Para Bem Escrever Diálogos, Fernando Chiavassa

June 22, 2017 | Autor: Fernando Chiavassa | Categoria: Literatura brasileira, Literatura, Literatura Brasileira Contemporânea, Construção de Diálogos
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PARA BEM ESCREVER DIÁLOGOS Fernando Chiavassa

Se você procura melhorar seus diálogos, preste atenção nas instruções que descrevo abaixo, para que tudo possa dar certo. Sei que você, a estas alturas, começa a sofrer a agonia de quem tem pouquíssimo tempo, mas tenha calma, “devagar com o andor!” Não deixe para entregar seu trabalho no último momento: ele tem que amadurecer. Pare um pouco e reflita. Antes de finalizar teu texto, preste muita atenção ao mundo a seu redor. Em casa, no trabalho ou quando for às compras, ouça com muito mais atenção do que o normal as conversas que explodem a sua volta. Aliás, deixe o carro em casa. Aprenda Com a Vida Enquanto se desloca – de ônibus ou metrô –, veja, ouça e aprenda como as pessoas falam em seu natural e como dão vazão espontânea às suas necessidades cotidianas: perceba como são econômicas ao dizer tudo que precisam em poucos segundos, antes de se despedir. Veja com que cuidado encadeiam fatos para, somente depois, lançar suas questões numa conversa mais demorada. Se tiver a sorte de encontrar grupos de colegiais, guarde a vivacidade de seus diálogos relâmpagos e sintéticos – que força não? Após, imediatamente, vá ao mercado. Compre suas verduras e legumes; escolha suas carnes, suas bebidas e veja quanta energia se extrai de pequenos e inflamados diálogos, quanta brincadeira nas negociações e ofertas, quanta vida na ponta da língua. Antes de ir para outros destinos, pare num café e finja trabalhar em seu notebook (ou faça de conta que se perde na leitura de um jornal): mas ao contrário, fique ligado nas conversas das mesas próximas. Gaste um bom tempo nestes lugares e, com alguma sorte, poderá acompanhar personagens fabulosos contando histórias inacreditáveis: esposas aflitas e amigas adúlteras, solteirões convictos e casados arrependidos, idosos permissivos e velhos ranzinzas, professores e alunos, velhos e bons amigos, intelectuais. Personagens de todo tipo falam da vida e discutem o cenário político e assim por diante. Faça isso para perceber como, quando e porque se fala, em quais e tais situações: ora encadeando fatos convencendo, ora sintetizando para esclarecer ou até mesmo pedindo rápidas opiniões. Muitas vezes se protesta veementemente, discordando ou apenas permanecendo calado: sim por que o silêncio também fala e significa. Dá até para perceber através dos discursos, as diversas personalidades daqueles que preferem mandar diante dos que obedecem, guardando tonalidades, modulações e posturas vocais (preste atenção nos olhos, nas mãos, no peito, nos quadris, nos pés, o corpo também fala!). Saindo do café, vá para casa e deixe suas compras. Mas depois volte à rua (tire uns dias de folga)! Se tiver oportunidade vá a um local público, seja uma prefeitura ou um cartório. Junto ao balcão, permaneça ali quanto tempo conseguir, acompanhando os pedidos do público, observando como se dá o atendimento feito pelos funcionários. Muitas vezes, o cartorário, o escrivão ou mesmo o chefe aparece para dirimir conflitos. Você vai reparar o quanto a pessoas precisam definir muito bem o serviço solicitado, para ganhar tempo e conseguir o que precisam. Aproveite para perceber a diferença entre estes diálogos e aqueles espontâneos nas ruas e nos cafés. Se você puder ir ao Fórum e acompanhar um júri, poderá presenciar como as pessoas agem e reagem sob as mais diferentes condições de pressão psicológica: aprendemos muito assistindo como as partes se comportam uma vez acusadas e como seus advogados as dirigem; não há melhor lição do que testemunhar um réu acusado, tomado pela necessidade de defesa, inocente ou não. Vá à uma delegacia de polícia! O que quero dizer com tudo isso é que é preciso conhecer muito bem como falamos sob as mais diversas condições, pois a vida ensina e é isso que precisamos trazer para nossos textos, a vida e a experiência. A obra precisa da dor, do tédio, da ansiedade, tem que apresentar o medo e mesmo a alegria de viver. E quem deve passar isso são personagens cheios de vida e desejo e não o narrador, exatamente. Espero que você possa anotar: não deixe de fazer registros sejam manuscritos ou gravações: não deixe de guardar tudo, para retomar depois.

Aprenda com a Ficção Agora com tanta vida na cabeça, leia. Isso mesmo: leia. Leia e veja como os melhores e mais apaixonados diálogos foram criados: leia como escritor como fizeram grandes dramaturgos para convencer você a assinar o contrato de verossimilhança logo nas primeiras páginas dos primeiros atos. Os diálogos escritos para peças de teatro é que contam a história, salvo poucas e pequenas anotações que indicam situações do cenário, da história ou mesmo dos personagens. Procure dentre centenas de peças teatrais, aquelas com as quais você mais se identifica, as que apresentam as personagens que estarão vivendo os dilemas com os quais você realmente mais se importa. Isso faz diferença. Não vou elencar as peças, porque este caminho é unicamente seu, mas não deixe se ler alguns clássicos gregos, não se esqueça de ver Shakespeare, lembre-se de ler dramaturgos imperdíveis como Moliére, Goethe, Gogol, Gorky, Pirandello, Lorca, Cervantes, Ionesco, Wilde, Brecht, Beckett, Ibsen, Shaw, os americanos Tenesse Willians e Arthur Miller e ainda os brasileiros, Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna, Oduvaldo Vianna Filho, Boal, (e tantos outros) etc... Dentre estes dramaturgos, leia os que você encontrar ou vá a uma boa biblioteca: neste momento selecione alguns deles, não dá tempo de ver todos (veja um pouquinho de tudo e não esqueça de estudar a vida inteira). Preste atenção nas diferenças entre os trabalhos dos escritores que também são dramaturgos e as diferenças existentes em seus diálogos criados para ficção e para teatro. Depois ou em meio a tudo isso, assista a muitos filmes. Registre os diálogos mais tocantes, os mais bem transcritos: várias obras literárias foram adaptadas para o cinema e também para o teatro. Há um mundo à sua volta, todo ele fictício, mas tão bem ideado tão bem construído e composto que não raro eles parecem mais verdadeiros que os reais de nossas vidas. Enfim, depois de tudo isso, pegar uma obra literária mal composta também ensina muito: é só pegar nossos textos, ou de amigos – principalmente aqueles iniciais –, antes das correções. Está tudo ao seu alcance: é só por as mãos na massa. Aprenda com a Prática Agora que você já está mais convencida de que este plano dá muito certo, seguem alguns exercícios práticos com diálogos que você vai reconhecer como os tendo vivido na prática, através de suas andanças ou por meio do texto, do teatro ou do cinema. I. Ping-Pong Estabeleça como critério inicial escrever pequenos diálogos. Estas conversas podem seguir em quaisquer ritmos e tempos, desde que você tenha como padrão um jogo de pingpong. Isso mesmo. Toma lá, dá cá. Lembra dos colegiais? Isso. Diálogos curtos e rápidos proferidos entre apenas duas pessoas, nos quais as personagens reagem instintivamente e com prazer e muita vontade de opinar. Use apenas verbos que não precisam de complementos, assim como “Quer conversar?”, “Você tem fome?”, “Dormiu bem”, “Quando chegou?” À medida que estes diálogos possam ir te cansando, comece a encadear mais, usando verbos que pedem complemento. Depois, aumente os encadeamentos, introduzindo fatos, pedindo confirmação, mas este já é o passo seguinte: II Xadrez Em um jogo de xadrez, logo no início, os lances podem parecem simples, mas na verdade nunca são. Uma conversa que por analogia se associa ao xadrez se constitui em diálogos que gradativamente vão ganhando complexidade até se tornarem bastante densos, com largos enunciados e longas tratativas retóricas, a ponto de que se perdermos uma frase, podemos não entender mais nada. Mas há limites: um longo tratado pode se transformar em algo inverossímil e todas e quaisquer intenções didáticas e utilitárias parecerão fúteis. Nesses diálogos, introduza variações, com aquelas obtidas nos exercícios anteriores. Ao longo e mesmo no meio deste xadrez, jogue um ping-pong. Imagine em conversa densa, quando uma das personagens toca em algo indesejado e a outra se cala. Daí jogue um paredão que explico abaixo: tente fazê-la se pronunciar. Ao contrário, quando esta mesma personagem – antes

calada – se voltar para a outra, em seguida, como um furacão em uma torrente de acusações, faça com que ela pare: aí teremos um fogo cruzado. III. Paredão Você já treinou tênis sozinho num paredão? A situação a seguir é a mesma. Tente dialogar com uma personagem fechada, mesmo intratável que não quer falar. Procure todos os meios para convencê-la a falar. Há várias situações em que este conflito se desenrola. Seja num romance policial, quando o detetive tenta arguir um possível culpado, seja num júri onde o advogado tenta enredar uma testemunha, até mesmo em diálogo entre amantes que se traem, ou numa situação das mais corriqueiras quando a mãe tenta descobrir quem comeu meia torta de maça, ainda na janela a esfriar. Tente, com louvor, dialogar com o nada. Muitos monólogos começam assim. Há verdadeiras obras literárias em que o narrador simula estar conversando com alguém de quem não ouvimos uma palavra, mas assim entendemos, como “Chão em Chamas” de Juan Rulfo. IV. Mistura: Ping-Pong, Xadrez e Paredão. Aos poucos introduza uma terceira personagem nos diálogos e depois, gradativamente, aumente a complexidade para uma conversa com mais de três pessoas. Muita gente em cena leva a conversa para um mercado de peixe onde todo mundo fala, ninguém tem razão e não se sabe ao final quem disse o quê. Sei que você não vai desanimar querido amigo. Alguns exercícios podem trazer grandes ensinamentos, pois se aprendemos pelo exemplo, inicialmente reproduzindo a realidade, é fazendo que consolidamos o aprendizado; sobremaneira é errando e refazendo, na prática, que nos apropriamos de tudo aquilo que vimos através da vida prática e depois na teoria. Por fim, pegue todas as suas anotações e componha, traga para a ficção as experiências que você viveu na rua, no transporte, no mercado, na Prefeitura, nos Cartórios e no Fórum. Exercícios Proponho que você bem faça os seguintes exercícios a seguir. Interessante fazer todos eles, pois cada um é pré-requisito do seguinte: experimente! No entanto, sinta-se bastante à vontade. Caso estes exercícios sejam encarados como excessivamente simples, faça apenas o último: o conto inteiramente construído com diálogos. Exercício 1: Cumprimento (saudação) Imagine um pequeno encontro entre duas (2) personagens que não se conhecem. Use preferencialmente verbos que não precisam de complementos em frases que não tenham mais do que três ou quatro (3 ou 4) palavras. O “cumprimento” deve ter aproximadamente trinta (30) palavras, em ritmo de ping-pong (toma lá, dá cá). Exercício 2: Diálogo Escreva agora uma conversa um pouco mais rica, num ping-pong mais lento, construindo um diálogo com aproximadamente sessenta (60) palavras. Duas (2) personagens conhecidas tocam em algo indesejado e as duas se ofendem. Use todo tipo de verbos, mas limite o tamanho das falas (mude o assunto à vontade). Exercício 3: Cena Componha agora uma cena, com diálogos, com aproximadamente cento e oitenta (180) palavras. A conversa reúne três (3) familiares em almoço ao ar livre que vão se desentender. Duas (2) personagens desconhecidas da família vão dar uma notícia bombástica envolvendo a todos, sem distinção: todos confessos sem que queiram, agora enredados diante de uma gigantesca conta a ser paga diante da justiça. Ajuste a trama segundo o seu próprio interesse (conta (grande) a ser paga à prefeitura, hospital, supermercado, loja, etc).

Exercício 4: Conto (Curto) Finalmente, escreva um pequeno conto, com no máximo quatrocentas (400) palavras, utilizando apenas diálogos. Estabeleça um cenário e vincule o diálogo à cena, não abusando da oralidade. O diálogo se passa entre duas ou no máximo entre cinco personagens (podem ser as mesmas que você criou acima, sendo que a cena anterior ou todos os exercícios podem fazer parte do conto). Aqui os diálogos podem ganhar intensidade, mas impeça que alguém discurse longamente ou estabeleça tratados: prefira diálogos rápidos e objetivos. Um conto curto pode prescindir de diálogos xadrez. Você pode tentar o paredão. Não abuse da pontuação com interjeições e interrogações. Recorra à personalidade de cada personagem e não do narrador. Distinga as personagens ou pela idade ou pelas características socioeconômicas e lembre que os silêncios também falam.

Bibliografia Sérgio Rodrigues - Cem anos de um Mestre do Diálogo Brasileiro - Revista Veja, 2012. http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/vida-literaria/nelson-cem-anos-de-um-mestre-dodialogo-brasileiro/

O texto acima reflete experiências teóricas e práticas, mas resultou mais experimental que teórico e nem de longe esgota o assunto, servindo meramente como ponto de partida para o conhecimento de cada um. O caminho para bem escrever diálogos faz parte de um longo processo de aprendizagem, que pode ser delineado pelos caminhos apresentados, mas ressalte-se que é inesgotável. Saliente-se que cada um acaba descobrindo por si, seu próprio processo de amadurecimento. No entanto, para termos alguma ideia do caminho que percorri, influenciaram bastante alguns livros técnicos3, aulas, palestras e entrevistas com escritores1 e oficinas literárias2. Nota 1: Ricardo Lísias, Bruno Zeni, Evandro Affonso Ferreira e Luiz Ruffato. Nota 2: Marcelino Freire, Rodrigo Petrônio e Luiz Brás. Nota 3: Silvia Adela Kohan (Como Escrever Diálogos); James Wood (Como Funciona a Ficção), Nilce Sant'Anna Martins (Introdução à Estilística).

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