Para instruir “Os Filhos Do Brazil”: o Tratado de Fortificação e Artilharia (Século XVII)

June 23, 2017 | Autor: Maria Luiza Cardoso | Categoria: História do Brasil, Historia Militar, Historia da Educação, História do Ensino Militar
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PARA INSTRUIR "OS FILHOS DO BRAZIL":
O TRATADO DE FORTIFICAÇÃO E ARTILHARIA (SÉCULO XVII)

MARIA LUIZA CARDOSO[1]

Resumo: O presente trabalho se propõe a apresentar à comunidade científica
o primeiro livro didático escrito no Brasil, que se tem conhecimento até o
presente momento, descoberto no Arquivo Histórico Militar, localizado em
Lisboa, durante a realização de um doutoramento "sanduíche" financiado pela
CAPES. O livro manuscrito, do século XVII, é constituído de tratados de
aritmética, geometria necessária à fortificação, e artilharia.
Infelizmente, não foi possível identificar seu autor, uma vez que estão
faltando algumas páginas no referido documento. Todavia, na sua
dedicatória, bem como nas orientações dirigidas ao leitor, o autor, antigo
militar residindo no Brasil, deixa clara a finalidade do livro: instruir o
exército da América portuguesa, principalmente, "os filhos do Brazil", na
arte militar, em especial, na disciplina, na fortificação, na fundição de
equipamentos de artilharia, e no emprego dos mesmos nas batalhas. O livro
se baseia nas lições que o autor "ouviu" de Pedro Vaz Pereira, engenheiro
matemático do Duque de Bragança, D. Theodosio. Ele lamenta a falta de
livros sobre a arte militar na Colônia, que, segundo ele, seria devido à
"distancia dos climas, e continuação das guerras, [...]". Por fim, destaca
que lhe pareceu digno empregar o seu tempo na escrita dos referidos
tratados, para que, agindo com conhecimento, os "filhos do Brazil"
chegassem à perfeição militar.


Numa época em que eram raras as aulas e os livros de matemática,
tanto em Portugal como, principalmente, na sua colônia americana, e a
língua empregada era o latim, foi escrito um livro na América portuguesa do
século XVII, contendo ensinamentos de aritmética, de geometria, de
fortificação e de artilharia, em português, para estudo domiciliar. O livro
foi encontrado no Arquivo Histórico Militar, situado em Lisboa, durante a
realização de um doutoramento "sanduíche" financiado pela CAPES, sob a
orientação da Profª Drª Diana Gonçalves Vidal, da USP.
Quanto à sua descrição física, podemos dizer que é um livro
manuscrito, do século XVII (não sabemos em que região da América portuguesa
foi escrito), elaborado entre os anos de 1641 e 1656, época em que o rei de
Portugal era D. João IV. Sabemos disso porque o livro foi dedicado ao
referido rei, quando ainda vivo. Infelizmente, não tiramos as suas medidas,
mas podemos afirmar que não ultrapassam as de uma folha de papel A4. Possui
348 páginas, está em bom estado de conservação, e é ilustrado com,
aproximadamente, 221 figuras e 18 tabelas desenhadas cuidadosamente pelo
autor, cuja finalidade é facilitar o entendimento das explicações
apresentadas no livro. Infelizmente, estão faltando 9 páginas, o que nos
impossibilitou de identificar o seu autor.
A finalidade do livro seria a de instruir o exército da América
portuguesa, principalmente, "os filhos do Brazil", na arte militar, em
especial, na disciplina, na fortificação, na fundição de equipamentos de
artilharia, e no emprego dos mesmos nas batalhas.
O livro foi escrito para ser estudado em casa, sem mestre, e, no caso
de uma guerra, o leitor teria a oportunidade de "aperfeiçoarse na pratica":
"aquy não tratamos mais, que de hum breve exercicio, pera os principiantes,
com o qual feito, em casa podem sair a guerra, onde podem aperfeiçoarse na
pratica". Mais adiante, o autor comenta que

he somente hum exercicio nobre (ou cartilha de principios)
pera o exercitante começar aprender em caza em quanto
moço, pera que quando sair á guerra facilmente conceba, o
aperceba a industria das mâchinas e as varias formas dos
esquadroes, e o como se batalha com elles.

O manuscrito se baseia nas lições que o autor "ouviu" de D. Teodósio,
Duque de Bragança, e do seu engenheiro matemático, Pedro Vaz Pereira.
Segundo Carvalho (2001: 382), em 1645 foi criado o colégio jesuítico
de Elvas, em Portugal, e, no ano de 1651, o príncipe D. Teodósio, filho de
D. João IV, freqüentou esse colégio, e desejou que a matemática fosse
ensinada ali.
Por estar Elvas situada em local fronteiriço com a Espanha, a
matemática era estudada, naquele colégio, nas suas aplicações à estratégia
militar, e freqüentavam-na os soldados e os oficiais daquela guarnição.
Assim, provavelmente, o autor do livro objeto do presente trabalho estudou
nesse colégio, e o período em que o livro, provavelmente, teria sido
escrito ficaria reduzido aos anos de 1652 até 1656.
Quanto ao conteúdo, o livro é constituído das seguintes partes, em
ordem de apresentação: Dedicatória ao rei D. João IV, composta de 4
páginas; Mensagem ao leitor, de 2 páginas; Ensinamentos de aritmética, com
123 páginas, 46 figuras, 9 tabelas e vários exercícios; "Geometria
necessaria pª fortificação", com, aproximadamente, 58 páginas, 66 figuras,
e vários exercícios; e "Tratado de Artelharia", constituído de,
aproximadamente, 161 páginas, 109 figuras, 9 tabelas (algumas ocupando
várias páginas), e exercícios.
Na dedicatória ao rei D. João IV, o autor a inicia narrando a
história de algumas monarquias, anteriores ao nascimento de Cristo, que
conquistaram seus impérios empregando a violência.
Depois de Cristo, São Paulo teria ensinado aos príncipes que eles
poderiam lograr a Cristandade, se aceitassem permanecer nas suas
jurisdições, sem ambicionar as terras alheias, o que não aconteceu, e fez
retornar a violência.
Assim, para se defender dos ambiciosos, o rei de Portugal seria
obrigado a armar os seus exércitos, fortificar as suas praças, fundir e
empregar artilharia, aumentar as armadas, a fim de evitar a violação dos
seus direitos como soberano.
Todavia, para que as forças e as máquinas empregadas nas guerras
dessem resultado satisfatório, seria necessário conhecer a arte militar.
Através do seu conhecimento seria possível disciplinar os soldados,
fortificar as regiões, fundir e empregar a artilharia.
O autor, como vassalo que devia obediência e lealdade ao seu rei, e
como estivesse velho e não pudesse guerrear, resolveu escrever seus
tratados para triunfo do reino, para proporcionar exercícios para o soldado
que quizesse transformar-se em capitão, e, também, porque acreditava que a
palavra escrita não se apagaria com o tempo.
Ele termina a sua dedicatória mencionando antigos reis portugueses, a
opressão do período em que Portugal ficou sob domínio castelhano, e a
entronização do rei D. João IV, "sem algum estrondo de armas".
Apesar do rei português ter assumido o poder sem se preocupar em criar
guerras, nem em procurar impérios, mas, somente, buscando manter a paz e o
sossego dos seus reinos e vassalos, era forçosa a guerra [provavelmente,
devido à ambição dos outros povos, principalmente, dos holandes que estavam
no Brasil].
Segue, abaixo, o texto original:


DEDICATORIA
A S R M
DEL REI NOSSO Sr. DOM JOÃO, O 4º
que Ds gde.


Todas as Monarchias do mundo forão perfilhação das
armas, os grandes exércitos abortaram os grandes impérios,
a que S. Gregório magno chamou violencia da natureza; por
ser a dominação tyrania da natural liberdade, em que Deos
creou ao homem; e Nem brot primeiro Rey que dilatou no
mundo Monarchias, entronisou seu imperio a poder de
violencias em Babilônia; como bem apontou S. Jheronimo
//arripuit insuetam, primus in populo tiranidem, regnauit
... in Babilone// violencias fizerão conhecida no mundo a
magestade de Nino; e e violencias magnificarão, e
destruirão as mayores Monarchias de todo o mundo,
discorrendo dos Caldeos, Mêdos, e Persas, athe os romanos
e o Abbade Ruperto avaliou todos os Imperios do mundo
(antes de Christo senhor nosso vir á terra) h~u roubo
universal //Quid Sunt imperia ni si guardam Latrocinia?//
Depois de encarnado o Verbo divino, Rey da paz universal
entre o céo, e a terra, ficarão morgado natural dos Reys,
os senhorios, e os vassalos obrigados á lealdade e
obediencia, que devem, a seus naturaes Principes; e S.
Paulo lhes ensinou esta vassalagem //Regibus tanguam prece
lentibus// Seculos dourados poderá lograr a Christandade,
se os Principes se contivêrão nas jurisdições, que lhes
demarcou o direito, e a vinculou a naturesa; porem a
ambição insolente, violando o seguro da paz comuã,
introdusio aos exercitos, rapina de impérios alheos
(lamentavel impiedade de tanto sangue catholico
desperdiçado, por ambiciosos caprichos, com belluîna
bruteza; que de bellua dedusirão muitos bellum, que he a
guerra //Quod belluarum própria sit et abomni humanitate a
liena tam perniciosa dissensio// como bem advertio
Stevvechio na sua grave dedicatoria á protecção de
Vegecio) que assasferino he o coração daquelle Rey, que
por invadir o atheo se deleita em tam horrenda carniceria,
como se vee nas guerras entre Catholicos; que fisera
Sancto Ambrosio em tanta desolação da christandade? quando
pella matança que fes o imperial exercito em Thesalonica
deffendeo com as mãos nos peitos a entrada da Igreia ao
Emperador Theodosio? mas em quanto faltão Ambrosios á
igreja catholica he força, e direito natural a defesa, á
invasão; resistencia , á tyrania; he força armar
exercitos, fortificar praças, forjar armas, fundir
artelharia, augmentar armadas, que sustentem o direito
natural injustamente violado, como vossaReal Magestade fas
deffendendo a coroa de Portugal, de que he natural Rey, e
Senhor; mas pêra serem de effeito as forças, e de préstimo
as machinas; he necessaria a arte militar, pera disciplina
dos soldados; a da fortificação pera defesa dos sítios; a
da fundição, pera o seguro da artelharia; a dimenção das
distancias, pera o emprego dos tiros; estas são as
demonstrações, e estes são os empenhos dos tratados, que
neste breve volume a Vossa Real Magestade offereço; e
estes devem ser os exercicios do soldado perfeito, pera
vir na guerra, a ser perfeito capitão: E como eu por
vassalo, e criado particular deva a vossa Real Magestade
obediência, e lealdade e a idade me tenha impossibilitado
pera o peso das armas (que muitos annos trouxe ás costas,
exercitando obediencia militar) Recorri ao natural gênio,
com que ordenei estes tratados por ostentação da lealdade,
em que já mostrou Catam, invicto nas armas que mayor
serviço fizera á Republica Romana no tratado militar que
escrevera; que nos muitos triumphos que alcanssara; que
triumphos conseguidos acabão com o tempo; os preceitos
escriptos, do tempo alcanssão gloriosos triumphos; e com
estes escriptos, o que eu não posso por so, e por velho,
poderão conseguir os portugueses, valerosos por estrela
natural, fazendose invictos com os preceitos da arte, a
cujas direcções o grande valor os fas impacientes, porque
a sphera de seus generosos peitos, encerra superiores
impulsos , as forças de todos os artifícios, e machinas
militares; e ainda que felices sucessos de nossos
portugueses antigos, e presentes dos exercitos victoriosos
de Vossa Real Magestade em todo o dilatado de sua
Monarchia, acreditem bem o valor da nação portuguesa; se
os portugueses accomodarem o altivo natural, ás
subordinações militares, poderão senhorear o mundo todo,
com seu esforço, illustrado da industria dos preceitos; de
que o grande Vegecio na sua arte militar vem a fazer tanta
importancia, que so a ella, e ao exercício das armas,
atribue toda a Magestade, com que os romanos dominarão o
mundo //Nulla e nim alia re videmus populum romanum orbem
subegisse terrarum, nisi armorum exercitio, disciplina
castrorum, usuq? Militia// E se pera o seguro dos
exércitos foi sempre tam importante a disciplina, pera os
Reys bem o mesmo Vegecio, a fazer toda a importância do
mayor império, porque necessariamente sera invencível a
Monarchia, e bellicosos os exercitos do Rey que na arte
militar for mais sabido //Necesse est enim invictam esse
rempublicam ____ Imperator militari arte percepta, quantos
voluerit faciat exercitus bellicosos// Entre todos os
Impérios do mundo foy particular filiação das armas, a
Monarchia portuguesa, na instituição que Deos fes deste
imperio, em os Campos de Ourique no decimo sexto Ano de
Vossa Real Magestade; o Senhor Rey Dom Affonço Henriques,
e vacilando a sucessão deste império no tempo del Rey Dom
João de Castella, por ser cazado com Dona Breatis filha
del Rey Dom Fernando, e da Rainha Dona Leonor telles, o
tornarão a estabelecer as armas, na protentosa acclamação,
no primeiro libertador, o Senhor Rey Dom Joam o primeiro;
e estando esta Monarchia de todo ja supîta, e quasi
propheticamente extincta, sesenta annos na oppressão
castilhana, miraculosamente se tornou a levantar, e
entronisar, em Vossa Real Magestade, sem algum estrondo de
armas; porque foy toda a gloria de Deos dos exercitos, que
com sua poderosa mão, deu a mão a Vossa Real Magestade,
assentandoo no throno, dos Senhores Reis de Portugal, seus
gloriosos progenitores; conservase Vossa Real Magestade,
na Monarchia, com o poder de seus exercitos, não inovando
guerras, nem procurando Imperios, senão buscando com esta
guerra, a paz, e soseguo de seus Reynos, e Vassalos; que
deve ser o fim de todas as batalhas; E este zello queria o
Stevvechio, em todos os movimentos das armas, dos Reynos,
e dos Imperios, fazendo que o fim das batalhas, não fosse
outro senão paz //Vt bello nihil nisi pax quasita
videatur// E como a Vossa Real Magestade he forçosa a
guerra, e no mayor aplauso dos triumphos soa sempre o
desconcerto militar dos portugueses, me dispus a ordenar
estes tratados; e resolvy dedicalos a Vossa Real Magde.,
não atrevido a instruir na disciplina, que Vossa Real
Magestade tem ouvido, de sugeitos insignes; mas porque
vendo os exercitos a Vossa Real Magestade affeiçoado a
estes tratados (emmendando os primeiro, nos archêtypos,
que dentro em sy tem tam vivos) se sugeitem os portugueses
ás regras, se aplique á fabrica das machinas, á industria
das fortificações, á formatura dos esquadrões, pera
ficarem senhores insignes dos perigos, e por industria, e
arte tam famosos, como em toda a redondesa são admiraveñs
por seu valor, e natural esforço. Vossa Real Magestade se
sirva receber benigno, os affeitos humildes deste leal
vassalo, alongado da mais viçosa patria, nestes matos do
Brasil; aonde o tempo, a auzencia, nem a distancia do
lugar, lhe podêram apagar as memorias de sua criação; e
posto que desgraças da fortuna, o tenhão de todo
consumido, espera renascer de suas cinzas frias, se Vossa
Real Magestade posêr seus benignos olhos, nesta humilde
offerta; que com tanto favor, podera atrazar os assintes;
cerrados da mesma fortuna. Guarde Deos a pessoa de vossa
real Magestade; acrescentandolhe os annos de Nestor, em
saude de ____, e os Reynos de Alexandre, em prosperidade
de Augusto.

Na mensagem ao leitor, o autor a inicia afirmando que Marte estaria
inquietando, injustamente, a monarquia portuguesa. Por isso, se dispôs a
escrever seus tratados, movido pelo respeito à essa monarquia.
Os tratados teriam sido escritos baseados nas suas memórias do que
ficou quando da época em que freqüentava as lições ministradas por Pedro
Vaz Pereira, que foi engenheiro matemático de D. Teodósio, Duque de
Bragança, e das orientações recebidas do próprio duque.
Ele oferece suas memórias aos portugueses, já cultos nas ciências
matemáticas, que saberiam estimar os seus tratados, pois "quem não sabe a
arte, não a estima", de acordo com o verso de Camões.
O autor faz questão de deixar claro, para o leitor, que não pretende,
através dos seus tratados, mostrar-se arrogante com a soberania do
magistério militar, mas apenas oferecer uma cartilha para o exercitante
começar a aprender em casa, enquanto moço, para que, quando saísse à
guerra, estivesse preparado para a batalha.
Os tratados foram escritos com o desejo de aproveitar o valor
português, e, principalmente, o dos "filhos do Brazil", admirados no mundo
por seu valor demonstrado nas guerras contra o domínio holandês.
E observa que, se por aqui passassem os livros sobre a arte militar,
poderiam os "filhos do Brazil" formar idéia dos elogios que lhe eram
feitos. Porém, devido à distância de Portugal e à continuação das guerras
[principalmente, com os holandeses], estariam suspensas as letras, de modo
que, por aqui não passariam os livros, nem se aprenderia a arte militar.
Nesse sentido, pareceu digno ao autor empregar o seu tempo escrevendo
seus tratados, principalmente, na nossa língua materna, a portuguesa, para
que, agindo corretamente, os "filhos do Brazil" chegassem à perfeição
militar, uma vez que já eram valentes.
E os que no reino conheciam a ciência e os livros poderiam reconhecer
a importância da elaboração desses tratados para o bem do império lusitano.
Finalmente, o autor menciona as partes do seu tratado, fazendo um
breve resumo delas, e encerra a sua mensagem com uma frase de Platão: "Que
o homem não nasça somente para si, mas, também, para a utilidade da sua
pátria, e proveito dos seus amigos".
Eis o texto, na íntegra:

AO LECTOR


Benêvolo lector? Em tempo que Marte revolve os
imperios, do mundo, inquietando injusto á Monarchia
portuguesa, em todas suas conquistas, me dispus a estes
tratados, encaminhados á deffença natural, por ser
deffensiva nossa milicia; movido de respeitos tambem, que
me obrigarão a este cuidado escrevendo remeniscencias, que
me ficaram na memoria das licções que ouvi de Pedro Vaz
pereira, engenheiro mathemático do Serenissimo Duque de
Bargança, o senhor Dom Theodosio de sancta memoria, de
cuja sabedoria recebi os primeiros oraculos, que conservei
como folhas sibillinas, em o desvariado discursso de
minhas peregrinações, que com ser pouco, não fis menos em
retelas, pera tempo tam desinquieto, que ás vezes largo a
penna por pegar no chusso[?]; estas offereço hoye aos
portugueses, ja cultos na disciplina, de que os mais
illustres se prêzão, fazendose doctos nas sciencias
mathemáticas, que saberão fazer destes tratados, a
estimação que espero, pois ja os não comprehende, o verso
do nosso Camoes (que quem não sabe a arte, não a estima)
por este estillo, não pretendo arrogante levantarme, com a
soberania do magistêrio militar, mas he somente hum
exercicio nobre (ou cartilha de principios) pera o
exercitante começar aprender em caza em quanto moço, pera
que quando sair á guerra facilmente conceba, o aperceba a
industria das mâchinas e as varias formas dos esquadroes,
e o como se batalha com elles; e o que destes tratados não
colher, a experiencia lho farâ manifesto, porque so
escrevo com dezeios de aproveitar ao valor portugues; e
muj em particular aos filhos do Brazil, admirados hoye no
mundo por seu raro valor, demonstrado nas guerras de
tantos annos, na remoção do jugo iniguo holandes, onde tem
obrado feitos tam admiraveis, que lhe não achamos exemplos
nas historias antiguas. E se a estas partes passassem os
livros, que desta arte estão escrittos, em varias linguas,
e os filhos do Brazil fossem versados nellas, pera
illustrar com os preceitos da arte, o valor da naturesa,
podêram formar idêas aos ellogios da fama; porem, como
pella distancia dos climas, e continuação das guerras,
estão suspenssas as letras, nem ca passam os livros nem se
aprende a arte, pareceome digna empresa do tempo ____ a
nossa lingua materna, estes principios da militar
deffença, pera que obrando com a arte os filhos do Brazil,
chegassem ao summo da perfeição militar, que so com sua
valentia, e esforço exercîtam, e os que no Reino tem mayor
esphera de sciencia, e livros, poderão nestes tratados
agradecer hum dezeyo incanssavel do bem comum, e do
augmento do imperio lusitano, a cuja stabilidade se
endereção tantos trabalhos com que hum vassalo leal deseja
servir a seu natural Rey e Senhor, e aproveitar a seus
naturaes; se a tanto desejo, responderem ingrattos, não he
este o primeiro beneficio, que desbaratou a ingratidão. He
este exercicio composto de partes, e todas em ordem,
assaber de arithmetica escolhida com que se fôrmão
esquadroes, a que se segue alguâ geometria necessaria á
fortificação, de que mostramos varias plantas; hum modo
facil de medir distancias, e hum tratado de artelharia com
as cousas necessarias e seu maneijo; com cujo pouco, fico
satisfazendo, á sentença de Platam, que quer, que o homem
não naça somente pera sy, mas tambem pera utilidade da sua
patria, e proveito de seus amigos, da qual sentença me
avey (Pio lector) por desobrigado, e a vos, por
satisfeito, de minha boa vontade. Valle.

Na primeira parte do livro, que diz respeito à Aritmética, o autor
aborda alguns dos seguintes assuntos, em ordem de apresentação: raiz
quadrada, regra de três simples e composta, proporções, pesos e medidas,
soma, diminuição, multiplicação e divisão de frações, e raiz cúbica.
Termina com a apresentação de várias regras para organização espacial dos
esquadrões nas batalhas, de modo a distribuir o espaço que cada pessoa
deveria ocupar num determinado terreno. Apesar de tratar-se de "hum breve
exercicio, pera os principiantes", o autor utiliza 66 das 123 páginas
destinadas à Aritmética para discorrer sobre este tema – organização de
esquadrões para as batalhas -, e o leitor é levado a aplicar os
ensinamentos aritméticos apresentados anteriormente. A finalidade do
"Compendio breve de formar esquadrões" seria ensinar a formar esquadrões
para "se guerrear com ordem, sem a qual, seria confusão; e desta, somente
ruinas se podião esperar".
Cabe ressaltar que as explicações contidas nessa parte do livro
relativa à Aritmética são seguidas de vários exemplos, contendo
demonstrações dos cálculos. Os exercícios propostos são constituídos de
perguntas seguidas das suas respectivas respostas para que o leitor possa
corrigir o seu raciocínio.
Os exercícios propostos estão voltados para a realidade de um leitor,
que parece ser o português que vive ou trabalha na Colônia.
Exemplos de exercícios propostos:
1) envolvendo proporção:
"Perguntasse – que porporção tera 6 com 12. Responde: Dupla porque
o consequente 12 contem duas vezes o antecedente 6".
2) envolvendo regra de três composta:
"Se 48 cruzados em oito meses, a 10. por cento ganharão 640
cruzados// Em quantos meses, 54 cruzados, a 15. por 100; ganharão 810
cruzados?"
3) outros exercício:
"Perguntarão a hum homem, quantos annos tinha. Respondeo que
acrecentandosse o meyo dos que tinha, e o terço, e o quarto, fazia 120".
4) envolvendo a vida em Portugal:
"Comprouse pimenta em Portugal por 20 cruzados, o quintal de 128
libras// Vendeste em Castella pelo quintal de 100 libras; â condição que
varião de avanço a 60 por cento do primeiro custo: Perguntasse quanto an de
dar pello quintal?"
5) envolvendo a realidade do português do reino, no Brasil:
"Mandou hum homem, do Brasil pera tres sobrinhos seus, que tinha no
Reino, 240 Oze(?) dizendo em sua carta que ao sobrinho mais velho dessem a
metade daquelle dinheiro, e o terço ao sobrinho do meyo, e o quarto ao
sobrinho menor".
Infelizmente, não foi possível analisar, detalhadamente, as outras
partes do livro, mas, poderemos apresentar um resumo das mesmas:
- "Geometria necessaria pª fortificação": o autor inicia este tratado
afirmando que, sem esta arte [da geometria], as ciências não poderiam ser
compreendidas, pois ela seria a porta de todas, principalmente, da arte da
fortificação. Ele explica o significado do termo "geometria" e das suas
origens gregas. Alerta o leitor que convêm àqueles que querem ser
engenheiros, saber, de memória, os primeiros seis livros do geômetra
Euclides. Finalmente, ressalta que, neste tratado, serão apresentados os
princípios da arte de fortificação, para fins de um exercício caseiro.

GEOMETRIA NECESSARIA Pª FORTIFICAÇÃO


Sem esta arte da geometria, mal se podem
alcançar as sciencias, sendo ella como he, porta de todas,
e na arte da fortificação mais necessaria, o mesmo nome o
mostra porque Geometria he um nome grego, composto de
verbo e nome demonstradores de seus ffeitos. Gêos e
Mêtros; metros quer dizer medir, geos terra e vem a dizer
o mesmo nome geometria; arte de medir: e como a
fortificação, he composta, e consta de medidas sem esta
mesma arte, mal se pode obrar, e menos entender. Convem
muito ao engenheiro, obrador de fortificações saber de
memoria os primeiros seis livros, do insigne geômetra
Euclides, e dos seus quinze, muitas, ou alg~uas
porposições encaminhadas a esse fim da fortificação;
contudo porque em alg~uas regiões, não se achão livros
desta arte, nem mestres que ensinem, como nesta que
habitamos, mostraremos parte da mesma arte, e seus
principios, que baste pera hum exercicio cazeiro, que he o
intento que nos obrigou a escrever este opusculo: e com
este conhecimento, quando o curioso sair a ver o mundo do
que vir, e do que ouvir a experiencia, lhe fara a arte
inteira.

Alguns assuntos abordados neste tratado, em ordem de apresentação:
ponto; linha; linha paralela; "linha curva, ou tortuosa"; ângulos;
superfície; "triangulos de todo o gênero"; "os triangulos se denominão, ou
de seus lados, ou de seus ângulos"; "em qualquer triangulo se oppoem a
mayor angulo, mayor lado, e a menor angulo menor lado"; "todo o triangulo,
de qualquer genero que seja, val dous angulos rectos"; "todos os
triangulos, que se formarem entre duas linhas paralelas, sobre a mesma
basis, necessariamte. serão iguaes"; "prova per geometria"; "conhecer o
valor d h~ua perpendicular"; "sabida a perpendicular, saber a âria deste
triangulo"; "outro modo melhor pª saber em que ponto da basis deste
triangulo cae a perpendicular"; "todos os angulos que se formarem em
qualquer ponto do semicirculo, eem qualquer parte que seya, nelle, pasando
as linhas pellos extremos do diametro são rectos"; "toda a linha que d h~ua
parte do diametro se levantar perpendicularmente, athe tocar a
circunferencia, esta tal linha, he meyo porporcional entre as duas que se
fizerão do mesmo diâmetro"; "hum exemplo da porposição retroproxima";
"pella mesma, formar hum quadrado igual em ária a hum rettangulo";
"descrever hum rettangulo igual em ârea a hum triangulo equilatero, e hum
quadrado, igual ao rettangulo, tudo na mesma figura"; "descrever hum
quadrado dentro de outro, e saber quanto he o lado do quadrado menor, e sua
hypothenusa"; "se h~ua linha, ou quantidade se partir em 2 partes o
quadrado de toda a linha serâ igual a ambos os quadrados das partes, e dous
rettangulos mais; compostos das mesmas partes"; "modo de sumar figuras";
"toda a figura que tem os angulos iguaes a outra, se chama semelhante, e
todo o triangulo semelhante, seus lados se hão porporcionalmente, relativo
a seu relativo"; "triangulos semelhantes"; "descrever hum lado, de tres
partes d outro proposto"; "linhas, menores h~uas que outras, a terça
parte"; "demonstração que ensina a multiplicar âreas superficiaes de
figuras regulares"; "partir h~ua linha em tal porporção, que tenha meyo, e
dous estremos"; "valor dos angulos das figuras regulares; em ordem";
"planta de h~ua fortalesa septâgona"; "planta de h~ua força octâgona,
regular"; "planta pera fortificar h~ua praça"; "instrucção pera o
exercitante traçar as forças, com fundamento, e regras necessárias";
"demonstração das medidas propostas, na praça d armas, alojamentos, e
cortina total, nesta figura quadrada, de recinto"; "conta, e modo como se a
de alojar em campanha exercito, e bagagem em fôrma quadrada"; "demonstração
do alojamento proposto, pera 1500 infantes, e 120 carros de bagagem";
"demonstração de h~ua força pentâgona pera se traçar, por regras
mathematicas cuya pratica se segue"; "regras aritmeticas, pera a
fortificação"; "outro exemplo, pera saber o lado, ou cortina"; "outro
exemplo; sabida a cortina, saber a área"; "medição de obras"; "medida de
obra escarpada"; "medição de fossos e suas despezas"; "outra proposta de
hum fosso"; "reduttos"; "proposta de hum alojamento"; "demonstração do
alojamento proposto"; "outra proposta sobre o mesmo alojamento";
"demonstração da segunda proposta"; e "das medidas, e suas partes".

- "Tratado de Artelharia": o autor inicia este tratado conceituando
"artilharia". Afirma que esta arte seria considerada nobre porque
envolveria muitos cálculos, principalmente, aritméticos e geométricos, e
seria considerado nobre aquele que a exercitasse. Os artilheiros, também,
deveriam ser premiados pelos riscos e perigos que corriam durante as
batalhas. Aliás, eles eram isentos de uma série de tributos, e possuíam
várias regalias, como, por exemplo, poderem dormir em suas casas, possuírem
um alojamento especial quando em campanhas, e acréscimos em seus soldos.
Depois, ele apresenta a origem latina do termo "bombarda", que é sinônimo
de artilharia, porém, utilizado na França. Afirma que a primeira peça de
artilharia [da Europa] teria sido fundida na Alemanha, e, muitos anos
antes, na China. Ao narrar a história da artilharia na Europa, o autor faz
referência a vários autores. Ele alerta o leitor para os perigos da
artilharia, principalmente, quando empregada sem conhecimento. Assim, "pera
se adestrar na mesma arte oferecemos neste tratado, o bastante, de que se
pode aproveitar o exercitante, que quizer saber della em caza, pera o ir
executar na guerra, pera vir a ter nome de capitão perfeito".
Alguns assuntos abordados neste tratado, em ordem de apresentação:
"dos metaes da artelharia"; "como se conhece o metal bom"; "fâbrica da
peça"; "dos generos das peças"; "das circunferencias, da culata, munhões, e
joya"; "planta da colebrina inglesa de ferro"; "planta de h~ua colebrina
legitima antiga"; "planta de h~ua colebrina reforçada"; "colebrina
bastarda; e como differe da legitima"; "traça de outra colebrina bastarda";
"traça de h~ua colebrina inglesa"; "traça de h~ua colebrina de campanha";
"grosso dos metaes, que an de ter as peças de ferro, de genero de
colebrinas mostrados por plantas, e seus diametros"; "traça de h~ua meya
colebrina, e instrucção de outras"; "traça de dous sacres, singello, e
reforçado"; "traça de falconetes, singello, e reforçado"; "falconete de
ferro"; "do segundo genero, de artelharia"; "traça de hum canhão legitimo";
"traça de outro canhão legitimo"; "traça de outro canhão legitimo";
"planta, e traça, de hum canhão frances, de que se colhe a differ~eça, que
ha, deste, ao legitimo"; "traça de hum triangulo"; "sacre de ferro: e como
deffêre do de bronze"; "sacre de bronze, inteiro, e como differe do de
ferro, no grosso dos metaes"; "traça de hum sacre bastardo"; "traça de meyo
canhão"; "traça de hum basilisco"; "traça de meyos canhões de ferro,
franceses"; "traça de hum canhão aleman"; "traça de hum canhão holandes";
"traça de hum falconete, e de hum ramalhete"; "dous modos de tirar o vento
â balla, de 1 athe 12 libras"; "outro modo de tirar vento á balla de 12
libras, pª baixo"; "regra de tirar vento á balla, de 12 libras pª sima";
"taboa das ballas que servem nas peças d artelharia, tirado o vento,
conforme o diametro da bocca"; "conta da polvora, no tiro ordinario";
"conta da polvora no tiro da batalha"; "polvora no tiro da prova" (polvora
no tiro ordinario e polvora no tiro da batalha); "outro exemplo, com
quebrado" (polvora do tiro ordinario e polvora do tiro da batalha); "outro
exemplo, com dous quebrados" (polvora, no tiro ordinario e polvora, no tiro
da batalha); "tiro comum"; "taboa de peças de bronze, de cana seguida";
"taboa das peças de ferro"; "resolução da conta da polvora, e inteiro
comprimento da culher"; "circunferencia da culata do meyo canhão"; "outra
demonstração de culher, p.la mesma regra"; "inscripção de distancias, e de
quantos passos geometricos curssão, as peças de que aqui fazemos menssão";
"taboa dos passos de alcance de meyo canhão; pelos graos do esquadro";
"demonstração, que ensina a uzar da taboa retroproxª com o meyo canhão
proposto nella"; "regra para se saber o alcance da colebrina real pôr cada
grao do esquadro"; "taboa, e conta, dos passos que cursa a colebrina real,
por cada grao do esquadro"; "demonstração que inculca o como se uza da
taboa enfronte do alcance da colebrina real plos graos do esquadro"; "metal
das peças a respeito das libras que tirão"; "comprimento das canas, de
peças d artelharia"; "das peças do terceiro gênero"; "traça de hum canhão
pedreiro encamerado"; "das peças de nova jnvenção, encampanadas"; "traça de
peça encampanada"; "regra da polvora nas peças do terceiro genero";
"polvora desta mesma peça no tiro da peleja"; "polvora desta peça pera o
tiro comum"; "polvora desta peça no tiro da batalha"; "taboa da polvora,
das peças do terceiro genero"; "taboa da polvora, das peças encameradas, e
encampanadas"; "figura geometrica com que se reparte o calibre das ballas
de ferro, chumbo e pedra"; "taboa com que se reparte o calibre das ballas";
"outro exemplo pera balla de 9 libras"; "demonstração geometrica"; "outra
demonstração pera quadruplicar corpos esphericos"; "outra demonstração, de
porporção quintupla, pella qual se saberão os diametros das ballas de 5 =
25 = e 125 libras"; "aos diametros dobrados, quantas libras respondem?";
"demonstração que ensina a diminuir corpos sphericos"; "diametros de onças
dobrados"; "outra demonstração pª saber o diametro da balla d meya libra";
"encavalgamento das peças d artelharia"; "inscripção do comprimento dos
reparos das peças"; "rodas das peças"; "das explanadas"; "instrumento de
medir distancias em peças"; "doctrina dos senos rectos, pera medir
distancias"; "outro exemplo na mesma figura pera saber o lado"; "taboa dos
senos abbreviada, cujo seno total he de 60000: e os minutos vão de 10. em
10."; "regra pera se uzar de todos os minutos"; "modo de medir distancias,
pella doctrina dos senos"; "analema, e demonstração da proposta"; "medir
h~ua longitudo"; "medir h~ua altitudo"; "medir h~ua profundidade";
"instrumento exacto pera medir h~ua ladeira, ou subindo ou decendo";
"instrucção do instrumento retroproximo de medir ladeiras"; "topographia de
5 lugares pª conhecer suas distancias"; "convem que saiba a regra dos tres
pontos, que mostramos"; "que saiba traçar hum ôvado com voltas do
compasso"; "como sabera a ârea de qualquer cilindro"; "que saiba duplicar,
ou diminuir hum corpo lateral, ou spherico"; "diminuir hum corpo lateral ou
spheral de modo que o lado, ou diametro d outro, seya a metade do
proposto"; "hade conhecer a polvora, e bom serâ saber fazela"; "salitre";
"pera refinar polvora"; "massa pª polvora ordinaria"; "para outras massas
de polvora, qse compoem"; "massa de fogo, que não se apaga, se não com
azeite"; "arteficios de foguo"; "se mostrase, como se fortalece o reparo:
saberâ traçar carretas, e reparos, e fazelas obrar"; "sabera conhecer se a
peça estâ avenenâda, pera prevenir o dãno, e darlhe remedio"; e "modo como
se prepara o azougue, pera se uzar delle, nos artificios de fogo".
O autor finaliza este tratado aconselhando o artilheiro a ter boas
conversações e a escolher as pessoas com quem conversa sobre artilharia:

CONVEM AO ARTILHEIRO, QUE TRAGA BOAS CONVERSAÇÕES


Não ha cousa que mais depressa corrompa a hum sugeito
bem disciplinado, que ruins conversações e convem, desviar
dellas, e he assim muy necessario ao estudioso de arte,
que depende de regras mathematicas, porque pera criar
habito nella lhe convem fazer muito exercicio, em suas
regras, pera aclarar a memoria e telas sempre muy
prezentes, porque avendo fastio da arte, ou descuido em
seu exercicio, facilmente lhe esquecera o sabido e ficara
perdendo, o que mais podia saber, e della aprender: e
porque a arte da artelharia, desde seu principio, athe o
fim de seu obrar, tudo são regras mathematicas, convem
muito exercitalas, pera dar boa rezão da mesma arte; e
pera isso he bom desviar, do estorvo que lhe pode fazer
daño, e buscar pera seu conversar, os que sabem da mesma
arte , porque perguntando della, e argumentando, vira a
saber claro o que lhe estava dantes encuberto, e movendo
questões da mesma arte curiosas, virâ a colher a resolução
dellas, fora da conversação dos estudiosos da arte, a dos
livros, que della tratão he a melhor porque falam calando,
e exercitam ensinando: e porque convem a cada qual ter
ponto de honra, em sua arte, ou oficio, deste modo se
conservará melhor, e assim fica livre de ser julgado
pellas conversações que tras, conforme o proverbio comum,
quando não são boas; e as que temos aprovado não somente
não distrahem, mas frequentam as potencias da alma, na
lição, e gosto da mesma arte, de que pretende tirar honra,
e proveito; e com o que avemos ditto, damos fim a este
tratado, que por falta de livros, e mestres, que a este
Estado não chegam me veo a custar mais trabalho, levado de
bom dezejo, que temos de aproveitar, com elle, aos que
desta arte desejão de aprender; e tudo seya pella gloria
de Deos nosso sor., e de sua santissima May.

Quanto ao perfil do autor, podemos afirmar que trata-se de um antigo
militar, proveniente do reino, residindo no Brasil: "Vossa Real Magestade
se sirva receber benigno, os affeitos humildes deste leal vassalo, alongado
da mais viçosa patria, nestes matos do Brasil; aonde o tempo, a auzencia,
nem a distancia do lugar, lhe podêram apagar as memorias de sua criação".
Já tinha idade avançada quando escreveu os tratados: "e com estes
escriptos, o que eu não posso por so, e por velho, poderão conseguir os
portugueses". Recebeu seus ensinamentos do Duque de Bragança e do seu
engenheiro matemático, Pedro Vaz Pereira: "das licções que ouvi de Pedro
Vaz pereira, engenheiro mathemático do Serenissimo Duque de Bargança, o
senhor Dom Theodosio de sancta memoria, de cuja sabedoria recebi os
primeiros oráculos". Parecia ter conhecimento de regras para ensinar, uma
vez que parte de explicações simples para complexas. Tinha a preocupação de
exemplificar o que explicava. Demonstrava, através de cálculos, os
resultados a que chegava. Empregava desenhos e tabelas para facilitar o
entendimento do leitor. Oferecia exercícios voltados para a prática do dia-
a-dia ou da guerra, acompanhados de suas respectivas respostas, devidamente
justificadas. Teria sido um professor militar? Parece que sim, uma vez que
diz na sua mensagem ao leitor que "por este estillo, não pretendo arrogante
levantarme, com a soberania do magistêrio militar". Parece ser uma pessoa
culta, uma vez que se expressa bem, demonstra ter conhecimento dos assuntos
que se dispõe a ensinar, e faz referência a vários autores.
Quanto ao perfil do leitor para o qual ele escreve o tratado,
arriscamo-nos a dizer que ele deveria ser um soldado jovem ("pera o
exercitante começar aprender [...] em quanto moço") que desejasse tornar-se
um perfeito capitão ("exercicios do soldado perfeito, pera vir na guerra, a
ser perfeito capitão"). Também, considerando os exemplos que o autor usa,
principalmente, no seu tratado de aritmética, parece ser o português ou o
homem branco que vive ou trabalha na Colônia.

REFERÊNCIAS:
CARVALHO, Rómulo de. História do ensino em Portugal. 3. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
Manuscrito do século XVII: "Tratado de Artelharia". Fonte: Arquivo
Histórico Militar (Lisboa).
SERRÃO, Joel; OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. (Dir.). Nova história da expansão
portuguesa: o império luso-brasileiro (1620-1750). Lisboa: Editorial
Estampa, 1991. Vol. VII.
VILLALTA, Luis Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e
leitura. In: SOUZA, Laura de Mello e (Org.). História da vida privada:
Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Cia. das Letras,
1997. Vol. 1.
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[1] Doutora em Educação pela USP, dedica-se à pesquisa no campo da história
da educação militar. Atualmente, é Chefe do Centro de Memória do Ensino
Militar (CME), da Universidade da Força Aérea (UNIFA), e Coordenadora do
Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação
Militar (NIEPHEM). Agência financiadora: CAPES.
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