Para lá da Esfera Académica: Práticas e discursos de identidade - A Luta pelo direito à terra.

June 5, 2017 | Autor: Eva Barrocas | Categoria: Anthropology, Culture
Share Embed


Descrição do Produto

Usos da Cultura Práticas e Discursos Identitários.

Mestrado em Antropologia – Especialização em Culturas Visuais Ano Lectivo 2014 /2015 - 2º Semestre/ Junho 2015 Disciplina: Usos da Cultura Docente: João Leal Discente: Eva Barrocas (43919)

Índice 0 - Introdução................................................................................................................3 1 - Cultura, Culturas ou Identidades – Uma perspectiva histórica......................... 4 1.1 – Antropologia Moderna (1920-1980) – Relativismo e Diversidade cultural.....5 1.2 – Antropologia Contemporânea – Abandono do conceito?................................. 6 2 – Para lá da Esfera Académica: Práticas e discursos de identidade - A Luta pelo direito à terra. .............................................................................................................. 8 2.1 – Body paint, feather and vcrs: Uma revitalização da estética indígena na Amazónia. ......................................................................................................................9 2.2- Tree-Hugers: O Movimento Chipko na Índia...................................................11 3 - Conclusão...............................................................................................................13 Bibliografia ................................................................................................................ 14

Introdução Numa primeira parte do ensaio pretendo relacionar diferentes definições e utilizações antropológicas do conceito de cultura. As primeiras definições de cultura assentavam sobre a ideia de que esta era a característica distintiva entre o ser humano e o resto do Reino Animal. Para Tylor (1871) diferentes práticas culturais correspondiam a diferentes períodos do desenvolvimento cultural do ser humano. Ou seja, a diversidade cultural existente era justificada pela fossilização de estados de desenvolvimento de uma só cultura universal. Durante o período da Antropologia Moderna (1920-1980), as culturas não ocidentais passaram a ser encaradas segundo uma perspectiva de pluralidade e diversidade. Culturas distintas passaram a ser definidas sistematicamente de forma unitária e isolada. No decorrer do desenvolvimento da Antropologia Contemporânea, a partir de 1980, surgiram novas linhas de pensamento numa perspectiva crítica sobre o conceito de cultura. A pesquisa etnográfica deixou de se focar numa procura pela coerência, unidade e definição dos sistemas culturais. Os antropólogos passaram a encarar as culturas como um conjunto de práticas e discursos existentes dentro de comunidades e estas foram redefinidas como redes sociais dinâmicas. Numa segunda parte proponho desenvolver uma reflexão sobre a utilização do conceito de cultura na sociedade. Serão apresentados e discutidos dois estudos de caso referentes à utilização do conceito de cultura em processos identitários ligados à recuperação do controlo de terras, florestas e recursos naturais pelas populações locais. O primeiro caso será a luta das populações indígenas da floresta amazónica do Brasil pelo controlo das terras através da criação de uma representação visual identitária (Conklin, 1997). O segundo caso a ser desenvolvido será o Movimento Chipko, que ocorreu nos anos setenta no Doon Valley, no estado de Uttarakhand na Índia (Shiva, 1993). O Movimento Chipko caracterizou-se por uma resistência nãoviolenta organizada pelas mulheres de Uttarakhand contra o corte de centenas de árvores e destruição florestal causada pela actividade mineira.

1- Cultura, Culturas ou Identidades – Uma perspectiva histórica. CULTURE or Civilization, taken in its wide ethnographic sense, is that complex whole which includes knowledge, belief, art, morals, law, custom, and any other capabilities and habits acquired by man as a member of society.

(Tylor, 1871, p.1) As primeiras definições antropológicas de cultura assentavam sobre a ideia de que esta era a característica distintiva entre o ser humano e o resto do Reino Animal. No final do século XIX, os antropólogos procuraram desenvolver métodos de recolha de informação completos e objectivos, já que anteriormente a informação etnográfica era recolhida maioritariamente por viajantes e depois analisada à distância pelo antropólogo. Para Edward Bernard Tylor (1871) diferentes práticas culturais correspondiam a diferentes períodos do desenvolvimento cultural do ser humano: “mankind as homogeneous in nature, though placed in different grades of civilization”

(Ibid, p.7). Tylor (1871)

utilizou um estudo comparativo para estudar os diferentes grades of civilization, que são definidos pelas práticas culturais e não através ideia de raça (Ibid, p7). Tylor (1871) utiliza a adaptação como motor de desenvolvimento e homogenidade cultural: And just as distant regions so often produce vegetables and animals which are analogous, though by no means identical, so it is with the details of the civilization of their inhabitants

(Ibid, p.8/9). O

método, que Tylor (1871) sugeriu para se realizar investigação sobre a cultura, foi directamente influenciado pelos métodos utilizados nas ciências exactas: What this task is like, may be almost perfectly illustrated by comparing these details of culture with the species of plants and animals as studied by the naturalist

(Ibid, p.8). A perspectiva desenvolvida por

Tylor sobre o conceito de cultura foi em grande parte influenciada pelo trabalho de Charles Darwin (1809-1882)1, que modificou a concepção da época da História do ser humano e introduziu a teoria evolucionista nas ciências naturais e nas ciências sociais. E, pelo trabalho de Charles Lyell (1797-1875) e James Hutton que revolucionou a Geologia e a História Natural, introduzindo conceitos como o Uniformitarismo e o Príncipio da Estratificação. A homogenidade e unidade da definição de cultura do século XIX e levou a que o sistema de valores ocidental fosse aplicado e desta forma limitasse o estudo do outro. 1 A obra The Origins of Species de Charles Darwin foi publicada em 1859 e a obra The Descent of Man em 1871

A assimetria de poder entre os antropólogos e as populações estudadas no século XIX era clara. A superioridade ocidental era fundamentada pela concepção hierarquizada da cultura apresentada por Tylor (1871). A diversidade cultural era secundária, estudada não pela sua importância em si, mas para compreender a história evolutiva da cultura, do ser humano. 1.1 – Antropologia Moderna (1920-1980) – Relativismo e Diversidade cultural. To the anthropologist, our customs and those of a New Guinea tribe are two possible social schemes for dealing with a common problem, and in so far as he remains an anthropologist he is bound to avoid any weighting of one in favour of the other. (Benedict, 1935, p.17)

Durante o período que definiu a Antropologia Moderna (1920-1980), as culturas não ocidentais passaram a ser encaradas segundo uma perspectiva de pluralidade e diversidade. Culturas distintas passaram a ser definidas sistematicamente de forma unitária e isolada: “A culture, like an individual, is a more or less consistent pattern of thought and action” (Benedict,

1935, p.46).

No decorrer do século XX, a Antropologia desenvolveu-se segundo duas tradições: Britânica e Norte Americana. As linhas de investigação britânicas definiram a Antropologia Social e estudaram populações não europeias. Os antrópologos desta corrente dedicaram-se à definição de sistemas de organização social, através de estudos multidisciplinares em áreas como economia, religião, política e parentesco, debruçando-se sobre a coerência e organização sociais. Nos Estados Unidos da América, desenvolveu-se o Culturalismo NorteAmericano, em que as culturas eram estudadas segundo uma perspectiva holística, ou seja, como unidades coesas que definiam a vida dos seus praticantes. O principal fundador desta corrente antropológica foi Franz Boas (1858-1942), seguido depois por antrópologos como Ruth Benedict, Margaret Mead, Edward Sapir entre outros. Segundo Benedict (1935) as práticas culturais eram determinadas por sistemas de valores e ideias que só poderiam ser entendidos quando estudados na sua totalidade e sem imposição de valores próprios: It was necessary first to arrive at that degree of sophistication where we no longer set our own belief over against our neighbour’s superstition

(Ibid,

p.19). As culturas funcionariam como um conjunto complexo e estruturado, em que o todo é superior à soma das partes (Ibid, p.53). Para Benedict (1935) o trabalho dos antropólogos seria uma ferramenta essencial para combater o preconceito em relação ao outro que prevalecia no Ocidente (Ibid, p.25). Partindo do estudo da diversidade de cultural e dos fenómenos de

aprendizagem cultural dos indíviduos foi possível argumentar que as culturas não eram complexos transmitidos biologicamente, mas sim aprendidos (Ibid, p.26). Desta forma, Benedict afastava o conceito de cultura do conceito de raça, em que este último era utilizado para definir um conjunto de linhas genéticas herdado biologicamente. Esta separação entre raça e cultura tinha sido introduzida por Franz Boas. Para Boas (1911) as diferenças a nível da tecnologia desenvolvida, organização, práticas sociais entre culturas derivavam de fatores exteriores e não eram determinados através da raça: On the other hand we have seen that no great weight can be attributed to the earlier rise of civilization in the Old World, which is satisfactorily explained as a chance. In short, historical events appear to have been much more potent in leading races to civilization than their faculty, and it follows that achievements of races do not warrant us in assuming that one race is more highly gifted than the other (Ibid,

p.17).

1.2 – Antropologia Contemporânea – Abandono do conceito? “I find myself frequently troubled by the word culture as a noun but centrally attached to the adjectival form of the word, that is, cultural. When I reflect on why this is so, I realize that much of the problem with the noun form has to do with its implication that culture is some kind of object, thing, or substance, whether physical or metaphysical. This substantialization seems to bring culture back into the discursive space of race, the very idea it was originally designed to combat “ (Appadurai, ,p.12

No decorrer do desenvolvimento da Antropologia Contemporânea, a partir de 1980, surgiram novas linhas de pensamento numa perspectiva crítica sobre o conceito de cultura. A pesquisa etnográfica deixou de se focar numa procura pela coerência, unidade e definição dos sistemas culturais. O uso do conceito de cultura dentro da Antropologia foi repensado e criticado por autores como Lila Abu-Lughod (1991) e Arjun Appadurai (1996) e Eric Wolf (2001). Os antropólogos passaram a encarar as culturas como um conjunto de práticas e discursos existentes dentro de comunidades, que também estas foram redefinidas como redes sociais dinâmicas. Segundo Wolf (2001), o conceito de cultura não é um fim em si mesmo, fechado e coerente: “Thus the culture concept is no panacea - it is, if anything, but a starting point of inquiry. Its value is methodological: "look for connections!" But it still takes work and thought to discover what these connections may be and, indeed, if any connections exist. Thus the culture concept can serve us well at the beginning of our inquiries. But it is not a useful prescription for a millenarian movement, and we would be most vulnerable were we to treat it as such” (Ibid, p. 394). A utilização

do termo cultura era limitadora na medida em que excluía as relações que existem e existiram historicamente entre culturas e que as definiram: “ in a majority of cases the entities studied by anthropologists owe their development to processes that originate outside them and

reach well beyond them, that they owe their crystallization to these processes, take part in them, and affect them in their turn” (Wolf, 2010, p. 395).

A capacidade de mudança, de adaptação e

dinamismo não eram incluídos na definição e utilização do conceito de cultura. E, é através do estudo destes processos que será possível atingir um grau mais complexo de conhecimento dentro da Antropologia. Abu-Lughod (1991) sugeriu que os antropológos se focassem em escrever contra o conceito de cultura, já que este se baseava numa visão essencialista do outro. Esta utilização do conceito de cultura estava muito próximo do conceito de raça. As culturas definidas unitáriamente continuavam a funcionar como instrumentos de distanciamento, de categorização, muito úteis na realização de discursos de poder: “culture” operates in anthropological discourse to enforce separations that inevitably carry a sense of hierarchy” (Ibid, p.137). Abu-Lughod (1991) propõe a realização de

etnografias do particular, de modo a questionar a hegemonia da relação entre o eu (antropólogo) e o outro (comunidade em estudo). Esta relação eu/outro foi fulcral para o desenvolvimento da Antropologia e baseou-se numa distinção inicial entre o West and The Rest. Com o desenvolvimento da Antropology at Home, o trabalho de antropólogos dentro das suas próprias comunidades e o surgimento de estudos feministas dentro da Antropologia, a hegemonia da relação eu/outro começou a dissolver-se juntamente com a definição teórica de culturas. Appadurai (1996) sugeriu a utilização do adjectivo “cultural” em vez do substantivo cultura já que este se baseia na diferença, na descrição da diversidade cultural, e não na definição de culturas como unidades:” Stressing the dimensionality of culture rather than its substantiality permits our thinking of culture less as a property of individuals and groups and more as a heuristic device that we can use to talk about difference (Ibid,

p.13).

Outros antropólogos contemporâneas como Bruman (1999) procuraram contrapôr as críticas ao conceito de cultura, apresentando definições alternativas e salientando a importância da sua utilização na Antropologia. Para Bruman (1991) o conceito de cultura deveria ser conservado, utilizado no plural, e define-o como “clusters of common concepts, emotions, and practices that arise when people interact together ” (Ibid, p.24). Desta forma, Bruman (1991) propõe a utilização do conceito de cultura como um conceito científico, sempre limitado já que pressupõe uma simplificação teórica da realidade. Bruman acrescenta que o conceito de cultura também deve ser definido pelo que não é: “Therefore, I propose that we retain “culture” the noun in its singular form and plural form and clarify for those non-anthropologists who are willing to listen what the

phenomenon so designated really is – which. As I have tried to emphasize, requires a very clear and definite formulations about all the things it is not” (Ibid, p.36).

A utilização do conceito

de cultura foi alvo de discussão dentro da esfera académica. Apesar de se ter ponderado o seu abandono, tanto o termo cultura, como culturas e cultural continuam a estar presentes tanto nos discursos antropológicos como na esfera pública. Porém, houve uma procura de novas expressões e formulações antropológicos que não se prendessem com as críticas ao conceito de cultura. Uma expressão que passou a ser utilizada para descrever fenómenos culturais foi práticas e discursos de identidade. Num mundo em constante conexão e movimento, é essencial que as grandes teorias da globalização também sejam estudadas dentro da Antropologia, cruzando escalas de análise entre o local e o supralocal. É útil que ocorra em simultâneo uma presença enraízada no local e com as pessoas, relacionando uma análise periférica sobre as redes de influência que determinam as transformações que nele ocorrem. Como escreveu Clifford (2000):“Cultural anthropology has characteristically made two irritating but crucial interventions, calling everyone up short: 'What else is there?' Not so fast!'

(Ibid, p.102)

2 – Para lá da Esfera Académica: Práticas e discursos de identidade - A Luta pelo direito à terra. “in many ways, identity was coterminous with “culture.” However, today the very concept of culture—which has always been subject to numerous and contested definitions—is rapidly losing its authority to designate a bounded, politically cohesive group. From the point of critical theory in anthropology, culture was always more a heuristic ascription of the anthropological imagination than anything that might objectively inhere within some collective”

(Lewellen, 2003 , p.162) O conceito de cultura no singular, e mais tarde também a sua utilização plural, migraram para fora da esfera académica da Antropologia. Apesar da discussão teórica sobre o conceito de cultura e as implicações da sua utilização, este foi adoptado pelas sociedades. O uso do conceito tornou-se comum e uma ferramenta fulcral no desenvolvimento de práticas e discursos identitários tanto a nível dos Estados Nação como em situações de empowerment de minorias étnicas. Inicialmente, os discursos identitários pressupunham uma ideia de coesão e autenticidade herdada das primeiras definições de cultura. Contudo, desenvolveu-se uma consciência crítica sobre a valorização da autenticidade nos discursos de identidade, na medida em as comunidades não são unidades fechadas, mas sim redes dinâmicas e em conexão: “In the very real sense that no society has been entirely immobile or historically isolated, all cultures and

identities are hybrids, intermixtures of multiple confrontations between unequal societies in complex interaction with the demands and constraints of particular ecosystems”

(Lewellen, 2003, p.162).

Ao longo das últimas décadas, as práticas e discursos de identidade têm se desenvolvido como formas de resistência contra as os impactos da globalização e, simultaneamente, como forma de adaptação a mundo em constante conexão. A luta pela posse e o controlo da terra e propriedade foi realizada através de processos de produção de identidade cultural através de uma recuperação de práticas culturais ancestrais e de uma construção da sua representação e sobrevivência enquanto comunidades. As práticas culturais não são apenas valorizadas internamente pelas comunidades, mas são também uma forma de posicionamento no mundo. As ferramentas de afirmação identitária têm-se demonstrado essenciais na criação de políticas de reapropriação e luta pelo direito à terra. 2.1 – Body paint, feather and vcrs: Uma revitalização da estética indígena na Amazónia. As práticas e discursos envolvidos na luta pelo direito à terra envolveram questões relacionadas com a integridade e autenticidade cultural dos grupos étnicos. Apesar de na esfera académica, a importância da integridade e do fechamento como características essenciais das culturas ter sido questionada e desvalorizada, estes conceitos permaneceram na esfera pública. A luta das populações indígenas brasileiras pelo controlo das terras na floresta amazónica ocorreu através da criação de uma representação visual identitária (Conklin, 1997). O governo brasileiro tinha vindo a ocupar gradualmente as terras da Amazónia Em 1972, foi inaugurada a rodovia transamazónica que liga o Norte do Brasil ao Peru e Equador, trespassando territórios indígenas. A PAC (Políticas de Aceleração do Crescimento) incluía a construção de grandes infra-estruturas na Amazónia, como as barragens e centrais eléctricas de Altamira no rio Xingú. Segundo Conklin (1997) a revitalização da imagem exótica do indígena brasileiro foi uma estratégia de comunicação que permitiu, devido ao seu valor simbólico, um aumento da atenção global para os problemas indígenas e a criação de uma parceria com o movimento ambientalista. A criação da imagem dos indígenas brasileiros apresentada por Conklin (1997) foi fomentada por uma necessidade de demonstrar autenticidade e integridade cultural, tornando-se numa ferramenta na luta pelo direito à terra. Porém, esta imagem foi uma representação simultaneamente baseada numa revitalização de tradições extintas e uma construção baseada em ideias ocidentais. Em diversas tribos o nu e as pinturas corporais já não faziam parte do quotidiano das populações: “Native Amazonians who once took paints to hide external signs of indigenous identity behind mass-produced

Western clothing now proclaimed their distinctiveness with headdresses, body paint, beads and feathers. (...) It is equally clear that this shift responds not only to indigenous values and internal

(Conklin, 1997, p.712). Na tribo Wari, por exemplo, a utilização de roupas ocidentais e o abandono do nu foi uma estratégia para afastar o voyerismo dos colonos ocidentais. Contudo, esta implementação deuma estética ocidentalizada não significou que ocorresse assimilição dos Wari na sociedade brasileira, já que mantiveram a sua língua, os casamentos dentro da comunidade, e as suas actividades de subsistência como a pesca, caça, agricultura e obtenção de alimentos e matérias primas diretamente da floresta. O nu e as pinturas corporais foram utilizados como indicadores identitários não porque são práticas utilizadas pelas comunidades, mas a imagem exótica do indígena serve como um indicador de autenticidade cultural para o mundo exterior. A imagem do indígena brasileiro que se tornou comum nos media, foi construída a partir de uma seleção entre a vasta variedade de tradições culturais amazónicas. Segundo Conklin (1997) houve uma exclusão de indicadores de práticas que não iam de acordo com os valores ocidentais, como o canibalismo, ou que chocassem e causassem desconfronto, como a utilização de parte do escalpe rapado, o corpo oleado ou pinturas com tintas de odor forte. Também foram excluídos elementos que prejudicassem a associação do movimento indígena com o movimento ambientalista. Os colares e pulseiras de dentes de macaco e jaguar não são utilizados. Com o desenvolvimento tecnológico do século XX e XXI, as redes de comunicação mundial permitiram um maíor acesso da populaca o a meios de comunicaca o de longa dista ncia. Os fatores a actuar localmente são originários de redes de influe ncia globais. No caso apresentado por Conklin (1997), o discurso e representação criada e utilizada pelas comunidades indígenas amazónicas foram uma estratégia aberta, na medida em que o discurso identitário foi construído com e para o exterior. Ou seja, as práticas e discursos identitários indígenas dominantes (nem todas as comunidades amazónicas adoptaram a imagem do indígena apresentada) foram produzidas em função do estabelecimento de relações económicas, políticas e sociais com o exterior, com o resto do mundo. A revitalização da exotic body image foi paradoxal. Foi simultaneamente uma reafirmação étnica e um processo de assimilação cultural: Native activists face a quandary: they can forge alliances with outsiders only by framing societal dynamics, but also to foreign ideas, aesthetics, and expectations about Indians.”

their cause in terms that appeal to Western values and ideas about Indians, but this foreign framework does not necessarily coincide with indigenous peoples’ own visions of themselves and the future”

(Conklin, 1997, p.726).

2.2- Tree-Hugers: O Movimento Chipko na Índia.

“Three hundred years ago more than 300 members of the Bishnoi community in Rajasthan, led by a woman called Amrita Devi, sacrificed their lives to save their sacred khejri trees by clinging to them. With that event begins the recorded history of Chipko” (Shiva,1988, p.64).

O segundo Movimento Chipko (chipko significa abraço) ocorreu nos anos setenta no Doon Valley, no estado de Uttarakhand na Índia (Shiva, 1993). O Movimento Chipko caracterizou-se por uma resistência não-violenta organizada pelas mulheres de Uttarakhand contra o corte de centenas de árvores e destruição florestal. Em 1986, as comunidades da região Thano-Malkot instalaram um acampamento na estrada que seguia para a zona mineira, para impedirem a chegada de mais camiões e trabalhadores para a extrair calcário. A existência e funcionamento destas minas contrariava as medidas anti-desflorestação estabelecidas no Forest Conservation Act de 1980 e a licença de exploração tinha expirado em 1982 (Shiva, 1993, p.246). Ocorreram confrontos violentos entre os mineiros e os habitantes de Nahi-Kala, que se manifestavam pacificamente contra a destruição florestal e a poluição dos recurso hídricos causada pelas minas. Estas minas eram exploradas há mais de vinte anos por um empresário local, o Gujral: “Sinsyaru-ka-Khala was a narrow perennial stream full of lush sinsyaru bushes. Today it is a wide barren bed of limestone boulders. With the destruction caused by mining our water, mills, forests and paddy fields have been washed away. When Gujral first came he was in rags. (...) Today, after having robbed our mountain for 26 years. Gujral is a rich man with 12 trucks who can hire armies of thugs to trouble and attack us, as he hired armies of labours to dig our montain.”

(Itwari Devi em Shiva,1993, p.247)

Os habitantes de Nahi-Kala, liderados por mulheres locais como Itwari Devi e Chamundeyi, uniram forças para proteger a terra e os recursos naturais que tinham alimentado as suas famílias há gerações, mas que agora eram explorados e consequentemente destruídos por interesses privados. Trinta e uma comunidades tinham gerido sustentavelmente e em conjunto as terras que estavam a agora a ser destruídas (Bandopadhyay & Shiva, 1987). Com a contínua exploração intensiva do Doon Valey, houve uma necessidade de união social e cultural que permitisse a recuperação de um modo de vida de subsistência e auto-sustentável. As mulheres das

comunidades rurais de Doon Valey uniram-se numa estratégia que levou ao seu empowerment e ao desenvolvimento de um dos primeiros movimentos ambientalistas a questionar o direito de explorações privadas destruírem bens comuns (àgua, ar, biodiversidade, solos etc). As mulheres tiveram um importante papel neste movimento porque agricultura de subsistência era maioriatariamente uma actividade feminina. O discurso das mulheres do movimento Chipko é fomentado por uma inclusão das arvóres, dos rios e da biodiversidade como parte fundamental da sua cultura e sobrevivência das comunidades: “That is why it is ‘primitive’, ‘backward’ women, who do not buy their needs from the market but produce for themselves, who are leading Chipko”

(Shiva, 1993,

p.250). Desta forma, desafiaram o domínio de uma política antropocêntrica e capitalista. Houve uma recusa dos valores ocidentais que visavam o desenvolvimento e expansão de sociedades baseadas no consumo e numa utilização intensivos dos recursos naturais. Contrariando as tendências capitalistas que se espalhavam através da globalização e liberalização dos mercados, as mulheres de Chipko defenderam um regresso às tradições e práticas culturais de subsistência e sustentabilidade: “The economies of many Third World communities depend on biological resources for their sustenance and well-being. In these societies, biodiversity is simultaneously a means of production, and an object of consumption. The survival and sustainability of livelihoods is ultimately connected to the conservation and sustainable use of biological resources and all their diversity”

(Shiva, 1993, p.165). As

mulheres abraçaram as àrvores e entoaram o slogan “Sister, it is a fight to protect/Our mountains and forests/They give us life/Embrace the life of the living trees/And streams to your hearts/”(Shiva, 1993, p.247). Os discursos foram dirigidos às próprias

comunidades e não ao exterior. O protesto pacífico, os hinos e as palavras de ordem utilizados pelas mulheres de Chipko reforçaram as relações que se tinham perdido entre as comunidades de Doon Valley. No movimento Chipko, houve um regresso a práticas e modos de vida tradicionais através da formulação de um discurso identitário no feminino e baseado na manutenção da biodiversidade, dirigido às próprias comunidade locais.

A

estratégia de empowerment desenvolvida teve como objectivo o desenvolvimento de independência política e económica das comunidades do Doon Valley, através da recuperação e implementação de métodos agrícolas locais transmitidos entre gerações.

Conclusão As primeiras definições de cultura assentavam numa visão fechada e sistematizada das diferentes práticas culturais existentes. No século XIX, a assimetria de poder estabelecida entre os antropólogos e as populações estudadas era fomentada por uma visão evolucionista da cultura e por um domínio ocidental em países da América do Sul, Índia, ou África. As sociedades com culturas distintas eram definidas sistematicamente de forma unitária e isolada. No decorrer do século XX, as formulações antropológicas afastaram-se da procura pela coerência, unidade e definição dos sistemas culturais. Os antropólogos adoptaram uma visão mais ampla dos fenómenos culturais, que passaram a ser descritos como práticas e discursos existentes nas comunidades. Em países que sofreram domínio colonial, as comunidades que praticavam um modo de vida baseado na agricultura de subsistência perderam o direito de exploração das terras e viram as florestas que lhes forneciam o sustento serem destruídas. Desta forma, perderam a sua independência política e financeira. Comunidades inteiras tornaram-se dependentes de grandes cadeias de produção exteriores, do turismo cultural ou então foram integradas em redes de exploração e produção de mercadorias para a exportação. Estas comunidades foram e são alvos da acção de diversas forças sociais e políticas externas e internas, que desafiam o seu espaço e posicionamento no mundo globalizado. A partir do século XX, começaram a ocorrer movimentos identitários de empowerment de comunidades que tinham ficado à margem da globalização. Foram desenvolvidas estratégias que permitissem recuperar práticas culturais, terras e modos de vida que tinham sido ameaçados. No Brasil, desenvolveu-se o movimento de direito à terra indígena. A luta pela recuperação do direito à terra foi desenvolvida através de práticas e discursos identitários. A luta das tribos amazónicas pela recuperação do seu território foi desenvolvida através da criação da imagem exótica do índio brasileiro para atrair e fomentar parcerias com o movimento ambientalista e a atenção mundial. Foi adoptada uma estratégia com foco no exterior. A imagem do índio brasileiro circulou nos media e na internet de forma a atrair a atenção do público mundial para a luta pelo direito à terra. No caso do movimento Chipko foi adoptada uma estratégia de discurso e desenvolvimento interna, que não visava a participação exterior. Ou seja, as práticas e discursos identitários foram desenvolvidos para e dentro das comunidades de Doon Valley. As práticas e discursos utilizados pelo movimento Chipko promoveram a

independência política e económica das comunidades do Doon Valley, através de um discurso de “regresso à terra”, reafirmando a sua ligação cultural com as florestas e a recuperação de práticas agrícolas locais. Em ambos os estudos de caso ocorreu uma revitalização dinâmica e selectiva de certos elementos do seu passado cultural: “ To imagine a coherent future, people selectively mobilize past resources. Articulation of tradition, never simply backward-looking, are thus generative components of peoplehood, ways of belonging to some discrete social time and place in an interconnected world”

(Clifford, 2000, p.99).

Bibliografia Abu-Lughod, Lila, 1991, “Writing Against Culture” Fox, R. (ed), Recapturing Anthropology. Working in the Present, Santa Fe, School of American Research Press 137-162. Appadurai, Arjun, 1996, Modernity at Large. The Cultural Dimensions of Globalization, Minneapolis, University of Minnesota Press. Bandopadhyay, J, Shiva, Vandana, 1987, “The Chipko Movement Against Limestone Quarrying in Doon Valley” in Lokayan Bulletion, 5:3 18-25. Benedic, Ruth (1935) Patterns of Culture, New York, The New American Library. Boas, Franz. 1911, The Mind of Primitive Man, The Macmillan Company, San Francisco. Bruman, Christoph, 1999, “Writing for Culture”, Current Anthropology 40 Supplement February, 1-13. Clifford, James, 2000, “Taking Identity Politics Seriously: 'The Contradictory, Stony Ground...'”Gilroy, P, L, Grosberg & M, McRobbie (eds), Without Guarantees. Essays in Honour of Stuart Hall, London-NY, Verso, 94-112. Lewellen, Ted, 2003,“The Politics of Identity: Ethnicity and Nationalism“, Political Anthropology, Praeger, London. Shiva, Vandana, 1993, “The Chipko Women’s Concept of Freedom”, in Mies, M. & Shiva, V. (ed) Ecofeminism, London, Zed Books, 246-251. Tylor, E. B., 1871, Primitive Culture, Vol.1, London, John Murray. Wolf, Eric, 2001 (1984), “Culture: Panacea or Problem?” in Pathways of Power. Building an Anthropology of the Modern World, Berkeley, University of California Press: 307-319.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.