento, leva a Aristóteles a defender que também a existência dos animais de todas as espécies, sem excluir os racionais, pode ser explicada pela via teleológica.114

Com efeito, num procedimento dedutivo, estando todas as espécies classificadas na relação gênero/espécie e estando cada uma realizando o que é de sua natureza para um determinado fim, cada uma acaba por favorecer o ser que está “por cima” nessa hierarquia, ser este a quem devem servir que, por sua vez, deve servir a outro ser que, no grau máximo, será o homem, o único ser racional. Aquino, um ávido leitor de Aristóteles, arremata o pensamento deste com o conteúdo bíblico e afirma que o Homem é um ser com alma, inteligência e liberdade, sendo isso motivo suficiente para admitir apenas três tipos de pecados: os cometidos contra Deus, contra si próprio e contra outro ser humano, mas nunca contra um animal.115 Do fato dos animais não serem providos dos mesmos atributos, “implica” em seres

FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios. Alcance e limites da ética prática de Peter Singer em defesa dos animais. p, 44 115 FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios. Alcance e limites da ética prática de Peter Singer em defesa dos animais. p, 45 114

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desprezados. O “amar o próximo” tem em vista apenas a espécie. Por exemplo, abordando o cristianismo neste enfoque é imprescindível consultar a Bíblia, Genesis 1:26-28 para ler a determinação do próprio Deus direcionada ao Homem: 26 Então disse Deus: "Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão”. [...]28 Deus os abençoou e lhes disse: "Sejam férteis e multipliquemse! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra”.116 (sem grifo no original)

Se na prática muitos cristãos deram um respeito especial aos animais não os considerando como meras res a serem subjugadas, a exemplo do “patrono dos ecologistas”, São Francisco de Assis, isso é totalmente impertinente, pois se faz uma análise teórica dos pressupostos da aludida crença e o que dela supostamente adveio, mesmo que o nexo causal possa ser tênue. Exemplo de cristão dissidente dentro da Igreja Católica, foi Linzey que, influenciado por Primatt, na década de 70 do século XX, em Teologia Animal, procurou elaborar uma defesa em favor dos animais, tendo em vista que a ciência teve mostrado que inteligência e sentimento moral não estão só presentes no homem117. Atinente ao cartesianismo subtende-se que não há um foco apenas em Descartes, mas sim uma consideração ampla de sua visão que foi compartilhada por outros pensadores que desenvolveram ao seu modo uma representação do mundo. É oportuno constatar que, em relação aos animais, Voltaire reprovava a postura de Descartes por ser indiferente ao sofrimento animal porque os consideravam como máquinas, assim, este realizava vivissecções ao estudar os animais devaneando que suas reações e alaridos eram como atritos sobre uma corda, do mesmo modo quando do tocar o violão. “Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os animais são máquinas privadas de conhecimento e sentimento, que procedem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aperfeiçoam!”118 foram as palavras de Voltaire. Bíblia online. Disponível em: FELIPE, Sonia T. Por uma questão de princípios. Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais. p. 64 118 VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Dicionário Filosófico. p, 78 116 117

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Tal pensamento era sustentado por Descartes (que na verdade talvez tenha cometido um erro de fato) em duas considerações, de que os seres humanos agem deliberadamente e estão cientes do que fazem, ao contrário, autômatos (maquinas, animais) agem de acordo com as programações que recebem por disposição, e na de que os humanos têm linguagem, já os animais, não.119 Assim, de acordo com Descartes Por esses dois métodos também podemos reconhecer a diferença que existe entre homens e animais. Pois é fato sabido que não existe alguém tão estúpido e atrofiado, incluindo até mesmo os idiotas, que não seja capaz de combinar palavras de modo a formar uma expressão através da qual faça saber o que pensa; enquanto, por outro lado, não há outro animal, por mais perfeito e bem constituído que o seja, que possa fazer o mesmo. (...) Isso mais parece indicar que eles de modo algum possuem razão, e que é a natureza que neles age de acordo com a disposição de seus órgãos, exatamente como o faz um relógio, que, constituído apenas de rodas e pesos, é capaz de mostrar as horas e de medir o tempo com maior precisão do que o podemos fazer com toda nossa sabedoria.120

Assim sendo, deduz-se que a síntese dessas concepções teóricas acabou por ser o pródromo do antropocentrismo que ainda mantêm resquícios sobre a filosofia ética e jurídica dos animais, mas que ao que tudo indica já está sendo rechaçado. E no que tange ao especismo, Singer em Ética Prática propõe uma ideia que ajuda a combater esse direito antropocêntrico, a “igual consideração de interesses”, como critério para demarcar a igualdade entre os seres e, concordando com Bentham diz que este “chama a atenção para a capacidade de sofrimento como característica vital que confere, a um ser, o direito à igual consideração”121 (passagem símile em Schopenhauer, como se verá adiante), porque “a capacidade de sofrer e de desfrutar as coisas é uma condição prévia para se ter quaisquer interesses, condição que é preciso satisfazer antes de se poder falar de interesses”122, assim, admitindo esse critério, refuta-se além do especismo, o sexismo e o racismo na medida em que tanto os animais quanto as mulheres e os negros têm interesse em não sofrer e não sentir dor, pois “se um ser sofre, não pode haver nenhuma justificativa de ordem moral para

FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios. Alcance e limites da ética prática de Peter Singer em defesa dos animais. p, 56 120 FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios. Alcance e limites da ética prática de Peter Singer em defesa dos animais.p, 56 121 SINGER, Peter. Ética prática. p, 67 122 SINGER, Peter. Ética prática. p, 67 119

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nos recusarmos a levar esse sofrimento em consideração”123, a partir disso, deixando essa base bem sedimentada, é provável que não há nenhuma diferença em deixar de tratar os animais como coisas e sim como sujeitos de direitos do mesmo modo que os escravos deixaram de ser coisas e passaram a ser sujeitos de direitos e com toda razão. De certo modo, não obstante o termo quiçá seja impróprio, a espécie humana é mais “importante” que as outras e não se estará sendo especista ao afirmar que pelo fato do homem ser provido da faculdade da razão, de pensamentos abstratos, de uma consciência de si, sua vida seja mais valiosa que os seres que não possuem esses mesmos atributos124,

contrariamente,

confundir biologia

com moral,

desembocando no especismo, sim, é injustificável. Não sendo fundamental a existência ou não da autoconsciência e de realocar quem deve estar ou não sob o conceito de pessoa (pois excluiria da Bioética uma quantidade considerável de animais) e ruminando apenas a respeito da senciência e da consciência, responsáveis pela dor e pelo interesse em não sofrer, respectivamente, é patente que a Bioética, dada sua própria definição, deve compor – por questões morais, para não dizer lógicas – princípios próprios aos animais (uma autonomia diversa, por exemplo), ou mesmo em comum com o homem (beneficência e não-maleficência), sob pena de não o fazendo apenas por mero especismo, algo que, em consonância com a ilação de Rodrigues, parece estar dando vazão para novos tempos: Relutar contra a imposição do direito dos Animais é apenas retardar o inevitável. Ao final não trará nenhuma vantagem ao homem, pois o paradigma já restou modificado, e o ordenamento jurídico, mesmo em seu segmento antropocêntrico [...], é hábil a proteger aos Animais como sujeitos de direito. Ademais, ainda que em pequena parcela, os povos estão cada vez mais conscientes sobre a necessidade de se aferir o adequado respeito aos Animais, como seres dotados de sensações, percepções, inteligência e, portanto de vida.125 (sem grifo no original)

No ensejo propiciado pelas supra colocações, pode-se fazer por conseguinte uma análise conceitual e crítica entre Kant, Schopenhauer e Singer, para assim SINGER, Peter. Ética prática. p, 67 SINGER, Peter. Ética Prática. p, 71 125 RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais. Uma abordagem ética, filosófica e normativa. p, 105 123 124

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adentrar nas reflexões acerca do conceito de pessoa de modo mais temático.

2.2. PRESSUPOSTOS KANTIANOS

Immanuel Kant (1724 - 1804) foi um dos insignes filósofos idealistas da modernidade racionalista126. Seu idealismo chama-se Idealismo Transcendental e defende que há condições formais para a possibilidade da experiência, assim, transcendental reportar-se-ia ao que “precede (a priori), com o único fim de tornar possível simplesmente o conhecimento experimental”127. Transcendental é o conhecimento que não se ocupa do objeto, mas com o modo de conhecimento de objetos 128, enquanto que este seja considerado possível a priori. Em suma, estudar o Sujeito cognoscente, no sentido de averiguar o que há nele de puro (sem qualquer conteúdo empírico) que possibilite a ciência experimental, é um estudo transcendental. Com efeito, o idealismo transcendental é dividido em Estética Transcendental e Lógica Transcendental, sendo a primeira responsável pela intuição, ou seja, a possibilidade dos objetos afetarem a mente do homem129, e a segunda pelo uso dos conceitos puros que se referem aos objetos dados na intuição. Contudo, é necessário apenas transcrever acerca da Estética para concatenar o pensamento de Schopenhauer, que é objeto de estudo deste trabalho. A intuição pura é a possibilidade e forma da própria sensibilidade, da intuição sensível, ou seja, se se subtrai da representação suas qualidades, ou o que o entendimento pensa dele, subsiste, por exemplo, a extensão e a figura, que estão na mente do Sujeito. Em suma, Kant define a Estética Transcendental como “uma ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori”130. As intuições puras são o tempo e o espaço, encontrados a priori no Sujeito, vale dizer, não fazem parte do mundo real, mas são sua possibilidade, ou seja, eles não são propriedades dos objetos e com eles não desvanecem quando deixam de existir, muito pelo contrário, mantêm-se para possibilitar os supervenientes contatos

126

MARIAS, Julian. História da filosofia. p. 331 OS PENSADORES. Textos selecionados. Immanuel kant. Prolegômenos. p. 93 128 OS PENSADORES. História da filosofia. p. 305 129 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. p. 31 130 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. p. 32 127

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com os objetos. Assim fica fácil entender o idealismo transcendental, por exemplo, como dito acima, sem o espaço (condição pura que se encontra no Sujeito), não há como haver um Objeto diante do Sujeito. Se com a intuição pura é possível que o Sujeito tenha contato com o Objeto, deduz-se que, fora dessa intuição e, por conseguinte, da receptividade, o “em si” desses objetos é incognoscível, mesmo que por mais avançado que possa ser o conhecimento que o ser humano tenha deles, pois o que se apresenta são somente fenômenos, nunca a coisa em si (ou o “objeto transcendental”, “númeno”) que, por sua vez, excede a capacidade epistêmica do Sujeito em inteligir a realidade, porque “a representação de um corpo na intuição não contém nada que possa ser atribuído a um objeto em si, mas somente ao fenômeno de algo e o modo como somos afetados por tal fenômeno”.131 Ou seja, conforme Kant Nosso conhecimento tem duas origens principais na mente. A primeira é a faculdade de receber as representações (a receptividade das impressões) e a segunda, a faculdade de conhecer um objeto por essas representações (espontaneidade dos conceitos). Pela primeira, um objeto nos é fornecido; pela segunda, é pensado em relação com essa representação (como pura determinação da mente).132 (sem grifo no original)

De um modo conclusivo, a Estética, numa definição trivial, seria a possibilidade a priori de experiências a posteriori com os fenômenos, no sentido de que o Sujeito possa ter contato com o Objeto para assim, após intuí-lo, fazer uso do entendimento133, valendo-se dos conceitos que são puros, contidos a priori no Sujeito (conceito da causalidade, por exemplo, que em Kant se encontra nas doze tábuas do entendimento), sem os quais nenhum objeto poderia ser pensado.

2.3. FILOSOFIA SCHOPENHAUERIANA

Tendo em vista este ser o norte teórico principal deste trabalho, será explanado sucintamente o ponto de partida do pensamento de Schopenhauer. 131

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. p. 45 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. p. 53 133 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. p. 59 132

42

2.3.1. Introdução ao pensamento A epistemologia schopenhaueriana mantém a divisão entre fenômeno e coisa em si, mudando a terminologia para Representação e Vontade, respectivamente. Porém, diversamente de Kant, não postula doze tabuas do entendimento, na verdade as reduz à única categoria da causalidade134. Além disso, defende que apenas há a priori no sujeito, tempo, espaço e causalidade. Assim, retificou a filosofia kantiana em dizer que a causalidade não está numa fase secundária, mas sim primária, ao lado do espaço e tempo, explicando ainda que a causalidade os unifica135, e é dessa união que surge a Matéria136. Os três, por sua vez, formam o princípio da razão suficiente, responsável pela estruturação do entendimento137, sendo este responsável pela possibilidade da representação. A faculdade do entendimento é representativa porque o sujeito, quando da intuição do mundo efetivo, conheceu a causa a partir do efeito138, ou seja, ele teve que conhecer imediatamente o efeito em seu corpo, em razão da sensibilidade (por exemplo, ele escutou um barulho), para que o entendimento pudesse ter ido até a sua causa, originando-se a intuição desta como Objeto139, encontrando assim o mundo como representação140. Logo, a intuição na verdade também é intelectual e não somente sensível141, já que o entendimento transforma a sensibilidade em intuição. Schopenhauer exemplifica das seguintes maneiras: um cego de nascença, ao ser operado, passa a intuir o mundo, já que até então apenas lançava mão do tato, não tendo dados o suficiente para o entendimento operar; os dois olhos, por mais que tenham focos diferentes, após seus dados passarem pelo entendimento são transformados, assim, na mente do Sujeito representa-se o Objeto sob um foco só142. Espaço e tempo constituem o principii individuationis143, terminologia que Schopenhauer adotou da escolástica, ou seja, é o que possibilita a diferença entre o REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia. Do romantismo até nossos dias. Vol. 3. p. 226 135 ROGER, Alain. Vocabulário de schopenhauer. p. 13 136 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 52 137 ROGER, Alain. Vocabulário de schopenhauer. p. 21 138 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 53 139 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 53 140 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 54 141 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 55 142 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 55 143 ROGER, Alain. Vocabulário de schopenhauer. p. 59 134

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eu do não-eu, pois é no espaço e no tempo em que a pluralidade torna-se possível. Enquanto que essas determinações subjetivas da possibilidade da experiência e, por conseguinte, da ciência, representa um mundo com entes múltiplos, sucessivos, adjacentes entre si etc. por estarem enredados no espaço e tempo, está claro que a coisa em si, o noumenon kantiano, não pode estar sob as formalidades do sujeito, já que espaço e tempo são meras idealidades, assim, a Vontade é una (não como unidade em oposição à pluralidade, pois estes contrários existem no mudo fenomênico) e graças ao principii individuationis objetiva-se em vários fenômenos, inclusive nos próprios homens enquanto corpos. Dessa maneira, enquanto coisa em si, todo ser é Vontade. Pertinente à razão, vale dizer que em Schopenhauer ela tem apenas a função de formar conceitos144, ou seja, ela se relaciona com a intuição, com o mundo efetivo, isto é, ela não lida com o incondicionado, já que está adstrita ao mundo empírico, sendo que em Kant os conceitos são da seara do entendimento, que por sua vez se relaciona com as intuições, enquanto que razão é considerada como a faculdade do incondicionado145, ou seja, ela não se relaciona com a experiência nem com objetos, mas com o entendimento, a fim de fornecer, a priori, uma unidade racional, isto é, lógica, aos conhecimentos146. Cabe ressaltar que Vontade, para Schopenhauer, é algo distinto do uso que Kant faz da palavra, como se verá adiante. Vontade, consoante Schopenhauer, é a Coisa em si kantiana, ou seja, aquilo que está além das condições subjetivas do sujeito. Em Schopenhauer Vontade tem uma conotação mais abrangente, tendo em vista que a coloca como essência metafísica do universo enquanto representação 147. Ademais, enquanto que em Kant a coisa em si (Vontade) é incognoscível, em Schopenhauer ela pode ser sim conhecida, porém relativamente 148, mediante a realização da autoconsciência, já que essa mesma Vontade é uma vontade em particular em cada homem que, ao observar seus próprios atos, que nada mais são do uma manifestação dessa vontade em particular, aproveita o ensejo para conhecer a si mesmo – o que nele é vontade.

144

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 85 ROGER, Alain. Vocabulário de schopenhauer. p. 64 146 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. p. 214 147 GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche x kant. Uma disputa permanente a respeito de liberdade, autonomia e dever. p. 131 148 ROGER, Alain. Vocabulário de schopenhauer. p. 17 145

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Foi preciso bosquejar tais informações tendo em vista considerações ulteriores. 2.3.2. Vontade, ideia e objetos; essência e diferença Se a Vontade é una e está além do espaço, tempo e causalidade, como explicar a multiplicidade de objetos no mundo fenomênico? A diversidade, em seu aspecto quantitativo, consoante as palavras de Schopenhauer, dá-se no espaço e no tempo, “pois o múltiplo só se deixa pensar e representar ou como coexistente ou como sucessivo”149, e ainda diz noutro momento – ao fundamentar a moral – “sabemos que a pluralidade em geral é necessariamente condicionada por tempo e espaço e só é pensável nestes, os quais, nesse sentido, denominamos principium individuationis”150, logo, ela só existe como fenômeno, nunca como coisa em si. Agora, sendo mais pertinente ao tema: como é viável a diversidade em seu aspecto qualitativo entre os fenômenos? Ou, mais precisamente, entre os animais e o homem? No § 25, do O Mundo como Vontade e como Representação, Schopenhauer expõe seu pensamento no sentido de que não obstante as pluralidades de coisas no espaço e no tempo serem a objetivação da Vontade, inexiste uma parte pequena dela numa pedra e outra maior numa planta, pois mais e menos concernem só aos fenômenos, ou seja, a Vontade é indivisa e está igualmente em todos os fenômenos, contudo, ela está num grau maior no animal que na planta, em outros termos, sua objetivação possui graduações (que não se confunde com “quantidade de Vontade”), cada quais correspondendo a um tipo de universal (universalia ante rem) que abarca a totalidade de indivíduos (indivíduo na acepção do termo de unidade, particularidade etc., ou seja, em rigor, uma pedra é um indivíduo) no mundo fenomênico que estão subsumidos a ele. Com espeque nessas considerações, Schopenhauer afirma que os graus de objetivação correspondem as Ideias de Platão, como sendo os protótipos, as formas eternas e essenciais das coisas particulares151, fixos e alheios à pluralidade, tendo em vista que subsistem sem as determinações do espaço e tempo. Posteriormente, no § 32, ele ressalta que as Ideias e a coisa-em-si, ainda que indivisas, não se confundem,

149

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 203 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 188 151 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 191 150

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pois a Ideia é “apenas a objetidade imediata e por isso adequada da coisa-em-si, esta sendo precisamente a Vontade, na medida em que ainda não se objetivou, não se tornou representação”152, sem falar que a Ideia, continua, ao contrário da coisa-em-si, é um objeto para o sujeito, ou seja, é uma representação, porém, representação esta que não está subordinada às formas estabelecidas pelo princípio de razão, portanto, a Ideia trata-se de uma representação geral, que por sua vez é pluralizada em indivíduos particulares e efêmeros em virtude do princípio de razão (formas subordinadas), sendo que esses indivíduos particulares, por sua vez, seriam objetivações mediatas da Vontade, que se dão mediante a Ideia, que é imediata. Dessarte, essa objetidade imediata da Vontade, como ideia platônica, referentemente aos animais e ao homem – este enquanto animal –, chama-se Espécie153, e manifesta-se no reio da vida (que se encontra ao lado da Força, que rege o mundo inorgânico, e do Caráter Inteligível, que rege o homem em particular). Enquanto o principium individuationis possibilita a pluralidade e as ideias platônicas são responsáveis pela diversidade de qualidades que se manifestam em graus, infere-se que os homens e os animais são distintos somente por questão de grau de objetivação, o que em momento algum leva a ilação de que eles não integrem os elementos que estão sob a incidência da ética. Por

fim,

resta

indagar:

qual

a

importância

dessas

considerações

supratranscritas? Fundamentar, com rigor, a situação do homem ao lado do animal, para assim, desembocar nas considerações almejadas.

2.4. PERSPECTIVAS Partindo do fato de que existem conceitos essenciais para o desdobramento deste trabalho, serão apresentados os pontos de vista de Kant, Schopenhauer e Singer. 2.4.1 Perspectivas kantianas Todo conhecimento teórico acerca dos fenômenos tem sua fonte na natureza,

152 153

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 241 ROGER, Alain. Vocabulário de schopenhauer. p. 22

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e natureza para Kant nada mais é do que “a existência das coisas enquanto determinadas por leis universais”154, definição esta que apenas indica a conformidade a leis das determinações da existência das coisas em geral, enquanto que Kant apresenta outro significado, que determina o objeto, no sentido de que nessa natureza considerada, a materialiter é o conjunto de todos os objetos da experiência155. Assim, ele defende que a natureza é a totalidade de coisas e dessas enquanto objetos de uma experiência possível, sendo que nessa experiência é viável conhecer as leis que regulam necessariamente a natureza. No entanto, o homem também faz parte dessa natureza regida por causas eficientes. Assim sendo, como defender a liberdade e a autonomia do homem diante da natureza causal? Kant, ao investigar criticamente o uso correto da razão, demonstrou que o homem é levado a certas antinomias quando peca em certos detalhes. Dentre as quatro antinomias apresentadas, a terceira é a única pertinente para ser analisada aqui, o que dará espaço para um confronto crítico entre Kant e Schopenhauer (e Singer numa certa medida). A terceira antinomia tem sua seguinte tese, Há no mundo causas dotadas de liberdade156, ou ainda, A causalidade segundo as leis da natureza não é a única da qual podem ser derivados todos os fenômenos do mundo. Para explicar esses fenômenos, é preciso ainda admitir uma causalidade mediante a liberdade157; e como antítese: não há liberdade, mas tudo é natureza158 (quer dizer, tudo é regulado necessariamente). Contudo, Kant assevera que na verdade trata-se de uma aparente antinomia na medida em que a tese e a antítese não são contraditórias, já que podem ser ambas verdadeiras159. Kant explana que Se a necessidade natural refere-se apenas a fenômenos e a liberdade apenas às coisas em si mesmas, não surge contradição se se admite ou aceita imediatamente ambas as formas de causalidade, por difícil ou mesmo impossível que pareça tornar compreensível a da última espécie.160

OS PENSADORES. Textos selecionados. Immanuel kant. Prolegômenos p. 35 OS PENSADORES. Textos selecionados. Immanuel kant. Prolegômenos p. 36 156 OS PENSADORES. Textos selecionados. Immanuel kant. Prolegômenos. p. 68 157 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. p. 307 158 OS PENSADORES. Textos selecionados. Immanuel kant. Prolegômenos. p. 68 159 OS PENSADORES. Textos selecionados. Immanuel kant. Prolegômenos. p. 71 160 OS PENSADORES. Textos selecionados. Immanuel kant. Prolegômenos. p. 71 154 155

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Kant argumenta no sentido de que, dado que na natureza, no fenômeno, cada efeito vem a acontecer no tempo em razão de uma causa, essa mesma causa teve uma determinação para a causalidade, ou seja, “a causa deve ter começado a agir” 161. A liberdade, pelo contrário, pode ser entendida como uma propriedade de certas causas de fenômenos, de começá-los por si mesma, “sem ser preciso que a própria causalidade da causa comece, e, com isso, sem precisar de outro fundamento que determine seu início”162, por ser nada mais que a “faculdade de iniciar espontaneamente um estado cuja própria causalidade não está subordinada, por sua vez, a outra causa que a determine no tempo, segundo a lei da natureza” 163. Admitindo-se que os fenômenos não são coisas em si, mas representações enredadas na causalidade é preciso admitir, também, que eles tenham fundamentos que não sejam, por sua vez, fenômenos.164 Com efeito, torna-se preciso entender o conceito de inteligível e de sensível em Kant. Segundo ele Aquilo que, num objeto dos sentidos, não é um fenômeno, eu denomino inteligível. Portanto, se aquilo que deve ser considerado como fenômeno no mundo sensível tem também em si mesmo uma faculdade que não seja um objeto da intuição sensível, mas pela qual o próprio fenômeno pode ser uma causa de fenômeno, podemos então considerar a causalidade desse ser de dois pontos de vista: como inteligível quanto a sua ação enquanto coisa em si e como sensível quanto aos efeitos dessa ação enquanto fenômeno no mundo sensível.165 (com grifos no original)

Desses conceitos deriva-se que a causa eficiente deve ter um caráter (uma lei de sua causalidade, sem a qual não seria uma causa), portanto, há num mesmo sujeito um caráter empírico e inteligível, isto é, no primeiro caso afirma-se que a ação dele está conectada com os demais fenômenos no reino da natureza, e, no segundo, que esse caráter é responsável por ser a causa de seus atos, como fenômenos, todavia sem estar sob às condições da sensibilidade166. Deste modo, o ser humano, enquanto ser sensível e inteligível, pressupondo que tenha uma liberdade (que existe apenas no inteligível, pois no mundo sensível OS PENSADORES. Textos selecionados. Immanuel kant. Prolegômenos. p. 71 OS PENSADORES. Textos selecionados. Immanuel kant. Prolegômenos. p. 71 163 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. p. 355 164 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. p. 358 165 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. p. 358 166 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. p. 359 161 162

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tudo é necessário) pode começar por si mesmo uma causa, que no mundo fenomênico desembocará num efeito, regido necessariamente por uma lei natural. A questão é que enquanto ser racional ele faz parte da coisa em si, ele é um númeno167, e pode determinar os efeitos, já que os “fundamentos da razão determinam as ações universalmente, a partir de princípios, sem influência de circunstância de tempo ou de lugar”168. Logo, “a razão é a condição permanente de todos os atos voluntários”. 169 Consequentemente, tendo em vista a antinomia exposta nos Prolegômenos e na Crítica da Razão Pura, tem-se uma base sedimentada que servirá de escora para inteligir o conceito de pessoa, vontade, autonomia e liberdade nas obras Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na Crítica da Razão Prática como se verá a seguir. Já na Fundamentação, Kant afirma que só o homem, por ser racional, possui uma vontade, assim, na medida em que a razão determina a vontade, esta nada mais seria do que a razão pratica170. A vontade, em Kant, segundo as lições de Giacoia, é a “modalidade específica assumida pela faculdade apetitiva humana que se diferencia por ser determinada (em sua forma e em seu conteúdo) pela razão”171, daí que, a razão é o “que determina os atos de vontade sob a forma de normas de conduta, princípios e regras subjetivas para o agir”172. Aqui é oportuno explanar o Imperativo Categórico. Seu escopo é de impor à vontade do homem uma regra universal que ele deve obedecer para que sua ação seja considerada moral, isto é, existem princípios práticos que são determinações para a vontade do homem, que podem ser subjetivos, ou máximas, quando este apenas considera apenas a sua vontade no atuar, mas que podem ser objetivos, ou leis práticas, quando a condição para sua ação é objetiva e vale para todas as vontades dos seres racionais173, e o Imperativo Categórico é caracterizado por ser uma regra objetivamente válida para todo ser racional, a saber, “age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” 174. Isso

167

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. p. 360 OS PENSADORES. Textos selecionados. Immanuel kant. Prolegômenos. p. 72 169 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. p. 366 170 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes p. 43. 171 GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche x kant. Uma disputa permanente a respeito da liberdade, autonomia e dever. p. 49 172 GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche x kant. Uma disputa permanente a respeito da liberdade, autonomia e dever. p. 49 173 KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. p. 31 174 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 51 168

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quer dizer que, dada uma situação, se o homem determinar sua vontade segundo um princípio subjetivo sem considerar seu ser enquanto ser racional, não agirá moralmente, todavia, na medida em que sua vontade é determinada pela lei prática, ele agirá moralmente, caso queira que sua máxima valha como lei universal175 (ou seja, caso queira que todo ser racional também opte por essa máxima diante da mesma situação). Aqui é necessário o auxílio de Giacoia para se efetuar uma intelecção apropriada do que significa Imperativo Categórico. Ele ensina que são regras que comandam ações obrigatórias, ou seja, necessárias em função do próprio imperativo. (...) Como um imperativo é uma regra, sua possibilidade é dependente da faculdade de representação. Só um ser racional pode agir mediante a representação de regras ou princípios. Logo, um imperativo categórico é uma regra válida para todos os agentes racionais.176

Kant continua e aduz que todo princípio objetivo que serve à vontade é o fim e, em sendo este posto tão somente pela razão, deve valer para todo ser racional. 177 Dessarte, fins subjetivos são impulsos, enquanto que fins objetivos são motivos válidos para todos os seres racionais178. Contudo, tais fins não podem ser materiais, dado que assim seriam fins relativos, logo, devem ser formais, sob pena de serem Imperativos Hipotéticos ou Técnicos (regras para se chegar a um fim qualquer sem que tenha valor moral) e não Categóricos. Para solucionar esse embarace, Kant conjectura que mas supondo que haja alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim e si mesma, possa ser o fundamento de determinadas leis, nessa coisa, e somente nela, é que estará o fundamento de um possível imperativo categórico, quer dizer, de uma lei prática.179 (sem grifos no original)

“Agora eu afirmo:” – enfatiza Kant – “o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 54 GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche x kant. Uma disputa permanente a respeito da liberdade, autonomia e dever. p. 55 177 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 58 178 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 58 179 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 58 175 176

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arbitrário desta ou aquela vontade”180. Com isso, Kant chegou a uma conclusão que em termos científicoexperimental foi totalmente temerária para os animais, em virtude de que ele assevera o seguinte: os seres, cuja existência não assenta em nossa vontade, mas na natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, um valor meramente relativo, como meios, e por isso denominam-se coisas.181 (sem grifos no original)

Enquanto que seres irracionais (entenda-se animais) são coisas e meios para os homens, estes, ou melhor, os seres racionais, denominam-se pessoas182, porque são fins em si mesmos e nunca podem ser tratados como meios. Giacoia apud Kant escreve que Pessoa é aquele sujeito cujas ações são passiveis de imputação. A personalidade moral é, portanto, nada mais do que a liberdade de um ser racional sob leis morais (...) do que segue que uma pessoa não está submetida a nenhuma outra lei senão aquelas que ela legisla a si mesma (...). Coisa é algo que não é passível de nenhuma imputação. Qualquer objeto do livre-arbítrio que, ele próprio, carece de liberdade, chama-se, por isso, coisa (res corporalis).183 (sem grifos no original)

Nessa senda, Kant apresenta um novo imperativo que se fundamenta no princípio segundo o qual a natureza racional existe como fim em si: age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio 184. Partindo ao terceiro princípio prático (o primeiro é a regra da universalidade e o segundo de tomar o ser racional como fim em si) Kant preceitua o seguinte: tomar a vontade de todo ser racional como vontade legisladora universal, isto é, a vontade ao estar submetida à lei, também deve ser responsável pelo seu engendramento185. Porém, ainda pode haver um interesse da vontade em erigir essas leis, sem, no entanto, o fazer tendo em vista um dever moral (que ela mesma se submete). Por KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 58 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 59 182 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 59 183 GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche x kant. Uma disputa permanente a respeito da liberdade, autonomia e dever. p. 82 184 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 59 185 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 62 180 181

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isso, é imprescindível estipular ainda um quarto princípio, o da autonomia da vontade, ou seja, aquele segundo o qual não se obedece a lei por interesse que cause estimulação ou constrangimento (qualificando-se como heteronomia da vontade), mas sim por dever.186 Atinente a esse ponto, Giacoia preleciona que a autodeterminação da vontade seria um “ato pelo qual a vontade de um agente dá a si próprias regras com vistas à sua ação”187. Seguindo a linha de raciocínio, considerando que a pessoa é um fim em si, significa que os seres racionais estão ligados sistematicamente por meio de leis comuns, já que a legislação universal, enquanto que é feita pelo ser racional, submete ele mesmo a obedecê-la, logo, tendo em vista que ele deve considerar-se simultaneamente como fim, conforme o segundo princípio, ele, enquanto ser racional, pertence ao reino dos fins188, ou seja, “um ser racional pertence ao reino dos fins na condição de membro quando nele é legislador universal, ainda que igualmente submetido a essas leis”189. Assim, depreende-se que é na relação de toda a ação com a legislação, na medida em que torna possível um reino dos fins, que a moralidade vem a lume190, em outras palavras, enquanto que se considere o ser racional como fim, e nunca como meio (que só pode ser uma res), e observando concomitantemente o Imperativo Categórico, é que um agente age moralmente. Diga-se de passagem, pressupondo que apenas seres racionais são pessoas e conseguintemente são fins em si, e que seres irracionais são meios (podem ser fins, mas fins relativos, dado que sua natureza não é um fim em si), e considerando por fim que a moralidade reside tão somente nessa relação lógica construída por Kant, o corolário que se tem é que os animais estão alheios à relação moral. Ora, Kant prossegue mais além e assevera que nesse reino tudo ou tem um preço ou uma dignidade, sendo que o que tem um fim em si não pode ter um preço, pois se o tem é algo relativo, logo, apenas as pessoas têm dignidade. Assim sendo “a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas providas de dignidade”191. Em suma, significa a contrario sensu que animais são desprovidos de dignidade, até porque, kantianamente falando, a) não podem ser tratados como fins, KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 63 GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche x kant. Uma disputa permanente a respeito da liberdade, autonomia e dever. p. 45 188 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 64 189 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 64 190 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 64 191 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 65 186 187

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sob pena do ser racional não agir moralmente (mas não necessariamente imoralmente), tanto é que Kant ressalta que o homem não deve maltratar o animal apenas para não desestimular a compaixão, pois ela é útil para si 192, em outras palavras, o animal não é respeitado como fim, mas tendo em vista o homem; outrossim, b) na medida em que os seres irracionais não possuem vontade, não podem evidentemente criar tais regras universais do agir e estão necessariamente sob a causalidade da natureza. Por sua vez, o ser racional, que possui vontade, escolhendo senão modos com os quais suas máximas possam coincidir com as leis universais, implica que tem uma vontade autônoma193, em virtude de que enquanto legisladora, ou seja, determinada pela razão, determina por sua vez o fenômeno como efeito (por isso se diz que a razão é livre), podendo assim coincidir a liberdade com a natureza num mesmo ser, atribuindo-lhe um valor, uma dignidade – e só a ele.

2.4.2. Perspectivas schopenhauerianas e singerianas Antitético à Kant, Schopenhauer posiciona-se como determinista, sendo adverso à crença do liberum arbitrium indifferentiae. O fato é que Schopenhauer adota uma postura descritiva da moral, e não prescritiva194 (que pressupõe a liberdade), ou seja, moral e imoral, justiça e injustiça, são fatos morais que se dão na ocasião das ações, sendo que estas só vêm a ocorrer por causa de uma razão suficiente, ou seja, um motivo. Segue-se que, dadas certas condições necessárias, havendo um motivo adequado, desencadeia-se o efeito, a ação, tudo dentro da relação de causalidade inerente ao mundo fenomênico. Isto é na esfera do intelecto a decisão entra em cena de modo totalmente empírico, como conclusão final do assunto; contudo, esta se produziu a partir da índole interior, do caráter inteligível, da vontade individual em seu confronto com motivos dados e, por conseguinte, com perfeita necessidade.195 (sem grifo no original)

Partindo do pressuposto de que o entendimento é a faculdade da representação, segundo Monteiro, o entendimento só pode conhecer as 192

BARBOZA, Jair. A mitleidsethik e os animais ou Schopenhauer como precursor da ética animal. Disponível em: http://revistalampejo.apoenafilosofia.org/edicoes/edicao2/artigos/Artigo12_%20Jair_130_a_141.pdf. p. 134 193 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. p. 70 194 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 354 195 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 377

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determinações da Vontade a posteriori196, uma vez que o ato apresenta-se já como representação, como fenômeno, tendo em vista já estar submetido ao princípio da razão suficiente, na medida em que houve um motivo para o ato vir a ocorrer, logo, “no momento da escolha, a Vontade não pode ajudá-lo na decisão a tomar”.197 Noutro momento o filósofo esclarece que a alma do homem (numa linguagem filosófica, não teológica, já que ele era ateu) é composta pela conexão da Vontade com o intelecto, sendo que este é secundário, o posterius do organismo, estando por este condicionado na medida em que o intelecto for entendido como função cerebral, enquanto que a Vontade, sendo primária, é o prius do organismo, sendo que este, por sua vez, é condicionado por ela,198 assim, infere-se que o intelecto é condicionado pela Vontade, porque Eu estabeleço, pois, primeiramente, a vontade enquanto coisa em si como absolutamente originária; em segundo lugar, a sua mera visibilidade, sua objetivação, o corpo; e em terceiro lugar a cognição, como mera função de uma parte desse corpo. Essa parte é ela mesma a vontade de conhecer objetivada (tornada representação), uma vez que a vontade necessita da cognição para seus fins.199 (sem grifo no original)

Ou seja, a Vontade, quando da objetivação, equipou todos os animais com um intelecto, com o desiderato de usarem-no para a manutenção de si próprios, da própria espécie, em outros termos, ele está a serviço da Vontade200, tendo em vista um fim elaborado não pela razão, mas um fim que o querer quer. Ainda em Kant, “liberdade e autonomia se identificam”201, mas Schopenhauer em momento algum nega a liberdade, pois apenas a Vontade (a coisa em si) é livre; sendo o seu espelho, o mundo fenomênico, desprovido de liberdade. Para quem crê no livre-arbítrio, a decisão em tese é tomada a priori, livre da relação de causalidade, supondo que a vontade esteja a serviço da razão, mas assim implicitamente se admite a existência de milagres no mundo fenomênico202, já que, segundo essa doutrina, podem ocorrer efeitos sem causas propriamente ditas. Aliás, com fulcro em Sêneca,

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MONTEIRO, Fernando J.S. 10 lições sobre schopenhauer. p. 57 MONTEIRO, Fernando J.S. 10 lições sobre schopenhauer. p. 57 198 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a vontade na natureza. p. 66 199 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a vontade na natureza. p. 67 200 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a vontade na natureza. p. 100 201 GIACOIA, Oswaldo Jr. Nietzsche x kant. Uma disputa permanente a respeito de liberdade, autonomia e dever. p. 78 202 SCHOPENHAUER, Arthur. O livre arbítrio. p. 122 197

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Schopenhauer afirma que o operari seguitur esse, isto é, que todo ser age em conformidade com a essência que lhe é própria203. Dada essa premissa, levando em conta o caráter inteligível que, em outras palavras, é a essência de cada homem, e só podendo este agir em conformidade com o que é, conclui-se que não pode agir com autonomia, ao menos num léxico kantiano. O importante é que Schopenhauer denuncia que não há como alguém, diante de uma situação, usar sua razão para, espontaneamente, representar princípios que determinarão sua vontade para que ele, por si mesmo, encete uma série de fenômenos, dado que estas mesmas máximas são apenas motivos com os quais a vontade, a essência de um determinado homem, irá se valer para satisfazer seu querer como algo necessário no mundo fenomênico. Poder-se-ia dizer que os kantianos nesse ponto podem confundir o livre-arbítrio com a decisão eletiva que, conforme Schopenhauer é a possibilidade de um conflito duradouro entre vários motivos, até que o mais forte determine com necessidade a vontade. Para isso os motivos têm de ter assumido a forma de pensamentos abstratos, pois só por este é possível uma deliberação propriamente dita, isto é, uma avaliação de fundamentos opostos para o agir.204 (sem grifos no original)

A lógica dos motivos vale tanto para os animais irracionais, quanto para os racionais, já que o conhecer e mover-se pelo conhecido constitui o caráter da animalidade, enquanto que o movimento por excitação é o caráter da planta205, por isso, todos os animais possuem entendimento “pois conhecem objetos, e esse conhecimento determina, como motivo, os seus movimentos”206.

Diga-se de

passagem, Schopenhauer estabelece que “entender-se-á, pois, sob a denominação de animais, todos os seres cujos movimentos e modificações características e conformes à sua natureza, desenvolvem-se sob a impulsão de motivos”207. Contudo, a questão é que nos seres racionais esses motivos são tomados como pensamentos abstratos (e já entram na esfera temporal), enquanto que nos animais os motivos são intuitivos208, ou seja, determinam a vontade do animal apenas naquele momento dado. SCHOPENHAUER, Arthur. O livre arbítrio. p. 145 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 385 205 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 64 206 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 64 207 SCHOPENHAUER, Arthur. O livre arbítrio. p. 93 208 ROGER, Alain. Vocabulário de schopenhauer. p. 14 203 204

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Por isso, ele ainda diz que, segundo a tradição de Descartes e Espinosa, o homem “QUER o que conhece” e segue dizendo “em mim, ele CONHECE o que quer”209. Na medida em que aqui se versa sobre inexistência de livre-arbítrio, cabe analisar ligeira e oportunamente as palavras do Schopenhauer sobre a terceira antinomia. Em síntese, para ele a causalidade apenas existe no mundo fenomênico, não fazendo sentido atribuir uma causa incondicionada advinda do mundo transcendente210 (porque ocorreria a falácia da transição para outro gênero, tendo em vista que a causalidade é essencialmente fenomênica, como visto na introdução do seu pensamento), já que ela estaria justamente além do limite subjetivo de apreensão da realidade, que por sua vez tem a priori o tempo, espaço e a própria causalidade.211 Ademais, se a coisa em si é livre, não pode fazer parte da relação de causalidade, nem que seja para determinar o mundo sensível. Ou seja, Schopenhauer adotou a antítese, a saber, de que não há liberdade, mas tudo é natureza. Afinal, dado que o ser humano, em sua própria percepção exterior, encontra-se como objeto da experiência, “é um fenômeno no espaço e no tempo, e como a lei da causalidade vale a priori para todos os fenômenos, não sofrendo, por conseguinte, exceções, deve ele ser também submetido a esta lei”212. A questão é que o mundo fenomênico não é efeito da Vontade, mas é sua objetivação, sua manifestação, que se dá de modo imediato, e esta terminologia é imprescindível justamente para evitar esse equívoco kantiano de que haja uma causalidade independente da natureza que vem a criar um efeito nela, pois o fenômeno não está em relação de causalidade com a coisa em si, notadamente por esta ser livre. Agora é necessário retomar a questão de que o homem tem uma essência particular a fim de encerrar o contraste. O Caráter Inteligível, em Schopenhauer, segundo Giacoia de acordo com Schopenhauer, se o em-si do mundo é vontade, então o caráter inteligível é o correlato do Ser, na oposição ao Ser versus Devir, sendo o caráter sensível o correlato do Devir, assim como o caráter inteligível é o correlato da essência (esse) em SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 379 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Apêndice, crítica à filosofia kantiana. p. 630 211 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Apêndice, crítica à filosofia kantiana. p. 630 212SCHOPENHAUER, Arthur. O livre arbítrio. p. 120 209 210

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oposição à existência, constituída pelo caráter empírico, o mesmo ocorrendo na oposição entre o real e o aparente. Ora, sendo a “coisa em si” a vontade metafísica, o caráter inteligível seria o ato originário de seu ingresso no domínio da objetivação.213 (sem grifos no original)

Vide que, como já dito outrora, a Vontade, mediante a Ideia, objetiva-se no mundo inorgânico como força natural, no mundo orgânico como espécie, e em cada homem como caráter inteligível, ou seja, a vontade do homem enquanto coisa em si214, estando ele determinado a priori a ser o que é. Do confronto dos caracteres inteligíveis que tanto Kant quanto Schopenhauer defendem, vem à luz um ponto importante. Para os pensadores esse caráter está alheio ao espaço e tempo, dado que ambos consideram igualmente que ele é a coisa em si, contudo, em Kant, o inteligível pode determinar o empírico por conta da liberdade, mas em Schopenhauer esse mesmo inteligível é o fundamental para se confutar o livre-alvedrio, uma vez que ele é a essência imutável de cada homem que também determina o caráter empírico, ou seja, o homem é o que é a priori. O que para um possibilita a liberdade, para outro a inviabiliza. Isso significa que, em que pese os animais não terem razão (aqui, num viés kantiano, pois para Singer já seria diferente), implicando em não terem liberdade, em não serem autônomos, ou seja, não serem “dignos” e, portanto, não terem direitos, implicaria que os homens também não deveriam tê-los, haja vista que eles também não são, em rigor, autônomos, já que a racionalidade atua secundariamente no ser humano por estar a serviço da Vontade em prol de sua própria manutenção215. Por consequência, segundo Descartes, o homem também seria um autômato, porquanto não tem consciência prévia de suas atitudes, pois o que vale para todo ser humano é “eu quero de acordo com o que sou: por isso devo ser de acordo com o que quero”216, estando seu inconsciente, ou melhor, o seu Caráter Inteligível, em primazia diante de sua razão. Em outras palavras, a presunção racionalista, num viés jurídico, na medida em que se coloca como essencial, por via da lógica, torna-se solapada, assim, relutar contra a defesa do bem-estar de outro ser que tem a mesma essência é algo infundado – especista. 213

GIACOIA, Oswaldo Jr. Nietzsche x kant. Uma disputa permanente a respeito de liberdade, autonomia e dever. p. 142 214 ROGER, Alain. Dicionário de schopenhauer. p. 12 215 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a vontade na natureza. p. 122 216 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a vontade na natureza. p. 211

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No que tange ao conceito de pessoa, Singer e Rodrigues trabalham sobre ele no sentido de que este termo não está analiticamente contido no conceito de humano, ou seja, que há animais não-humanos que são pessoas e, com efeito, são sujeitos de direitos. Rodrigues explicita que A palavra pessoa conceituada sob o prisma jurídico importa no ente suscetível de direitos e obrigações, ou seja, sujeito de direitos e titular de relações jurídicas. Uma vez que todo titular de fato de relações jurídicas é obrigatoriamente sujeito de direito, é obviamente claro que a noção de sujeito de direito não equivale à ideia de ser indivíduo, e portanto, os Animais como titulares de relações jurídicas podem ser considerados sujeitos de direitos e seriam normalmente incluídos na categoria de pessoas, ainda que não sejam pessoas físicas ou jurídicas de acordo com o predicado terminológico.217

E prossegue dizendo que as pessoas jurídicas seriam um exemplo de uma pessoa que não é um humano, apenas porque o Direito, a fim de garantir a propriedade, para garantir por sua vez a acumulação de bens, criou essa categoria, existindo na dogmática pátria pessoa sem corpo, ou não-humana, ou seja, o termo para o Direito é apenas operacional218. Em Singer, há uma separação entre ser humano e pessoa, o primeiro podendo ser determinado geneticamente, pertencendo à espécie humana, ao Homo sapiens219, o segundo, em síntese, influenciado por Fletcher (teólogo protestante que versou sobre questões éticas), Locke e Hobbes, Singer diz que seria um ser racional e autoconsciente220. A questão é que nem todo ser humano parece, em rigor, ter a propriedade de ser racional, conquanto subjaza ao gênero em questão. Ele fundamenta sua ética denominando-a de utilitarismo preferencial, isto é, as ações devem ser tomadas em favor da maximização das preferências dos indivíduos em condições vulneráveis.221 Preferência esta por estar vivo, ou morto, sendo que atitudes contrárias à preferência desse indivíduo são tidas como erradas.222 Com

RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais. Uma abordagem ética, filosófica e normativa. p. 126 218 RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais. Uma abordagem ética, filosófica e normativa. p. 127 219 SINGER, Peter. Ética prática. p. 96 220 SINGER, Peter. Ética prática. p. 97 221 FELIPE, Sonia T. Por uma questão de princípios. Alcance e limites da ética de peter singer em defesa dos animais. p. 131 222 FELIPE, Sonia T. Por uma questão de princípios. Alcance e limites da ética de peter singer em defesa dos animais. p. 131 217

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efeito, ao se fazer um juízo ético, “devo ir além de um ponto de vista pessoal ou grupal, e levar em consideração os interesses de todos os que forem por ele afetados” 223, pois assim, na medida dos interesses em comum, existe igualdade entre todos os seres que estão avindos com tais interesses. O que conta, o que vale, para Singer, é o interesse em si, e nunca a raça e o sexo224, ou seja, as características individuais de cada pessoa. Resta, portanto, preocupar-se com a demarcação do interesse. O pensador, com o auxílio de Bentham, chega à conclusão de que o interesse em comum é o sofrimento225 (senciência), assim, com essa demarcação, a ética estendese para além do homem e envolve os animais. Para Singer a pessoa é o importante para se erigir a extensão do respeito ao interesse226. Felipe destaca que a tese central de Singer é a de que os únicos seres que têm direito à vida são aqueles que podem conceber-se como entidades distintas que existem no tempo, ou seja, como pessoas227, e para identificá-las Singer incorporou certas habilidades, a saber, inteligência, consciência de seus atos, consciência de si no tempo, capacidade de interagir, de representar perante outros seus próprios interesses etc228. Diga-se de passagem, tanto Kant quanto Singer colocam a pessoa como ponto de consideração para validação da ética, inclusive estão em sintonia quando dizem que ela é um ser racional, no entanto, por racional já existe uma divergência. Singer, deixando de lado a análise da senciência, com base em algumas recentes experiências com animais, colocadas em oposição a alguns humanos com problemas mentais, e focando-se no conceito de autoconsciência, afirma que “alguns membros de outras espécies são pessoas; alguns membros da nossa espécie não são”229, em outros termos, “todos os seres da nossa espécie são, geneticamente falando, seres humanos, mas nem todos os humanos são, moralmente falando, pessoas”230, sendo que alguns membros de outras espécies, conforme a interpretação

SINGER, Peter. Ética prática. p. 31 SINGER, Peter. Ética prática. p. 32 225 SINGER, Peter. Ética prática. p. 67 226 FELIPE, Sonia T. Por uma questão defesa dos animais. p. 134 227 FELIPE, Sonia T. Por uma questão defesa dos animais. p. 137 228 FELIPE, Sonia T. Por uma questão defesa dos animais. p. 135 229 SINGER, Peter. Ética prática. p, 127 230 FELIPE, Sonia T. Por uma questão defesa dos animais. p. 135 223 224

de princípios. Alcance e limites da ética de peter singer em de princípios. Alcance e limites da ética de peter singer em de princípios. Alcance e limites da ética de peter singer em de princípios. Alcance e limites da ética de peter singer em

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dos cientistas, possuem uma linguagem que não a humana (também sendo que há primatas que usam a linguagem de sinais para se comunicar com humanos, em tese confutando as palavras de Descartes) e que, segundo eles, tudo indica que têm, sim, uma certa autoconsciência231, pois realizam planejamentos (algo que até mesmo um sujeito com deficiência mental nunca faria e sequer teria uma consciência, o que dizer, então, de uma autoconsciência) e têm memória do passado e expectativa quanto ao futuro232, mesmo que os animais em questão normalmente sejam gorilas, orangotangos e chimpanzés, até mesmo golfinhos e baleias (em oposição aos peixes, que talvez sejam conscientes, mas nunca autoconscientes). Ou seja, o termo pessoa não se aplica a todos os animais, mas segundo Singer aplica-se a alguns, contrariando o entendimento tradicional do tema, ensejando ao Direito e mormente a Bioética a darem uma atenção especial à situação, em especial aos casos de experimentos e testes com animais, ou mesmo questões referentes à produção para alimentos, confecções de roupas com peles de animais, caça etc., pois se o corolário do sistema nervoso seja a senciência e consciência e num grau mais complexo, a autoconsciência, não há nenhuma justificativa para a Bioética ser indiferente ao atual movimento intelectual, e o que dizer do homem achar que os princípios Bioéticos sejam impertinentes para o trato com um ser vivo não-humano. Contrariamente a Singer, Schopenhauer entende o assunto de modo distinto. Para Singer, autoconsciência pode ser entendida como a possibilidade de planejar de acordo com seus próprios interesses, ter uma noção temporal de si mesmo, de sua existência etc., para Schopenhauer, contudo, há dois modos de o homem apreenderse: objetivamente, com base na intuição externa, reconhecendo-se como corpo extenso, e subjetivamente, na autoconsciência, encontrando um ser querente233, ou seja, como Vontade. A autoconsciência é o intermédio pelo qual se conhece a Vontade234; ela é uma relação de um sujeito com o objeto, conhecedor e conhecido, sendo que este seria a vontade235, aquilo que é essencial, enquanto que a inteligência, o conhecedor, é o secundário236. O ato de exercer a autoconsciência, mediante a faculdade de razão, lhe permite fazer uma conexão autoconsciente de suas ações237. 231

SINGER, Peter. Ética prática. p. 120 SINGER, Peter. Ética prática. p. 124 233 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 610 234 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 172 235 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, Tomo II. vol. 1. p. 308 236 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, Tomo II. vol. 1. p. 309 237 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 357 232

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Quer dizer, em Schopenhauer apenas o homem é dotado de autoconsciência, que sempre encontra seu objeto como o querer inato do homem. Com a razão o homem pode ter uma visão do passado e do futuro; de toda a sua vida e do curso do mundo, tornando-se independente do presente, podendo, por consectário, executar de modo planejado o que ele tem em vista238. Com efeito, o que ele executa, executa com autoconsciência, porquanto ele está cônscio de como sua vontade decide e o que escolher em cada ocasião, e qual outra escolha seria possível de acordo com o caso, e, a partir desse querer autoconsciente, aprende a conhecer a si mesmo, espelhando-se nos próprio atos.239(sem grifos no original)

Poder-se-ia dizer, talvez, que este seja o sentido que o conceito autonomia tem em sua filosofia. Pertinentemente a pessoa, segundo Giacoia, o sentido que o termo tem em Schopenhauer seria proveniente daquela relação do caráter empírico com o inteligível visto acima, ou seja, de que cada homem tem uma essência, um caráter singular 240. Quer dizer que, nesse sentido, pessoa para Schopenhauer reportar-se-ia apenas ao ser humano, e não aos animais, já que nestes apenas há o caráter da espécie se objetivando, e mesmo nos animais “mais elevados” o pouco de caráter individual que eles têm se perde no caráter da espécie241. Tanto é que para se conhecer um animal, basta saber sua espécie, mas para conhecer um humano, deve-se estuda-lo particularmente242. Vale destacar, igualmente, que a razão seria o que discrimina, em rigor, os homens dos animais243, sendo ela, como visto anteriormente, responsável pela formação dos conceitos. Ambos têm representações intuitivas, do particular e do momento, mas só o homem tem uma representação abstrata e universal. Com efeito, diante de todas as pesquisas científicas que Singer estribou seus argumentos acerca do comportamento animal ser análogo ao do ser humano, a filosofia de Schopenhauer não veria nada de relevante, por assim dizer. Para Schopenhauer, cães, raposas,

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SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 643 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 643 240 GIACOIA, Oswaldo Jr. Nietzsche x kant. Uma disputa permanente a respeito de liberdade, autonomia e dever. p. 136 241 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 193 242 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 193 243 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 47 239

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elefantes e macacos são exemplos de animais em que se pode observar de maneira bem exata “o quanto o entendimento consegue sem a ajuda da razão, ou seja, sem o conhecimento abstrato por conceitos”244. O paralelo que a razão cria entre o homem e o animal segundo Schopenhauer poderia ser traçado da seguinte maneira: “os animais vivem exclusivamente no presente; já ele (homem) vive ao mesmo tempo no futuro e no passado”245; os animais “satisfazem as necessidades do momento; já ele cuida com preparativos artificiais do seu futuro, sim, cuida do tempo em que ainda não vive” 246; os animais “sucumbem por completo à impressão do momento, ao efeito do motivo intuitivo; já ele é determinado por conceitos abstratos independentemente de presente”247; o animal “sente e intui; o homem, além disso, pensa e sabe”248. Daí que, ambos podem se comunicar, mas os animais apenas por gestos e sons, já o homem pela linguagem, que é um instrumento da razão, já que o que ele comunica e recebe são apenas conceitos abstratos249. Segundo a lógica de Schopenhauer, os animais têm entendimento e conhecimento intuitivo, podem compreender o encadeamento causal imediato e, no entanto, não têm memória real250. O homem, em virtude da razão, pode refletir sobre a distinção que ele tem conscientemente do passado e do eventual futuro como tal e em sua conexão com o presente251. Destarte, graças à abstração o homem pode ficar consciente da ordem temporal das coisas, assim, ele tem uma memória propriamente dita, enquanto que a memória dos animais está adstrita ao que eles intuem252, isto é, apenas ao presente. Por isso, consoante Schopenhauer, o fato de um cão lembrar-se de seu dono, de seu cheiro, do caminho de casa, e de poder ser adestrado, pode ser facilmente explicado pela rememoração, ou seja, “a intuição consiste apenas em uma impressão recorrente que se apresenta como algo que já aconteceu antes, pois a intuição presente revive o traço de uma anterior”253. Todavia, Schopenhauer admite que haja

244

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 67 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 83 246 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 83 247 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 83 248 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 83 249 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 87 250 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, Tomo II. vol. 1. p. 113 251 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, Tomo II. vol. 1. p. 113 252 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, Tomo II. vol. 1. p. 114 253 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, Tomo II. vol. 1. p. 114 245

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nos animais mais inteligentes um certo grau de fantasia para os auxiliarem254. Schopenhauer ainda é antitético quanto à questão da intencionalidade dos animais que, segundo Singer, os chimpanzés seriam exemplos de animais que “articulam intenções e agem de modo a concretiza-las”255. Na medida em que o homem abstrai, ele tem um conhecimento mediato, por isso só ele tem a prerrogativa de seguir um propósito, enquanto que os animais, por apenas terem um conhecimento imediato, não são capazes de intenções reais.256 E Schopenhauer ressalta que os instintos das aves migratórias e a ânsia dos cães em terem seus donos de volta na verdade apenas assumem aparência de propósitos, sem se confundirem com eles.257

2.5. NOTA CONCLUSIVA Em suma, é importante observar que, em que pese que em Schopenhauer só o ser humano seja uma pessoa e um ser racional (conseguintemente, só ele tem noção temporal de passado e futuro), isso não desvaloriza a posição de Singer quanto à situação de que há animais mais complexos que chamam a atenção para suas situações (ou, no linguajar schopenhaueriano, que estão num grau de objetivação mais elevado, que estão mais apropinquados do grau do homem), pelo contrário, ignoradas as questões conceituais, reforça a preocupação de Schopenhauer para com os animais, pois este assevera que À medida que o fenômeno da Vontade se torna cada vez mais perfeito, o sofrimento se torna cada vez mais manifesto (...). Portanto, à proporção que o conhecimento atinge a distinção e que a consciência se eleva, aumenta o tormento, que, conseguintemente, alcança seu grau supremo no homem, e tanto mais, quanto mais ele conhece distintamente, sim, quanto mais inteligente é.258 (sem grifos no original)

E noutro momento diz que

254

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, Tomo II. vol. 1. p. 115 SINGER, Peter. Ética prática. p. 124 256 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, Tomo II. vol. 1. p. 116 257 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, Tomo II. vol. 1. p. 116 258 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 399-400 255

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O direito do homem à vida e à força dos animais baseia-se no fato de que, com o aumento da clareza de consciência, cresce em igual medida o sofrimento, e a dor que o animal sofre através da morte e do trabalho, não é tão grande quanto aquela que o homem sofreria com a privação de carne ou de força do animal. (...) Aquele direito do homem, na minha opinião, não se estende à vivisseção, sobretudo em animais superiores”.259 (sem grifos no original)

Nesta senda, o que Singer entende por pessoa e, além disso, quais os animais estariam subsumidos a este conceito, aproxima-se do que Schopenhauer vem dizendo sobre “objetivação em grau elevado”, “clareza de consciência”, “animais superiores” etc., apesar de que neste há palavras muito abstratas, amplas, filosóficas e inclusive metafísicas, enquanto que em Singer tratam-se de colocações mais concretas e mais atinentes ao tema ético e jurídico, algo que Schopenhauer fez superficialmente. O que não os dissuadem de uma conciliação, até porque, como visto, o que Schopenhauer perfilhou de maneira demasiadamente metafísica, Singer trouxe conteúdos para fundamentar suas palavras, conquanto entre eles haja uma dissonância conceitual, tanto é que os animais que Singer traz a lume são os que Schopenhauer considera como mais próximos do homem na escala de objetivação da Vontade. Não obstante seu sistema filosófico ir no sentido oposto, vale dizer que Schopenhauer admite que, para o espanto dos homens, nos animais das espécies superiores apareçam “tíbios traços de reflexão, de racionalidade, de entendimento das palavras e pensamentos, de propósitos e premeditações”260. De certo modo há um paralelo entre os pensadores no que tange a esse ponto que não pode passar despercebido. É verdade que o conceito de pessoa é muito relevante para a dogmática jurídica, todavia, ver-se-á no próximo capítulo como o termo supostamente não é imprescindível para abranger os animais no âmbito moral e jurídico.

259 260

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 474 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, Tomo II. vol. 1. p. 116

Capítulo 3 BIOÉTICA ANIMAL EM SCHOPENHAUER

3.1. MORAL E DIREITO

Dado que a defesa de que os animais são sujeitos morais autônomos, bem como

que

possuem

direitos

consagrados,

fundamenta-se

mormente

em

Schopenhauer, será preciso transcrever seu raciocínio acerca da Moral e do Direito.

3.1.1. Moral

Na obra Sobre o Fundamento da Moral, Schopenhauer desconjunta no cerne da Moral o princípio, ou proposição fundamental do fundamento, sendo a primeira uma proposição sobre o modo de agir que em si teria valor moral, seria o “hó, ti”, o que da virtude, diversamente, o fundamento está para sua razão, porque que uma ação seria moral, ou seja, o “dióti”. 261 O que determina uma ação como moral é o conhecimento intuitivo (não abstrato), de que o outro é a mesma Vontade que se objetiva em todos os corpos. Em outros termos, os atos, quando realizados em prol da situação alheia, é moral, mas, se propendeu a algum motivo egoísta, é imoral262. Schopenhauer estabelece uma relação de premissas a fim de demonstrar o porquê da necessidade da conduta ser desinteressada, espontânea, em contraste com a atitude interessada, para ser genuinamente moral:

1. nenhuma ação pode acontecer sem motivo suficiente, assim como uma pedra não pode mover-se sem um choque ou impulso suficiente; 2 ainda menos uma ação para a qual se apresenta, para o caráter do agente, um motivo suficiente pode não efetuar se um contramotivo mais forte não tornar necessária sua cessação; 3. O que move principalmente a vontade é o bem-estar ou o mal-estar, tomados 261SCHOPENHAUER, 262SCHOPENHAUER,

Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 40 Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 124

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no sentido mais amplo da palavra, como também “de acordo ou contra uma vontade”. Portanto todo motivo tem de se referir ao bem-estar e ao mal-estar; 4. Consequentemente toda ação refere-se a um ser susceptível de bem-estar ou mal-estar com seu fim último; 5. Este ser é: ou o próprio agente, ou um outro ser, que portanto participa da ação passivamente, pois ela acontece para ser dano ou para ser proveito e alegria; 6. Toda ação cujo fim último é o bemestar e o mal-estar alheio do próprio agente é uma ação egoísta; 7. Tudo o que aqui foi dito das ações vale igualmente para as omissões de tais ações, para as quais existem motivos e contramotivos; 8. Em consequência das explicações dadas nos parágrafos precedentes, egoísmo e valor moral simplesmente excluem-se um ao outro. Se uma ação tiver um fim egoísta como um motivo, então ela não pode ter valor moral. Deva uma ação ter um valor moral, então um fim egoísta não pode ser seu motivo imediato ou mediato, próximo ou longínquo; 9. De acordo com a eliminação total dos pretensos deveres para com nós mesmos, efetuada não parágrafo 5, a significação moral de uma ação só pode estar na sua relação com outros. Só com referência a estes é que ela pode ter valor moral ou ser condenável moralmente e, assim, ser uma ação de justiça e caridade, como também o oposto de ambas.263 (sem grifo no original)

Entrementes, as premissas devem ser sustentadas à luz de sua epistemologia, isto é, que o mundo fenomênico, em sua totalidade, seja um espelho da Vontade, uma vez que assim é possível entender a situação em que o agente acabe identificandose com o outro264, logo, que a diferença entre o eu do não-eu seja dissipada mediante o processo da compaixão (Mitleid). Gize-se que apenas na visão empírica do outro o egoísmo pode justificar-se, dado que o corpo do agente é a representação imediata da Vontade, enquanto que as demais representações são (inclusive as outras pessoas), portanto, mediatas 265, logo, conforme mostrado pela experiência, o outro, situado no espaço e no tempo, evidentemente está para “não eu”, até porque o sujeito sempre se conhece a si mesmo como um fenômeno no espaço, ao lado de terceiros, sem qualquer ligação empírica entre eles que torne inteligível o que há em comum a todos, que só pode ser compreendido interiormente. A compaixão, que é uma das motivações fundamentais das ações humanas, ao lado do egoísmo e da maldade266, possibilita ao agente ver o outro através do princípio da individualização, ou seja, o agente estabelece menos diferenciação do

263SCHOPENHAUER,

Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 126 Arthur. Sobre o fundamento da moral. p.129 265MONTEIRO, Fernando. 10 lições sobre schopenhauer. p. 37 266SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 131 264SCHOPENHAUER,

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que a usualmente estabelecida entre si mesmo e os outros267, que vinha ocorrendo por causa da ilusão ocasionada pelo Véu de Maia268, termo que Schopenhauer esposou da filosofia hindu. Em razão disso, o agente tem em mente que quem consterna é o outro e não ele, ou seja, que é na pessoa do outro, e não na do agente, que este sente a dor daquela pessoa269, ou consoante Monteiro, o agente toma das dores alheias como suas270. Conseguintemente, é possível inteligir o fundamento da moral, o “dióti”, pois a questão é que a multiplicidade existe tão somente no mundo como representação, porém que “a apreensão que suprime a diferença entre o eu do não-eu não é errônea, mas sim a que lhe é oposta”271, porque o mundo enquanto Vontade é uno, assim, “a base metafísica da ética se consistiria no fato de que um indivíduo se reconhece a si próprio, a sua essência verdadeira, imediatamente no outro”272, conhecimento este que significa tat twan asi, aquilo que irrompe como compaixão.273Aliás, Roger exara com propriedade que a compaixão possui “um valor metafísico, na medida em que ela me revela a identidade essencial de todos os seres, outrem, os animais (...), mas também os objetos do mundo inorgânico”274. “Tat twan asi”, em alemão Dieses bist Du ou Dieses Lebende bist du, que significa, respectivamente, “isto és tu” e “este ser vivo és tu”275, é uma fórmula que prescreve basicamente “que todo homem deve reconhecer-se idêntico, e, seu princípio (ou átman), a qualquer ser ou coisa que esteja diante dele, pois o princípio universal, ou Brahman, é idêntico em tudo”276. Schopenhauer valeu-se do termo para descrever o que na praxe significa a compaixão e, em seguida277, formular o “hó, ti”, o princípio ético, “Neminem laede, imo omnes, quantum potes, iuva” (não prejudiques a ninguém, mas ajuda a todos quanto puderes).278 Para ilustrar melhor no que isso desemboca, é preciso compreender que, como vista acima, as ações ocorrem por motivações, assim, uma motivação egoísta realiza

267SCHOPENHAUER,

Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 473 Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 474 269 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 133 270 MONTEIRO, Fernando. 10 lições sobre schopenhauer. p. 52 271 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 206 272 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 207 273 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 208 274 ROGER, Alain. Vocabulário de schopenhauer. p. 49 275 ROGER, Alain. Vocabulário de schopenhauer. p. 69 276 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. p. 939 277 Schopenhauer no Sobre o Fundamento da Moral, primeiro expõe seu princípio ético, para depois expor seu fundamento, mas aqui se inverteu a ordem para fins de facilitar a compreensão de seu pensamento. 278 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 133-4 268SCHOPENHAUER,

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um ato em favor do próprio agente, usando o outro como meio (por exemplo, seguir seus preceitos religiosos em sociedade esperando ser recompensado por sua salvação individual); um ato motivado por maldade planeia agir em detrimento do outro (ludibriar, agredir etc.); enquanto que um ato motivado pela compaixão não prejudicará a ninguém independentemente de lei ou dogmas a serem observados e não ajudará ninguém visando um benefício próprio; e por isso se entende ser uma pessoa ética. Finalmente, com o desiderato de exaurir as palavras acerca da moral, concluise que da máxima supracitada que constitui o “hó, ti”, depreende-se que há duas classes éticas: a virtude da justiça e da caridade; a primeira tem um aspecto negativo (que serve justamente para fundamentar o Direito Positivo, como se verá a seguir), isto é, em não prejudicar ninguém física e moralmente, abstendo-se de negar a objetivação da Vontade que se dá nos corpos de terceiros; e a segunda, por sua vez, tem um aspecto positivo, ou seja, em ajudar o próximo, colocando a própria Vontade objetivada em seu corpo em benefício dessa mesma Vontade que se objetiva no corpo alheio (algo que o Estado não pode compelir aos cidadãos).

3.1.2 Direito

Ao encetar sua Doutrina do Direito (Rechtslehre) no § 62 de sua principal obra, Schopenhauer, partindo do pressuposto hobbesiano de que o homem é o lobo do homem e, ao considerar que o egoísmo é inerente a todos por causa da ilusão do Véu de Maia, diz que o que se espera das pessoas é que ajam em prol da própria Vontade em detrimento dos outros. Ou seja, ao afirmar a Vontade, satisfazem-se as necessidades e os afãs intrínsecos a cada pessoa. Procura-se, também, a conservar o próprio corpo e a satisfazer os impulsos sexuais, com o fito de perpetuar a espécie (afirmar a vida para além da própria vida). Entrementes, ocorre que essa mesma autoafirmação “vai muito facilmente além de si mesma até a negação da mesma Vontade que aparece em outro indivíduo”279, pois amiúde ocorre que “a vontade de um invade os limites da afirmação da vontade alheia”280, assim, existe o que a humanidade conhece por injustiça. Quanto a isso é importante ter em mente que

279 280

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 429 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 429

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quem sofre a injustiça sente a invasão na esfera de afirmação do próprio corpo, via negação deste por um indivíduo estranho, como uma dor imediata, espiritual, completamente separada e diferente do sofrimento físico infligido pelo ato, ou do pesar provocado pela perda. Por outro lado, a quem pratica a injustiça apresenta-se por si mesmo o conhecimento de que ele, em si, é a mesma Vontade que também aparece no outro corpo, afirmando-se com tanta veemência num único fenômeno que, ao transgredir os limites do próprio corpo e de suas forças, torna-se negação exatamente dessa Vontade no outro fenômeno e, por conseguinte, tomando como Vontade em si, entra em conflito consigo mesmo precisamente por meio dessa veemência, cravando os dentes na própria carne.281

Sendo assim, pode-se deduzir o seguinte: a injustiça trata-se de um conceito positivo e precedente ao de Direito, enquanto que a justiça é negativa, em virtude de que tem o escopo de abster práticas injustas, como visto anteriormente282. Nesta senda, Schopenhauer apud Grotius assevera que “o direito não significa outra coisa senão aquilo que é justo e mais no sentido negativo do que no positivo, enquanto é direito o que não é injusto”283. Contudo, sabe-se que num viés fatual nem todo Direito foi necessariamente justo, mas num panorama estritamente filosófico, ou in abstracto (a saber, sem nenhum liame com variáveis empíricas, a exemplo de fatos históricos), o Direito em tese é aquilo que não é injusto, pois de sua definição tem-se logicamente a negação da injustiça. Dessarte é imprescindível assinalar que sua filosofia é jusnaturalista, ou seja, ele defende que “existe e pode ser conhecido um ‘direito natural’, ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo)”284. Esse Direito Natural, segundo Schopenhauer, é sinônimo de Direito Ético285 ou mesmo Direito Moral286: a base de toda justa legislação positiva, assim como a matemática pura serve de base para as matemáticas aplicadas287. Ademais, os princípios da Doutrina do Direito formulada por Schopenhauer baseiam-se no seguinte raciocínio:

281

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 429 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 434. Com o escopo de elucidar esse caráter negativo da justiça, Schopenhauer retifica o famoso brocado jurídico “dar a cada um o que é seu”, por “não tirar de ninguém aquilo que é seu”. 283 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 140 284 BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. p. 655 285 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 141 286 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 437 287 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 443 282

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Os princípios dela têm de fato uma origem empírica, desde que surgem por ocasião do conceito de dano; em si mesmo, porém, repousam no entendimento puro que dá a priori o princípio: “causa causae est causa effectus” [a causa de uma causa é também causa de seu efeito], que aqui significa que a causa daquilo que tenho de fazer para impedir que um outro me cause dano é este outro e não eu. Posso, portanto contrapor-me a todos os prejuízos que venham de sua parte, sem fazer-lhe injustiça. É como que uma lei de repercussão moral. Portanto, os conceitos fundamentais de justo e injusto que todos compreendem a priori e imediatamente aplicam por ocasião da experiência nascem da ligação do conceito empírico de dano com aquela regra que o entendimento puro fornece a priori288.

Assim, se o agente A (causa) pretende causar um dano em B, B se defenderá (causa), e o efeito será o dano no A. Isto é, a causa que leva B a causar uma lesão em A não é o próprio B (o que seria uma injustiça por parte de B), mas A (constituindo, portanto, a legítima defesa de B contra o A). Desta maneira, considerando que os conceitos de justo e injusto são sinônimos de ausência de dano e dano (físico, moral, patrimonial etc.), respectivamente, e que eles determinam a existência de um Direito Natural (na medida em que negar a vontade objetivada no fenômeno alheio, injustificadamente, é uma injustiça), é silogístico que o fito da existência do Estado seja constituir-se como “baluarte da Lei”,289 preocupando-se com que ninguém sofra injustiça, tendo o Direito Penal (Strafrecht) o seu condão de impor um contramotivo para as pessoas não cometerem injustiças290, tendo em vista que isso é a única coisa que se pode exigir das pessoas ao mesmo tempo numa vida social, em virtude de que todos precisam respeitar uns aos outros, mas não precisam, a priori, por exemplo, praticar a caridade e promover um assistencialismo mútuo, em outras palavras, a Lei só pode obrigar a não fazer o injusto, mas não pode obrigar a fazer obras de caridade, solidariedade etc. Assim, segue-se que, enquanto que a Doutrina do Direito preocupa-se com que ninguém sofra injustiça, a Doutrina da Moral do Direito, por sua vez, cuida com que as pessoas não façam injustiças.291 Schopenhauer dilucida que no estado de natureza, por mais que haja um Direito Natural, os indivíduos quedam a mercê de uma garantia de seus direitos, pois

288SCHOPENHAUER,

Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 142. Exemplo clássico que pode ajudar a entender é: se Deus (causa) criou o livre arbítrio e este é a causa do pecado (efeito), logo Deus é a causa dos pecados. 289 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p.142 290 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 444 291 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p.142

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não há nenhuma garantia de que não serão susceptíveis à injustiça, uma vez que no estado de natureza “depende de todos em cada caso apenas não praticar injustiças, de modo algum em cada caso não sofrer injustiça”,292 suscitando uma insegurança. Sem falar que, conforme Schopenhauer, nesse estado, justiça e injustiça valem apenas como conceitos morais (por isso Direito Natural é uma espécie de acepção de Direto Ético), ou seja, o que valida esses conceitos é apenas a consciência do agente, não tendo garantias de que todo mundo também a tenha. E no que tange a essa situação, Bobbio, dando arrimo ao pensamento de Hobbes (e por consectário ao de Schopenhauer também), preleciona que “a causa principal da insegurança é a falta de um poder comum”293, poder comum este que faça com que os indivíduos possam conviver coletivamente pouco importando se os outros são éticos ou não, porque o importante é que haja respeito mútuo aos limites uns dos outros. Para tornar a questão mais fácil de ser entendida, Durante assevera que a moral se propõe a responder à questão: “como deve agir um homem para ser justo?”, enquanto que a ciência política (teoria da legislação), por ter como escopo de investigação o sofrimento da injustiça, perguntar-se-ia “como evitar a prática de injustiça?”, não possuindo como escopo de investigação o agir justo. 294

Destarte, visto que a Moral está adstrita a pratica de (in)justiça (é ativa) e o Direito ao sofrer injustiça (é passivo), segue-se que Com o objetivo de evitar as ações criminosas – o ato de injustiça, com seu correlato, o sofrer injustiça – a ciência política, ou legislação, empresta da moral a doutrina do direito, que determina os limites entre justiça e injustiça, para poder utilizar-se de reverso (Kehrseite) destes limites estabelecidos.295

Consequentemente, o que até então era um “conceito originariamente MORAL, torna-se um conceito JURÍDICO, pela mudança do ponto de partida do lado ativo para o passivo, ou seja, por inversão”296, por isso, o legislador é um moralista às avessas.

292

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 437 BOBBIO, Norberto. Thomas hobbes. p.41 294 DURANTE, Felipe dos Santos. Virtude, direito, moralidade e justiça em schopenhauer. Disponível em: . p. 73 295 DURANTE, Felipe dos Santos. Virtude, direito, moralidade e justiça em schopenhauer. Disponível em: . p. 75 296 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 441 293

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Desta maneira, seguindo os ditames da reta razão297, motivados pelo egoísmo comum a todos (e não contra o egoísmo)298 e fazendo uso da faculdade da razão em prol de um benefício comum – evitar as consequências negativas do egoísmo individual –, as pessoas buscam a paz no Estado, na Lei, isto é, no Direito Positivo 299. Para dar cobro a Doutrina do Direito, importante assinalar que Schopenhauer, compactuando com a jusfilosofia de Hobbes, defende a postura contratualista como base teórica para explanar a justificativa do Estado acima exposta quando do estado de natureza, mas o faz com base num sentido lógico e não histórico do termo 300, ou seja, não se pensa num estado primitivo do homem que antecede o Estado, mas sim no “homem em qualquer tempo e lugar, desde que imaginariamente subtraído do mundo real a presença do Estado”

, assim sendo, “não-Estado” está apenas para

301

“desordem” (que pode existir em qualquer momento), e não para “sociedade rudimentar” e seus quejandos. Outrossim, esse sentido lógico também significa uma explicação do o porquê que seria razoável o homem viver sob as imposições do Estado302, sem necessitar explicar como foi o advento fatual do Estado, pois Schopenhauer conjectura o pacto social no presente, na iminência da relação do indivíduo com o outro, em razão de que ninguém, ao conviver com terceiros, quer, instintivamente, sofrer um dano, logo, existe implicitamente a priori entre as pessoas a necessidade de um contrato.

3.2. FUNDAMENTOS PARA UMA BIOÉTICA ANIMAL

Uma vez expendido o pensamento de Schopenhauer sobre a Moral e o Direito, cabe apresentar suas considerações a respeito dos animais, no sentido de demonstrar como eles estão igualmente insertos nas relações morais e jurídicas, a ponto de serem suscetíveis de respeito e direitos Schopenhauer, desconforme com a ética antropocêntrica, reconhece que

297

HOBBES, Thomas. Do cidadão. p.45 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p.442 299 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p.447 300 DURANTE, Felipe dos Santos. Virtude, direito, moralidade e justiça em schopenhauer. Disponível em: p. 62 301 NETO, João dos Passos Martins. Não-estado e estado no leviatã de hobbes. p.65 302 NETO, João dos Passos Martins. Não-estado e estado no leviatã de hobbes. p.66 298

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a motivação moral por mim estabelecida confirma-se, além disso, como genuína pelo fato de que ela toma sob a sua proteção também os animais, que são tão irresponsavelmente mal cuidados nos outros sistemas morais europeus. A suposta ausência de direitos dos animais, a ilusão de que nossas ações em relação a eles sejam sem significação moral ou, como se diz na linguagem da moral, que não há qualquer direito em relação aos animais, é diretamente uma crueza e uma barbárie revoltante do Ocidente, cuja fonte está no judaísmo.303 (sem grifo no original)

Em consonância com a Felipe, Schopenhauer – embora sendo bem mais categórico do que ela304 – imputa ao judaísmo como sendo o responsável pelo desapreço para com os animais. Talvez, em última instância, poder-se-ia dizer que os homens deveriam expurgar a influência judaica do âmago de suas consciências, para então viabilizar uma nova perspectiva em prol da condição dos animais, porque em razão do “foetur judaicos” (fedor judeu)305, que impregnou o Ocidente, não se pode mais reconhecer que o essencial e o principal é o mesmo no animal e no homem, e aquilo que os distingue não está no princípio, no arcaico, no ser íntimo, no âmago de ambos os fenômenos, que, como tal, tanto um como noutro, é a vontade do indivíduo, mas somente no secundário, no intelecto, no grau da força do conhecimento, que no homem, através da faculdade acrescentada de conhecimento abstrato, chamada de razão, é incomparavelmente mais alto, mas verificado apenas graças ao maior desenvolvimento cerebral, portanto, graças à diferença somática de apenas uma parte, o cérebro e, especificadamente, em relação a sua quantidade.306 (sem grifos no original)

Portanto, é preciso reiterar o fato de que, à ótica de uma Bioética animal de cunho schopenhaueriana, o cientista que realiza experimentos com animais, está diante de si mesmo, da mesma vontade de viver que, diga-se de passagem, é senciente. Em oposição a tal verdade, como bem lembrado por Barboza em seu artigo307, um cientista cartesiano diria que, além do erro de negar a Deus, não há outro 303

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 167 FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios. Alcance e limites da ética prática de Peter Singer em defesa dos animais. p. 65 305 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 169. No Vocabulário de schopenhauer, p. 38, Roger explica que é preciso entender a diferença entre “antijudaísmo filosófico” (que seria o caso de Schopenhauer, que inclusive defendeu direitos civis para judeus na Alemanha) de “antissemitismo”. 306 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 170 307 BARBOZA, Jair. A miltleidsethik e os animais, ou schopenhauer como precursor da ética animal. Disponível em: http://revistalampejo.apoenafilosofia.org/edicoes/edicao2/artigos/Artigo12_%20Jair_130_a_141.pdf 304

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erro que “mais afaste os espíritos fracos do caminho certo da virtude do que imaginar que a alma dos animais é da mesma natureza que a nossa”308, para, assim, não titubear em usa-los em prol da cientificidade. Só que esse siso ético aqui perfilhado, enquanto que se considerem os animais como “coisas”, tal como Kant o pretendera, não poderá ser consumado. É sensato dizer que a religião tenha sido um fomento marcante para acostumar o homem a objetivar o animal, dando pouca importância para eles, até porque, como Weber já explicou na Ética Protestante e o Espírito Capitalista, a religião teve uma influência determinante e incisiva no desenrolar das relações econômicas, então porque não averiguar se no caso dos animais não seria diferente, tal como Schopenhauer apontou? Vide que para o cristianismo, por exemplo, apenas os homens têm alma, o que implica em muitos desfavores aos animais, dado que aquela é um requisito fundamental para sua moral assentar-se, tal como Aquino defendia. Neste sentido, Rodrigues aponta que o Direito, ao construir-se historicamente, sob determinadas influências, “diz quem são ou não as pessoas, os sujeitos de direitos, as coisas, os bens, quem é mais ou menos igual, mais ou menos livre” 309. Pode-se encontrar amparo para essa suspeita em Sobre o Fundamento da Moral de Schopenhauer em que ele raconta fatos que apontam para a divergência da sociedade cristã da oriental ao relacionar-se com os animais. Ele cita que na Europa era ultrajante enterrar um animal nas adjacências do jazigo de seu dono, enquanto que no Egito enterravam-se os animais com os faraós310. Diz que a Sociedade Real de Calcutá só recebeu seu exemplar dos Vedas (livro sagrado hindu) sob a promessa de que não encadernariam com couro de animais311. Cita, também, que Pitágoras, sob influência da sabedoria egípcia, comprou dos pescadores sua rede com peixes, ainda na água, para dar-lhes novamente a liberdade, em contraste com a história evangélica de Pedro que, diante do fato da rede estar muito cheia de peixes a ponto de escaparem, foi abençoado por Deus mediante um milagre e conseguiu efetivar a pesca312. E mais importante, ele constata que a sociedade inglesa, dentre as europeias, foi a única que se sensibilizou com os animais e que reparou a falha

308

DESCARTES, Rene. Discurso do método. p. 77 RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais. Uma abordagem ética, filosófica e normativa. p. 133 310 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 169 311 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 171 312 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 171 309

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deixada na moral pela religião por meio da legislação, pois “é essa mesma falha que é causa de que na Europa e na América sejam necessárias associações protetoras dos animais, que só podem agir mediante a ajuda da justiça e da polícia” 313, e segue dizendo que na Ásia, em virtude de sua religião, os animais já encontram proteção o suficiente, não precisando, por sua vez, da proteção legal. Ora, não se pode olvidar o que se disse acerca da Doutrina da Moral e do Direito de Schopenhauer, a saber, de que no estado de natureza, sem uma lei positiva, o que resta a cada um é sua própria consciência (não prejudicar terceiros), sendo necessário um pacto para que os direitos sejam garantidos (pois ainda pode haver sofrimento por causa de terceiros), mas aqui, pelo contrário, especificadamente com os animais, inobstante não possam fazer um pacto (dado que são desprovidos de razão), há seres humanos que, sob influência religiosa, garantem aos animais proteção apenas com base na virtude cardeal da justiça (que em si, por definição, prescinde de bases religiosas para ser praticada, mas que no caso do hinduísmo constitui parte de sua religião), sem necessitarem do Estado como baluarte da lei para defendê-los das injustiças humanas. No entanto, o contexto é outro. No Ocidente é indubitável que apesar do apelo dos movimentos pró-animais, a moldagem moral encontra-se, concorde a análise história realizada por Felipe em Por uma Questão de Princípios, enraizada no inconsciente das pessoas há séculos, tornando-se um empecilho para revisar esta ética, uma vez que para tanto é imprescindível que o alicerce do status quo também seja mudado. Por isso, a lei faz-se necessária no contexto em questão, tendo em vista que, como já dito por Schopenhauer, se a Lei existe, é porque injustiças estão acontecendo e podem, dada a natureza humana, ainda acontecer (no caso dos animais, poder-se-ia dizer que, se ninguém tivesse a frieza de fazer experimento com seres

sencientes,

dificilmente

haveria

leis

regulamentando

a

prática).

Consequentemente, urge apontar que, parafraseando Schopenhauer, como o Ocidente não é budista e muito menos hinduísta (em que pese as vozes dissidentes dentro do cristianismo, como São Francisco de Assis, Primatt e Linzey), é preciso emendar a moral vigente (prejudicada quiçá por causa religião predominante) pela justiça e polícia, em suma, pela legislação. E como a Bioética, para efetivar-se, mister

313

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 172

75

faz-se haver a legislação como meio (direito dos animais), salta aos olhos a importância e a atinência das Doutrinas expostas ao tema. Admite-se, por ora, que a proteção dos animais mediante a Bioética Animal, instrumentalizada pelo Direito, dá-se, e é importante sublinhar, em razão da virtude cardeal da justiça que, como visto, ao lado da virtude da caridade, constitui o princípio ético “não prejudiques a ninguém, mas ajuda a todos quanto puderes”, pois Schopenhauer explica que a justiça opõe-se ao sofrimento que alguém poderia causar aos outros, em outras palavras, a pessoa sabe que seu em-si estende-se até mesmo aos animais e à toda a natureza, e não irá causar tormento a animal algum314. Com efeito, conforme Barboza, os animais são seres morais autônomos315 e que, a despeito da carência de razão, dependem somente do homem para não sofrerem injustiças e crueldades científicas, dado que não podem “acordar” tendo em vistas uma Lei que os tutele como portadores de direitos naturais (independentemente se são pessoas ou não), daí que, o Direito, por inversão da Moral, deve proibir injustiças contra os animais. Para efeitos desse trabalho, quando se fala na virtude da justiça, quer dizer que já que os animais não são seres moralmente conscientes316, ou seja, não podem conviver racional e moralmente com os humanos, coube a estes, por sua vez, pensar na condição do animal (salvo nos casos em que a “defesa” seja motivada por fins econômicos etc.), e legiferar em seu favor, já que, conforme Schopenhauer disse (provavelmente depois de ter lido Bentham), são “seres que não falam, mas sentem”.317 É oportuno notar que, em analogia ao que se delineou acerca da relação entre as doutrinas, mutatis mutandis, poder-se-ia dizer que a Bioética seria a determinação moral que o Direito Animal transmutaria para uma determinação jurídica, observando os limites já abalizados por aquela, tendo em vista que a Bioética provém da máxima “neminem laede”, ou seja, ela estanca onde e quando o indivíduo possa empregar o sofrimento alheio para alcançar seus fins318. Ademais, no que diz respeito à Lei, como já visto dantes, seu desígnio é que ninguém sofra injustiça, enquanto o objetivo da 314

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 474 BARBOZA, Jair. A miltleidsethik e os animais, ou schopenhauer como precursor da ética animal. Disponível em: p. 137 316 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 138 317 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 173 318 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 136 315

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Doutrina Moral do Direito é que ninguém faça injustiça. Isso significa que Schopenhauer oferece a base medular para reexaminar o especismo em voga sem necessariamente fazer uma análise penetrante acerca de termos técnicos da seara jurídica (pessoa, sujeito de direito), já que, de modo epilogado, ele simplesmente diz que “este ser vivo és tu”.

3.3. OS ANIMAIS E A ÉTICA DE SCHOPENHAUER NO MUNDO ATUAL Partindo daquela ilação proveniente da limitação epistemológica do ser humano de que o Mundo possui dois aspectos, um enquanto Vontade e outro enquanto Representação, e que a ilusão da pluralidade advém do Véu de Maia, serão apresentadas duas situações a seguir. Primeiramente, ainda quando sob o Véu de Maia, os seres humanos tratam os animais como meras res, depois, quando o Véu de Maia é resgado pela compaixão, o ser humano passa a protegê-los.

3.3.1 Os animais enquanto fenômenos

Seguindo um caminho dantesco, expor-se-ão neste momento algumas situações em que se encontram os animais, bem como as terminologias que se reportam às práticas experimentais. Por vivissecção entende-se a dissecação de animais vivos para estudos, ou seja, o ato de separar os órgãos para estudá-los. Testes em animais, por sua vez, significa “todo e qualquer experimento com animais cuja finalidade é a obtenção de um resultado seja de comportamento, medicamento, cosmético ou ação de substâncias químicas em geral”. 319 Segundo Greif e Tréz, vivissecção, em rigor, significa cortar um animal vivo, porém “é aplicado genericamente a qualquer forma de experimentação animal que implique em intervenção com vistas a observar um fenômeno, alteração fisiológica ou estudo anatômico”320.

319

PEA. Projeto Esperança Animal. Disponível em: TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 2 320

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Ao abordar essa questão, como visto no Capítulo II, Singer sublinha que o ato de considerar como mais valiosa a vida de um ser consciente de si, capaz de pensamentos abstratos etc. não se confunde com uma postura especista, já que a espécie não está sendo o critério de legitimidade, todavia o interesse em não sofrer. Classificar o valor das vidas de modo hierárquico não é necessariamente especismo, mas como tal hierarquia seria edificada deve ser avaliado sob o prisma ético321. Em atenção às palavras de Singer, pode-se notar como os seguintes testes não encontram supedâneo em alguma justificativa para os isentarem de serem avaliados de modo reprovável. Na obra A Verdadeira Face da Experimentação Animal de Greif e Tréz, é possível encontrar descrições acerca de teste mais comuns em animal, a saber, Teste de Irritação dos Olhos (Draize Eye Test): Este teste é realizado desde 1944, e visa a avaliar alterações oculares e perioculares provocadas por produtos químicos os mais diversos. Para execução do teste, são colocados 100 mg de solução concentrada da substância que se quer testar, nos olhos de um grupo (6 a 9) de coelhos albinos conscientes, ou seja, que não receberam anestesia. O coelho albino é o mais usado pois é dócil, barato e tem olhos grandes, o que facilita a avaliação das lesões. Os coelhos permanecem em caixas de contenção, imobilizados pelo pescoço (muitos o quebram, tentando 10 escapar). [...] Embora 72 horas geralmente seja suficiente para obtenção de resultado, a prova pode durar até 18 dias, quando então o olho do animal se transforma em uma massa irritada e dolorida. Muitas vezes, usam-se os dois olhos de um mesmo coelho, para não encarecer os custos. As reações observadas incluem processos inflamatórios das pálpebras e íris, úlceras, hemorragias ou mesmo cegueira. Teste de Sensibilidade Cutânea (Draize Skin Test): Para que se realize o teste, depilam-se áreas no corpo do animal, raspa-se a pele (até o sangramento, às vezes) e aplica-se a substância a ser estudada. Observam-se sinais de enrijecimento cutâneo, úlceras, edema etc. DL50 (Dose Letal 50): A prova consiste de forçar os animais a ingerir uma determinada quantidade da substância em teste, através de uma sonda gástrica, o que muitas vezes produz morte do animal por perfuração. Os efeitos observados incluem convulsões, dispnéia, diarréia, úlceras, emagrecimento, postura anormal, epistaxe, hemorragias da mucosa ocular e oral, lesões pulmonares, renais e hepáticas, coma e morte. Continua-se a administrar o produto, até que cinqüenta por cento (a metade) do grupo experimental morra, caracterizando a dose letal para 50% do grupo. A substância também pode ser administrada por via subcutânea, intravenosa, intraperitoneal, misturada à comida, por inalação, via retal ou vaginal.

321

SINGER, Peter. Ética prática. p. 117

78

As cobaias utilizadas para esta prova incluem ratos, coelhos, gatos, cachorros, cabras e macacos. 322

Faz-se necessário dizer que nesses experimentos supracitados não há uso de analgésicos e anestésicos, em virtude de que os pesquisadores acreditam que a atenuação da dor pode comprometer a pesquisa, pois os efeitos das substâncias podem não vir a serem averiguados323. Vale citar ainda os seguintes fatos ocorridos que servem para alumiar o que pode ocorrer quando o Véu de Maia que envolve o sujeito está demasiadamente recrudescido: para investigar o efeito do estresse no desenvolvimento dos cordeiros, pesquisadores da Universidade da California em Davis, três vezes por semana, durante cinco semanas após o nascimento dos cordeiros-bebês, tiraram eles de suas mães, e colocaram suspensos em uma rede sujeitados a choque elétrico. Após 5 meses, os animais eram submetidos a mais estresse apenas para saber se sua reação era dependente da situação de estresse anterior.324 É consabido também que

Pesquisadores da University os Wisconsin costuraram os olhos de 14 gatinhos antes que eles os abrissem pela primeira vez na vida. Suas células cerebrais foram examinadas entre as idades de 7 meses e 15 meses para averiguar se havia mudanças nas células nervosas como resultado de sua cegueira.325

Algo parecido com isso ocorreu na Universidade da Califórnia em São Francisco, quando pesquisadores amputaram os dedos de 8 macacos-corujas e depois examinaram seus cérebros para constatar se a percepção deles havia sido alterada para levar em conta a amputação326. O que dizer, então, de descarregar choques e queimar cachorros, durante muito tempo, até que estes viessem a desistir de fugir da dor? Experimento este, nomeadamente “desamparo aprendido”, praticado na Universidade da Pensilvânia, em Seligman, que tão somente mostra que humanos também aprenderão a ser

322

TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: . p. 9, 10 323 FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 108 324 FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 100 325 FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 100 326 FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 100

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“desamparados” se forem forçados a sofrer consternações quer emocionais, quer mentais.327 Entre 1983 e 1991, o Exército dos Estados Unidos gastou US$ 2,1 milhões para pesquisar ferimentos, no começo, atirando na cabeça de centenas de gatos, com uso de projéteis de aço, depois, após a Pentágono receber críticas do Departamento Geral de Contabilidade, passou a usar ratos.328 A própria NASA, para estudar os efeitos da imobilidade no espaço, teria mantido macacos totalmente engessados durante 14 dias e para depois os ceifar a vida apenas para averiguar a condição de seus ossos maxilares.329 Segundo o Departamento de Avaliação da Tecnologia do Congresso dos Estados Unidos (OTA), sabe-se que só nos Estados Unidos da América são usados de 10 milhões até cerca de 100 milhões de animais por ano para fins de experimentação330. Grande parte desses animais são criados e vendidos por grandes corporações, a exemplo da Charles River Laboratories, que é a maior empresa produtora de animais de laboratório do mundo331. Essa corporação

anuncia suas próprias linhagens de animais com patente protegida, e até oferece animais geneticamente alterados para atender aos desejosos do pesquisador. Os animais podem ser criados para ter certos tipos de câncer, para ter distrofia muscular ou diabetes, para não ter resposta imunológica, ou para ser anêmicos.332 (sem grifo no original).

Na Ética Prática, Singer diz que no Instituto de Radiobiologia das Forças armadas dos Estados Unidos, em Bethesda, Maryland, foram usados macacos do gênero Rhesus para obter informações sobre a capacidade dos soldados continuarem a guerra após um ataque nuclear. O experimento constituía em colocar os macacos numa roda para correr e, caso diminuíssem a velocidade, eles levavam choques elétricos. Assim, quando eles já estavam suficientemente treinados, recebiam uma

327

FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 100 FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 102 329 FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 102 330 FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 94 331 FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 95 332 FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 95 328

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dose letal de radiação e tinham que continuar a correr, mesmo vomitando e sentido mal.333 Na Libertação Animal ele ainda informa que macacos são usados em experimentos de simulação de voo, mediante o aparelho denominado Plataforma de Equilíbrio de Primatas (PEP). Na plataforma há uma alavanca de controle, usada para deixá-la na posição horizontal. Depois que os macacos são treinados (com o auxílio de descargas elétricas) a fazerem isso, são submetidos à radiação e agentes químicos de guerra.334 Tudo isso tão somente para saber até que ponto isso influencia na capacidade de pilotar. Conforme Singer, o Laboratório de Pesquisas e Desenvolvimento de Bioengenharia Médica do Exército Norte-Americano, de Fort Detrick, em Frederick, Maryland, ministraram doses de explosivos TNT a 60 cães da raça beagle durante 6 meses,

diariamente.

Observaram-se

os

seguintes

sintomas:

desidratação,

emaciação, anemia, icterícia, baixa temperatura corporal, descoloração da urina e das fezes, diarreia, perda de apetite e de peso, aumento do fígado, dos rins e do baço. 335 A finalidade era saber os efeitos do TNT em mamíferos. Em relação aos experimentos com choques elétricos, Singer traz o seguinte caso que remonta a 1948, que aconteceu na Universidade de Kansas, na unidade denominada Bureau of Child Reserarch. Pôneis da raça shetland foram privados de água até ficarem com sede, assim, recebiam potes de água que poderiam estar eletrificados. Nas cabeças dos pôneis foram acoplados em cada um dos lados um alto-falante. Conseguintemente, quando surgia um barulho no lado esquerdo, o pote era eletrificado e os pôneis recebiam choques se estivessem bebendo, até que aprenderam a parar de beber quando ouviam o ruído no alto-falante esquerdo, porém não no direito. Então, os alto-falantes foram colocados mais próximos um do outro, até que os pôneis não sabiam mais distinguir entre eles, não podendo mais evitar os choques. Experimentos como estes foram realizados com ratos-brancos, ratoscangurus, ratos-do-campo, porcos-espinhos, cães, gatos, macacos, gambás, focas, golfinhos e elefantes. O mais interessante é que a conclusão do experimento apontou

333

SINGER, Peter. Ética prática. p. 76 SINGER, Peter. Libertação animal. p. 38 335 SINGER, Peter. Libertação animal. p. 44 334

81

para o fato de que os pôneis têm mais dificuldade de distinguir a direção dos ruídos em comparação com outros animais.336 Até experimentos inclusos na categoria médica mostram-se atrozes, embora o rótulo “pesquisa médica” induza as pessoas a pensarem que há uma justificativa para eles, sem falar que o rótulo pode, também, servir apenas para encobrir pesquisas motivas tão somente por curiosidade.337 Vale mencionar pelo menos um caso: cientistas da Administração Aeronáutica Federal, afirmando que “os animais ocasionalmente morrem de estresse por calor nos sistemas nacionais de transporte”, submeteram dez beagles a experimentos com calor. Os cães foram isolados em câmaras, amordaçados e expostos à temperatura de 35°C, combinada com alta umidade. Não lhes deram alimento nem água, mantendo-os nessas condições por 24 horas. O comportamento dos cães foi observado. Incluiu “agitações deliberada, como agarrar com as patas as paredes da gaiola, andar em círculos sem parar, sacudir a cabeça para retirar a mordaça, esfregar a mordaça para a frente e para trás no chão da gaiola e ações agressivas contra os anteparos de proteção dos sensores”. Alguns morreram nas câmaras. Quando os sobreviventes foram retirados, alguns vomitavam sangue e todos estavam fracos e exaustos.338 (sem grifo no original)

Conforme Singer, na sede da United Action for Animals, de Nova York, há fichários com fotocópias de experimentos publicados em revistas científicas, sendo que nas pastas encontram-se etiquetas, dentre elas, só para citar algumas, constam: agressão, asfixia, cegueira, esmagamento, teste com drogas, congelamento, aquecimento, hemorragia, isolamento, radiação, fome, choque, lesões na medula espinhal, estresse e sede.339 Singer reconhece que apesar de alguns desses experimentos quiçá possam ter contribuído para o avanço da medicina, “o conhecimento é muitas vezes questionável e, em alguns casos, poderia ter sido obtido de outras maneiras”.340 Só para citar mais um caso, que envolve pesquisa com drogas, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, foram acorrentados dois elefantes a um estábulo. A elefanta foi usada para definir procedimentos e dosagens da administração de LSD, ministrando-lhe a droga via oral e por meio de dardos. Noutro momento foram

336

SINGER, Peter. Libertação animal. p. 72 SINGER, Peter. Libertação animal. p. 90 338 SINGER, Peter. Libertação animal. p. 93 339 SINGER, Peter. Libertação animal. p. 95 340 SINGER, Peter. Libertação animal. p. 96 337

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administradas doses aos dois elefantes todos os dias, por dois meses. Com doses elevadas, a fêmea tombava de lado, tremia e respirava mal, por cerca de uma hora, enquanto que o macho tornava-se agressivo e atava Siegel, cientista responsável pelo experimento. 341 Seria inapropriado cogitar se tais animais submetidos aos experimentos em questão são ou não pessoas, como já analisado no Capítulo II (Schopenhauer tampouco se preocupou com isso). Ademais, vale evocar-se de que, segundo Schopenhauer, animais tais como cachorros, gatos e macacos, por exemplo, estão, na escala da objetivação da Vontade, num considerável grau hierárquico que, inobstante estarem abaixo do homem, possuem uma consciência um tanto clara e um sistema nervoso que por si só já justificaria a abstenção de tais práticas cientificaspositivistas por parte dos homens. A questão é que se trata de um engano raciocinar no sentido de que os experimentos atendam a objetivos médicos vitais (que seria o caso a ser ponderado e, portanto, possivelmente legitimado) e que possam ser justificados na crença de que se está aliviando o sofrimento e não diminuindo.342 Impende assinalar que Francione diz que a angústia causada aos animais de laboratórios vai bem além da ocasião dos experimentos e cirurgias 343. Ela cita que o sangue e outros fluidos corporais são regular e rotineiramente coletados dos animais envolvidos em experimentos para que os efeitos dos procedimentos ou testes possam ser registrados. O sangue é normalmente retirado através de venipuntura, ou a perfuração da veia do animal, e às vezes através da cardiopuntura, ou a perfuração de seu coração. [...] A urina é coletada dos animais, com frequência inserindo-se caracteres em suas uretras ou perfurando-se suas bexigas. Os experimentos obtêm fluido vaginal das fêmeas inserindo pipetas de vidro ou cotonetes em suas vaginas, ou empurrando uma solução salina em suas vaginas até que o fluido vaginal seja forçado a sair. [...] Os animais são constantemente picados por agulhas e, com frequência, tomam injeções na almofadas dos pés, o que é particularmente doloroso. São mortos com quebra de pescoço, gás, congelamento, corte das artérias, ou injeções de barbituratos na veia ou no coração.344

Um dos argumentos usados para questionar a validade desses experimentos e testes é o de que “não há nenhuma espécie de animal que tenha reações biológicas

341

SINGER, Peter. Libertação animal. p. 99, 100 SINGER, Peter. Ética prática. p. 75 343 FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 104 344 FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 105 342

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idênticas às dos humanos”345. Ratos, por exemplo, não vomitam, não podendo eliminar toxinas desse modo, como fazem os humanos346. A estrutura da pálpebra e da córnea é diferente entre os coelhos e os humanos, sem falar que a habilidade de lacrimejar também é uma variável a ser levada em conta.347 Singer ressalta que “os testes realizados em animais podem levar-nos a não identificar produtos valiosos, perigosos para eles mas não para os humanos”348 Com efeito, ao observar tais experimentos, irremediavelmente suscitam-se as seguintes palavras de Singer: os benefícios para os seres humanos são inexistentes ou muito incertos; ao mesmo tempo, porém, as perdas para os membros de outras espécies são concretas e inequívocas. Consequentemente, as experiências indicam uma falha na atribuição de igual consideração aos interesses de todos os seres, a despeito da espécie a que pertençam349 (sem grifo no original).

Até porque, as indústrias químicas, cosméticas e armamentistas, de acordo como Greif e Tréz as expõem, nada provam acerca da necessidade do uso de animais. O fato é que nessa fauna de laboratório, os animais nascem para serem usados. A “explicação teleológica” para a existência dos animais é de que eles “vêm ao mundo como cobaias e vivem para isso, esperando até o momento de serem retalhados, de serem submetidos a testes”.350 Nessa relação cientifico-experimental os animais são vistos como res (desprovidos de consciência), isto é, utensílios e instrumentos para se atender ao desiderato das instâncias econômicas e de consumo351, em suma, para satisfazer as “necessidades” do aspecto pantagruélico, ambicioso e narcisista dos seres humanos, além, é claro, do fato destes apenas quererem matar suas curiosidades. A propósito dessa relação de se ter os animais como meios para os fins que o ser humano deseja, Schopenhauer, ao reprochar Kant no que tange ao homem ser

345

FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 109 FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 109 347 FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 109 348 SINGER, Peter. Libertação animal. p. 84 349 SINGER, Peter. Ética prática. p. 77 350 Revista Brasileira de Direito Animal. Vol. 9. n. 17. Modernidade e consumo: a vida animal como objeto de testes. Disponível em: . p. 53 351 Revista Brasileira de Direito Animal. Vol. 9. n. 17. Modernidade e consumo: a vida animal como objeto de testes. Disponível em: . p. 54 346

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um fim em si, diz que além deste termo ferir a lógica, por ser uma contradição em termos (na medida que “todo fim só o é em relação a uma vontade, cujo fim é, como já foi dito, o seu motivo direto”352) ele ainda fere a moral genuína, porquanto considera os seres irracionais como coisas, só podendo serem tratados como meios353. Ele continua dizendo que a Ásia não islamizada (não judaicizada, portanto), juntamente com ele, acham que o pensamento de Kant de que o homem só tem dever diante de outro homem ou que ele só tem que respeitar os animais, mas tendo em vista a moralidade do homem, é revoltante e abjeto.354 Pertinentemente à essa relação de meio e fim, o desfecho apresentado por Schopenhauer baseia-se naquele pressentimento já mencionado que irroga à religião a culpa (ou no mínimo boa parte dela) por tal situação. Segundo ele, o pensamento de Kant

mostra-se, ao mesmo tempo, como esta moral filosófica que é (...) uma teologia travestida depende totalmente da moral bíblica. A saber, porque a moral cristã não leva em consideração os animais. Estes estão de imediato também fora da lei na moral filosófica, são meras coisas, meros meios para fins arbitrários, por exemplo, para vivissecção, caçada com cães e cavalos, tourada, corrida de cavalos, chicoteamento até a morte diante de carroças de pedra inamovíveis etc. Que vergonha desta moral de párias, “schandalas” e “mletschas”, que desconhece a essência eterna que existe em tudo o que tem vida e reluz com inesgotável significação em todos os olhos que vêem à luz do dia. Porém aquela moral só reconhece e considera a única espécie que tem valor, a que tem como característica a razão, sendo esta a condição pela qual um ser pode ser objeto de consideração moral.355 (sem grifo no original)

Atinente a este ponto, em que pese ser um conceito originalmente marxista e dar-se num assunto distinto do abordado neste trabalho, no contexto, mutatis mutandis, a palavra reificação certamente tem sua pertinência e reveste-se de sentido quando analisado o ato que se tem de reificar, isto é, de coisificar os animais. Concatenando ao raciocínio, vale dizer que a Escola de Frankfurt e sua crítica à razão instrumental decerto propicia uma análise acerca da postura cientificista do homem aqui tratada, que ao emancipar-se pelo uso da razão no átimo da Aufklärung, em verdade praticou barbáries que decorreram dessas próprias Luzes 356, em outros

352

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 71 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 72 354 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 72 355 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. p. 73 356 ASSOUN, Paul-Laurent. A escola de frankfurt. p. 83 353

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termos, que advieram do ideal que “repousa sobre uma concepção do homem-senhor da natureza”357, que inclusive pôde ser bem notada no Capítulo I. Vale lembrar que foi justamente contra essa situação que Potter insurgiu-se ao criar a Bioética. Coalesça-se às palavras de Singer e Schopenhauer a observação feita por Ferri e Rossetto de que “o condicionamento do sofrimento aos animais sempre vem correspondido a interesse econômico”358. Mas cabe ressaltar que talvez dizer que sempre haja interesse econômico seja um juízo exorbitante, no entanto, é verdade que se basear na noção leviana de que os animais são meios seja lá para qual escopo humano for, certamente constitui uma intensificação do Véu de Maia em detrimento deles, o que, consequentemente, dá ensejo ao especismo (já aluído, em tese, por Singer). Visto nesta ótica, é procedente, com efeito, o asserto de Schopenhauer de que “este mundo é um inferno para os animais e nós, humanos, seus demônios”359 (tradução livre).

3.3.2 Os animais enquanto vontade

Sabe-se que a primeira associação de defesa dos animais de laboratório foi fundada pela esposa do fisiologista Claude Bernard, que se insurgiu contra o seu ato de ter levado o cão de estimação da filha do casal para a sala de aula.360 Bernard, totalmente iludido pelo Véu de Maia, acreditava “ser parte da postura do cientista ser indiferente ao sofrimento dos animais de laboratório”361. Só a partir da década de 1970, com Singer, Regan e Ryder, questões éticas envolvendo animais passaram a ser discutidas.362 357

ASSOUN, Paul-Laurent. A escola de frankfurt. p. 83 Revista Brasileira de Direito Animal. Vol. 9. n. 17. Modernidade e consumo: a vida animal como objeto de testes. Disponível em: p. 56 359 HOEREN, Jürgen; DREWERMANN, Eugen. Wozu Religion?:Sinnfindung in Zeiten der GiernachMacht und Geld. Disponível em: p. 122 360 BAEDER, Fernando Martins; PADOVANI, Maria Cristina Ramos Lima; MORENO, Débora Cristina Alves; DELFINO, Carina Sinclêr. Percepção histórica da bioética na pesquisa com animais: possibilidade. Disponível em: p. 315 361 BAEDER, Fernando Martins; PADOVANI, Maria Cristina Ramos Lima; MORENO, Débora Cristina Alves; DELFINO, Carina Sinclêr. Percepção histórica da bioética na pesquisa com animais: possibilidade. Disponível em: p. 315 362 BAEDER, Fernando Martins; PADOVANI, Maria Cristina Ramos Lima; MORENO, Débora Cristina Alves; DELFINO, Carina Sinclêr. Percepção histórica da bioética na pesquisa com animais: possibilidade. Disponível em: p. 315 358

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Como um grande marco Ocidental que demonstra a emergência de uma conscientização em prol dos animais destaca-se a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, promulgada em 1978363. A declaração em questão reconhece “o valor da vida de todos os seres vivos” e “propõe um estilo de conduta humana condizente com a dignidade e o respeito aos animais”364. Dentre seus 14 artigos, destacam-se como pertinentes ao trabalho os seguintes: Artigo 2° a) Cada animal tem o direito a respeito; b) O homem, enquanto espécie animal, não pode atribuir-se o direito de exterminar os outros animais ou explorá-los, violando esse direito. Ele tem o dever de colocar sua consciência a serviço dos outros animais; c) cada animal tem o direito a consideração, à cura e à proteção do homem. (sem grifo no original)

O artigo 2° da Declaração vai ao encontro das palavras de Schopenhauer, em virtude de estabelecer que os animais são sujeitos morais autônomos (daí que têm direito ao respeito e a consideração), bem como pelo fato de que têm o direito (natural) a proteção do homem. Castro, ao comentar o referido artigo, diz que o “homem também é um animal, só que de outra espécie, mas isto não lhe dá o direito de exterminar os demais”365. Artigo 3º a) Nenhum animal será submetido a maus tratos e a atos cruéis; b) Se a morte de um animal é necessária, deve ser instantânea, sem dor ou angústia.

O referido artigo serve de exemplo da lógica da inversão dos limites da Moral para o Direito explicada acima, sobretudo porque se procura evitar que a Vontade objetivada nos animais não seja negada, ou seja, que ocorra uma injustiça. Ademais, no caso da alínea “b”, não pode passar despercebido o detalhe de que há uma busca pela razoabilidade em legitimar atos que matem animais, na medida em que se impõe em dever de não causar sofrimentos a eles no instante.

363

PORTAL CFMV/CRMVS. Declaração universal dos direitos dos animais. Disponível em: 364 BAEDER, Fernando Martins; PADOVANI, Maria Cristina Ramos Lima; MORENO, Débora Cristina Alves; DELFINO, Carina Sinclêr. Percepção histórica da bioética na pesquisa com animais: possibilidade. Disponível em: p. 316 365 CASTRO, João Marcos y. Direito dos animais na legislação brasileira. p. 19

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Artigo 8º a) a experimentação animal, que implica em sofrimento físico, é incompatível com os direitos do animal, quer seja uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer outra; b) as técnicas substitutivas devem ser utilizadas e desenvolvidas. (sem grifo no original)

Castro comenta que “é difícil imaginar hoje, com toda a tecnologia existente, que algum procedimento de pesquisa não possa ser realizado sem os animais”366. Saliente-se que a postura do homem moderno, já analisada nas primícias do Capítulo I, em separar o Sujeito do Objeto (o homem da natureza), fora mantida por Schopenhauer, entrementes, a separação em sua filosofia teve um feitio meramente epistemológico e não moral, isto é, no instante em que o cientista está diante do animal, realizando estudos científicos, descobrindo as leis que regem os sistemas sanguíneos, digestivos, nervosos etc. dos “objetos de estudo” (os animais), ele está igualmente diante de si mesmo. Logo, o “atormentador e o atormentado são unos”367, porquanto enquanto essência ambos são homogêneos. Isso quer dizer, portanto, que a ética, em alguns casos, está inerente às pesquisas científicas (observando os pressupostos schopenhauerianos), justificando o motivo pelo qual seja necessário desenvolver métodos substitutivos. Outrossim, é preciso entender que inexiste uma luta contra a ciência, mas contra a experimentação animal368. A ciência pode avançar na medicina sem valer-se dos animais mediante outros caminhos, e pensar o contrário seria subestimar a capacidade humana369. Tréz e Greif seguem o pensamento de que é improvável que em pleno século XXI o ser humano não possa desenvolver tecnologias alternativas e concomitantemente efetivas (ou que pelo menos pesquise tais alternativas). Sem falar que, tais caminhos devem ser percorridos de acordo com a realidade e de acordo com as necessidades.370 O art. 11 se destaca na medida em que reconhece como biocídio o ato que leva a morte de um animal sem necessidade.

366

CASTRO, João Marcos y. Direito dos animais na legislação brasileira. p. 24 Arthur. O mundo como vontade e como representação. p. 452 368TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 55 369TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 55 370TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 55 367SCHOPENHAUER,

88

Artigo 11º ato que leva à morte de um animal sem necessidade é um biocídio, ou seja, um delito contra a vida.

Por fim, a alínea “b” artigo 14º estatui que os direitos dos animais devem ser defendidos por leis, como os direitos dos homens.

Artigo 14 a) As associações de proteção e de salvaguarda dos animais devem ser representadas a nível de governo; b) Os direitos dos animais devem ser defendidos por leis, como os direitos dos homens. (sem grifo no original)

O que não poderia ser diferente, uma vez que, embora Schopenhauer não tenha refletivo a fundo e indicado especificadamente quais animais teriam ou não direitos, seu pensamento deixa claro o porquê que teriam direitos. Nada obstante, é crível que os animais por ele denominados como mais evoluídos, elevados e inteligentes, poderiam ser alguns exemplos, e com o auxílio de Singer poder-se-ia talvez fazer uma consideração nesse sentido e indicá-los expressamente. No que tange à legislação pátria, a defesa dos animais chegou a ter estatuto constitucional, dado o aspecto humanitário da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Dispõe ela que:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...] VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (sem grifo no original)

Não menos importante, embora infraconstitucional, a Lei n. 9.605 de 12 de fevereiro de 1998 ainda considera tipo penal:

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.

89

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal. (sem grifo no original)

Conforme ressaltado por Sales, esse artigo merece mais considerações371, pois de acordo com os artigos 2° e 3° da Lei, não só quem está diretamente causando dor nos animais é que estará passível de sanções, mas toda a entidade, o diretor, administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, gerente etc. Ainda no Brasil, a Lei nº 11.794, de 8 de outubro de 2008372, criou o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal – CONCEA. O CONCEA tem em vista o uso humanitário dos animais em pesquisas científicas. À ele compete Art. 5o Compete ao CONCEA: I – formular e zelar pelo cumprimento das normas relativas à utilização humanitária de animais com finalidade de ensino e pesquisa científica; II – credenciar instituições para criação ou utilização de animais em ensino e pesquisa científica; III – monitorar e avaliar a introdução de técnicas alternativas que substituam a utilização de animais em ensino e pesquisa; IV – estabelecer e rever, periodicamente, as normas para uso e cuidados com animais para ensino e pesquisa, em consonância com as convenções internacionais das quais o Brasil seja signatário; V – estabelecer e rever, periodicamente, normas técnicas para instalação e funcionamento de centros de criação, de biotérios e de laboratórios de experimentação animal, bem como sobre as condições de trabalho em tais instalações; VI – estabelecer e rever, periodicamente, normas para credenciamento de instituições que criem ou utilizem animais para ensino e pesquisa; VII – manter cadastro atualizado dos procedimentos de ensino e pesquisa realizados ou em andamento no País, assim como dos pesquisadores, a partir de informações remetidas pelas Comissões de Ética no Uso de Animais - CEUAs, de que trata o art. 8o desta Lei;

Em seu art. 7°, II, há uma exigência importante, a saber, de que o CONCEA seja presidido, dentre outras pessoas, por dois representantes das sociedades protetoras de animais legalmente estabelecidas no país. Já em relação às condições de criação e uso dos animais, importante citar o disposto no artigo 14

371

SALES, Mardjore Rodrigues de. Vivissecção: legislação acerca do tema e direito à objeção de consciência. Disponível em: p. 162 372 BRASIL. Lei Arouca. Lei n° 11.794 de 8 de outubro de 2008. Disponível em:

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Art. 14. O animal só poderá ser submetido às intervenções recomendadas nos protocolos dos experimentos que constituem a pesquisa ou programa de aprendizado quando, antes, durante e após o experimento, receber cuidados especiais, conforme estabelecido pelo CONCEA. [...] § 4o O número de animais a serem utilizados para a execução de um projeto e o tempo de duração de cada experimento será o mínimo indispensável para produzir o resultado conclusivo, poupando-se, ao máximo, o animal de sofrimento. § 5o Experimentos que possam causar dor ou angústia desenvolverse-ão sob sedação, analgesia ou anestesia adequadas. § 6o Experimentos cujo objetivo seja o estudo dos processos relacionados à dor e à angústia exigem autorização específica da CEUA, em obediência a normas estabelecidas pelo CONCEA. § 7o É vedado o uso de bloqueadores neuromusculares ou de relaxantes musculares em substituição a substâncias sedativas, analgésicas ou anestésicas. § 8o É vedada a reutilização do mesmo animal depois de alcançado o objetivo principal do projeto de pesquisa. (sem grifo no original)

Tais dispositivos deixam clarividente o fato de que o legislador pátrio impôs limites aos usos dos animais, buscando evitar quaisquer medidas que, sob o enfoque da ética, sejam inconsequentes e imponderadas, desprovidas de bom senso, como se pode notar com mais clareza nos casos dos §§ 4° e 8° do artigo retro, por exemplo. Recentemente, em setembro de 2014, a CONCEA publicou a resolução Normativa n° 18/2014373, que reconhece métodos alternativos ao uso de animais em atividades de pesquisa no Brasil.

Art. 1º Esta Resolução Normativa reconhece o uso no país de métodos alternativos validados, que tenham por finalidade a redução, a substituição ou o refinamento do uso de animais em atividades de pesquisa, nos termos do inciso III do art. 5º da Lei nº 11.794, de 08 de outubro de 2008, e sua regulamentação. (sem grifo no original)

Os 17 métodos alternativos, que devem ser observados num limite máximo de 5 anos, estão dispostos num léxico técnico no art. 2°, todavia vale citar ao menos os casos em que se aplicam os métodos, que são mais inteligíveis para os interessados:

Art. 2º Para os efeitos desta Resolução Normativa, o CONCEA reconhece os 17 (dezessete) métodos alternativos agrupados nos 07 (sete) desfechos a seguir: 373

BRASIL. Ministério da Ciência, tecnologia e inovação. Resolução normativa n.° 18 de 24 de setembro de 2014. Disponível em:

91

I - Para avaliação do potencial de irritação e corrosão da pele: [...] II - Para avaliação do potencial de irritação e corrosão ocular: [...] III - Para avaliação do potencial de Fototoxicidade: [...] IV - Para avaliação da absorção cutânea: [...] V - Para avaliação do potencial de sensibilização cutânea: [...] VI - Para avaliação de toxicidade aguda: [...] VII - Para avaliação de genotoxicidade.

Segundo Molento

Agora, os laboratórios serão obrigados a substituir o uso de animais em pesquisas nesses casos em questão. Os métodos alternativos validados tornam a pesquisa mais compassiva, mais ética e, em geral, mais eficiente economicamente. (sem grifo no original)374

No entanto, é preciso reconhecer o que ela reprochou quanto ao parágrafo 4° da Resolução, que estabelece o prazo de 5 anos para as substituições, quando na verdade, deveriam ser imediatas:

De acordo com a Lei Federal de Crimes Ambientais nº 9605/1998, é crime a utilização de animais para fins científicos, quando há alternativas. Este parágrafo é ilegal, pois permite a situação já considerada errada no Brasil375

O art. 8° a que o art. 5°, VII, da Lei n° 11.794/2008 se refere, alude ao fato de que é uma conditio sine qua non a constituição prévia de Comissões de Ética no Uso de Animais – CEUAs, para o credenciamento das instituições com atividades de ensino ou pesquisa com animais. Para citar um exemplo bem apropinquado, a Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE mantém em funcionamento um CEUA, presidido pela Profª. Eleide Abril Gordon Findlay.376 A despeito da Lei “Arouca” ter sido abordada sob o subtítulo “os animais enquanto Vontade” (atente-se: a lei não é o foco do trabalho), é preciso ressaltar que existem divergências acerca de seu avanço ou retrocesso quanto à proteção dos animais. Por exemplo, Sales diz que conforme a especialista em direito constitucional

374

PORTAL CFMV. Concea reconhece 17 métodos alternativos ao uso de animais em atividades de pesquisa científica. Disponível em: 375 PORTAL CFMV. Concea reconhece 17 métodos alternativos ao uso de animais em atividades de pesquisa científica. Disponível em: 376 UNIVERSIDADE DA REGIÃO DE JOINVILLE. Comitê de ética em pesquisa. Disponível em:

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e pesquisa do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância (LEI), da Universidade de São Paulo (USP), Daró, a lei

pouco benéfica aos animais, pois a mesma favorece a prática da vivissecção, argumentando que os animais tem direito à vida, integridade física e psíquica, e à liberdade, pois segundo ela os mesmos não são respeitados durante as práticas experimentais e que fora um erro dar tanto poder aos comitês de ética.377

Tinoco inclusive repreende que

a lei Arouca, ao contrário do que aduzem os vivissectores e alguns “protetores” dos animais, não foi um avanço nem para a sociedade, tampouco para os animais, sendo portanto, um instrumento que vem a legitimar os abusos e crueldades infligidos aos animais usados nas experimentações.378

É manifesto que ele perfilha a tese abolicionista, ou seja, vê a lei como uma forma de legitimação do uso dos animais, defendendo que o correto seria a proibição total de uso de animais, motivo pelo qual ironizou a palavra “protetores”. Entrementes, Sales diz que o docente e pesquisador em fisiologia comparada da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Leite, perfilha a tese de que

houve um avanço considerável na legislação no âmbito da proteção dos animais, e assegura que os comitês de ética são muito importantes para que seja discutida a maneira como os profissionais devem atuar, bem como corrigi-los quando for necessário, conduzindo dessa forma os procedimentos para que eles sejam realizados de forma racional é ética.379 (sem grifo no original)

Apesar das divergências, o presente trabalho caminha nesse sentido, isto é, de que a Lei Arouca considere os animais enquanto Vontade, porquanto considera sua capacidade de sofrer, a senciência, e almeja impor restrições ao uso de animais (em que pese haja os usos). Tanto é que as Resoluções da CONCEA servem para tal desiderato. 377

SALES, Mardjore Rodrigues. Vivissecção: legislação acerca do tema e direito à objeção de consciência. Disponível em: p. 163 378 TINOCO, Isis Alexandra Pincella. Lei arouca: avanço ou retrocesso. Disponível em: . p. 13 379 SALES, Mardjore Rodrigues. Vivissecção: legislação acerca do tema e direito à objeção de consciência. Disponível em: p. 164

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A opinião de Sales de que o essencial é que a legislação, além de existir no papel, que tenha efetividade, é totalmente escorreita. O fato é que “deve haver fiscalização e seriedade dos órgãos envolvidos, para que dessa forma, ela não se torne mais uma lei existente, porém que não é respeitada nesse país”.380 Ademais, parte-se do pressuposto de que o uso de animais esteja condicionado apenas e somente apenas se envolver uma situação em que o bem estar do homem esteja consideravelmente em jogo, portanto, não se leva os casos em que o uso esteja condicionado para fins estéticos, armamentistas etc. Não se pode negar, é verdade, que mesmo com as Comissões de Ética no Uso de Animais – CEUAs, é possível que haja aviltamento aos direitos dos animais e que mesmo quando não necessário, sejam submetidos a testes e sofrimentos, não havendo, portanto, justificativa ética para tanto. Diga-se de passagem, a Lei nº 11.794, de 8 de outubro de 2008, bem como a resolução supra transcrita, têm como supedâneo princípiológico os 3R’s elaborados por Russel e Burch. Como método de minimizar o sofrimento animal, na década de 50 foram exortados a utilização dos 3R’s, a saber, substituição (replacement), redução e refinamento.381 Por substituição entende-se “qualquer método científico que empregue material sem sensibilidade que possa substituir métodos que usem vertebrados vivos conscientes, na experimentação animal”382; por redução, diminuir “o número de animais usados para se obter a informação de uma amostra com (maior) precisão”383, devendo-se “adotar um modelo estatístico, utilizar ratos provenientes de colônias geneticamente homogêneas, mantidas em biotérios em condições adequadas e com pessoal treinado”384; e o refinamento como “qualquer desenvolvimento em prol da

380

SALES, Mardjore Rodrigues. Vivissecção: legislação acerca do tema e direito à objeção de consciência. Disponível em: p. 164 381TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 67 382TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 67 383TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 67 384BAEDER, Fernando Martins; PADOVANI, Maria Cristina Ramos Lima; MORENO, Débora Cristina Alves; DELFINO, Carina Sinclêr. Percepção histórica da bioética na pesquisa com animais: possibilidade. Disponível em: p. 315

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“diminuição na incidência ou severidade de procedimentos desumanos aplicados àqueles animais que devem ser usados”385. Francione elucida que os “três Rs” representam um reconhecimento explícito de que, se houver alternativas ao uso de animais, então usar animais é errado, e quando os pesquisadores realmente determinam que necessitam usar animais para fim experimental em particular, eles são moralmente obrigados a impor apenas a quantidade de dor e sofrimento necessária a esse fim.386

A CONCEA, seguindo a senda dos princípios, publicou a Resolução Normativa n° 17 de 3 de julho de 2014387. Ao abordar-se o tema dos 3R’s, tem-se o ensejo para expor seu art. 2º:

Art. 2º - Para os efeitos desta Resolução Normativa, considera- se: I - Método Alternativo: qualquer método que possa ser utilizado para substituir, reduzir ou refinar o uso de animais em atividades de pesquisa; II - Método Alternativo validado: método cuja confiabilidade e relevância para determinado propósito foram determinadas por meio de um processo que envolve os estágios de desenvolvimento, pré-validação, validação e revisão por especialistas, o qual está em conformidade com os procedimentos realizados por Centros para Validação de Métodos Alternativos ou por estudos colaborativos internacionais, podendo ter aceitação regulatória internacional; III - Método Alternativo Reconhecido: é o método alternativo validado que foi reconhecido pelo Concea. (sem grifo no original)

Com efeito, os 3R’s nada mais seriam do que uma conscientização acerca da condição animal, dando azo, por conseguinte, a uma postura ética de o homem portarse diante deles. No que tange às substituições às vivisseções, expor-se-á a seguir algumas delas.

385TRÉZ,

Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 67 386 FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais. p. 93 387 Instituto de boiociências. Resolução normativa n° 17. Disponível em:

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A Tecnologia in vitro prepara um cultivo de vários tipos de órgãos para, assim, provar fármacos e outros produtos químicos com notável rapidez e eficácia. 388 Há, também, estudos clínicos e autópsias, que consistem em, basicamente, acompanhar casos clínicos que apresentam quadros sintomáticos da doença no ser humano e, com o auxílio de outros métodos, prescinde do uso dos animais389. Por exemplo, o método CATscans “utiliza computadores na reconstrução de imagens tridimensionais do corpo humano através de raios-X”390, o MRI “permite a elaboração de mapas funcionais do cérebro humano [...] também revela anomalias no cérebro, causadas por falhas do desenvolvimento psicológico de pacientes autistas”391. Atente-se à Simulação em Computadores e Modelos Matemáticos que apresentam vantagens de ordem econômicas, educacionais, e sobretudo éticas 392, porquanto podem predizer as reações biológicas causadas por drogas novas, baseadas no conhecimento de sua estrutura tridimensional, eletrônica e química. Uma destas técnicas é a farmacologia quântica, onde o comportamento de drogas pode ser explicado por cálculos matemáticos envolvendo o nível de energia das substâncias químicas. Este método, que está se baseando cada vez mais em simulações em computadores, pode identificar drogas promissoras sem qualquer teste em animais”393 (sem grifo no original)

Ademais, também existem as alternativas educacionais, que auxiliam o estudante, seja de Medicina Veterinária, seja de oftalmologia e semiologia, conquanto admita o uso de animais, porém sob a condição de que não lhes sejam afligidos sofrimentos394. Por exemplo, o estudante pode valer-se de “vídeos que exibem quadros de intoxicação ou anafilaxia, obtidos a partir de casos reais dispensando a

388TRÉZ,

Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 56 389TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 58 390TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 59 391TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 59 392TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 59 393TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 59 394TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 61

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indução experimental de tais situações e suas inúmeras repetições”395, algo que, como já mencionado, apresenta uma vantagem econômica, pois sustentar um animal tem seus custos. Tréz e Greif ainda arrolam as seguintes vantagens: Economizam tempo: gasta-se muito tempo com a preparação da experimentação animal. É comum que experimentos práticos com animais não dêem certo, ou dão margem à interpretações confusas de certos fenômenos fisiológicos. Possibilitam melhor aprendizado: simulações interativas permitem que o estudante volte atrás em algum passo ou estágio do experimento, o que não é possível em muitos experimentos in vivo. Cada estudante pode, desta forma, aprender de acordo com seu ritmo, e repetir todo o experimento, se necessário. Além do que, esta tecnologia não cria a dependência do laboratório e de pessoal especializado para o estudo, permitindo que o estudo seja realizado até mesmo em casa. Outras muitas informações e recursos ainda podem ser acessados, dependendo da alternativa utilizada. São econômicas: ao contrário do que muita gente pensa, as alternativas são financeiramente viáveis. Isto porque o uso de animais implica em grandes gastos com manutenção (cuidados, alimentação, instalações, etc.) e pessoal especializado (técnicos e veterinários), e as alternativas possuem um tempo de vida muitas vezes indeterminado, não sendo descartáveis como os animais utilizados. São éticas: o oferecimento de alternativas respeita os princípios éticos, morais ou religiosos de estudantes que se opõem ao uso de animais para estas finalidades. São possíveis: muitas universidades de muitos países têm abolido o uso de animais nos currículos de diversos cursos e viabilizado alternativas para os estudantes. As experiências destas universidades comprovam que as aplicações de alternativas são possíveis e viáveis.396 (sem grifo no original)

Por fim, também existem importantes métodos alternativos na pesquisa, como por exemplo, o teste Eytex, que substitui o Draize (teste que utiliza animais para observar as irritações de substancias em seus olhos e peles que porventura possam afetar os seres humanos ao usarem produtos estéticos), sendo um procedimento in vitro que utiliza uma proteína vegetal que mimetiza a reação da córnea a substâncias estranhas e pode medir a irritação ocular através de sistema de alteração protéica397. Bem como o Skintex que usa a casca da semente de abóbora para mimetizar a reação

395TRÉZ,

Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 61 396 TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 13, 14 397 TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 64

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de substâncias estranhas sobre a pele humana.398Contudo, vale dar destaque para o fato que pesquisadores canadenses já criaram uma córnea artificial a partir de células humanas, desenvolvida com técnicas de engenharia genética, sendo possível testar a sensibilidade dos olhos humanos sem fazer uso de quaisquer animais.399 Atualmente, na ocasião das pesquisas científicas, do mesmo modo, por assim dizer, que há princípios bioéticos que aspiram proteger o homem, existem princípios voltados para os animais, a saber

a) os seres humanos são mais importantes que os animais, mas os animais também têm importância, diferenciada de acordo com a espécie considerada; b) nem tudo que é tecnicamente possível de ser realizado deve ser permitido; c) nem todo o conhecimento gerado em pesquisas com animais é plenamente transponível ao ser humano; e d) o conflito entre o bem dos seres humanos e o bem dos animais deve ser evitado sempre que possível.400

Em suma, o fato é que por mais que se admita em certos casos a morte e uso científicos de animais em benefício do homem, é incontendível a existência de meios racionais para se evitar tais ocorrências, ou seja, em havendo meios de se estabelecer justificativas para essas situações, significa que os homens têm se preocupado com a valia da justiça sobre tais relações, tendo em vista o próprio animal, de modo relativamente independente dos homens (pois na medida em que a espécie humana estiver em jogo, haverá uma justificativa para se começar a pensar sobre como proceder diante dos animais, caso não possa haver meios substitutivos). Cabe suplementar essa inferência com a asserção de Singer, acerca da atribuição de valores de vidas de seres diferentes. Saliente-se que Singer foi consequente ao examinar o seguinte: dado que o homem pertence a uma espécie e que sofre mais que os outros animais (em virtude de seu sistema nervoso e da clareza de sua autoconsciência, como visto em Schopenhauer no ocaso do Capítulo II), é necessário, sim, atribuir mais valor a um ser da mesma espécie, sem, contudo, imaginar que, a contrário sensu, os demais animais não devem ser levados em

398

TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 64 399 TRÉZ, Thales; GREIF, Sergio. A verdadeira face da experimentação animal. Disponível em: p. 66 400BAEDER, Fernando Martins; PADOVANI, Maria Cristina Ramos Lima; MORENO, Débora Cristina Alves; DELFINO, Carina Sinclêr. Percepção histórica da bioética na pesquisa com animais: possibilidade. Disponível em: p. 316

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consideração (ao menos é nesse sentido que este trabalho segue, segundo a tese moral do Schopenhauer). Outrossim, ao se buscar uma proteção para os animais, não se pode, igualmente, desconsiderar o próprio homem, ou seja, aqui, por exemplo, situa-se perfeitamente a importância da harmonia entre os seres humanos e os animais, não propendendo de modo estouvado para nenhum dos lados. É da opinião de Baeder, Padovani, Moreno e Delfino, em contraste com o pensamento de Tréz e Grief, que “o progresso científico está longe de poder substituir os experimentos em animais por métodos alternativos”401, ou seja, até mesmo entre aqueles que defendem a causa animal existe a divergência acerca da real efetividade e viabilidade dos métodos alternativos. Afinal, o assunto deve ser analisado de modo criterioso, isto é, sem se admitir juízos imediatistas prós ou contra as alternativas. Contudo, eles ressaltam que

um controle por órgãos públicos feito para proteger o interesse dos animais, baseado em aspectos éticos, científicos e legais, evitaria qualquer extremismo por parte dos pesquisadores402.

Com efeito, em que pese a discussão de ser a substituição absoluta ou não (pressupondo que se está diante de um caso relevante, pois em casos irrelevantes, como interesses cosméticos, armamentistas e meramente científicos, havendo substituição ou não o discurso ético atual é de que tais práticas devem ser cessadas) é verdade que, por considerações éticas, as possíveis limitações dos métodos “devem ser vistas como desafios estimulantes em vez de intransponíveis obstáculos que têm como objetivo estimular novas medidas para o avanço científico”403, bem como que devem, mesmo assim, servirem de motivos para se voltar ainda mais para os animais, uma vez que estes podem, sim, ser um fim, isto é, ter o bem-estar deles considerado como um motivo direto para uma ação genuinamente moral.

401BAEDER,

Fernando Martins; PADOVANI, Maria Cristina Ramos Lima; MORENO, Débora Cristina Alves; DELFINO, Carina Sinclêr Percepção histórica da bioética na pesquisa com animais: possibilidade. Disponível em: . p. 318 402BAEDER, Fernando Martins; PADOVANI, Maria Cristina Ramos Lima; MORENO, Débora Cristina Alves; DELFINO, Carina Sinclêr Percepção histórica da bioética na pesquisa com animais: possibilidade. Disponível em: . p. 318 403 BAEDER, Fernando Martins; PADOVANI, Maria Cristina Ramos Lima; MORENO, Débora Cristina Alves; DELFINO, Carina Sinclêr. Percepção histórica da bioética na pesquisa com animais: possibilidade. Disponível em: p. 316

CONCLUSÃO

Dada toda essa exposição, apresentam-se as seguintes ilações: de que como bem fundamentado por Potter, o objeto da moral não necessariamente recai apenas sobre o outro homem, ou seja, que o pensamento kantiano de que o homem apenas tem deveres diante de outro homem não seria procedente. Ademais, o conceito de Bioética tem o condão de fomentar reflexões no sentido contrário, ensejando que se estenda as questões éticas para além do ser humano, excedendo assim o limite antropocêntrico, almejando com que a ética tenha validade sobre a vida, e não somente sobre os seres racionais. O fato de que a Bioética tenha, em seus primórdios, propendido à medicina, não significa que ela não possa adequar-se aos novos problemas, ou aos antigos, que até então passavam despercebidos. Assim sendo, tem-se o corolário de que o ser humano tem, sim, uma relação ética para com os animais, embora não sejam, em rigor, racionais. No âmbito da consideração ao sofrimento dos animais, apenas no século XX é que o ser humano de um modo geral passou a rasgar o Véu de Maia e a compadecer-se com os animais, considerando-os como seres morais autônomos, que até então eram vistos, além como um não eu, como um não nós, por assim dizer. Dada a importância que muitos pensadores vêm dando a situação dos animais nas mãos dos humanos, o movimento intelectual vai no sentido de que é preciso fazer lucubrações conceituais, revisando, por consectário, conceitos como pessoa, autoconsciência, razão etc. perfilhando a tese de que os animais são sujeitos de direitos, e que não podem ficar à mercê de proteções ante as ações inconsequentes e imponderadas dos seres que se julgam racionais. No entanto, a postura adotada neste trabalho, que foi tratada no Capítulo II, é que cogitações acerca de haver animais não-humanos que são pessoas ou não, e que por conseguinte devem a partir disso serem respeitados, seriam “apenas” uma questão secundária e sobretudo inessencial, na medida em que a capacidade de sofrer por si só já é uma razão suficiente para abarcar os animais sob a luz da ética, até porque, como visto no Capitulo I, a Bioética, grosso modo, é uma ética da vida. O que não significa que esses estudos e pensamentos sejam irrelevantes. Pelo

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contrário. Aliás, eles oferecem dados que aproximam o ser humano e os animais, demonstrando que aquele não é tão especial o quanto pensa. Ademais, pode-se reconhecer aos animais o estatuto de pessoas de modo sui generis, tendo em vista a lógica do ordenamento jurídico que exige determinados termos técnicos para atender seus fins. Consequentemente, reconhece-se que mesmo que nenhum ser senciente tenha interesse em sofrer, é preciso entender que os seres humanos são mais importantes que os demais animais e que há sim uma justificativa ética para causar sofrimento nos animais, buscando concomitantemente que a dor não se faça presente, ou que no mínimo seja atenuada. Quer dizer, “tudo bem” fazer isso, mas que se atenue o sofrimento, caso não haja alternativas. Ao menos é isso que, em tese, entende-se por uma ponderação ética entre os interesses, como explanado no Capítulo III. Com Schopenhauer, mesmo após uma análise conceitual desfechar que os animais não são pessoas, defende que existem, sim, Diretos dos Animais, na medida em que todos os animais, incluso o homem, têm a mesma essência, a mesma vontade de viver, a mesma Vontade. Embora o homem enquanto objetivação da espécie esteja paralelamente aos animais, enquanto objetivação do caráter inteligível ele é um ser singular, um ser racional, autoconsciente, em suma, uma pessoa. Todavia, uma pessoa com a mesma essência que um animal, que sofre, logo, que tem direitos e merece respeito ético. Isto é, a condição dos animais não é um fator obstativo à deferência por parte dos seres humanos em prol deles. Destarte, apesar da Doutrina do Direito (Positivo) de Schopenhauer firmar-se sobre a tese contratualista, os animais também podem ter a Vontade negada em seus corpos, ocorrendo assim uma injustiça, e sendo o Direito essencialmente sua negação, deve este encontrar meios de evitar esses atos. Outrossim, a Doutrina da Moral, ao versar sobre como o homem pode ser justo, também encontra, portanto, um animal diante de si. Com efeito, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais de 1978 e a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 são exemplos de como, ao menos teoricamente, o ser humano tem reanalisado a questão da condição animal e sobretudo caminhado para parte da verdadeira emancipação do ser racional almejada pelos iluministas, na medida em que ele usou da própria razão (que se julgava tudo

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poder) para criticar o que ela mesma tem feito durante séculos, seja em relação ao meio ambiente, à sociedade e especificadamente aos animais. No que tange à Lei Arouca, reconhece-se que as críticas dirigidas a ela são importantes, tendo em vista que o que está em jogo é o sofrimento dos animais envolvidos, bem como o interesse deles em continuarem vivos e de serem livres, mas, levando em conta que há situações em que a saúde do ser humano esteja consideravelmente ameaçada, é preciso que a situação seja ponderada, exigindo-se para tanto uma lei que evite excessos em detrimento dos animais. Posto isso, recomenda-se que ao mesmo tempo em que se julgue como suficiente o conceito de senciência para obstar determinadas práticas, que se estude os comportamentos dos animais e que os dados obtidos sejam readequados aos conceitos pertinentes. Ademais, considerando que na Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE existe uma Comissão de Ética no Uso de Animais – CEUA, urge chamar atenção para o fato de ser imprescindível que os alunos desta Instituição, que amiúde resvalam suas atenções para esses assuntos, estudem o tema e colaborem para quaisquer influências positivas para o assunto, prática e teoricamente. Não obstante o panorama teórico adotado nesse trabalho seja o de Schopenhauer, suplementado pelo de Singer, após apresentados os conceitos de Bioética, pessoa, razão, (auto)consciência, liberdade, autonomia e sobretudo quando vindo a lume os experimentos feitos com animais, conclui-se que a postura de Bentham, a saber, de que basta simplesmente perguntar: “podem eles sofrer?”, é a correta e coloca um ponto final no assunto. Por derradeiro, sempre vale ter em mente aquela sapiência advinda do oriente, mediante a qual se doutrina a fórmula védica “tat twan asi”, responsável por toda moral genuína.

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