PARA FORMAR HOMENS CAPAZES DE “DISCERNIMENTO E DE PERCEPÇÃO” : REFORMAS EDUCACIONAIS EM PORTUGAL (SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII)

July 27, 2017 | Autor: A. Santos | Categoria: Modern History, Portugal (History), Pombalismo
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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR Anais. Vol. I: do Simpósio Temático 01 ao Simpósio Temático 13

A ESCRITA DA HISTÓRIA 12 a 15 de Outubro de 2012

Londrina PR

ST 06 – CULTURA E LETRAS NO BRASIL E PORTUGAL (SÉCULOS XVIII E XIX)

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PARA FORMAR HOMENS CAPAZES DE “DISCERNIMENTO E DE PERCEPÇÃO” : REFORMAS EDUCACIONAIS EM PORTUGAL (SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII)*

Prof. Dr. Antonio Cesar de Almeida Santos (Departamento de História / UFPR)

Palavras-chave: Pombalismo; Reformas educacionais; Administração.

Há pouco mais de 30 anos, era publicado um texto de José Ferreira Carrato, no qual ele fazia uma suscinta, mas importante, avaliação das “reformas pombalinas do ensino” e da presença do Iluminismo em Portugal. Embora, hoje, possamos discordar de algumas de suas afirmações, entendo que a discussão que vou apresentar, e que versa sobre o mesmo tema enfocado por ele, deveria começar citando-o, até como forma de uma justa homenagem. A certo momento de seu texto, José F. Carrato registra que D. José I, que reinou entre 1750 e 1777, foi “cognominado o Reformador”, ressalvando: “o título cabe-lhe apenas como uma rotina de alcunha de reis, pois todas as glórias e canseiras das reformas pertencem ao seu grande ministro”, em referência direta a Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), conde de Oeiras (1759) e, depois, marquês de Pombal (1769). Carrato segue afirmando que o conjunto de reformas ocorridas naquele reinado foram resultado “do movimento iluminista” que adentrara o reino português, e que as reformas podem ser consideradas “a resposta à necessidade de acudir aos graves problemas que afligiam o país”. Dentre as diversas “áreas” atingidas pelas “reformas pombalinas”, destaca a da instrução, porque o poder régio ousara “tirar da Igreja (legitur Companhia de Jesus) o controle do ensino público”; concomitantemente, indica que se operava também uma reforma social, pela qual era realizado o “enquadramento da nobreza em seu novo papel de classe ativa e não ociosa, cuidando de diminuir-lhe os poderes excessivos”, assim como ocorria a ascenção da “nova classe burguesa dos grandes mercadores” (CARRATO, pp. 23-24). *

O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. Projeto integrado de pesquisa “Ilustração e cultura escrita na transição do Antigo Regime português (Portugal e Brasil, 1750-1823): do domínio político ao império da língua”.

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A partir destas considerações, e entendendo que as reformas do ensino e as mudanças de ordem social, destacadas por José Carrato, estão profundamente imbricadas, procuro discutir neste texto algumas das ações empreendidas durante o reinado de D. José I, as quais tiveram o objetivo de formar indivíduos que, no desenvolvimento de suas atividades profissionais, fossem capazes de trabalhar para o “bem-comum”. Para tanto, abordarei duas iniciativas: uma delas, revestida de sucesso (segundo seus comentadores), foi a criação da Aula de Comércio, em 1759; a outra, que não chegou a alcançar os objetivos desejados (como veremos), foi o estabelecimento do Colégio Real dos Nobres, criado em 1761, e que começou a funcionar cinco anos depois. Esta avaliação sobre o grau de sucesso das duas iniciativas parece ter sido corroborada pelo próprio marquês de Pombal, o qual, em suas “observações secretíssimas”, de 1775, faz explícita alusão à “aula de comércio” e, não obstante o tom laudatório com que trata das realizações daquele reinado, não faz nenhuma menção ao Colégio Real dos Nobres (MELO, s/d). Como muitos estudiosos reconhecem, a atuação de Sebastião José de Carvalho e Melo, principalmente durante sua permanência à frente da secretaria de estado dos negócios do Reino (1756-1777), ficou marcada, dentre outras razões, pelas reformas empreendidas na área educacional, especialmente a ocorrida na Universidade de Coimbra (1772)1. Contudo, outros níveis de ensino, como sabemos, foram objeto de sua atenção, ou da atenção do soberano – o “Reformador” – sob as ordens de quem o Marquês governava2. Não obstante as variadas críticas, inclusive as que apontam para a ineficácia dessas reformas, a intervenção do Estado português na educação – ou, como Jacques Marcadé registra, “na formação dos espíritos” dos jovens portugueses – estava coerentemente integrada à lógica da política pombalina3. Aliás, Marcadé (1982), que expressa um ponto de vista francês, ressalta que as reformas educacionais em Portugal precederam as de outros estados europeus, afirmação que é corroborada por Tereza Fachada Levy Cardoso (2011, p. 76):

1 Para uma visão geral e recente sobre a reforma da Universidade de Coimbra, ver os artigos reunidos em ARAÚJO, Ana Cristina (Coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra : Imprensa da Universidade, 2000. 2 Esta é uma querela antiga: saber qual o grau de decisão experimentado pelo marquês de Pombal durante o reinado de D. José I. Para uma discussão mais recente, ver MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José : na sombra de Pombal. Lisboa : Círculo de Leitores, 2006, e SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Para a instrução dos homens encarregados dos negócios públicos no final do Antigo Regime português. In: FONSECA, Thaís Nívia de Lima e (org.). As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte : Mazza Edições, 2011, p. 73-97. 3 Para uma discussão acerca do que se designa por política pombalina, ver SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do Reformador. Topoi, v. 12, n. 22, p. 75-95, jan.-jun. 2011.

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A própria cronologia das reformas da educação promovidas na Europa nos sugere a possibilidade de o governo português ter-se antecipado a outros países europeus, ao implantar a educação pública como dever do Estado: Portugal, 1759; Prússia, 1763; Saxônia, 1773; Polônia, 1773; Rússia, 1773 e Aústria, 1774. Desse modo, tanto no aspecto de promover as reformas no Estado relativas à educação quanto na questão da implantação do ensino público gratuito, que passou a patrocinar, a monarquia lusa passou à ação, enquanto na França, por exemplo, os debates sobre o tema ainda se desenrolavam.

Não há dúvida que Carvalho e Melo e seus colaboradores reconheciam a importância da educação na formação de indivíduos que ajudassem Portugal a alcançar um estado de “opulência”, recuperando a glória “do século feliz dos senhores reis D. Manuel e D. João III” (MELO, s/d, p. 245). A propósito, Joaquim Veríssimo Serrão, considerando o conjunto das reformas educacionais ocorridas naquele contexto, afirma que o marquês de Pombal entendia a educação como “um meio de valorizar as estruturas sociais e mentais do Reino” (p. 144).4 De fato, como registrou, ao final do século XVIII, um antigo professor régio de filosofia em Évora (1764-1770) e em Lisboa (1770-1772), os governantes deviam promover e facilitar “a instrução dos súbditos, nomeadamente, criando um ensino oficial, ministrado por bons professores”, os quais deveriam ter “um estatuto social condigno”. Para Bento José de Souza Farinha, a educação devia ser vista “como base do progresso do Estado” e como a responsável pela “preparação de bons cidadãos para a República”. Os motivos para esta apregoada “instrução dos súbditos” eram o imperativo ético e a adoção do princípio de que o “bom governo das sociedades particulares é considerado indispensável para o bom governo da República” (apud VAZ, pp. 70-74). Aliás, para Francisco António Lourenço Vaz, o “discurso da ilustração portuguesa”, do qual as palavras de Bento Farinha são exemplares, propunha que “a instrução era a chave para formar o cidadão cristão, que seria necessariamente virtuoso, trabalhador e aplicado para obter a riqueza para si e para o Estado” (p. 74). Apresentados estes aspectos mais gerais sobre a importância da educação no contexto da política reformista portuguesa da segunda metade do século XVIII, pode-se indicar que diversos estudos destacam o pioneirismo da criação da Aula de Comércio. Desde o já mencionado José Ferreira Carrato, para quem “o primeiro ato das reformas pombalinas do ensino (...) foi a criação da primeira Aula de Comércio, de que talvez não haja notícia anterior na Europa de então” (p. 30), até autores mais recentes, como Lúcia Lima Rodrigues, Delfina Gomes e Russell Craig, que apontam para o importante papel dessa “escola” no 4

Para uma apreciação geral das reformas educacionais durante o reinado de D. José I, ver BOTO, Carlota. A dimensão iluminista da reforma pombalina dos estudos: das primeiras letras à universidade. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, p. 282-299, ago. 2010.

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desenvolvimento de um conhecimento contábil e comercial em Portugal. Rodrigues, Gomes e Craig também consideram a Aula de Comércio como a primeira instituição pública especializada no ensino mercantil (p. 54). No que se refere ao Colégio Real dos Nobres, contrariamente a este propalado ineditismo da Aula de Comércio, diversos autores, como o já mencionado Joaquim Veríssimo Serrão, entendem que esta escola deu “corpo à sugestão do doutor António Nunes Ribeiro Sanches, médico e filósofo que de França propusera a Pombal a referida criação” (p.144).5 De fato, Ribeiro Sanches dedicou alguns títulos de suas Cartas sobre a educação da mocidade à “educação da fidalguia”, indicando que os jovens nobres deveriam ser instruídos em “colégios”, asseverando: “não é coisa nova, hoje em Europa, esta sorte de ensino, com o título de ‘Corpo de Cadetes’, ou Escola Militar, ou Colégio dos Nobres”. Para Ribeiro Sanches, uma escola deste tipo era extremamente benéfica, “não somente pela suma utilidade que tirará desta Educação a Nobreza, mas sobretudo o Estado e todo o povo” (ver pp. 168-192). O “estabelecimento da Aula do Commercio” foi saudado com grande entusiasmo pelo comerciante Jacome Ratton, em suas Recordações, apontando para a “necessidade” de seu funcionamento e para os benefícios por ela produzidos. O senhor rei D. José conheceu bem que era necessário lançar outros fundamentos ao comércio nacional e estabeleceu a Aula do Comércio, na qual se ensinassem os elementos até então ignorados pela maior parte dos nacionais. [...] não se conhecia nenhum nacional que tivesse prática da escrituração dos livros em partidas dobradas, nem que fosse versado no conhecimento de pesos, medidas e moedas estrangeiras, dos câmbios e suas combinações. [...] Foi tão útil o estabelecimento da Aula do Comércio, e aproveitou tanto a Nação, pelos alunos que dela têm saído, que não só as contadorias da Real Fazenda, tanto no Reino como nas colônias, se tem servido deles, mas até os escritórios dos negociantes (RATTON, p. 202-206).

Conforme os “Estatutos da Aula do Commercio”, confirmados por Alvará régio de 19 de maio de 1759, o seu funcionamento ficaria sob a responsabilidade da Junta de Comércio, que havia sido criada em 30 de setembro de 1755 e que deveria adotar as medidas “necessárias para facilitar os meios de conservar e aumentar” as atividades comerciais portuguesas, especialmente as relativas ao comércio exterior (ver SILVA, 1830, pp. 458-480). Em uma breve análise dos estatutos da Aula de Comércio, percebe-se que seria dada preferência à matrícula de jovens que, sabendo ler, escrever e realizar as operações aritméticas básicas, pertencessem a famílias de “homens de negócios”. Os alunos, que deveriam ter uma

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Aspectos das relações entre Ribeiro Sanches e Pombal podem ser vistos em MENDES, António Rosa. Ribeiro Sanches e o marquês de Pombal : intelectuais e poder no absolutismo esclarecido. Cascais (PT) : Patrimonia, 1998.

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idade mínima de 14 anos, receberiam uma espécie de bolsa, em valor “que se julgar bastante para animar os que tiverem meios, e sustentar os que delles carecem para a sua subsistência”. O curso teria uma duração de 3 anos, “que é o tempo necessário para se ditarem, conhecerem e praticarem os principais objetos dos estudos desta mesma Escola”, cujo currículo, conforme mencionado por Jacome Ratton, atenderia à formação de um comerciante ou de um “guardalivros completo”. De fato, buscava-se que “nesta pública e muito importante Escola se ensinassem os princípios necessários a qualquer negociante perfeito” (ver SILVA, 1830, pp. 655-660 – meu destaque). Destaco a muito provável referência à obra de Jacques Savary, Le Parfait négociant, cuja primeira edição foi publicada em 1675, isto porque Carvalho e Melo teve contato com ela, durante sua permanência na Inglaterra (1738-1744), como atesta a presença desse título – uma edição em francês, impressa em Amsterdam, em 1726 – entre os livros levados por ele para Portugal (ver MELO, 1986, p. 175). Por um lado, o “negociante perfeito”; por outro, o “perfeito nobre” (CARRATO, p. 41). O Colégio Real dos Nobres, que também ficou sob a expressa proteção do monarca português, ainda que não tenha obtido o mesmo sucesso e posterior reconhecimento que a Aula de Comércio, mostra-se essencial para a compreensão do projeto político dedicado à instrução da nobreza de Portugal, com a finalidade de qualificá-la para o exercício de funções administrativas e militares no reino e nos domínios ultramarinos. A opinião de José Ferreira Carrato representa, no geral, o entendimento que a historiografia construiu acerca deste estabelecimento: “não resta dúvida de que a criação do Colégio dos Nobres, por ato régio de 7 de março de 1761, e a subsequente publicação dos seus Estatutos, foram uma consequência direta da pregação das Cartas sobre a educação da mocidade” (p. 42). Em relação a tal afirmação, e em que pesem as óbvias relações entre as ideias preconizadas por Ribeiro Sanches e o teor das normas que regulavam o funcionamento daquela escola, a referida “consequência direta” não parece ser tão evidente, e o preâmbulo do Alvará de confirmação dos Estatutos do Colégio Real dos Nobres apresenta algumas importantes considerações acerca de um manifesto desejo de acudir à situação de “grande decadência, em que cada dia se precipitaram com maior aceleração” os estudos dos jovens nobres. Mais do que buscar igualar-se às outras “nações cultas” da Europa – uma expressão comum nos documentos oficiais do período, e postura sugerida por Ribeiro Sanches –, D. José I reconhecia a necessidade de uma “boa e regular instrução da Mocidade”, posto que dela dependeria “o bem Espiritual e a felicidade Temporal dos Estados”, e entendia, invocando a

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“experiência” de antigos predecessores – D. Manoel (1495-1521) e D. João III (1521-1557) –, que tais “Estudos se fariam mais férteis quando fossem cultivados em Colégios, nos quais a regularidade das horas e a virtuosa emulação dos Estudantes concorressem para eles se adiantarem nas suas profissões com maior brevidade”. Explicitamente, o soberano declarava que pretendia recuperar os “fecundos progressos” que os estudos haviam alcançado no tempo de D. João III, quando se fundaram “dois colégios” em Coimbra para atender aos fidalgos e nobres; estabelecimentos dos quais, após a administração dos jesuítas, “apenas existe a memória” (SILVA, 1830, pp.773-792). Ribeiro Sanches reconhecia que os jovens nobres portugueses não tinham “ensino algum para servir à sua Pátria em tempos de paz nem da guerra” e, conforme indicado acima, invocava exemplos europeus para sanear essa situação, mencionando a criação de “Colégios Militares”, nos quais tais jovens fossem educados. Sem dúvida, sua proposta para instruir “súditos amantes da Pátria, obedientes às Leis e ao seu Rei; inteligentes para mandar e virtuosos para serem úteis a si a e a todos com quem devem tratar” contrapunha-se ao modelo até então geralmente adotado (pp. 168-185), em que era usual a utilização de tutores e preceptores, e que havia recebido a atenção de Martinho de Mendonça de Pina e Proença, em 1734, com seus Apontamentos para a educação de um menino nobre. Esse tipo de ensino, ministrado por um “mestre doméstico” (SANCHES, p. 178), também era característico para os jovens destinados às atividades comerciais. Após apreenderem as primeiras letras, as operações aritméticas básicas e os rudimentos dos negócios com os próprios pais, eles eram enviados para uma espécie de aprendizagem em destacados estabelecimentos comerciais. Tendo em vista a Europa central, Louis Bergeron pode reconstituir a carreira de vários homens de negócio, percebendo que, “por volta dos quinze anos”, o jovem realizava “um estágio comercial, que se regia por um contrato celebrado entre os pais do rapaz e um comerciante”. Após cerca de cinco anos, o aprendiz realizava a “segunda etapa da formação” que se constituía na realização de uma “viagem cultural [que] levava o jovem a percorrer as diversas praças comerciais” (p. 102). Esta prática é referendada por Jacome Ratton, ao mencionar que “os Jorges, Palyarts, Despies, Vanzelleres, Crammer, Vanpaetz, Clamouses, todos eram filhos de pais estrangeiros que os haviam mandado educar fora” (pp. 202-203). Ao se acompanhar os diplomas legais que criaram a Aula de Comércio e o Colégio de Nobres, percebe-se que, aparentemente, a preocupação maior era, de fato, controlar o

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processo educacional, retirando das famílias a prerrogativa de decidir como (e por quem) seus filhos seriam instruídos. O Estado queria definir o que deveria ser ensinado e, principalmente, como isso deveria ser feito. Nesse sentido, o confinamento dos estudantes em colégios garantia, por um lado, a vigilância sobre o que e como os professores ensinavam e, por outro, uma desejada homogeneidade “na formação dos espíritos”, como aludiu Jacques Marcadé. Esta disposição de controle fica evidenciada, inclusive, pelo próprio insucesso do Colégio Real dos Nobres, que nunca conseguiu atingir o número de estudantes almejado. Com efeito, as matrículas nunca ultrapassaram, no período de 1765 a 1772, uns punhados de fidalguinhos internos: nesses sete anos de atividades, o Colégio dos Nobres laureou apenas 45 alunos. No último ano do ensino científico (pois foi extinto em 1771-1772, ficando apenas a área literária), havia uma dezena ou pouco mais de alunos; dado o fato de serem geralmente prolíficas as famílias nobres portuguesas, é certamente de presumir – opina o historiador Rômulo de Carvalho6 – que a obra do Marquês de Pombal nunca foi bem aceita por elas (CARRATO, p. 44).

Na mesma ocasião em que as disciplinas que garantiam o acesso à Universidade deixam de ser ministradas, ocorreu a publicação de uma Carta de Lei, em 06 de novembro de 1772, que, dentre outros assuntos pertinentes ao funcionamento das escolas régias, regulamentava a atividade dos “mestres domésticos”: reconhecia-se a possibilidade de “particulares” contratarem “mestres para seus filhos dentro das próprias casas, como costuma suceder”; entretanto, esses professors só poderiam “dar lições pelas casas particulares”, após “se habilitarem para estes magistérios com exames” realizados pela Real Mesa Censória (SILVA, 1829, pp. 612-615), a quem as “escolas menores” estavam subordinadas desde 1771 (ibid., pp. 540-541). Quer dizer, se o controle do ensino mostrava-se dificultoso devido à resistência das famílias em matricularem os jovens nobres no Colégio criado para eles, controlar-se-iam os sujeitos que exerciam o magistério. Nesta sintética exposição sobre alguns dos princípios norteadores das “reformas pombalinas do ensino”, pode-se observar que, com o controle estatal das escolas, buscava-se, como indicou Joaquim Veríssimo Serrão, a formação de novas “estruturas sociais e mentais”. Esta preocupação alcançou também os territórios ultramarinos, não apenas com as mudanças propostas pelo Alvará de 28 de junho de 1759,7 mas também com o que poderíamos chamar de atividade editorial patrocinada pela própria Coroa, como anuncia uma carta de 22 de julho 6

A principal referência de estudos sobre o Colégio Real dos Nobres ainda é a obra de CARVALHO, Rômulo de. História da fundação do Colégio Real de Nobres de Lisboa, 1761-1772. Coimbra : Atlântida, 1959. 7 Sobre a alcance das “reformas pombalinas do ensino” na América portuguesa, ver CARDOSO, Tereza Maria Rolo Fachada. As luzes da educação : fundamentos, raízes históricas e prática das aulas régias no Rio de Janeiro, 1759-1834. Bragança Paulista (SP) : Editora da Universidade São Francisco, 2002.

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de 1766, que Sebastião José de Carvalho e Mello enviou ao governador da capitania de São Paulo, D. Luís Antonio Botelho de Souza Mourão. Junto à carta, seguiam “alguns exemplares da Instrução dos Ofícios de Cícero”, com a finalidade de “V. Sa. aí formar alguns Homens que sejam Capazes de discernimento e de percepção”. Conforme a referida carta, D. José I havia mandado imprimir os livros “para a educação da Nobreza do Seu Real Colégio desta Corte”.8 Explorar o significado que pode ser atribuído à publicação desse texto de Cícero, naquele contexto, ajudará a compreender melhor, neste momento, aquele conteúdo do “discurso da ilustração portuguesa”, mencionado por Francisco Lourenço Vaz, o qual estava impregnado de um sentido ético. Entende-se que Carvalho e Melo estava fazendo referência à obra “Ostres livros de Cicero sobre as obrigações civis, traduzidos em lingua portugueza para uso do Real Collegio de Nobres”. Trata-se de uma tradução realizada pelo italiano Miguel Antonio Ciera, que havia sido contratado como professor de matemática para o referido Colégio. Ciera não verteu os “Ofícios” diretamente do latim, mas de uma versão italiana produzida por Giácomo Facciolati, tomando-a como “a mais correta”.9 A importância dessa obra de Cícero para a formação dos jovens nobres portugueses é, indiretamente, corroborada por um intelectual espanhol, Manuel Blanco Valbuena, que, em 1777, publicou, em Madri, uma tradução do mesmo livro.10 Esse professor de poética e de retórica do Real Seminário de Nobres da corte espanhola, afirmava: entre todos los libros que nos quedan de los antiguos, apenas se poderá señalar outro más útil para enseñanza de los jóvenes que se dedican al estúdio de la lengua latina, que este de los Ofícios de Ciceron, asi por la propriedad y elegancia de su estilo, como por la doctrina que enseña de las obligacionaes que contituyen á los hombres buenos ciudadanos (apud CÍCERO, 1818 – meu destaque).

Entendo que essa preocupação em “ensinar as obrigações que constituem os homens em bons cidadãos” – e que é encontrada nas exortações de Bento Farinha, acima mencionadas – foi o que incitou a tradução dessa obra latina na língua portuguesa, especialmente se 8

Ver ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO (Portugal). Códice 423; carta de 22 de julho de 1766, ms. De outra parte, o mestre Alberto Jacqueri de Sales, da Aula de Comércio, também trazia ao alcance de seus alunos textos de teóricos do comércio, como Savary, Melon e Ustaritz. “Refira-se, contudo, que à semelhança do que acontecia na Europa no domínio das traduções, que muitas vezes não respeitavam os originais, mas que de forma bastante livre e eclética introduziam as ideias ou opiniões do tradutor e as características dos países de sua nacionalidade, aos ensinamentos de Savary acrescentou Sales no seu texto muitos outros” (VAZ, p. 80). 10 Ver Bibliografía hispano-latina clásica (Catulo-Cicerón). Edición preparada por Enrique Sánchez Reyes. Alicante : Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2008. [Edición digital a partir de Edición nacional de las obras completas de Menéndez Pelayo. Vol. 45, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1952. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/obra/bibliografia-hispanolatina-clasica-catulociceron--0/; acesso em: 10/02/2011].

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considerarmos ser ela uma obra reconhecida como “o tratado moral mais importante de Cícero” (SKINNER, p. 14). Para a moral ciceroneana, a principal virtude constituía-se na honestidade, de maneira que os sujeitos deviam sempre se conduzirem “da maneira mais virtuosa possível”, especialmente as pessoas que ocupassem posições de autoridade, as quais deveriam evitar qualquer desvio de conduta (SKINNER, p. 53). Nesse sentido, Quentin Skinner registra que, desde a Renascença, verificava-se a busca por uma educação “verdadeiramente humana”, a qual ofereceria “o melhor preparo para a vida política” e despertaria, em cada um, os valores necessários “para bem servir o nosso país: a disposição de subordinar os interesses privados ao bem público; o desejo de combater a corrupção e a tirania; a ambição de buscar os mais nobres fins entre todos: a honra e a glória não só pessoais, mas de todo o país” (SKINNER, p. 13). Para concluir este texto, considero que a formação de “bons cidadãos”, adotando o termo utilizado por Valbuena, foi o objetivo buscado pelo marquês de Pombal, com a criação da Aula de Comércio e do Colégio de Nobres. Esta disposição pode ser percebida naquilo que venho designando em outros trabalhos por “mecanismo político pombalino” (SANTOS, 2010), o qual deriva, em grande medida, de proposições originadas em textos de William Petty (1623-1687) e de Charles Davenant (1656-1714). Nesse sentido, é especialmente significativa a presença de um manuscrito com a tradução para o português de um livro de Charles Davenant dentre os diversos papéis transportados por Carvalho e Melo, desde Londres para Lisboa, quando do término de sua estada na corte londrina.11 Em “Observação sobre os methodos prováveis de fazer a huma nação lucroza no ballanço do Commercio” [An Essay upon the probable means of making a People gainers in the Ballance of Trade (1699)], um dos objetos de atenção de Davenant era justamente o de considerar “que um Pais não pode crescer em riqueza e poder senão fazendo os homens particulares seus deveres ao publico e por hum inteiro curso de honestidade e sciencia naquelles em cujos se repoz a administração dos negócios”. Assim, em linhas gerais, percebe-se que, durante o reinado de D. José I, a formação de homens capazes de “discernimento e de percepção” esteve associada à utilidade pública das atividades profissionais e à conduta moral, aspectos que, como foi mostrado, orientaram as reformas educacionais daquele período.

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Ver BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL. Coleção Pombalina. Códice 168 (ms.).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Ana Cristina (Coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra : Imprensa da Universidade, 2000. BERGERON, Louis. O homem de negócios. In: VOVELLE, Michel (Dir.). O homem do iluminismo. Lisboa : Presença, 1997, p. 99-116. Bibliografía hispano-latina clásica (Catulo-Cicerón). Edición preparada por Enrique Sánchez Reyes. Alicante : Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2008. [Edición digital a partir de Edición nacional de las obras completas de Menéndez Pelayo. Vol. 45, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1952. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/obra/bibliografia-hispanolatina-clasica-catulociceron--0/; acesso em: 10/02/2011] BOTO, Carlota. A dimensão iluminista da reforma pombalina dos estudos: das primeiras letras à universidade. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, p. 282-299, ago. 2010. CARDOSO, Tereza Fachada Levy. Intectuais ilustrados e docentes da escola pública no Rio de Janeiro. In: FONSECA, Thaís Nívia de Lima e (org.). As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte : Mazza Edições, 2011, p. 73-97. CARDOSO, Tereza M. R. Fachada Levy. As luzes da educação : fundamentos, raízes históricas e prática das aulas régias no Rio de Janeiro, 1759-1834. Bragança Paulista (SP) : Editora da Universidade São Francisco, 2002. CARRATO, José Ferreira. O iluminismo em Portugal e as reformas pombalinas do ensino. São Paulo : USP, 1980. CARVALHO, Rômulo de. História da fundação do Colégio Real de Nobres de Lisboa, 1761-1772. Coimbra : Atlântida, 1959. CÍCERO, Marcus Túlio. Los Oficios de Ciceron, con los dialogos de la Vejez, de la Amistad, las Paradojas, y el Sueno de Escipion, traducidos por Don Manuel de Valbuena, de las Reales Academias Latina-Madrilense, y Espanhola. Tercera Edicion. Madrid : Imprenta Real, 1818. [Versão digital, Google Books; disponível em: http://books.google.com.br/books?id=2zY9AAAAcAAJ&printsec=frontcover&hl=ptBR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false; acesso em: 10/05/2012]. CÍCERO. Ostres livros de Cicero sobre as obrigações civis / traduzidos em lingua portugueza para uso do Real Collegio de Nobres. Lisboa : Oficina de Miguel Menescal da Costa, 1766. [Biblioteca Nacional Digital (PT); disponível em: http://purl.pt/6476/2/; acesso em: 15/06/2011]. MARCADÉ, Jacques. Pombal et l'enseignement: quelques notes sur la réforme des Estudos Menores. O Marques de Pombal e o seu tempo, Tomo II. Coimbra : Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1982, p. 7-22. MELO, Sebastião José de Carvalho. Escritos econômicos de Londres (1741-1742). [Seleção, leitura, introdução e notas de José Barreto]. Lisboa : Biblioteca Nacional, 1986.

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A Escrita da História, Universidade Estadual de Londrina 12 a 15 de Outubro de 2012

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