Para além dos bancos da academia: o escravo como pessoa na obra de Lourenço Trigo de Loureiro

July 26, 2017 | Autor: M. Dias Paes | Categoria: Historia Social, História Do Direito, Escravidão
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Para além dos bancos da academia: o escravo como pessoa na obra de Lourenço Trigo de Loureiro MARIANA ARMOND DIAS PAES*

1. Introdução A partir da década de 1980, houve significativa ampliação do campo temático pesquisado pelos historiadores da escravidão brasileira. Tal expansão baseou-se em uma nova perspectiva: o escravo não é mais visto como vítima passiva do sistema escravista, mas como agente histórico construtor de seu próprio universo social e cultural. A partir de novas opções metodológicas, os historiadores da escravidão no Brasil vêm tentando refutar a antiga historiografia, que tendia a considerar o escravo como coisa, como mero sujeito passivo nas relações sociais. O processo histórico é construído pelas interações entre os “de cima” e os “de baixo” (SHARPE, 1992; HOBSBAWM, 2008). Nesse sentido, a fim de se compreender a experiência escrava no Brasil, é também necessário voltar os olhos para os “de cima”. A análise da atuação dos escravos na sociedade e da construção de sua identidade e autonomia somente ficará completa se as pesquisas historiográficas também se preocuparem com as maneiras pelas quais essa experiência era vivida e sentida por outros grupos sociais. Ao longo dos séculos XIX e XX, os intelectuais desempenharam importantes papéis na construção das nações latino-americanas. Mais especificamente no caso brasileiro, os intelectuais podem ser considerados atores privilegiados, pois suas concepções de mundo foram centrais na consolidação do Estado brasileiro independente, no século XIX. Dentre os intelectuais, diversos estudos apontam para a atuação central dos juristas (ADORNO, 1988; VENÂNCIO FILHO, 1977). Por vários anos, as Faculdades de Direito de Olinda e de São Paulo foram umas das poucas opções de ensino superior existentes no Brasil. Sua importância crescia, ainda, pelo fato de que dos bancos dessas duas academias saíam os homens que iriam compor o governo imperial e ditar os rumos da construção da nação brasileira. Nesse contexto, a obra de Lourenço Trigo de Loureiro ganha uma importância fundamental. Professor na Faculdade de Olinda por trinta e sete anos (de 1833, quando foi nomeado professor substituto, até 1870, ano de seu falecimento), lecionou para muitos dos que assumiram as rédeas do país no século XIX. A difusão de suas idéias se estendeu para *

Mestranda em Direito pela Universidade de São Paulo e graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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além da Faculdade de Olinda, vez que suas Instituições de Direito Civil Brasileiro foram utilizadas na Faculdade de São Paulo até o ano de 1862, quando passou a ser adotado o Curso de Direito Civil, de Antonio Joaquim Ribas (ROBERTO, 2008: 152-170). Por isso, as idéias acerca da pessoalidade jurídica dos cativos, presentes no seu compêndio, são centrais para a compreensão da experiência escrava no Brasil oitocentista.

2. Trigo de Loureiro e a obra de Mello Freire Durante a primeira metade do século XIX, o compêndio adotado nas aulas de Direito Civil das academias jurídicas de Olinda e de São Paulo era a obra Instituições de Direito Civil Português1, do jurisconsulto português Paschoal José de Mello Freire.2 No ano de 1851, veio a lume a primeira edição das Instituições de Direito Civil Brasileiro, elaborada pelo então professor substituto da Faculdade de Olinda, Loureiro. As Instituições foram adotadas oficialmente como compêndio até o final do Império, substituindo, assim, a obra de Mello Freire (ROBERTO, 2008: 167-168). Passarei à análise dos títulos e das notas introdutórias da primeira (1851), da segunda (1857) e da terceira (1861) edições da obra de Loureiro. A primeira edição possui o seguinte título: Instituições de Direito Civil Brasileiro, extraídas das Instituições de Direito Civil Lusitano do exímio jurisconsulto português Paschoal José de Mello Freire, na parte compatível com as instituições da nossa cidade, e aumentadas nos lugares competentes com a substância das leis brasileiras. Percebe-se, portanto, uma referência expressa à obra de Mello Freire, tomada como base do trabalho de Loureiro. Também na nota introdutória, há menção ao jurisconsulto português, uma vez que o autor afirmou seguir o sistema das Instituições de Direito Civil Português, extraindo daí tudo que tivesse aplicação no Direito Brasileiro e completando com leis brasileiras o que fosse necessário (LOUREIRO, 1851). Conforme ROBERTO (2008: 168), ao tomar por base o texto de Mello Freire, Loureiro tornou-se mais um comentador da obra do jurisconsulto português, contribuindo, assim, para perpetuar a influência coimbrã sobre o ensino jurídico brasileiro. Na segunda edição, há a supressão do nome de Mello Freire do título da obra, que passou a se chamar Instituições de Direito Civil Brasileiro. Segunda edição mais correta e 1

Os títulos das obras analisadas neste trabalho, bem como as citações delas extraídas, tiveram sua ortografia adaptada às normas vigentes. 2 Os cursos jurídicos criados em Olinda e São Paulo foram inicialmente regidos pelos Estatutos do Visconde da Cachoeira, os quais determinavam que as aulas deveriam ser ministradas com o auxílio de compêndios. Assim, grande parte das aulas eram dedicadas à leitura e à explicação do compêndio adotado (ROBERTO, 2008: 69-71).

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aumentada, oferecida, dedicada e consagrada a Sua Majestade Imperial o Senhor Dom Pedro II. Na nota introdutória, porém, permaneceu a referência ao autor português. Loureiro afirmou que, ainda que Mello Freire possa ser considerado fundador da jurisprudência brasileira, sua obra apresenta forte influência de doutrinas absolutistas, que não se coadunavam com a monarquia constitucional brasileira. Portanto, era de extrema urgência que fosse elaborada nova obra para o ensino do Direito Civil brasileiro, o que poderia se dar de duas maneiras: ou reunindo em corpo novo doutrinas sobre essa matéria ou “retocando” as Instituições de Direito Civil Português (LOUREIRO, 1857). E o autor optou pela segunda alternativa. Na terceira edição, enfim, desapareceu qualquer menção a Mello Freire, tanto no título (Instituições de Direito Civil Brasileiro. Terceira edição mais correta, e aumentada, e oferecida, dedicada, e consagrada à Sua Magestade Imperial o Senhor Dom Pedro II), quanto na nota introdutória. Nessa, o autor passou a impressão de que o trabalho era integralmente seu. Inclusive, fez diversas alusões à dificuldade de elaborar a obra e aos sacrifícios que ela lhe custou (LOUREIRO, 1862). Ora, mesmo que, na terceira edição, Loureiro não tenha explicitado, como antes, a influência das idéias de Mello Freire, ela se mostra de maneira decisiva. Para melhor compreender a influência do autor coimbrão na obra de Loureiro, especificamente em relação ao estatuto jurídico dos escravos, valer-me-ei da versão portuguesa das Instituições de Direito Civil Português, traduzida, em 1966 e 1967, por Miguel Pinto de Meneses. Dentre as obras de Loureiro, selecionei para análise a primeira (1851), a segunda (1857) e a terceira (1861) edições das Instituições de Direito Civil Brasileiro. As edições de 1871 e de 1884, publicadas após a morte do autor, não foram utilizadas por serem iguais à terceira.

3. Pressupostos básicos Antes de passar à análise propriamente dita da condição jurídica do escravo na obra de Loureiro, é mister esclarecer dois pressupostos básicos, presentes nas Instituições de Direito Civil Brasileiro: o primeiro deles se refere à conceituação de Direito Natural; e o segundo, à definição de capacidade civil.

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3.1. O Direito Natural Antes de expor as concepções de Loureiro acerca do Direito Natural, é importante elucidar qual era o conceito de pessoa para os jusnaturalistas da época. Para tanto, valer-me-ei da obra Elementos de Direito Natural Privado, elaborada por Pedro Autran da Matta Albuquerque, lente titular da cadeira de Direito Natural da Faculdade de Direito de Olinda e contemporâneo de Loureiro. Para ele, Direito Natural é o complexo de direitos e deveres fundados na natureza racional do homem. Como ente racional e livre, o homem é fim em si mesmo, sendo, portanto, pessoa, e não coisa. Nesse sentido, pessoas são entes dotados de razão e liberdade, ainda que momentaneamente privados dessas faculdades. Aquele que está privado do uso da razão ou da liberdade não deve ser tratado como coisa, o que configuraria lesão (ALBUQUERQUE, 1848: 2-24). O direito primigênio, do qual todos os outros derivam, é o direito à liberdade, continuou o autor. Tal direito não se pode perder ou renunciar, pois tem seu fundamento no caráter essencial do homem: ser pessoa. Por mais miserável que seja o estado em que o homem se encontra, sempre haverá ações por meio das quais o direito à liberdade poderá ser exercido. O direito primigênio é igual para todos, ao contrário dos direitos adquiridos, que são diversos e desiguais (ALBUQUERQUE, 1848: 18-47). Albuquerque definiu, ainda, “estado” como o complexo de direitos que competem ao indivíduo em certa relação jurídica. Divide-se em: estado de natureza, que diz respeito aos indivíduos considerados simplesmente como homens; estado civil, que é o complexo dos direitos civis dos membros de uma mesma sociedade; e estado político, que engloba os direitos políticos dos cidadãos (ALBUQUERQUE, 1848: 27). Todos os homens – concluiu o autor – têm a mesma origem e, portanto, devem ser considerados iguais. Essa igualdade está no fato de que todos os direitos devem ser respeitados. Ela não perde seu valor ante as desigualdades oriundas dos estados, uma vez que o homem nunca perde sua essência (ALBUQUERQUE, 1848: 28-30). O autor afirmou, também, que a escravidão, enquanto injusta restrição à livre disposição da pessoa, constitui-se lesão (ALBUQUERQUE, 1848: 30). A escravidão era veemente condenada por Albuquerque, pois representava uma submissão do direito a motivos políticos e utilitários: Mas qual será a tese jurídica, que se tenha conservado incólume de impugnação? Qual a injustiça, que se não possa defender com razões de utilidade, ou por motivos políticos? Assim deve acontecer, sempre que o direito for pesado na balança da

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utilidade ou da política. Mas, atendendo-se unicamente ao direito, não pode o homem, sendo pessoa, ser objeto de aquisição para outro homem, nem ser nivelado com as coisas, destinadas naturalmente aos nossos usos (ALBUQUERQUE, 1848: 42).

Também para Loureiro, o Direito Natural decorre das naturezas moral e física do homem e do fim para o qual ele teria sido criado. Portanto, as leis derivadas do Direito Natural poderiam ser reconhecidas pela luz da razão e moveriam a vontade humana na busca por uma convivência pacífica (LOUREIRO, 1862: 10). Ao enunciar exemplos de direitos considerados naturais, o autor elencou o direito de dispor livremente da propriedade real (com exceção da disposição por testamento, que é tida como um direito civil), o direito de contratar, o direito de adquirir por qualquer meio que não seja exclusivo dos cidadãos brasileiros e o direito de demandar judicialmente (LOUREIRO, 1851: 13; 1857: 17-18; 1862: 47). O Direito Natural, tanto para Loureiro quanto para Albuquerque, compreenderia, portanto, uma vasta gama de direitos e obrigações, oriundos da própria natureza humana.

3.2. A capacidade civil Para LOUREIRO (1862: 14), possui capacidade civil plena (aptidão para exercer direitos e obrigações civis) aquele que goza de todas as qualidades pessoais do homem livre e cidadão. Nesse sentido, o autor mencionou, ao longo de sua obra, três situações diversas nas quais podem se encontrar as pessoas. Primeiramente, há os possuidores da capacidade civil plena, ou seja, os homens livres e cidadãos. Também existem aqueles que não são dotados de capacidade civil plena, mas possuem a expectativa de adquiri-la. Destes, são exemplos os menores. A terceira categoria é composta por aqueles que não possuem capacidade civil plena e tampouco têm qualquer expectativa de vir a adquiri-la. São estes os escravos. Ao longo da análise, referir-me-ei a essas categorias como, respectivamente, capazes, incapazes e não capazes. Tem-se, já nestes pressupostos, uma primeira caracterização da condição jurídica do escravo: era pessoa, portador de direitos naturais e sem qualquer expectativa de aquisição da capacidade civil. As minúcias desta condição peculiar são consideradas adiante.

4. Os escravos enquanto pessoas LOUREIRO (1862: 29-30) iniciou a terceira edição das Instituições afirmando que o direito, no seu sentido objetivo, refere-se às pessoas, às coisas ou às ações. Todos os direitos e obrigações do homem na sociedade civil provêm de qualidades, condições ou circunstâncias

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que formam sua personalidade e seu estado. É de se considerar mais atentamente esta distinção entre personalidade e estado. Na segunda e na terceira edições, há uma conceituação expressa de pessoa: pessoa é todo ser capaz de exercer direitos e contrair obrigações (LOUREIRO, 1857: 2; 1862: 30). Infere-se, também, que dentro do conceito de pessoa estão compreendidos todos os homens3 e as pessoas jurídicas. Na primeira edição, por sua vez, não está expresso o conceito de pessoa adotado pelo autor, mas os direitos da personalidade são entendidos como toda faculdade ou poder jurídico que nascem da qualidade de homem (LOUREIRO, 1851: 2), conceituação extraída da obra de MELLO FREIRE, (1967: 10). Nesse sentido, existe nítida diferenciação entre personalidade e estado, pois um homem, na sociedade civil, poderia ser considerado de acordo com os diversos estados que possui (LOUREIRO, 1862: 30-31). Os três principais estados do homem são: liberdade, cidade e família (MELLO FREIRE, 1967: 10; LOUREIRO, 1851: 2; 1862: 31). Assim, conquanto Loureiro tenha afirmado, na segunda e na terceira edições, que todo homem é capaz de direitos e, portanto, que todo homem pode ser considerado pessoa, a distinção entre estados criava uma desigualdade fundamental entre os homens: na sociedade civil, os direitos dos homens variavam de acordo com a posição e o estado que ocupavam, uma vez que o estado civil era diferente do estado natural. Neste, os homens seriam iguais em direitos, enquanto naquele, não (LOUREIRO, 1857: 2-3; 1862: 31-32). Logo, a personalidade se divide, conforme os estados, em personalidade civil e personalidade natural. A escravidão consiste na ausência dos estados de liberdade, cidade e família. Nesse sentido, a mudança de estado de uma pessoa pode acarretar a perda de certos direitos (MELLO FREIRE, 1967b: 124-125; LOUREIRO, 1851: 103). Na primeira edição, baseandose em Mello Freire, Loureiro afirmou que o estado do homem é natural ou civil, sendo este dividido em estado de liberdade, cidade e família (MELLO FREIRE, 1967b: 139; LOUREIRO, 1851: 110). A mudança de estados civis sob a comum personalidade natural é exemplificada da seguinte maneira: “Se o estado do testador se muda em outro incompatível com a capacidade civil, como se é reduzido à servidão em que d’antes estava (…); o testamento irrita-se, ou perde toda sua força; porquanto cai no caso em que não podia começar (…)” (LOUREIRO, 1851: 180; 1857: 244; 1862b: 26).

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Mello Freire afirmou que o Direito Português não fazia qualquer diferenciação entre os vocábulos pessoa e homem (MELLO FREIRE, 1967: 10). Loureiro, ao longo de toda sua obra, usou ambas as palavras indiscriminadamente.

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Conseqüentemente, o escravo é claramente considerado pessoa pelo autor. Tal afirmativa é corroborada pelo fato de que Loureiro, seguindo em parte a classificação de Mello Freire, considerou que as pessoas se dividem em livres e escravos (MELLO FREIRE, 1967: 10; LOUREIRO, 1851: 2; 1857: 2-3; 1862: 31-32).

5. O Direito Romano Em relação ao Direito Romano, fonte subsidiária do Direito Civil brasileiro à época, os escravos eram considerados homens sujeitos ao domínio de outros homens, ainda que contra a natureza, que os teria criado todos livres e dotados de direitos e deveres (LOUREIRO, 1857: 3-4; 1862: 33). LOUREIRO (1857: 5; 1862: 35) afirmou, ainda, que, no Direito Romano, os escravos não eram pessoas, mas coisas, uma vez que não eram dotados de direitos e eram equiparados aos animais domésticos: “Por direito romano os escravos não eram pessoas, mas coisas; porquanto não eram capazes de direitos, e eram equiparados aos animais domésticos… As nossas leis porém suavizaram muito a sua condição”. Outras diferenciações foram feitas pelo autor no que concerne à condição jurídica do escravo no Direito Romano e no Direito Pátrio. Entre os Romanos, em uma terceira acepção, a família compreendia também os escravos, ainda que eles não lhe pertencessem senão como coisas: esta terceira acepção tem aplicação entre nós não só aos criados, considerados como pessoas, senão também aos nossos escravos, os quais também consideramos, não como coisas, mas como pessoas, ainda que privadas do direito de liberdade, cidade, e família (LOUREIRO, 1851: 15-16).4

Vê-se que a diferenciação entre o Direito Romano e o Direito Brasileiro quanto à condição do escravo reforçam a compreensão de que o escravo era juridicamente pessoa. Civilmente submetida a outrem, é certo, mas, sem dúvida também, naturalmente dotada de direitos.

6. Os cidadãos brasileiros De acordo com Loureiro, todos os homens livres em solo brasileiro são cidadãos brasileiros ou estrangeiros. Os cidadãos, por sua vez, nascem ou fazem-se pela manumissão, pelo domicílio ou pela naturalização. Também afirmou que são cidadãos brasileiros os que nascem de pais ingênuos ou libertos. Fazem-se cidadãos brasileiros pela manumissão os que, sendo escravos nascidos no Brasil, obtêm sua liberdade pela alforria (libertos). Os direitos dos 4

O trecho foi ligeiramente modificado nas edições posteriores (LOUREIRO, 1857: 20-21; 1862: 50-51).

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cidadãos dividem-se em políticos e civis (LOUREIRO, 1851: 10-12; 1857: 13-14; 1862: 4346). Por meio desses enunciados, é possível concluir que o escravo e seus filhos não são considerados cidadãos brasileiros e, portanto, não possuem direitos políticos. O estado de liberdade é condição para o gozo da cidadania brasileira.

7. O escravo ante o Direito Civil Em todas as edições, aparece a seguinte definição de Direito Civil: “Os direitos civis são aqueles, que requerem autoridade do direito civil, e que competem a todos os cidadãos, que reúnem as qualidades exigidas pelo mesmo direito civil para o bom exercício deles” (LOUREIRO, 1851: 12; 1857: 16; 1862: 46). Nesse sentido, uma vez que os escravos não possuíam a qualidade de cidadãos, eles não desfrutavam de direitos civis e tampouco tinham expectativa de adquiri-los enquanto não gozassem do estado de liberdade. O livre exercício dos direitos civis dependia, ainda, da capacidade, do juízo e do discernimento e, aos escravos, faltava a capacidade (LOUREIRO, 1857: 158-159; 1862: 193-194). Na segunda e na terceira edições, ao tratar das pessoas intestáveis5, Loureiro diferenciou novamente a capacidade natural da capacidade civil. Os escravos foram classificados como intestáveis por falta de capacidade civil (LOUREIRO, 1851: 158-159; 1857: 204-206; 1862b: 28-30). Contudo, ainda que civilmente não capazes, eram dotados de capacidade natural, o que os habilitava para o exercício de outros direitos, que não os civis, na ordem jurídica. A diferenciação entre direitos civis e direitos do homem, ou direitos naturais, aparece ainda uma vez ao afirmar o autor que a perda daqueles, não acarreta a perda destes (LOUREIRO, 1851: 13; 1857: 17-18; 1862: 47-48). Sobre a perda dos direitos civis, Loureiro acrescentou, na primeira edição, que a Constituição admitia a pena de morte civil, ou escravidão da pena6, por meio da qual o cidadão era privado de todos os direitos civis e políticos e considerado como estranho à comunidade política brasileira (LOUREIRO, 1851: 13). Sendo a redução à escravidão uma espécie de morte civil, corrobora-se o entendimento segundo o qual o escravo é não capaz, ou seja, é pessoa não dotada de qualquer tipo de direito civil e, também, sem qualquer expectativa de adquiri-los enquanto sujeita ao domínio de outrem. 5 6

Entende-se por intestável aquele que está proibido de testar. MELLO FREIRE (1697b: 34-35) afirma que escravidão da pena significa reduzir os prisioneiros à escravidão.

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Há, ainda, diversos exemplos de que o retorno à escravidão, depois de ter havido a manumissão, acarreta a perda de direitos civis. Dentre eles podemos mencionar a perda do pátrio poder quando o escravo, depois de manumitido, é novamente reduzido à escravidão (LOUREIRO, 1851: 39-40; 1857: 56-57; 1862: 88-89) e a designação de tutor ao menor quando o pai liberto perde a alforria (LOUREIRO, 1857: 127; 1862: 160). Também o usufruto se perde pela revogação da alforria por ingratidão (LOUREIRO, 1851b: 98). Pode-se, ainda, destacar o fato de que os escravos não podiam ser tutores, visto que a tutoria era um múnus público, que requeria da pessoa a quem era cometido o livre gozo e exercício de todos os direitos civis. O escravo a quem o testador libertou na disposição de última vontade pode ser nomeado tutor, desde que possua as demais qualidades necessárias para o bom desempenho da tutoria, o que, para o autor, raramente se acharia em algum dos nossos escravos (MELLO FREIRE, 1967b: 115-116; LOUREIRO, 1851: 95-96; 1857: 128129; 1862: 161-162). Outro ponto interessante é que o escravo não podia ser testemunha, salvo se fosse tido, geralmente, por livre, o que demonstra que a idéia de liberdade estava intimamente ligada à de capacidade civil (MELLO FREIRE, 1967c: 87; LOUREIRO, 1851: 152-153; 1857: 211-212; 1862b: 33-34).

8. Os escravos e as coisas A conceituação jurídica de coisa expressa na obra de Loureiro é: “Em sentido jurídico dizem-se coisas, ou bens, tudo aquilo, que, servindo de utilidade aos homens, pode ser submetido ao seu poder, e por isso mesmo ser objeto de direitos exclusivos” (LOUREIRO, 1862: 198). Já o conceito apresentado por Mello Freire é: “Para nós as coisas são aqui tudo aquilo que aumenta os nossos bens e patrimônio (…)” (MELLO FREIRE, 1967: 39). Loureiro afirmou que algumas coisas podem ser classificadas como semoventes. Porém, o único exemplo dado pelo autor foi o dos animais (LOUREIRO, 1857: 165-166; 1862: 199-200). Ao meu ver, isso se dá em razão de os juristas da época, levando em conta a dignidade da pessoa humana, entenderem que a expressão “semoventes”, presente no artigo 191 do Código Comercial, não deveria compreender os escravos (MALHEIRO, 1976: 74). Ao longo das Instituições, no entanto, os escravos foram tratados como bens em diversos momentos. Dentre eles, é importante destacar: o feto da escrava é considerado um bem acessório (LOUREIRO, 1857: 169; 1862: 203); os escravos empregados nos engenhos de açúcar e que não podem deles se separar sem interrupção dos trabalhos são considerados

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coisas imóveis por destino (LOUREIRO, 1862: 205); na compra e venda de escravos, incide o imposto da siza (LOUREIRO, 1857: 176-177; 1862: 210-211); os escravos são considerados bens do evento e, quando achados, devem ser devolvidos à Fazenda Provincial (LOUREIRO, 1851: 131-132; 1857: 191-192; 1862: 233-234); por acessão natural (tudo que é resultado natural do que é nossa propriedade), o filho da escrava pertence ao dono da mãe, sem se indagar quem é o pai ou dono desse (LOUREIRO, 1851: 133; 1857: 194-195; 1862: 236237); os escravos podem ser devolvidos ou ter seu preço corrigido caso apresentem vício redibitório (LOUREIRO, 1857b: 194-195; 1862b: 216-219).7 O tratamento do escravo como coisa, em diversos momentos da obra, justifica-se pela ausência de capacidade civil. Ademais, estavam sob o domínio de outrem. O cativo, enquanto pessoa, estava sujeito, em algumas situações, ao poder heril, que conferia ao senhor a possibilidade de alugá-lo e vendê-lo. Porém, é importante ressaltar que o escravo não estava sujeito a esse poder em todos os aspectos da vida jurídica, vez que, enquanto pessoa, era dotado de diversos direitos e era capaz de contrair obrigações.

9. Estatuto jurídico dos escravos A partir da análise da primeira, da segunda e da terceira edições de Instituições de Direito Civil Brasileiro, de Loureiro, e da obra que lhe serviu de base, Instituições de Direito Civil Português, de Mello Freire, pode-se concluir que, para Loureiro: Escravo é pessoa que, por estar sujeita a outrem, não é dotada de capacidade civil e é tratada como coisa em situações específicas. Desenvolvendo

essa

definição

podemos

chegar

a

algumas

conclusões

complementares. Conforme o autor afirmou, expressa e contundentemente, em diversos pontos de sua obra, o escravo é pessoa perante o Direito Civil vigente no século XIX. Tal compreensão se dava em razão, principalmente, da atribuição ao escravo da qualidade de homem, ente capaz de adquirir direitos e contrair obrigações. Daí, tem-se que o escravo era dotado de personalidade jurídica natural, o que lhe propiciava o exercício de inúmeros direitos naturais (categoria bastante abrangente à época). A escravidão, caracterizada pela sujeição de uma pessoa a outra, é considerada um estado, passível, portanto, de modificação. Tal estado impedia que o escravo gozasse de capacidade civil. Ele tampouco era civilmente incapaz, uma vez que não havia qualquer 7

Nos parágrafos correspondentes da obra de MELLO FREIRE (1967: 60-63), não há menção aos escravos e, quando há, é para afirmar que o instituto não mais se aplica em razão da abolição da escravidão em Portugal.

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expectativa de que usufruísse de direitos civis enquanto permanecesse no estado de escravidão. Loureiro não classificou o escravo como coisa em momento algum. Contudo, ele é tratado como tal em diversas situações. Esse tratamento se explica pela ausência de capacidade civil e pela sujeição ao domínio de outrem. O escravo, enquanto pessoa, estava sujeito, em algumas situações, ao poder heril, qual seja, o poder que dispunha o senhor de alugá-lo e vendê-lo. É importante ressaltar que o escravo não estava sujeito ao poder heril em todos os aspectos da vida jurídica. Enquanto pessoa, era dotado de diversos direitos e era capaz de contrair obrigações.

10. Considerações finais As obras jurídicas são um problema histórico. A literatura jurídica não é transcendente. Tampouco é autônoma em relação ao contexto social no qual está inserido seu autor. Deve ser entendida como testemunho histórico, permeada pelas relações sociais de seu tempo. Ao analisá-las, é preciso inseri-las no processo histórico. É necessário buscar a lógica social do texto (CHALHOUB; PEREIRA, 1998: 7-9). Assim como suas obras, os juristas também devem ser situados no movimento histórico. Como afirma António Manuel Hespanha, os juristas são permanentemente expostos à crítica social e, portanto, adotam como estratégia de defesa a “desdramatização” da natureza política de suas decisões. Com o fim de despolitizar suas intervenções, apresentam suas argumentações como se fossem baseadas exclusivamente na técnica e na ciência, como se fossem distanciadas dos conflitos sociais. É construída uma imagem dos juristas como acadêmicos neutros, com preocupações meramente teóricas e abstratas (HESPANHA, 2009: 32-33). Ora, cabe, portanto, ao historiador elucidar as questões políticas subjacentes à atuação dos juristas e demonstrar que o direito, enquanto fenômeno histórico, não está apartado das relações sociais. A atuação dos escravos no meio social, principalmente nos núcleos urbanos, negava peremptoriamente sua condição de coisa. Eram pessoas, que agiam dentro de uma considerável margem de autonomia. Ante tal situação, não havia como os juristas negarem a pessoalidade do escravo e simplesmente reduzi-los à categoria teórica de coisa. A civilística do século XIX não poderia negar aos cativos o estatuto jurídico de pessoas, vez que eles eram sujeitos dotados de experiências e tradições históricas particulares.

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Ademais, aos juristas era possível reconhecer nos cativos a condição de pessoa, mesmo que isto fosse contrário aos interesses senhoriais. De acordo com José Murilo de CARVALHO (2008: 229-236), o Estado Imperial foi marcado por uma dialética da ambigüidade: era mantido pelas rendas geradas pelos proprietários de terras e de escravos, mas funcionava por meio de uma burocracia que não era necessariamente composta por pessoas ligadas aos interesses agrários; o que teria permitido certa liberdade de ação à elite política. Assim, os juristas poderiam defender certas idéias que iriam de encontro aos desígnios dos proprietários de escravos, dentre elas a afirmação de que os cativos eram pessoas e não coisas. Conclui-se, portanto, que a luta empreendida pelos escravos com vistas a amenizar as agruras sofridas na escravidão também teve reflexos na civilística brasileira do século XIX. Os juristas não poderiam negar aos cativos um estatuto jurídico que era, a todo tempo, por eles afirmado pelas suas experiências originais. Ao mesmo tempo, as idéias propagadas por Loureiro e pelos demais juristas brasileiros oitocentistas, que negavam a qualidade de meros bens aos cativos (DIAS PAES, 2010), também foram importantes na busca dos escravos por uma autonomia cada vez maior. Ter o reconhecimento de sua pessoalidade pelos juristas era uma grande conquista para a luta escrava, vez que eles ocuparam funções centrais na construção do Estado brasileiro independente.

11. Referências Bibliográficas 11.1. Fontes Primárias ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Elementos de direito natural privado. Pernambuco: Tipografia Imparcial, 1848. LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro, extrahidas das Instituições de Direito Civil Lusitano do exímio jurisconsulto portuguez Paschoal José de Mello Freire, na parte compatível com as instituições da nossa cidade, e augmentadas nos lugares competentes com a substância das leis brasileiras. 1ª edição. Tomo I. Pernambuco: Tipografia da Viúva Roma & Filhos, 1851. . Instituições de Direito Civil Brasileiro, extrahidas das Instituições de Direito Civil Lusitano do exímio jurisconsulto portuguez Paschoal José de Mello Freire, na parte compatível com as instituições da nossa cidade, e augmentadas nos lugares competentes com a substância das leis brasileiras. 1ª edição. Tomo II. Pernambuco: Tipografia da Viúva Roma & Filhos, 1851b.

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. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Segunda edição mais correcta e augmentada, offerecida, dedicada e consagrada a Sua Magestade Imperial o Senhor Dom Pedro II. 2ª edição. Tomo I. Recife: Tipografia Universal, 1857. . Instituições de Direito Civil Brasileiro. Segunda edição mais correcta e augmentada, offerecida, dedicada e consagrada a Sua Magestade Imperial o Senhor Dom Pedro II. 2ª edição. Tomo II. Recife: Tipografia Universal, 1857b. . Instituições de Direito Civil Brasileiro. Terceira edição mais correcta, e augmentada, e offerecida, dedicada, e consagrada à Sua Magestade Imperial o Senhor Dom Pedro II. 3ª edição Tomo I. Recife: Tipografia Universal, 1862. . Instituições de Direito Civil Brasileiro. Terceira edição mais correcta, e augmentada, e offerecida, dedicada, e consagrada à Sua Magestade Imperial o Senhor Dom Pedro II. 3ª edição. Tomo II. Recife: Tipografia Universal, 1862b. MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social. 3ª edição. Vol. 1. Petrópolis: Vozes, Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1976. MELLO FREIRE, Pascoal José de. “Livro II – Do Direito das Pessoas”. Instituições de Direito Civil Português. Tradução: Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Procuradoria Geral da República, 1967. (Boletim do Ministério da Justiça, volume 163), pp. 6123; . “Livro II – Do Direito das Pessoas”. Instituições de Direito Civil Português. Tradução: Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Procuradoria Geral da República, 1967b. (Boletim do Ministério da Justiça, volume 164) pp. 17-147. . “Livro III – Do Direito das Coisas”. Instituições de Direito Civil Português. Tradução: Miguel Pinto de Meneses. Lisboa: Procuradoria Geral da República, 1967c. (Boletim do Ministério da Justiça, volume 165), pp. 36-156; pp. 45-180. RIBAS, Antonio Joaquim. Curso de direito civil brasileiro: parte geral. 1ª edição. 2 Tomos. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1865. . Curso de direito civil brasileiro: parte geral. 2ª edição. 2 Tomos. Brasília: Senado Federal, 2003. [Edição fac-similar].

11.2. Fontes secundárias ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial/Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. “Apresentação”. In: CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (orgs.). A história contada: capítulos de história social da literatura no Brasil. 3ª reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. DIAS PAES, Mariana Armond. O estatuto jurídico dos escravos na civilística brasileira. Belo Horizonte, 2010. (Monografia de conclusão de curso de graduação – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais). HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. 1ª reimpressão. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. HOBSBAWM, Eric. Sobre história. Tradução: Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ROBERTO, Giordano Bruno Soares. O direito civil nas academias jurídicas do império. Belo Horizonte: UFMG, 2008. (Tese de Doutorado – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais). SHARPE, Jim. “A história vista de baixo”. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. Tradução: Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1992, pp. 39-62. VENÂNCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo. São Paulo: Perspectiva, 1977.

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