PARA ESMAGAR A SERPENTE DO MAL: AS REPRESENTAÇÕES DO GRUPO DE PENITENTES PEREGRINOS PÚBLICOS – AVES DE JESUS – SOBRE JUAZEIRO DO NORTE E A MISSÃO ABREVIADA

July 22, 2017 | Autor: Roberto Viana | Categoria: História das religiões e religiosidades, Religiosidade
Share Embed


Descrição do Produto



"PARA ESMAGAR A SERPENTE DO MAL": AS REPRESENTAÇÕES DO GRUPO DE PENITENTES PEREGRINOS PÚBLICOS – AVES DE JESUS – SOBRE JUAZEIRO DO NORTE E A MISSÃO ABREVIADA.

Roberto Viana de Oliveira Filho*

"O rapazinho tem muito que saber. A missão tá aqui. Tá aqui pra padre, pra estudante, pra todo o povo de nação".

Com essa fala, o senhor João José Aves de Jesus, tateando sua longa barba, que confere a ele certa imagem de autoridade e idade avançada, inicia sua fala repleta de imagens bíblicas, referências à história da cidade de Juazeiro do Norte, do padre Cícero, penitência, medo, morte, castigo e fé. Integrante do grupo de Penitentes Peregrinos Públicos, ele recebe em sua casa todos aqueles que desejem saber mais sobre a "missão do senhor vivo", que o penitente acredita ser o método mais eficaz para a obtenção dos prêmios divinos e de uma vida digna.
Nesse trabalho, propomos um estudo sobre o grupo supracitado acerca das representações e apropriações que os mesmos fazem da "Missão Abreviada", livro escrito no ano de 1859 em Portugal pelo padre Manoel José Gonçalves Couto, e da cidade de Juazeiro do Norte como local sagrado, responsável pela preservação do culto a "Missão". Preocupamo-nos também em explicitar a relação que o grupo estabelece entre a "Missão Abreviada" e o texto "A machadinha de Noé", escrito pelo Padre Cícero Romão Batista no ano de 1931, na cidade de Juazeiro do Norte, Ceará.
Textos escritos há mais de um século ganham uma nova significação a partir da vivência histórica do grupo de Penitentes Peregrinos Públicos. A "santa Missão" que os Penitentes se orgulham tanto de "sustentar", recebe novos contornos e novas aplicabilidades em um mundo onde as informações circulam de forma mais rápida e o "antigo" corre o risco de perde-se para sempre nessa complexa teia histórica.
A palavra "sustentar" tem uma importância fundamental para os Penitentes Públicos. Na capa da Missão encontramos os seguintes dizeres: "Missão Abreviada: para despertar os descuidados, converter os pecadores e sustentar os fructos das missões". Juazeiro do norte seria então para esse grupo o local sagrado, de uma força mística superior, responsável por não deixar que as palavras da missão diluam-se nas tempestades do tempo. O acontecimento gerador dessa força em Juazeiro é, sem dúvida, o milagre da Hóstia protagonizado pela beata Maria de Araújo e conduzido pelo padre Cícero Romão. Discutiremos adiante com maior profundidade essas questões. É importante que compreendamos agora como as representações e apropriações que os Penitentes Peregrinos Públicos fazem sobre essa literatura e sobre o espaço que os rodeia transformam não apenas as suas vidas, mas ajudam a construir novos capítulos de uma História que parecia encerrada. Roger Chartier esclarece a importância das apropriações e representações para a História:
A problemática do 'mundo como representação', moldado através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real. Daí [...], o interesse manifestado pelo processo por intermédio do qual é historicamente produzido um sentido e diferenciadamente construída uma significação. Tal tarefa cruza-se, de maneira bastante evidente, com a da hermenêutica quando se esforça por compreender como é que um texto pode 'aplicar-se' à situação do leitor, por outras palavras, como é que uma configuração, narrativa pode corresponder a uma refiguração da própria existência. No ponto de articulação entre o mundo do texto e o mundo do sujeito, coloca-se necessariamente uma teoria da leitura, capaz de compreender a apropriação dos discursos, isto é, a maneira como estes afetam o leitor e o conduzem a uma nova forma de compreensão de si próprio e do mundo (CHARTIER:1985:24)

O veículo tradutor entre o "mundo do texto" e o "mundo do sujeito" é o modo como esse sujeito torna pública a sua cosmovisão através da linguagem e das suas ações públicas. Encontramos nas discussões da História Oral, mecanismos que nos permitem compreender com mais clareza, e partindo das ideias dos próprios sujeitos sobre suas práticas, como os Penitentes Peregrinos Públicos fazem essas apropriações. As informações debatidas aqui foram desenvolvidas a partir de entrevistas feitas nos anos de 2012 e 2013 com os integrantes do grupo tanto em suas residências no Bairro Tiradentes na cidade de Juazeiro do Norte, como em atos públicos.

1 - Para esmagar a serpente do mal: A Missão Abreviada em Juazeiro do Norte.

Os principais líderes de comunidades religiosas populares do Brasil (principalmente do Nordeste) usaram a Missão do padre José Couto como um guia para a condução do seu rebanho. Nessa seleta estirpe podemos citar o padre Cícero (Juazeiro do Norte) e Antônio Conselheiro (Canudos, Bahia).
Quando indagado sobre a importância da Missão Abreviada, o penitente dá um pequeno sorriso e diz: "agora você tocou numa coisa importante, rapaz" e começa uma narrativa de sua experiência pessoal, o modo como conheceu a Missão e a surpresa que lhe ocorreu ao chegar a Juazeiro do Norte e não ver a "santa Missão" sendo usada nos rituais católicos:
Eu já tinha um conhecimentozinho dela pela educação dos meus pais, do meu avô, da minha mãe, da minha avó, que é a primeira educação que nós tem. E eles foram de família muito Católica, missionária. Eu já tinha uns conhecimento de parte da missão quando encontrei com ele pra aprofundar mais dentro da missão verdadeira, do conhecimento Católico pra não ser tão fácil de ser iludido por tantas igreja que tem hoje que a pessoa com quarenta, cinquenta, sessenta anos confessando, comungando, ainda passa pra outra religião, isso não é Católico. [...] Quando eu cheguei aqui em 1956 em Juazeiro, eu era muito criança, tinha uns sete, oito anos, morava num sitiozinho, quando cheguei meu pai me levou pra uma missa no Socorro e na Matriz e nos Franciscano, lá com sete, oito anos e eu admirei a missa que foi celebrada. Meu pai mermo não deu sinal pra mim sobre a missa, fiquei lá assistindo, rezando. Ai quando acabou no caminho de casa perguntei pro meu pai: pai, por que os padre hoje celebraram a missa tão diferente? Não é assim não meu pai, a missa não é assim não. Meu pai dizia: Meu filho é o tempo marcado, é o fim das Era. [...] ai eu: mas pai, tá muito diferente. Ai ele disse: E num é por causa disso que nós vai deixar de confessar, comungar, ir pra missa, casar e deixar de ser católico não. [...] É meu pai mas tá muito diferente.

O espanto do penitente frente à divergente postura que ele aprendeu e a que ele via estampada nos ritos católicos na cidade de Juazeiro do Norte é fruto do impacto de um catolicismo ultramontano, romanizado e outro de caráter popular, nascido a partir do convívio mais próximo da comunidade com os sacerdotes.
O grupo de Penitentes Peregrinos Públicos reúne em suas ações uma mescla dessas duas práticas católicas, que também observamos constituir uma característica fundamental da cidade de Juazeiro do Norte. Ora encontramos em seus relatos elementos que constituem o pensamento ultramontano, ora argumentos que estão ligados às práticas católicas menos ortodoxas. Um exemplo desse discurso dúbio fica claro quando o penitente deixa transparecer quais são os grandes males do mundo para ele:

E aqui estamos e vamos seguir como filhos de Deus, a missão de padre Cícero, não tenha medo de representar esses voti, mas se for para pegar minha entrevista aqui e tocar pra dentro de bruxaria, de macumba, de espiritismo, de protestantismo, de maçonaria, para criticar a missão de padre Cícero, da penitência da mãe de deus, da santa cidade, se prepare que o castigo vai aumentar. Então não leve minha presença viva com o pai, o filho e o espírito santo para colocar nessas imundiças de espiritismo, protestantismo, maçonaria, comunismo tudo o que não presta contra a Igreja Católica Apostólica Romana; se for para fazer isso, eu peço a vocês pelo amor de Deus: vão ganhar dinheiro por outra coisa. Mas a custa dessa pregação não. Agora se for para dar testemunho, me ajudar, levar para o Brasil e para o estrangeiro ai pode representar e ganhar lá o seu real, que o realzin serve a nóis também

Observamos nessa e em outras falas que a cosmovisão dos integrantes desse grupo de penitentes foi também influenciada pelo catolicismo ultramontano. Cabe aqui uma explicação sobre a prática Ultramontana. A historiadora Maria Aparecida Junqueira Veiga Gaeta, comenta:
A partir da segunda metade do século XIX, um novo modelo eclesial católico começou a ser implantado no Brasil: o ultramontanismo. De raízes conservadoras, essa autocompreensão nasceu sob o impacto das revoluções liberais europeias que agitaram o próprio trono pontifício. Buscando uma consolidação doutrinária teológica, estruturou-se em torno de alguns anátemas: a rejeição à ciência, à filosofia e às artes modernas, a condenação do capitalismo e da ordem burguesa, a aversão aos princípios liberais e democráticos, e sobretudo ao fantasma destruidor do socialismo. (GAETA:1997:2)

A influência da prática ultramontana na vida do Penitente não é assim tão surpreendente. Como vimos na primeira fala do senhor José Aves de Jesus, ele chegou muito jovem a cidade de Juazeiro e sua formação até o encontro com o Mestre José (e a do próprio Mestre) está ligada também aos ensinamentos ultramontanos da Igreja Católica. O que nos impressiona é exatamente o convívio, muitas vezes pacífico (mas nem sempre), das doutrinas dessa igreja "ultramontanizada" que exclui, por exemplo, o uso da Missão Abreviada nos rituais católicos, e a fidelidade aos princípios propostos pelo Padre Couto em seu livro, que remete e influencia as práticas católicas menos ortodoxas. Sentimentos antagônicos e influências diversas formam a base ideológica desse grupo. Analisaremos agora o que consideramos como os principais aspectos ideológicos que compõe a Missão do padre Couto e como essas ideologias influenciaram a cidade do Juazeiro e a vida dos Penitentes. Segundo Edianne Nobre e Jucieldo Alexandre:

A obra (Missão Abreviada) atingiu grande popularidade no Brasil oitocentista, especialmente no interior do país, sendo, inclusive, utilizada por Antônio Conselheiro em sua missão no arraial de Canudos. Nesse sentido, pensamos que a narrativa do padre Manoel Couto se insere num discurso da mística religiosa. Segundo Michel de Certeau (1982) há uma diferença entre a fala mística e a fala teológica como dois tipos distintos de apropriação do discurso religioso. A mística aparece como uma fala que exprime as experiências marcadas por uma percepção intuitiva do divino, ao contrário da teologia que seria uma percepção racionalizada. (NOBRE, ALEXANDRE:2011:99)

Entendemos que os objetivos da Missão Abreviada dividem-se em dois aspectos: o primeiro refere-se à formação de agentes missionários, capazes de sustentar e organizar o povo de Deus, dando a base espiritual necessária para a formação de uma comunidade coesa e ligada aos princípios do criador. O segundo aspecto refere-se à forma como essas doutrinas ganham sustento nas comunidades. Assinalamos aqui a importância dada à ideia dos castigos divinos, como a principal teoria que serve de alicerce para que as prédicas da Missão fixem-se de forma eficaz na vida dessas populações.
Ana Christina de Carvalho em seu trabalho, Sob o signo da fé e da mística: estudo das irmandades de penitentes no Cariri cearense, explica que a Missão abreviada é utilizada como uma espécie de Relíquia pelos integrantes dos Penitentes Peregrinos Públicos:

A mística que envolve a Missão Abreviada pode ser aproximada de uma verdadeira devoção, pois envolve além do culto ao livro enquanto representação do sagrado, atitudes e ritos de veneração. Esta inter-relação promove uma negociação com o sagrado que reverte o objeto em relíquia, enquanto parte do sagrado. No imaginário dos Penitentes Peregrinos, encarna o próprio Deus objetivado. O livro nos foi mostrado, não sem antes termos sido advertidos que não poderíamos pegar ou tocar "na Santa Missão Abreviada", só os devotos podem manusear o livro.

Em nossas pesquisas encontramos um dado novo e surpreendente. Enquanto o Mestre José, líder dos Penitentes Públicos até o ano de 2000, estava vivo, a Missão Abreviada, encontrava-se em sua posse, "velhinha e quase esquecida" como disse um penitente quando indagado sobre a questão. Contudo (não sabemos ao certo a data desse acontecimento) o penitente João José (que ocupa a liderança após a morte do mestre) resolveu fazer algo inovador: "reciclar", reeditar, imprimir e distribuir a Missão Abreviada para qualquer pessoa que deseje adquirir o livro.
Esse acontecimento criou no grupo uma nova rotina organizacional, permitindo que os mesmos estabelecessem uma relação com gráficas, empresas, comunidades católicas (pastorais) e que, de certa forma, o sentimento missionário fosse renovado e recebedor de uma nova significação. O que estava escondido, "velhinho" e distante, ganhava novos espaços e possibilidades. Em seus discursos, os penitentes atribuem o relativo sucesso de sua empreitada missionária (e o rompimento dos obstáculos) aos ensinamentos do padre Cícero e a construção de Juazeiro do Norte como esse espaço propício para o uso e propagação da Missão Abreviada, que para eles é mais importante que a Bíblia.
Segundo Roberta Bivar Campos, o surgimento dos Penitentes Peregrinos Públicos está diretamente ligado à figura do padre Cícero. Para a autora é importante analisarmos o grupo a partir dos "causos" que eles contam, pois elucidam de uma forma própria algumas questões referentes a origem dos mesmos e a sua relação com o local onde vivem. Segue um relato da antropóloga que torna evidente essas associações:

Mestre José, antigo líder da comunidade de penitentes Aves de Jesus, contou-me que migrou para Juazeiro com sua "costela", comadre Regina, acompanhado por Nosso Senhor Jesus Cristo , nos idos dos anos de 1970, quando padre Cícero colocou em seu coração o desejo de ir à terra da Mãe de Deus.

Após a morte do Mestre José, o grupo elabora uma nova relação com a cidade de Juazeiro do Norte, e um novo "modus operante" para a propagação da santa missão e a luta pela libertação das almas. O "quartel general" dessa destemido exército é a Casa da Missão, que é a casa do Penitente João José Aves de Jesus, o senhor que toma a frente dos projetos do grupo, e luta incessantemente pelo reconhecimento da missão e uma nova interpretação dos ensinamentos do Padre Cícero.

2 - A casa da Missão: a "machadinha de Noé" e o preocupante aviso de "meu padim"

Em 1931 padre Cícero escreve um contundente aviso aos seus "amiguinhos" (forma carinhosa que tratava os seus fiéis) sobre o iminente fim do mundo – A Machadinha de Noé - do qual só escapariam aqueles que estivessem em constante vigilância e combate aos grandes males do mundo. Vigilância e combate, prudência e enfrentamento, observar e agir. Encontramos ressonância desses elementos nos discursos do padre Cícero, da Missão abreviada e das falas e atos públicos dos Penitentes Peregrinos Públicos. É importante que compreendamos agora como Juazeiro do Norte a partir da influência do padre Cícero torna-se o local capaz de "sustentar" os ensinamentos da Missão Abreviada.
Destacamos um trecho da "Machadinha de Noé" para que possamos estabelecer uma relação do conteúdo desse texto com os ensinamentos da Missão e como os penitentes transportam os seus conteúdos para as suas práticas.

MACHADINHA DE NOÉ
Aviso do Padre Cícero Romão Batista sobre os principais acontecimentos do fim do Mundo
(1931)
Meus caros amiguinhos, é chegado o último momento de dar-vos o meu aviso a todos os habitantes da face da terra, como os sinais prediletos por Nosso Senhor Jesus Cristo, antes da sua sagrada morte paixão, convertei-vos e arrependei-vos dos vossos grandes pecados. Disse: Nosso Senhor Jesus Cristo, quando vires, pestilências, fomes, guerras, revoluções, nação contra a mesma nação, reino contra reino, que são as novas formas de governo, repúblicas, ditaduras, belchevismo ou comunismo, como hoje está convertida a Rússia em um governo anti-cristão, forma de governo esta que brevemente se espalhará por toda face da Terra, terremotos, inundações, coisas espantosas, diversos fenômenos, estas coisas são princípios de dores, e sinais do fim do mundo, ou destruição dos homens sobe toda a face da Terra, tudo isso devido ao pecado e a corrupção, cada dia os homens vão se afastando de Deus e de sua santa religião, o que amam os homens de hoje? A vaidade, a orgia, as riquezas e a toda sorte de corrupção, disse, Jesus Cristo, que nos últimos tempos havia de multiplicar-se a iniquidade e o amor de muitos havida de esfriar; quer dizer que a santa religião cristã será abandonada, a Terra atualmente está cheia de falsas religiões de falsos profetas, de falsos cristos as doutrinas anti-cristãs estão sendo propagadas em toda parte tal como a tal espiritismo ou fetichismo moderno levantado em todos os países do mundo, tudo isso são os verdadeiros sinais do fim do mundo porém disse Jesus Cristo, que o evangelho do reino de Deus seria pregado em todo o mundo, que é a religião cristã, então chegai o fim, olhe! Que estou os avisando! Convertei-vos e arrependei-vos hoje mesmo, que é chegado o tempo do juízo final e do ajuste de contas, e quem não se arrepender mais tarde corará sem remédio, ai de vós pecadores, ai!

Escolhemos esse trecho da Machadinha de Noé por demonstrar de forma clara as diversas associações que existem entre esse texto e as prédicas da Missão Abreviada. O discurso dos Penitentes Públicos está atrelado a esses pensamentos de tal forma que em suas casas e em atos públicos podemos perceber a simpatia pelas ideias antirrepublicanas, anticomunistas e monarquistas. Não é o foco do nosso trabalho discutir tais informações, mas é importante salientar que os penitentes guardam um carinho muito especial pelas figuras de Dom Pedro I e Dom Pedro II, inclusive na parede de suas residências podemos observar fotos desses monarcas brasileiros. Essa atitude nos remete a prática do Sebastianismo, tanto pelas constantes queixas para a volta da monarquia como por entender que esses governos restaurariam o lugar devido da religião.
Por fim, discutiremos agora como Juazeiro do Norte torna-se local sagrado, e mais, responsável pela conservação e "sustentação" das ideias da Missão Abreviada e refúgio espiritual para aqueles que desejam alcançar a maior das graças divinas: o paraíso.
O evento fundador que constitui Juazeiro do Norte como esse local de uma mística profunda é o famoso Milagre da Hóstia. Em 1889 na igreja de Nossa Senhora das Dores, a beata Maria Magdalena no Espírito Santo de Araújo recebe a comunhão do padre Cícero e esta transforma-se em sangue na boca da beata que entra em êxtase espiritual.
Esse acontecimento faz com que Juazeiro receba grande quantidade de fiéis que buscaram aproximar-se do poder divino, manifestado ali em sangue pelas mãos do padre Cícero na boca da beata Maria de Araújo. É válido salientar que outras beatas também apresentaram as manifestações extraordinárias que Maria de Araújo apresentou e outras: viagens espirituais, chagas no corpo, conversas com Jesus e até com o Papa.
Entendemos que esses acontecimentos, o culto ao "precioso sangue" e posteriormente ao padre Cícero são as "sementes divinas" formadoras do espaço sagrado de Juazeiro do Norte, espaço esse entendido pela historiadora Edianne Nobre como um espetáculo onde os personagens vivem um verdadeiro Teatro Místico:

Tentaremos perceber o espaço em Juazeiro não como um mero cenário, mas como um teatro, na acepção mais ampla do termo [...] O espaço de Juazeiro se transmutará em espaço de espetáculo, pois, será regido por outras noções de tempo e espaço: as do tempo e espaço sagrados. Entendemos ainda por um espetáculo, a trama de tensões e conflitos que se estabelecem nas relações de poder entre os personagens de um enredo[...] (NOBRE:2011:40)

Percebemos que o grupo de Penitentes Públicos estabelece com o espaço e história do Juazeiro uma relação semelhante com a proposta pela historiadora. Em certos aspectos nos parece que os penitentes seriam os personagens de um segundo ato desse teatro místico, uma vez que para eles, a sua função está ligada com a manutenção e a luta pela correta assimilação dos ensinamentos do padre Cícero. O antagonista, a Igreja, estabelece ainda uma relação conflituosa com o grupo por não concordar com as ideias propostas pela missão abreviada e por ter estabelecido com a figura do padre Cícero outro tipo de relação. A historiadora supracitada percebeu nos discursos sobre os milagres em Juazeiro uma linguagem teatral que corrobora com o que citamos acima:

Acreditamos que os depoimentos que narram os milagres, bem como aqueles que querem detrata-lo são marcados por uma linguagem teatral que faz parte de uma tradição – estética e religiosa – barroca. O teatro, não é então, mero palco onde as ações se desenrolam, é um espaço tramado, que vai sendo construído e reconstruído nas ações de seus personagens.

Essa luta simbólica entre a Igreja e o grupo de Penitentes Públicos trava-se em um âmbito onde a Igreja tem força e domínio muito mais visíveis que o grupo. O que é visível, contudo, não parece ser mais forte e profundo. A igreja católica luta cada dia mais pela garantia do seu espaço e conquista de fiéis para uma ritualística moderna, aberta a diversas possibilidades, enquanto os Penitentes Públicos conseguem ainda que pessoas vivam sob um rígido sistema sócio/educativo onde a penitência e mortificação corporal são usadas como método para a obtenção do perdão dos pecados.
O que pretendemos aqui é demonstrar como Juazeiro do Norte, o grupo de Penitentes Peregrinos Públicos, A Missão Abreviada, Machadinha de Noé, penitência, castigos divinos, Igreja católica, romanização, céu, inferno, sangue, enfim: cenários e personagens de um teatro místico são incorporados a vida das pessoas e transformam para sempre o cotidiano e a percepção não apenas desses indivíduos, mas de sua comunidade, cidade, pesquisadores e todos aqueles que se encantam com um mundo novo, ora aparte ora tão próximo de nós.

3 - FONTES E REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

3.1 – Fontes (escritas e orais)
JOÃO JOSÉ AVES DE JESUS, penitente, membro e atual líder do grupo de Penitentes Peregrinos Públicos, conhecidos também como Aves de Jesus. Entrevistamos o senhor João José durante vários dias, nesse trabalho utilizamos basicamente as entrevistas dos dias: 02 de Novembro de 2012 e do dia 05 de Junho de 2013.
COLTO, Manoel José Gonçalves. Missão Abreviada: para despertar os descuidados converter os pecadores e sustentar o fructo das missões. 6.ed. Porto: Tipografia de Sebastião José Pereira, 1868.
BATISTA, Cícero Romão. A machadinha de Noé. 1931

3.2 - Bibliografia
CAMPOS, Roberta Bivar C; "Contação de 'causos' e negociação de verdade entre os Aves de Jesus, Juazeiro do Norte – CE". Etnográfica [Online], vol. 13 (1) " 2009.
___________. "Como Juazeiro do Norte se tornou a terra da mãe de Deus: penitência, ethos de misericórdia e identidade de lugar". Religião e sociedade, Rio de Janeiro, 28(1):146-175, 2008.
CARVALHO, Anna Chistina Farias de. Sob o signo da fé e da e da mística: um estudo das irmandades de penitentes no Cariri cearense. 1. Ed. – Fortaleza: Editora IMEPH, 2011.
DELUMEAU, Jean. A história do Medo no Ocidente (1300 – 1800). São Paulo. Paz e Terra. 4º Edição: 1984
GAETA, Maria Aparecida Junqueira Veiga. "Cultura clerical e a folia popular". Revista brasileira de História. V.17, n° 34, São Paulo, 1997.
NOBRE, Edianne dos Santos. O Teatro de Deus: as beatas do Padre Cícero e o Espaço sagrado de Juazeiro. 1. Ed. – Fortaleza: Editora IMEPH, 2011.
NOBRE, Edianne dos Santos; ALEXANDRE, Jucieldo Ferreira. "A missão abreviada: práticas e lugares do bem-morrer na literatura espiritual portuguesa da segunda metade do século xix". Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 10, Maio 2011
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
SILVA, Lemurel Rodrigues da. O discurso religioso no processo migratório para o caldeirão do Beato José Lourenço. Tese (doutorado), Natal, RN, 2009.

4. Anexos:







Fotos: A casa da Missão, Bandeira com as iniciais P.P.P (Penitentes Peregrinos Públicos) e o penitente João José Aves de Jesus segurando a Missão Abreviada.




* Graduado em História pela Universidade Regional do Cariri, membro do LABIHM (Laboratório de Imagem, História e Memória) da mesma instituição. Link diretório de grupos de pesquisa http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalheest.jsp?est=5746682686852335. E-mail: [email protected]
O penitente está se referindo a José Aves de Jesus (Mestre José), o líder do grupo de Penitentes Peregrinos Públicos, que faleceu no dia 9 de Fevereiro de 2000.
Entrevista realizada com o Penitente no dia 11 de Junho de 2013, em sua residência no bairro Tiradentes em Juazeiro do Norte, Ceará.
Entrevista realizada com o Penitente no dia 02 de Novembro de 2012, dia de finados, em uma ação pública do grupo no cemitério do Socorro em Juazeiro do Norte.
Um "causo" é um tipo de narrativa popular, muito encontrada no Nordeste brasileiro que lembra em sua forma um mito e é repleto de elementos fantásticos que servem para elucidar algo do cotidiano daquelas pessoas.
Existem várias nomenclaturas para o grupo de Penitentes que analisamos nesse trabalho. Escolhemos a nomenclatura: Penitentes Peregrinos Públicos por que, em várias entrevistas, os penitentes negam enfaticamente as outras nomenclaturas e mostram em suas roupas e bandeiras as iniciais P.P.P (Penitentes Peregrinos Públicos). Alguns autores preferem o termo Aves de Jesus por conta do nome que os integrantes da comunidade acolhem quando entram no grupo: os homens são José Aves de Jesus e as mulheres Maria Aves de Jesus. Ainda encontramos nas falas de algumas pessoas da cidade os nomes "borboletas azuis", "azulzinhos", Irmandade do Rosário, entre outras que os penitentes negam de forma rígida. (em anexo disponibilizamos uma imagem da bandeira com as iniciais P.P.P)
O sebastianismo é uma crença milenarista no Quinto Império governado pelo Espírito Santo e pela Coroa Portuguesa, que tem origem na lendária história de Dom Sebastião, rei de Portugal no século XVI, que governou o reino muito jovem e mesmo com pouca experiência tornou-se mártir da sangrenta batalha de Alcácer-Quibir, na África, em 4 de agosto de 1578. O seu corpo nunca foi encontrado, o que deu margens para interpretações de que esse rei voltaria e conclamaria um novo reinado.
Para compreender as questões referentes aos milagres da hóstia e as representações de Juazeiro como lugar de salvação a partir de narrativas femininas, indicamos a obra: O Teatro de Deus: as beatas do padre Cícero e o espaço sagrado de Juazeiro.
2


Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.