Para além (ou aquém) da fome

May 28, 2017 | Autor: Luiz Felipe Soares | Categoria: Deleuze, Nietzsche, Sloterdijk, Glauber Rocha
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Para além (ou aquém) da fome
del ombre sin orillas, chapoteador de historia, víspera de si mismo.
(...) ese hombre que no se acepta cotidiano, clasificado obrero o pensador, que no se acepta ni parcela ni víspera ni ingrediente geopolítico, que no quiere el presente revisado que algún partido y alguna bibliografía le prometen como futuro
(Júlio Cortázar)
Talvez seja possível perceber historicamente um evento Glauber Rocha, cujo abalo se faz sentir em dois espaços. Numa região mais visível, há uma reiteração heroicizante, sublinhada por um murmúrio provinciano, destacando o valor de uma obra supostamente "magistral", privilegiando coerências e continuidades, em busca de sistematização e explicação: no dizer de Sloterdijk, Glauber tende a virar marca. Num plano mais escondido, como que no subterrâneo desse heroísmo, aparecem esparsas propostas de interpretação marcadas por um inconformismo impreciso, pela urgência da restituição de potencialidades a aspectos menos explorados do mesmo evento.
Se no plano mais iluminado se enquadra a maior parte da fortuna crítica do autor, isso tem relação, é claro, com a própria exigência sistematizadora da pesquisa acadêmica em geral: "o certo" é buscar, e encontrar, coerência, fecho, ponto de chegada, totalização, idéias claras e distintas. As potencialidades, o indefinível, o irredutível, o aberto são elementos de risco institucional. A ontologia do ato, diria Agamben, vence a da potência. Os desafios a interpretações diferentes passam, ao que parece, pelo entrecruzamento de pelo menos três tradições. Vejamos.
(1) A tradição mimético-fenomenológica. A noção de arte como mímese, dominante desde Platão, resiste aos ataques de todas as vanguardas modernistas e até à denúncia benjaminiana do caráter anestético do cinema. Ela leva o leitor a supor na imagem a presença de um significado, um conteúdo verdadeiro, uma realidade. Na modernidade, como aponta Foucault, ela constitui duas tendências: uma que separa, como que disciplinando, o legível do visível, outra que faz a semelhança corresponder à afirmação. A partir do fim do século 19 a mesma tradição adere aos procedimentos básicos da fenomenologia husserliana valorizando na semelhança sua intencionalidade.
(2) A tradição da modernidade pedagógica marxista, que passa pela domesticação do projeto brechtiano, via realismo (ou seja, também via mímese), e que coloca a arte a serviço de projetos políticos idealizados por determinados grupos com base numa concepção igualmente arbitrária de realidade. A arte tem um papel, uma função na esquerda, é um instrumento de ensino, um meio de transformação dessa realidade, o que lhe define um paradigma de valoração.
(3) No caso particular da crítica brasileira, a tradição da inferioridade, da autocomiseração e da descrença, aquela que há pelo menos 200 anos vem afetando os processos de constituição de imagens de identidade nacional com a pressuposição de que no Brasil tudo tende a dar errado, a ser pior do que num tal primeiro mundo. Aqui o "orgulho de ser brasileiro" aparece como resposta a um insistente complexo de inferioridade.
A obediência a essas tradições leva muitos comentadores a ver em Glauber o que Glauber supostamente mostrou ou quis mostrar, algo que consensualmente esteja no filme e que deve se referir obrigatoriamente à possibilidade de uma reversão heróica do pesadelo colonial capitalista através de sua obra. (Supõe-se aqui, em geral, que o Brasil precisa de pelo menos um herói anticolonialista e anticapitalista.) A incoerência de Glauber muitas vezes é creditada a priori na conta de sua genialidade e de seu heroísmo — ou seja, de sua coerência. A sede de totalização do crítico é projetada sobre o cineasta. É difícil sair do circuito laudatório. Transformada em objeto de culto, a lava do "vulcão" esfria, torna-se Rocha. A crítica tradicional participa, em geral, do mesmo sistema de valores observável em declarações de Glauber que perseguem a revolução; ela constrói um personagem heróico e obedece a ele. Forja um herói e o transforma em totem.
As abordagens assistemáticas, que pretendem devolver potência a Glauber, com sua base spinozana e/ou nietzscheana, abertas à ambivalência, ao indizível, ao inaudito, resistem a uma visão de mundo de base cartesiana e encontram poucos interlocutores, daí, talvez, o caráter subterrâneo. Pretendo aqui contribuir com esse subterrâneo. Quero exemplificar um possível caminho de leitura assistemática de fragmentos de Glauber, valorizando uma radicalidade poética que se mostra em brilhos esparsos, mas que se apaga quando se tenta focar um todo.
Ressentimento sociológico
O esforço de sistematização em torno de Glauber (de apagamento da potência em ato final) é de fato recorrente, por vezes rejeitando abertamente teorias que sustentam a busca pelo retorno da potência. Francisco Elinaldo Teixeira, por exemplo, tenta salvar o totem Glauber daquilo que lhe poderia parecer um perigoso abismo nietzscheano. Ele reconhece no Imagem-tempo um "apreço" de Deleuze por Glauber e reclama (e exclama) que "essa leitura deleuzeana dos mitos glauberianos do Brasil permanece praticamente intocada!", o que segundo ele pode ter tido como motivos, ou pretextos, uma dificuldade de leitura própria ao pensamento de Deleuze e o corporativismo de críticos frente à intromissão ousada de um filósofo no território do cinema. Teixeira então resenha com propriedade e segurança a argumentação de Deleuze e destrincha o que chama de "uma analítica deleuzeana do 'terceiro mundo'". Por fim, rejeita Deleuze.
A rejeição corresponde a uma defesa da etnologia: "como o campo etnológico, enquanto procedimento do pensamento mas também pela 'política' que enseja, é aqui alvo das imprecações do filósofo!". Essa nova reclamação exclamativa se faz em nome da revisão pela qual a etnologia passou no pós-guerra, "a partir da reviravolta do estruturalismo", tornando o campo bipartido entre "etnologia indígena e antropologia de sociedades complexas. Complexidade certamente problemática, mas por isso mesmo muito mais nuançada em seus desdobramentos, aspecto que o móvel da imprecação no filósofo [Deleuze] passa por cima [sic]" (a falha de regência verbal parece apontar para um reconhecimento contido do "passar por cima" como um "atravessar").
Deleuze, portanto, ao desdenhar as etnologias como um todo, teria ignorado toda uma autocrítica do campo, todo um trabalho de superação do discurso colonialista clássico, depois do qual estaria garantido o necessário questionamento profundo da própria cultura do etnólogo. Tornam-se gritantes em Teixeira, em suas exclamações, seu olhar ligado às tradições resumidas acima e sua predisposição contra um questionamento da própria epistemologia que possibilita qualquer etnologia. Sua rejeição a Deleuze revela-se prévia. Suas exclamações, estacas paralelas, tornam-se cerca de proteção, prevenção contra um vazio epistemológico.
Metodologicamente, Teixeira pretende ver em Deleuze uma inconsistência decisiva: "como justificar as imprecações lançadas ao etnólogo num momento, para em outro tomar o etno-sociológico como informante-intercessor de uma visão do Brasil?". É que Deleuze menciona a visão etno-sociológica de Roberto Schwarz (em Les temps modernes, n. 288, julho de 1970) ao buscar uma caracterização do que ele chama de "cinema político moderno", aquele que apagaria as fronteiras entre o público e o privado: "Há antes, como no cinema da América do Sul, uma justaposição ou uma compenetração do velho e do novo que 'compõe um absurdo', toma 'a forma da aberração'. O que substitui a correlação do político e do privado é a coexistência até o absurdo, de etapas sociais bem diferentes".
Obviamente, o uso, por um pensador, da visão de outro, sobre qualquer coisa, não implica na adoção do olhar do outro, de sua epistemologia: Deleuze sugere que a partir de uma visão do absurdo (apontada por Schwarz, mas que não lhe é exclusiva) construiu-se (não só com Glauber) "o maior cinema de 'agitação' que se fez um dia". E imediatamente acrescenta: "a agitação não decorre mais de uma tomada de consciência, mas consiste em fazer tudo entrar em transe, o povo e seus senhores, e a própria câmera, em levar tudo à aberração, tanto para pôr em contato as violências quanto para fazer o negócio privado entrar no político, e o político no privado (Terra em transe)". Ou seja, Deleuze de fato "aprecia" o cinema de Glauber, mas como algo que acontece no lado oposto da lamúria, como um ato fabulador, que consegue "arrancar do 'invivível' (...) uma produção de enunciados coletivos capazes de elevar a miséria a uma estranha positividade, a invenção de um povo"; uma invenção que se faz, também, a partir da colocação em transe de partes que "não são exatamente reais".
Nada mais obviamente distante de Schwarz, cuja marca, conforme explicita Renata Telles, é justamente a insistente rejeição, à lata de lixo da história, da própria contradição diagnosticada. "O que todos os itens dessa lata de lixo [de Schwarz] têm em comum é a convivência dos opostos, a proximidade do distante e a duplicidade temporal que tornam possível a história". Schwarz exorciza aquilo que constitui a própria diferença que Deleuze aprecia em Glauber e outros cineastas dessa "agitação": "a superfície em que se fixa o improvável, a ficção como projeção, potência da imaginação, a estrutura lacunar que se abre para o possível, a diferença entre o modelo e a cópia, a discrepância entre potência e ato".
Ver contradição no uso de termos de teóricos de linha contrária é, pelo menos neste caso, clara prevenção. Ainda mais quando se considera historicamente o trabalho de Deleuze. É justamente no misto de oposição a olhares tradicionais e adoção modificada de terminologias próprias a esses olhares que Deleuze torna possível o desafio à tradição (à la Glauber). A teoria do cinema de Deleuze tem por alicerces a Matière et mémoire de Bergson e a semiótica de Peirce, mas Deleuze busca nesses autores mais conceitos operativos do que pressupostos epistemológicos. A classificação dos signos em Peirce fornece a Deleuze uma estrutura para uma classificação de imagens. As noções bergsonianas de todo aberto e de durée, por exemplo, que por si sós já desafiavam o dualismo cartesiano, são retrabalhadas por Deleuze na direção de uma concepção de cinema que dê conta da recusa radical do mimetismo. Em Deleuze, cinema é acontecimento, zona de indistinção entre razão e corpo; a imagem é a história, ela mesma, feita já no tempo retrabalhado, não aristotélico; imagem, portanto, não é uma representação, não é um abstrato em oposição a um real concreto. A história, em Deleuze, se pretende, como a imagem, aberta à vida. Como indica Rancière, em Deleuze cinema não é o nome de uma arte, é o nome do mundo, e a teoria do cinema é uma história natural. E é no retard entre a imagem e seu duplo (a imagem, a repetição na diferença) que aparece sua potência.
A própria formalidade distante com que Teixeira elogia, em nota, As palavras e as coisas, outro emblema dos ataques nietzscheanos à tradição cartesiana, ajuda a atestar sua prevenção contra esses ataques. Teixeira vê ali "o magistral livro de Michel Foucault", e reitera essa adjetivação, freqüentemente atribuída pela tradição a Glauber, ao tratar a seqüência da entrevista a Carlos Castello Branco em A idade da terra como "composição magistral, visual e sonora, em diagonal". A abstrata e arbitrária atribuição da magistralidade a dois nomes epistemologicamente contrários ao crítico, diria Sloterdijk, é um claro auto-elogio (falo nisso mais adiante), ao mesmo tempo em que formaliza a atitude de categorização. Reconhecimento do caráter de mestre a ser seguido (magister), mas ao mesmo tempo formalização, resfriamento, institucionalização, a magistralidade torna-se a cerca do zoológico, que protege o visitante fascinado pela fera – ou o vidro do serpentário, que possibilita uma hipnose segura. A atitude sistematizadora, então, fica franqueada ao sociólogo Teixeira, que passa, no capítulo seguinte, a buscar mais uma totalização de A idade da terra, absolutamente conforme à tradição mimético-fenomenológica, considerando equivalências, intenções, mensagens, estruturas, conteúdos.
Um filme menor
Enquanto isso, o esforço de restituição de potência a Glauber via Deleuze continua subterrâneo. Considere-se, por exemplo, a absoluta discrição, quando se fala na fortuna crítica de Glauber, de um texto de Bernardo Carvalho, que saiu na edição 43 da Filme cultura (janeiro-abril de 1984). O artigo chama-se "Filme-filme" e comenta Câncer, de Glauber Rocha. De início, Carvalho discorda de Glauber, afirmando que o filme não discute a violência, nem coisa alguma, de maneira séria. Pelo contrário. Produção intersticial, filmado pouco antes das filmagens do filme "maior", O dragão da maldade contra o santo guerreiro, Câncer seria um filme "menor". Carvalho, então, aproveita, um ano antes do lançamento de Imagem-tempo, a possibilidade de releitura do "menor" que Deleuze apontou em Kafka (1975) e que usaria também na leitura do cinema do dito terceiro mundo.
Carvalho sugere que Glauber não escapava do senso comum segundo o qual o termo "menor" é pejorativo: "em toda sua obra vê-se uma busca obsessiva pelo 'maior', por uma identidade nacional, por dar conta do todo". No entanto, afirma Carvalho, "Câncer é obra menor e, por isso mesmo, deliciosa". O filme seria "um monstro que escapa do autor, o criador, para ganhar vida própria e independente; é a obra negando o autor como sujeito, adquirindo sua independência como objeto". A partir de um dos planos-seqüências que analisa, Carvalho propõe:
Em off Glauber tenta inutilmente alertar-nos sobre o imperialismo e as relações de poder que estariam por trás daquelas imagens. Digo inutilmente porque, nesse momento, sua voz adquire um tom ligeiramente ridículo, por ter se tornado óbvio o seu discurso. (...) Tudo se dá como se Glauber tivesse caído numa armadilha. Foi brincar com a forma pura, com a experiência formal radicalizada, onde um discurso evidente e didático não cabe mais, e, no entanto, tenta impor suas idéias; tenta, descobrindo que a obra lhe escapa, impor-lhe a significação do autor. Mas já é tarde. O anjo nasceu.
Essa discrepância entre imagem e fala leva a outra discordância produtiva: Carvalho discorda da associação que Glauber faz de si mesmo com Jean-Marie Straub (eu também). Curiosamente, porém, o que Carvalho descreve em Câncer tem um paralelo com Straub, pelo menos a partir do olhar de Deleuze. Straub, junto com Syberberg e Duras, torna-se o emblema para o que Deleuze define como sendo a produção mesma de uma idéia em cinema, ou seja, "assegurar a disjunção entre ver e falar, entre o visual e o sonoro". Deleuze argumenta que essa é uma idéia especificamente cinematográfica, uma idéia tida por grandes cineastas. E detalha: "aquilo de que nos falam está sob aquilo que nos fazem ver. (...) a palavra se ergue no ar, ao mesmo tempo em que a terra que vemos afunda-se cada vez mais. Ou ainda: ao mesmo tempo que essa palavra se ergue no ar, aquilo de que ela nos falava afunda-se na terra". Deleuze diz ainda, como que para acalmar historicistas, que a história está toda sob essa terra:
O que vemos não é mais do que a terra deserta, mas essa terra deserta é como grávida daquilo que ela tem debaixo (...) justamente aquilo de que nos fala a voz. (...) E, se a voz nos fala de cadáveres, de toda a linhagem de cadáveres que vem tomar assento sob a terra, nesse momento, o menor frêmito de vento sobre a terra deserta, sobre o espaço vazio que vocês têm sob os olhos, o menor sulco nessa terra adquire todo o seu sentido.
O título do artigo de Carvalho, "Filme-filme", alude também a um sentido de superfície pretendido em geral pelos Straub, algo como a opacidade do significante, impedindo a passagem para um suposto significado verdadeiro. A leitura de Deleuze leva adiante o efeito dessa superfície, fazendo proliferar seus sentidos possíveis, ou seja, sua potência, justamente naquela gravidez da terra, naquela "alegria fantasmagórica" que Carvalho também reconhece em Câncer.
"Filme-filme", além disso, parece aumentar o efeito de ressonância das palavras iniciais do artigo, seguidas de um ponto: "Alegria, alegria." Esse início, à Caetano, não deixa de fazer ecoar, na marginalidade do Câncer, o que Derrida chama de "afirmação nietzscheana, afirmação alegre do jogo do mundo e da inocência do devir, a afirmação de um mundo de signos sem erro, sem verdade, sem origem, oferecido a uma interpretação ativa". Essa alegria se afirma no humor de Câncer, segundo Bernardo Carvalho. "Da mesma maneira como agem as imagens abafando o discurso verbal de Glauber, os atores, divertindo-se com o ato de representar, tratam de abafar o lado sério do filme. (...) o humor percorre o filme de ponta a ponta. (...) Até a câmera e a direção chegam a tratar, em certos pontos, a miséria com o mesmo humor com que tratam os clichês de um diálogo de classe média".
Tanto o humor quanto a discrepância entre imagem e som observados por Bernardo Carvalho em Câncer podem ser encontrados em algumas seqüências de outros filmes de Glauber, notadamente em A idade da terra. Neste, porém, Carvalho faz uma concessão, dizendo que aqui "o discurso off de Glauber (...) toma as rédeas significantes do filme, querendo abarcar uma totalidade". Discordo. Creio ser possível sustentar, por exemplo, que em A idade da terra, na seqüência, por exemplo, de Brahms com os operários na construção em Brasília, ocorre o mesmo que Carvalho percebe em Câncer: a voz do cineasta "adquire um tom ligeiramente ridículo, por ter se tornado óbvio o seu discurso" sobre o mundo rico e o mundo pobre no final do século 20. A discordância da voz de Carvalho, portanto, em relação a boa parte da crítica, pode valer para muito além do alegre Câncer de Glauber, principalmente a partir da definição que Deleuze elabora de "idéia em cinema".
Esse potencial de cruzamento de Glauber com Nietzsche, via Deleuze, rejeitado por Teixeira, e ainda mal aproveitado, é reforçado por Ivana Bentes ao ler os dois manifestos de Glauber, "Eztetyka da fome" (1965) e "Eztetyka do sonho" (1971), em que, segundo ela, "Glauber vai da fome ao delírio do faminto, do realismo ao surrealismo, fazendo da brutalidade e do onírico a base de um novo pensamento". É essa fome de um novo pensamento, e não de magistralidade ou coerência, que se torna, a meu ver, urgente para a crítica de Glauber em geral. Com Deleuze, Bentes reforça a visão, em Glauber, de um cinema que passa por fora das condições de possibilidade de matematização do mundo.
Fazer entrar em Transe ou em crise é uma das características do pensamento e do cinema de Glauber. O transe é transição, passagem, devir e possessão. Para entrar em crise ou em transe é preciso se deixar atravessar, possuir, por um outro. Glauber faz do transe uma forma de experimentação e conhecimento. Entrar em transe é entrar em fase com um objeto ou situação, é conhecer de dentro. (...) as imagens não representam, entram em "transe" ou "fase" com os personagens, cenários, objetos, com o espectador (grifos da autora).
Ao aplicar essa leitura a Barravento, Bentes se afasta da visão de Ismail Xavier e de um certo Glauber (aquele anterior e contrário ao da "Eztetyka da fome"), que queriam ver na estrutura do filme uma oposição marxista organizada entre misticismo trágico e tomada de consciência política. Ali, diz Bentes, "os mitos surgem ao mesmo tempo como tradição a ser superada e fator de resistência cultural". É ao substituir o "ou" do pensamento institucional pelo "e" do transe, pelo "ao mesmo tempo", que ela se afasta nietzscheanamente (via Deleuze) das leituras tradicionais. É na leitura deleuzeana de Nietzsche que Bentes encontra, por exemplo, o sentido positivo da dor que ressoa nas "Eztetykas" de Glauber, o sentido da vida ativa. Ela potencializa também, no pensamento e no cinema de Glauber, a necessidade, apontada por Deleuze, de uma crença imanente, uma crença nova (uma nova Glaube) "neste mundo aqui, do qual os idiotas fazem parte": ela vê em Glauber o amor fati nietzscheano. Ou seja, na convivência de contrários exorcizada por Schwarz e Teixeira, Bentes e Carvalho encontram, ao ler Glauber, ecos do eterno retorno potencializados nos cristais de tempo construídos por Deleuze. Mais do que a cosmética da fome que denunciou em debates recentes, Bentes aqui parece querer a superação de uma mimética da fome – superação que eu defendo.
Nada disso implica, é óbvio, na totemização de Deleuze. Em seu La fable cinématographique, lançado em 2001 (ausente porém da bibliografia de Teixeira, cujo livro saiu dois anos depois), Jacques Rancière opõe-se frontalmente à divisão deleuzeana entre cinema clássico (Imagem-movimento) e cinema moderno (Imagem-tempo). Argumenta que, paradoxalmente, dada a complexidade, ou a sofisticação, com que Deleuze conceitua imagem e montagem – a primeira como o próprio mundo, "o conjunto daquilo que aparece", ou "daquilo que é", a segunda como aquilo que devolve às coisas as propriedades que elas já tinham, ou seja, que lhes restitui potência como acontecimento – não há ruptura de fato, nas próprias leituras de Deleuze, entre os dois momentos. Não há diferença de natureza entre imagens-movimento e imagens-tempo. As duas categorias "ne sont aucunement deux types d'images opposés, correspondant à deux âges du cinéma, mais deux points de vue sur l'image".
Assim, Rancière propõe uma espécie de correção de Deleuze, no sentido mesmo de intensificar o que em Deleuze já havia de metodologicamente radical em termos de teoria de cinema – atitude, portanto, contrária à simples rejeição epistemológica do todo, comum, aliás, a vários comentadores da tradição anglo-americana, conforme apontado por Stam. Rancière chega a livrar Deleuze até de um certo "deleuzeanismo" que parecia já domesticá-lo através de leituras superficiais: "Le destin du cinéma – et de la pensée – n'est pas, en effet, de se perdre, selon quelque 'dionysisme' simplificateur, dans l'infinie entre-expressivité des images-matière-lumière. Il est de la rejoindre dans l'ordre de sa propre infinité".
Na verdade, Rancière aplica a Deleuze sua proposta de que a própria divisão da arte, em geral, entre clássica e moderna é redutora e unilateral, com prevalência do moderno. Prefere pensar na oposição entre um "regime representativo" e um "regime estético". Neste, ao contrário do sonho de Schwarz comentado acima, "La puissance de l'œuvre désormais s'identifie à une identité des contraires: identité de l'actif et du passif, de la pensé et de la non-pensée, de l'intentionnel et de l'inintentionnel". É nessa identidade dos contrários que reside a oposição entre o "regime estético" e a tradição hegeliana. Nesta, tal identidade era "la puissance apollinienne de l'idée qui sort d'elle-même pour se faire la lumière du tableau ou le sourire du dieu de pierre. De Nietzsche à Deleuze, elle est devenue à l'inverse la puissance dionysiaque par laquelle la pensée abdique les attributs de la volonté, se perd dans la pierre, la couleur ou la langue et égale sa manifestation active au chaos des choses".
O seqüestro da juventude na tradição marxista
Rancière, enfim, assim como Agamben e Sloterdijk, chega para mostrar que as possibilidades do olhar nietzscheano sobre Glauber não se restringem, obviamente, a Deleuze. Exemplo disso aparece em Raúl Antelo, que a partir desse olhar evidenciou o trabalho reducionista e normativo da tradição – mais especificamente das duas primeiras tradições esboçadas acima, a mimético-fenomenológica e a marxista pedagógica.
Al iluminar la racionalización económica y política de lo social, la mirada marxiana nos propuso superar tanto las fronteras económicas a través de la abolición de la propiedad privada de los medios de producción, como las fronteras políticas, por medio del internacionalismo revolucionario. El foco de Nietzsche, entre tanto, priorizó iluminar la servidumbre del trabajo, última rémora de un ser cautivo por atávico temor a la muerte. Afirmó la vida como juego y la definió como chance de acceder a una soberanía que, aún no siendo universal, permitía distribuir afectos y armar enlaces comunitarios electivos e efectivos.
Ao opor precisamente esse viés marxista de trabalho e servidão à possibilidade de leitura através da soberania (em Bataille) e do jogo (em Nietzsche), Antelo abre uma ampla possibilidade de releitura da fortuna crítica de Glauber. Ele dá exemplo de como o apego de críticos a um compromisso tácito com a tradição marxista – muitas vezes, acrescento eu, por falta de conhecimento ou disposição de mudança – pode apagar valores que poderiam constituir um olhar crítico de fato, revolver sentidos, chapotear la historia, diria Cortázar.
Mais precisamente, Antelo analisa a forma como Angel Rama leu Deus e o diabo na terra do sol. Foi, relata ele, em 1971, na Quinta Mostra do Cinema Latinoamericano de Gênova. Sentado ao lado de Antonio Candido, que lhe teria servido de intérprete do Brasil. Rama atribui à pouca idade de Glauber ao dirigir o filme (23, 24 anos) boa parte dos "errores de una mimetización demasiado evidente sobre las grandes obras del cine extranjero, incluyendo Pudovkin, Ensenstein y los films japoneses de Kurosawa". Percebe "acertos", por exemplo, no virtuosismo da câmera e na emoção da seqüência final, como elementos "que deben considerarse, vista la juventud del realizador, para compensar los errores del montaje y de la técnica lenta y barroca de la elaboración".
Antelo aponta em primeiro lugar a identificação de Rama ao modelo de estética revolucionária pedagógica, de um modernismo letrado, de um Brecht banalizado, muito mais do que ao modelo de Eisenstein, que segundo Rancière teria instaurado um novo regime de sensibilidade: em vez de pretender ensinar a ver, de colocar a arte a serviço do comunismo, Eisenstein teria submetido o comunismo "a la prueba de un arte joven". Antelo vê em Rama, ao contrário, o apego a uma definição programática da modernidade pedagógica que veria a arte como "ofício vedado a los jóvenes". Estes jogam, brincam com o anestético, com a reprodutibilidade técnica, ou, no caso de Glauber, com "el deseo de una lengua adámica transformada en un archivo de semejanzas, una máquina narrativa funcionando como arabesco gozoso y proliferante (...) una sintaxis trabada, entrecortada, fragmentaria y explosiva que suena, a primera vista, como un vaciamiento de la lengua nacional, como una lengua extranjera". Trata-se de uma manifestação da cultura jovem "contra las estructuras letradas y dogmáticas del Partido". Em suma, enquanto Rama defende a economia restrita e a mímesis, "Juego y soberanía pagan así el alto precio de uma racionalización eficiente de las fuerzas productivas de modo tal que el valor cultural de lo joven es uno de los más evidentemente secuestrados en sus analises".
O evangelho de Glauber
É na direção da restituição de potência que busco novas visões do evento Glauber, partindo da briga entre um Glauber e outro. Há como associar Glauber, por exemplo, a uma figura singular de evangelista, não no sentido misológico judaico-cristão, explícito também em Glauber, mas no sentido que Sloterdijk faz ver em Zaratustra. A partir de uma carta de Nietzsche a seu editor, dizendo ser Zaratustra um "quinto evangelho", Sloterdijk traça essa diferença entre dois sentidos de evangelho. Faz ver que a partir de Humano, demasiado humano (1878) é cada vez mais clara a agressividade de Nietzsche contra o ressentimento que domina "tudo o que até agora foi chamado de religião, cultura e moral". Nietzsche demonstra que "toda a fala cunhada pela metafísica gravita em torno de um centro misológico". Toda moral é vingança. Para Nietzsche, os quatro evangelhos cristãos nada mais são, igualmente, que um "triunfo da misologia", ou "um manual para falar do mundo em benefício dos preguiçosos e vingativos".
Nietzsche, ao contrário, se coloca como um "alegre mensageiro", um evangelista de fato, oposto a tudo o que já havia sido até então lido como "evangelho", por ser a afirmação radical da totalidade da vida (seja lá o que isso for). Um novo evangelho da criatividade, para todos e para ninguém, já que ainda não existem leitores à altura – não existe povo. É um trabalho de desencantamento radical, profundo e depressivo com o mundo e com o homem tais como são, mas também um trabalho que volta os olhos corajosamente para aquela vida ativa, para a superação do ressentimento e dessa restritividade chamada homem.
Na passagem de um tipo de evangelho a outro, Nietzsche investe no auto-elogio. Para começar, toda fala é auto-elogiosa. "O falar é uma bela loucura; através dele o homem dança sobre todas as coisas", dizia Zaratustra. Em toda a tradição misológica, porém, o auto-elogio é reprimido, é um tabu que humilha o si-mesmo. O discurso elogioso é hipocritamente dirigido ao outro, como se com isso o falante não estivesse de quebra elogiando a si mesmo. Nietzsche rompe os diques das energias auto-elogiosas, dizendo-se um psicólogo sem igual, que carrega o destino da humanidade, tendo dado a ela Zaratustra, "o maior presente que lhe foi outorgado até hoje". Na verdade, "O autor de Zaratustra quer retomar, a partir da base, a força laudatória da linguagem, a fim de conferir-lhe nova abertura e de libertá-la dos bloqueios que lhe tinham sido impingidos pelo ressentimento codificado metafisicamente".
Ao assumir despudoradamente o ridículo do auto-elogio extremado, Nietzsche revela a natureza mesma da autoria: com ele, "viola-se a separação cultural entre a boa nova e a autocomemoração – e, com isso, subitamente se desvela o que um autor moderno faz: colocar o texto para si mesmo". Não é à toa que os auto-elogios mais desabridos de Nietzsche estão em Ecce homo, onde ele explicitamente se assume como escritura. A obra passa a louvar o mestre, que nela se dilui. O escândalo de sua "dissolução total em composições luminosas" compõe "o contra-escândalo, contraposto ao escândalo da cruz, proclamado por Paulo, o qual bloqueara a ligação entre o si mesmo e o louvor". O louvar-se a si mesmo é "a única forma de falar autêntica que ainda merece o predicado 'evangélico'".
Passo agora a examinar o que há de evangélico em Glauber. No sentido tradicional, misológico, a resposta é óbvia. Glauber praticamente nada tem a ver com Nietzsche, enquanto Glauber, ou seja, enquanto personagem que crê radicalmente em utopias e projetos demasiadamente humanos. Ao contrário do que sugere Ivana Bentes em relação às "Eztetykas", a crença, a Glaube, desse Glauber mais visível, que se assume como revolucionário marxista, não é no mundo que está aí, não é imanente. Sua obra e sua fala estão ricamente povoadas de anjos, profetas, deuses, diabos e discursos em defesa do oprimido. Seu projeto estético se alinha com o teatro didático domesticado de Brecht mencionado acima. Particularmente em A idade da terra, esse Glauber é fartamente reiterado. Seus quatro cristos são francamente bem intencionados. No sentido da parábola, eles são um triunfo da misologia, reiterado pela voz em off, meio ridícula, de Glauber, que afirma sua fé no universalismo da ação de "um cristo que não está morto mas está vivo, espalhando amor e criatividade".
No sentido nietzscheano, porém, trabalhado por Sloterdijk, os fragmentos evangélicos do evento Glauber, fragmentos subterrâneos, estes sim, tendem à imanência de que fala Bentes. Falamos aqui de eu-angel(i/o). No latim, Angel(i/o), resulta em mensageiro, emissário; no grego, ággelos é aquele "que traz uma notícia", ou é a própria notícia. Já eu, no grego, como advérbio, dá bem, nobremente, bondosamente, e chega ao português como prefixo, passando pelo latim – ver eucalipto (bem coberto), eufonia (belo som). Acontece que a língua de Glauber é a única língua européia com passado imperial em que esse prefixo coincide com o pronome da primeira do singular, levando a uma estranha coincidência entre evangelho e auto-elogio: aqui o pronome eu remete ao adjetivo grego eús, equivalente a bom, bravo, nobre. Evangelho em português remete portanto a Eu-Boa-Notícia. A tagarelice desse Glauber imanente pode ser ouvida como A boa notícia sou eu.
De fato, desde que começou a publicar em jornais da Bahia, Glauber estava constantemente a se mostrar, a se anunciar, a falar e se elogiar, cada vez mais desbragadamente. Antes mesmo disso. Aos 13 anos escreve ao tio dizendo ter lido o Zaratustra e comenta: "Nunca serei 'superior' como Nietzsche (...), isto não! Podes ficar certo que procurarei seguir minha própria filosofia". Independente do bom-mocismo ingênuo e contraditório da promessa, a idade do missivista compõe o auto-elogio.
Esse ímpeto de superar a mediocridade, incluindo nela qualquer filósofo canônico, essa recusa a se ver em rede, parece acompanhar a construção desse personagem até o fim, numa investida que mescla o infantil e o radical – lo joven. Glauber se lança cada vez mais habilmente ao discurso em que se mostra incompreendido, diferente, superior. Em 1978, ainda na celeuma de seu apoio a Geisel, ele reclama da falta de respeito de intelectuais que não o quiseram enfrentar no campo filosófico: "Eles não podem me esculhambar como cineasta porque os meus filmes são bons, quer dizer, resistem a mil revisões". No ano seguinte, escreve a Celso Amorim, dizendo: "Claro que não há lugar para mim no cinema brasileiro". Por fim, após a decepção em Veneza com A idade da terra, ele diz:
Eu sou um dos melhores críticos de cinema do mundo. De forma que a opinião da crítica sobre meus filmes para mim não significa nada. Tenho uma visão inclusive aristocrática, sofisticada. Resolvi assumir isso. Porque a mediocridade me deixa horrorizado. Não tenho mais tempo para conviver com a mediocridade. Prefiro a solidão à convivência com a mediocridade (...)
Briguei com mais de duzentas pessoas em Veneza e isso me libertou da mediocridade. Dou um adeus final à picaretagem cultural e ao supermercado das ilusões perdidas. Estou ao lado dos poetas. Estamos em pleno ridículo cultural. Aproveito para dar um adeus definitivo à vida cultural brasileira. Vocês não me verão mais. Nunca.
A profundidade da decepção com o júri indica a convicção da superioridade. A idade da terra era para esse Glauber "o filme mais moderno e revolucionário dos anos 70 no mundo", "um filme que joga no futuro do Brasil, por meio de uma arte nova, como se fosse Villa-Lobos, Portinari, Di Cavalcanti ou Picasso", "uma pintura do futuro". Além disso, A idade da terra era ele mesmo, o próprio personagem, o próprio evangelista, sua transformação em filme, sua dissolução em composições sonoro-luminosas, uma síntese de sua ascensão ao Eu-Boa-Nova que salvaria o homem brasileiro da mediocridade. A obra louva o mestre, tornando-se a única afirmação da magistralidade de Glauber capaz de romper com a tradição. Uma anunciação extrema, obra que invoca o corpo e a voz do verdadeiro messias, dirigindo, conduzindo o destino com a certeza mágica da intuição de um porvir desconhecido e generoso.
A coragem quer ser a tônica do filme. A fala auto-elogiosa pode ser lida nos personagens centrais, como palavra soprada pelo próprio Glauber, em off (over?), aos atores, palavra aliás muitas vezes gritada. É marcante a insistência do grito do diretor chamando ao grito: "fala mais alto!". Um grito que, soberano sobre o tênue espaço diegético, acaba ganhando equivalência, fora e dentro dele, com "ouça-me mais claro!". Esse auto-elogio amplificado reverbera a extrema vontade de autoria de Glauber, ou seja, sua vontade de autocomemoração evangélica: "Na criação artística o maior empecilho é o medo. Os autores que criaram grandes obras na América Latina venceram o medo para não sucumbir ao terrorismo do complexo de inferioridade. Eu, inclusive, rompi este complexo no berro".
O auto-elogio pode ser lido também, é claro, no discurso meio improvisado, perto do fim do filme, que acompanha em off/over os movimentos do "cristo negro" de Antônio Pitanga. As contradições e hesitações daquela voz, junto com a longa duração do trecho (quase 15 minutos) revelam despudor em relação ao improviso, à tagarelice, à interferência no grito. O som daquela voz às vezes se mistura, sem escrúpulos de normatividade técnica, com a voz de Pitanga e também com a voz do diretor Glauber se dirigindo aos atores. A diluição de si em imagem ("este filme sou eu") é reiterada nesse duplo off: ambas as interferências violam o espaço diegético, e uma invade a outra. Glauber conduz e se deixa conduzir por si mesmo, confia em si mesmo, já que se louva como grande diretor. Faz cinema no sentido que Rancière, leitor/revisor de Deleuze, propõe. Cinema aqui é "l'art qui accomplit cette identité première de la pensée et de la non-pensée qui definit l'image moderne de l'art e de la pensée. Mais il est aussi l'art qui inverse le sens de cette identité pour réinstaurer le cerveau humain dans sa prétention à se faire le centre du monde et à mettre les choses à sa disposition".
A constante interferência da fala do diretor como auto-elogio resulta ainda numa esquizossemia que reforça o fim do homem coerente e oferece o si-mesmo como Boa Nova. A repetição dessa fala pelos personagens investe a voz forte de Glauber de um sentido de admiração: ele fala, sopra a fala, grita, e recebe dos atores – que assim se assemelham aos "modelos" bressonianos – um retorno na forma de fragmentos brilhantes. A voz aparece em Pitanga como a de um cineasta engajado na luta contra a opressão; em Danuza Leão, ao contrário, como voz da Zona Sul carioca desbundada, que não agüenta mais falar de terceiro mundo; em Jece Valadão como a de um eu telúrico e solidário; em Tarcísio Meira, como voz apolínea do comando militar; no Brahms de Maurício do Valle, ao contrário, como voz dionisíaca e debochada. Por fim, em Geraldo Del Rey, justamente no tal cristo revolucionário, aparece a voz hesitante do sujeito hamletiano em fade, com grande dificuldade de matar o usurpador do trono (Brahms) que satisfaz a "mãe". Além disso, em Del Rey aparece a voz da vontade sadiana, que da mesma forma não se cumpre, talvez barrada pela moral kantiana. A "mãe" Danuza, primeiro beija Del Rey e lhe reafirma o amor, reforçando a exigência do assassinato. Depois de um jogo sado-masoquista com Brahms, porém, ela se satisfaz, muda de lado (enquanto a câmera vira de cabeça para baixo) e debocha do suposto revolucionário, sentenciando ao jovem: "o poder não é você não, o poder é Brahms; os tiranos são os melhores de cama".
O que mais efetivamente anuncia a Boa Nova como si-mesmo, porém, no cineasta Glauber, parece ser a repetição e o corte. Agamben propõe esses dois elementos como os transcendentais da montagem, as condições de possibilidade do cinema. O que é filmado aparece de novo, e pode sempre ser repetido. A repetição, diz Agamben, "não é o retorno do idêntico", mas "o retorno como possibilidade daquilo que foi (...). Repetir uma coisa é torná-la novamente possível". A repetição, portanto, age como a memória, que "pode transformar o real em possível e o possível em real". Essa é, para Agamben, uma definição de cinema, "uma maneira de projetar a potência e a possibilidade na direção do que é impossível por definição, em direção ao passado". Por outro lado, o corte para Agamben é aquilo que torna o cinema mais próximo da poesia do que da prosa: corte não como pausa cronológica, mas como possibilidade de "hesitação prolongada entre a imagem e o sentido".
"Juntos", diz Agamben, "a repetição e o corte realizam a tarefa messiânica do cinema". Com eles, a imagem, enquanto tal, não se apaga naquilo que ela nos dá a ver. Ela persiste como algo que não tem imagem em si mesmo. No cinema, prop e Deleuze, a imagem-movimento é carregada da tensão dinâmica da história, que por sua vez é feita de imagens. Nessa noção de história, como mosaico de imagens tensas, que devolvem possibilidade (de salvação) ao passado, Agamben vê cada imagem como "uma pequena porta pela qual entra o Messias". Se em Deleuze fazer filmes é resistir, é escrever para um leitor que ainda não existe, Agamben lê essa resistência como des-criação do real, do que existe. O messias cineasta supera o fato.
Além de gritar, o Glauber messiânico revolve incessantemente a relação entre repetição e corte, mas dentro de seu próprio universo. Se Debord faz isso com imagens já prontas, tanto quanto o Godard das Histoire(s), o Eu-Angelista brasileiro faz isso em A idade da terra com suas próprias imagens. Além das alusões a seus próprios filmes, nesse último ele primeiro propõe imagens não totalmente novas e depois as repete insistentemente. Repete, porém, fazendo uso poético do corte, como cesura, como imprevisto, como susto. O passado que volta como possibilidade, ainda que constantemente ameaçado, é o próprio Glauber.
Em duas seqüências do filme, essa revolução (esse revolver) entre repetição e sentido adquire brilho singular. A primeira não tem corte, e precisamente por isso reanima as potencialidades da repetição. A repetição se basta sem o corte, faz o papel dele. Na mesa de bar ao ar livre, enquanto toma um chope com a companheira loura, o cristo militar de Tarcísio Meira fala um texto (de 4 orações) e em seguida o repete inteiro quatro vezes, mas sem cortes, a câmera parada. No plano seguinte, enquadramento diferente, ele começa a repetir ainda mais uma vez, até que sua voz vai sumindo, finalizando a seqüência. As pessoas da rua, atrás dele, o observam, a mulher o observa, com seu próprio chope, seu cigarro, sua maquiagem e seu grande leque de plumas. O nível do chope baixando nos copos, as reações das pessoas, a naturalidade teatral de Tarcísio Meira, todo esse reino da continuidade é usurpado pela repetição: a repetição é o corte onde Glauber evangelista aparece, mesmo sem fala.
Na outra seqüência a que me refiro, ao contrário, o corte é que suplanta, engana a repetição. Maurício do Valle, Tarcísio Meira e Ana Maria Magalhães (esta como Aurora Madalena) interagem mudando magicamente de locação: os cortes seriam, no dizer de Benjamin, chicotadas no olho. Vários planos e trechos de texto são repetidos, até que Brahms (Valle) começa a dizer "Na África e nas Américas Latinas existem movimentos nacionalistas". Inicia uma repetição dessa fala, mas incluindo a Ásia e já mudando o predicado para "nos ameaçam com independência". As repetições seguintes tornam-se absolutamente imprevisíveis, embaralhadas. A cada corte um pequeno trecho do texto é repetido, e mesmo em falas contínuas há cortes de imagem. O resultado remete a uma tesoura louca cortando e redistribuindo versos aleatoriamente numa página. A repetição se submete ao prazer do corte. Se a expressão tradicional depende do sumiço do meio enquanto tal, aqui a imagem trabalhada pela repetição e pelo corte, diria Agamben, torna-se ela mesma um meio, que não some.
Glauber disse uma vez: "Vou viver a fase da luz e depois morrer". Talvez, no entanto, a fase da luz desse profeta autoconstruído não tenha sido uma fase, mas um apanhado de brilhos esparsos. Atrapalhado entre instinto e instituição, entre Aurora e Madalena, Glauber investia contra si mesmo, um contra o outro, o misólogo e o evangelista, como suicidas recíprocos. Ele via seu próprio fantasma ao dizer: "Temo que no Brasil uma sistematização venha a destruir o impulso criador, sobretudo se a criação é inicialmente caótica e espontânea". Muito mais recentemente, Sloterdijk denuncia a transformação, pela tradição cartesiana, e dentro dela pelo nazismo, do evento Nietzsche em marca. Talvez essas leituras subterrâneas de Glauber possam reverter o processo no caso de Glauber e fazer valer os flashes evangelistas de seu evento, em função, diria Deleuze, de um povo que ainda não existe.



Sloterdijk, Peter. O quinto "evangelho" de Nietzsche. São Paulo: Tempo Brasileiro, 2003, p. 84-85.
Agamben, Giorgio. "O cinema de Guy Debord" (conferência em Genebra em novembro de 1995, publicada em Image et mémoire, Paris: Desclée de Brower, 2004). Tradução de Antônio Carlos Santos (texto fotocopiado).
Buckmorss, Susan. "Estética e anestética: o 'ensaio sobre a obra de arte' de Walter Benjamin reconsiderado. travessia, revista de literatura, n. 33. Florianópolis: Ufsc, ago-dez. 1996, p. 11-41.
Foucault, Michel. Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
Rancière, Jacques. "La folie Eisenstein". In: La fable cinematographique. Paris: Seuil, 2001, p. 40.
Ver minha tese de doutorado, War-Joy and the Pride of not Being Rich. Florianópolis: Ufsc, 2001.
É possível demonstrar a existência de duas séries opostas de pensamento se desenvolvendo paralelamente ao longo da modernidade. A primeira pode ser chamada de cartesiana, sustentando um pensamento científico, tecnológico e industrial, que não abre espaço para a ambivalência e exige, ao contrário, concepções com base em definições precisas e métodos analíticos. Envolve de Platão e Aristóteles a Husserl, passando por Kant e Hegel. A outra pode ser chamada de spinozana, feita de trabalhos que tentam lidar justamente com a ambivalência, abrindo espaço para a incoerência, a contradição e a impossibilidade de se corrigir ou dominar o mundo através da ciência e da tecnologia. Envolve de Heráclito a Nietzsche. A primeira série, que inclui a epistemologia tradicional, baseada no sujeito transcendental kantiano, torna possível a própria ciência, junto com a normatividade e a objetividade, a vida industrializada. A outra pode ser vista como um desafio ao conhecimento tradicional, cartesiano, racional, adotando proposições como a do "pensamento de terceiro tipo", em Spinoza, aquele que é ao mesmo tempo racional e intuitivo (Ética, parte 2, proposição 40, nota 2, e parte 4, apêndice 4). Para Spinoza, corpo e alma são meras partes da mesma coisa, de modo que a razão (alma) não tem como comandar, legislar o corpo – ou o mundo (Ética, parte 5, prefácio). Ao contrário do que ocorre na ética cartesiana, em Spinoza a Natureza, bem como "o mundo", nunca está errada, ninguém pode ser corrigido, assim como nenhum país (nenhum iraque).
Teixeira, Francisco Elinaldo. O terceiro olho: ensaios de cinema e vídeo. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 58.
Idem, p. 69.
Idem, p. 70.
Teixeira, p. 71.
Deleuze, Gilles. Imagem-tempo: cinema 2. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 260-1.
Idem, p. 261.
Idem, p. 265, grifos meus.
Telles, Renata. Roberto Schwarz vai ao cinema: imagem, tempo e política (tese de doutorado). Florianópolis: Ufsc, 2005, p. 181.
Idem.
Do mesmo modo o uso do conceito de ecceidade de John Duns Scotus na base de suas noções de "diferença e repetição", centrais em seu trabalho, não torna Deleuze um filósofo medieval.
Rancière, Jacques. "D'une image à l'autre: Deleuze et les âges du cinéma". In: La fable cinematographique. Paris: Seuil, 2001, p. 148.
Teixeira, op. cit., p. 70.
Idem, p. 85.
Carvalho, Bernardo. "Filme-filme". Filme cultura, n. 43 (jan-abr. 1984). Rio de Janeiro: Embrafilme, 1984, p. 105.
Idem, p. 106-7.
Deleuze, Gilles. "O ato de criação". In: Folha de São Paulo (Mais!). São Paulo, 27 de junho de 1999. p. 5.4-5.5.
Idem.
Derrida, Jacques. "A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas". In: ____. A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 248.
Carvalho, op. cit., p. 107.
Idem.
Bentes, Ivana. "Terra de fome e sonho: o paraíso material de Glauber Rocha". In: Ressonâncias do Brasil. Santillana del Mar: Fundación Santillana, 2002, p. 2. Versão eletrônica disponível em www.bocc.ubi.pt/pag/bentes-ivana-glauber-rocha.pdf.
Idem, p. 8.
Idem, grifo meu.
Idem, p. 7.
Idem, p. 10.
Rancière. "D'une image à l'autre", op. cit., p. 152.
Stam, Robert. Introdução à teoria do cinema. Tradução de Fernando Mascarello. Campinas: Papirus, 2003, p. 287. O próprio Stam acusa uma suposta falta de "aplicabilidade" da teoria de Deleuze (idem).
Rancière. "D'une image à l'autre", op. cit., p. 152.
Idem, p. 157.
Idem.
Antelo, Raúl. "Rama y la modernidad secuestrada" (para apresentação na reunião da Latin America Studies Association, Dallas, Texas, 27-29 de março de 2003, mimeo), p. 1.
Gundin, Antonio (pseudônimo de Angel Rama), "Los jóvenes testimonian la verdad". Marcha, n. 1244. Montevidéu, 19 de fevereiro de 1975, 2a. seção, p. 3-4. Citado por Antelo, op. cit., p. 2-3.
Rancière. "La folie Eisenstein". In: La fable cinematographique, op. cit., p. 40.
Antelo, op. cit., p. 3.
Idem, p. 6.
Idem, p. 8.
Idem, p. 9.
Idem, p. 1.
A leitura de Glauber a seguir encontra-se, com algumas modificações, em Cinemais: poesia, política, a tela e a terra em transe, n. 38 (jan-mar 2005), p. 149-159.
Sloterdijk, op. cit., p. 44.
Idem, p. 47.
Idem, p. 48-9.
Nietzsche, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p. 186. Sloterdijk, op. cit., p. 12-3.
Sloterdijk, op. cit., p. 63.
Idem, p. 66.
Idem, p. 69.
Idem, p. 71.
Gomes, João Carlos Teixeira. Glauber, esse vulcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 8, e Bentes, Ivana. Cartas ao mundo. São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 80.
Gomes, op. cit., p. 308.
Gomes, op. cit., p. 319; Bentes, op. cit., p. 653.
Gomes, op. cit., p. 332-3.
Gomes, op. cit., p. 342.
http://www.tempoglauber.com.br/glauber/Filmografia/idade.htm, dia 30/10/4.
http://www.tempoglauber.com.br/glauber/Filmografia/idade.htm, dia 30/10/4.
Rancière. "D'une image à l'autre", op. cit., p. 163.
V. Lacan, Jacques. Hamlet por Lacan. Campinas: Escuta, 1986. V. também, "Kant com Sade", in: Lacan, Jacques. Escritos. São Paulo: Zahar, 1998.
Agamben, op. cit..
Essa é, lembra Agamben, a definição de Valery para o cinema, análoga à de Hölderlin para a poesia ("hesitação prolongada entre o som e o sentido"). V. Agamben, op. cit..
O signo pode significar tudo, a não ser o fato de que ele está em vias de significar.
Deleuze, Gilles. Cinema: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Deleuze. "O ato de criação", op. cit..
Gomes, op. cit., p. 539.
Idem, p. 543.
Sloterdijk, op. cit., p. 84-85.

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