Para não perturbar os mandarins irritados: a propósito de um parecer do Procurador-Geral da Coroa (1847)

June 2, 2017 | Autor: A. Vilhena de Car... | Categoria: Legal Pluralism, China studies, Extraterritorial jurisdiction, Macau
Share Embed


Descrição do Produto

Revista do Ministério Público 146 : Abril : Junho 2016 [ pp. ??-?? ]

Para não perturbar os mandarins irritados: a propósito de um parecer do ProcuradorGeral da Coroa (1847) António Vilhena de Carvalho

SUMÁRIO: 1. O Procurador-Geral da Coroa, o poder dos mandarins, e a jurisdição portuguesa em Macau. 2. O pluralismo jurídico e a aplicação do direito nas comunidades estrangeiras na China. 3. Macau no século XVIII: a dupla ilusão. Anexo: Parecer do Procurador-Geral da Coroa de 30 de julho de 1847.

1. O Procurador-Geral da Coroa, o poder dos mandarins, e a jurisdição portuguesa em Macau Em julho de 1847, José Cupertino de Aguiar Ottolini, então Procurador-Geral da Coroa emite, a pedido do Ministério da Marinha, um parecer no qual se pronuncia sobre a pretensão do Governador de Macau em ver revogado um dos parágrafos do Regimento da Ouvidoria de Macau, aprovado por Alvará de 26 de março de 1803[1]. O parágrafo 6.º deste Alvará estabelecia que nos casos de homicídio em que a vítima fosse um cidadão chinês e o réu incorresse em pena de morte, se seguisse um procedimento [1]

Arquivo Histórico da Procuradoria-Geral da República, Livro de Registo de Pareceres, Guerra, Marinha

e Estrangeiros, Vol. 5, 1847-1848, fls. 67v-68v. O parecer encontra-se transcrito em anexo a este texto.

[ 48 ]

Revista do Ministério Público 146 : Abril : Junho 2016

especial. Em lugar de ser o réu, como era norma, remetido com os autos e a sentença à Relação do Estado, para se reverem nela e executar-se,[2] cabendo por isso a Goa os ulteriores termos da condenação proferida em primeira instância, lançar-se-ia mão de um procedimento expedito que terminaria pela execução da sentença de morte, sem admissibilidade de recurso, em Macau. A justificação para esta limitação extrema das garantias de defesa, dá-as o próprio Regimento: evitar o risco, perturbações, e incómodos, que se segue à Cidade e ao Comércio dos seus Moradores, da parte dos Mandarins Chinas, sendo a exclusão do direito de recurso, o preço a pagar para que os Meus Vassalos [sejam] julgados por Minhas Justiças, em lugar de entregues à Barbaridade, e insultos dos ditos Mandarins. O Procurador-Geral da Coroa mostra-se sensível às razões que ditaram a solução contemplada no Regimento. Utilizando linguagem que segue de muito perto a do próprio Alvará, e consciente do perigo de perturbações, barbaridades, e insultos a que [Macau] ficava exposto da parte dos Mandarins irritados com a morte de alguns dos seus nacionais, quando não era castigado com prontidão, propõe prudência na hora de decidir se a norma contenciosa deve ou não revogar-se. Macau, tão distante do centro da Monarquia e destituído de força própria, só com muita habilidade e indústria poderá ser sustentado, e convém evitar com todo o desvelo quaisquer conflitos que o possam arriscar. Por isso, um passo precipitado pode ser grandemente danoso. Independentemente da leitura realista que porventura faz das circunstâncias históricas que rodeiam a presença portuguesa naquele território, o parecer ostenta, à data em que é proferido, um duplo anacronismo. Em primeiro lugar, porque é contemporâneo do impulso que Ferreira do Amaral, Governador de Macau desde 1846, dá à autonomia de Macau, afrontando os mesmos Mandarins que o parecer não quer perturbar. Num território onde até então a partilha de poder entre portugueses [2] Última frase do parágrafo 5.º do Alvará.

[ 49 ]

Para não perturbar os mandarins irritados: a propósito de um parecer do Procurador-Geral da Coroa (1847): António Vilhena de Carvalho

e chineses era a norma, e sendo de igual modo a existência de populações sujeitas a diferentes jurisdições pessoais, e a diferentes instituições para as aplicar, o padrão que vinha de há séculos, começa a desenhar-se uma situação de típico domínio colonial. O alargamento e ocupação de território, o afastamento das alfândegas chinesas, a progressiva colocação das populações chinesas sob a jurisdição portuguesa e sujeita ao pagamento de impostos, a supressão dos símbolos da autoridade chinesa sobre Macau, são algumas das medidas de Ferreira do Amaral que denunciam o propósito de tornar exclusivo o exercício de poderes soberanos sobre Macau[3]. Se o parecer se encontra em linha com o teor da linguagem empregue no Alvará de 1803, que é em grande medida o retrato de um estado de coisas que vem de trás, está ao mesmo tempo muito distante da atmosfera que na pequena península do sul da China já se respira no final da primeira metade do século XIX. Mas o parecer é anacrónico também por não deixar perceber que os equilíbrios de poder no extremo da Ásia estão, à época, em acentuada mudança. A I Guerra do Ópio (1839-1842), que opôs potências europeias ao império chinês, não serviu apenas de pretexto à expansão ocidental no sul da China. À abertura dos portos que se produz por força dos “tratados desiguais” impostos aos Qing no final da contenda, acresce a configuração de um novo aparato imperial, que assegura para os nacionais daquelas potências que se estabeleçam na China, o privilégio de um regime jurídico próprio, com a consequente exclusão da aplicação, em território chinês, do direito chinês[4]. À extraterritorialidade garantida pelos britânicos nos Tratados de Nanjing e de Bogue (Humen) em 1842 e 1843, seguem-se em 1844 Tratados celebrados pela China com a França [3] Cfr. Teresa Lopes da Silva, “João Maria Ferreira do Amaral”, in Governadores de Macau, Jorge Santos Alves e António Vasconcelos de Saldanha (coordenadores), Livros do Oriente, 2013, p. 210-217. É de sublinhar que pouco antes da assunção por Ferreira

do Amaral do cargo de Governador de Macau, fora formalmente criada, em 1844, a “Província de Macau”. [4] A aplicação extraterritorial do direito que assim se produz, através de instituições próprias que exercem poderes

jurisdicionais no interior de um Estado estrangeiro, configura, na perspetiva de Turan Kayaoğlu, uma situação semicolonial. Cfr. Turan Kayaoğlu, Legal Imperialism: Sovereignty and Extraterritoriality in Japan, the Ottoman Empire, and China, Cambridge University Press, 2010, p. 2.

[ 50 ]

Revista do Ministério Público 146 : Abril : Junho 2016

e os Estados Unidos consagrando igual solução, limitando durante um inteiro século, de modo significativo, o exercício de poderes soberanos pela China em território chinês. Outras potências, maiores ou menores, seguirão depois na senda do caminho traçado nos anos iniciais[5]. A extraterritorialidade é assim vista, por europeus e americanos, como a fórmula capaz de afastar a interferência de uma administração judicial julgada despótica e arbitrária, e a aplicação de um direito que não se julga ajustado ao propósito civilizador das novas dinâmicas imperiais. O século anterior tinha testemunhado várias situações de conflito envolvendo comerciantes ocidentais e autoridades chinesas na zona de Cantão[6]. A gravidade de algumas delas, pela potencial perturbação dos interesses económicos em jogo e pela ressonância que geraram na opinião pública europeia, induz por isso, num momento em que a China está incapaz de fazer valer a sua vontade, a ensaiar um novo modelo de articulação entre as potências que se movimentam na Ásia, e o frágil império chinês, e que passa pelo afastamento, em circunstâncias especiais, da capacidade deste de impor o seu poder e de aplicar o seu direito. O Procurador-Geral da Coroa não é desconhecedor desta realidade. Ele próprio fora autor de um parecer, três anos antes, no qual se [5] Portugal assegurará também a extraterritorialidade para os seus nacionais nos portos de tratado, ao abrigo da Convenção que celebrará com a China em 1887. Refira-se, todavia, que o Decreto de 29 de Dezembro de 1848 consagrara já, de modo unilateral, uma situação de extraterritorialidade avant la lettre, ao determinar que as autoridades judiciais de Macau seriam competentes para processar, julgar e punir os crimes cometidos por portugueses em qualquer ponto do território chinês, fossem ou não portugueses os ofendidos. [6] Refira-se, entre todos, o incidente que ficou conhecido como Lady Hughes, o nome do navio britânico no qual pres-

tava serviço um artilheiro que em 1784 terá morto acidentalmente dois cidadãos chineses quando procedia a uma salva de saudação nas imediações de Cantão. Reclamado pelas autoridades chinesas para por elas ser julgado, foi de início recusada a sua entrega, tanto pelas autoridades do navio como pelos responsáveis britânicos em terra. Depois de uma escalada de tensão nos dias subsequentes, envolvendo de um lado a suspensão das atividades comerciais dos estrangeiros em Cantão decretada pelas autoridades chinesas, e do outro uma demonstração de força de navios europeus que se encontravam na zona, o alegado autor dos crimes viria a ser entregue. Ao contrário das expetativas

britânicas, que acreditavam que a circunstância de o homicídio ter sido involuntário implicaria a aplicação de uma pena leve ou mesmo a absolvição do réu, as autoridades chinesas decidiram-se pela aplicação da pena de morte ao caso. Sobre o incidente e as repercussões que gerou, cfr. Li Chen, “Law, Empire, and Historiography of Modern Sino-Western Relations: A Case Study of the Lady Hughes Controversy in 1784”, Law and History Review, Vol. 27, n.º 1, Spring 2009, p. 1-53 e ainda, do mesmo autor, “Universalism and Equal Sovereignty as Contested Myths of International Law in the Sino-Western Encounter”, Journal of the History of International Law, vol. 13, 2011, p. 75-116.

[ 51 ]

Para não perturbar os mandarins irritados: a propósito de um parecer do Procurador-Geral da Coroa (1847): António Vilhena de Carvalho

pronunciara sobre a legislação aprovada pelas autoridades britânicas de Hong Kong que regulamentava, na nova colónia, as soluções previstas nos tratados de 1842-43[7]. Terá por isso consciência clara das mudanças que entretanto se produziram naquela parte do mundo. Não sendo por isso de crer que ignore ser a exposição de Macau a Mandarins irritados agora menor, tal leva-nos a indagar que especial lastro histórico poderá justificar a prudência que sugere na avaliação da alteração de uma prática seguida há tantos anos que muito lisonjeia o amor-próprio dos Súbditos do Celeste Império. À velocidade imposta pela imperial Grã-Bretanha, percebe-se que baste uma meia dúzia de casos sérios de conflitos de jurisdição para fundar uma solução que se adeque ao seu poder e à sua vontade de expansão. Os três séculos que Portugal já leva de perturbações, barbaridades e insultos, são porém um travão determinante à alteração radical de uma situação explicável à luz de compromissos anteriores.

2. O pluralismo jurídico e a aplicação do direito

nas comunidades estrangeiras na China

A existência de vastos impérios territoriais com populações estrangeiras vivendo nas suas franjas, tem sido comummente apontada como condição propiciadora para a emergência de situações de dupla jurisdição[8], em particular quando esteja em causa o exercício do poder punitivo sobre essas mesmas populações. A configuração de uma competência jurisdicional de base territorial em termos absolutos e exclusivos, é algo que apenas toma forma com o advento do Estado-nação, sendo típico das sociedades pré-modernas que a jurisdição se exerça [7] Parecer de 25 de maio de 1844. Arquivo Histórico da Procuradoria-Geral da República, Livro de Registo de Pareceres, Guerra, Marinha e Estrangeiros, Vol. 3, 1843-1845, fls.120-121v.

[8] Pluralismo jurídico, mais do que dupla jurisdição, lhe chamaria António Manuel Hespanha, remetendo aquele conceito para situações em que “distintos complexos de normas, com legitimidades e conteúdos distintos,

coexistem no mesmo espaço social”. Cfr. António Manuel Hespanha, Cultura Jurídica Europeia: Síntese de um Milénio, Almedina, 2012, p. 148.

[ 52 ]

Revista do Ministério Público 146 : Abril : Junho 2016

preferencialmente sobre pessoas, mais do que sobre territórios[9]. Os impérios Otomano e Chinês são dois exemplos claros da ideia de que é possível aos estrangeiros que se acolhem sob a sua proteção, regerem-se e serem julgados de acordo com as suas próprias leis[10]. O sistema de privilégios concedidos aos comerciantes estrangeiros estabelecidos no império Otomano, conhecido pelo termo de “capitulações”, constitui uma prática que se consolida a partir do século XV, quando pela primeira vez se concede a favor dos naturais de Génova[11]. O sistema que assim vigorará durante alguns séculos, e que permitirá às comunidades estrangeiras alguma forma de autogoverno[12], repousa todavia sob a condição da reciprocidade que seja concedida aos súbditos otomanos presentes em cidades europeias. Ao mundo chinês também não é estranha a conceção de uma jurisdição própria para as comunidades enraizadas fora do seu local de origem. Encontramos reminiscências disso mesmo quando vemos, por exemplo, os chineses de Manila peticionar no século XVII ao rei de Espanha para se poderem governar por si próprios[13], ou quando deparamos com a presença de funcionários governamentais chineses em cidades portuárias do sudoeste asiático durante a dinastia Ming, com a provável missão de aí exercerem alguma espécie de controlo sobre as populações chinesas nelas estabelecidas[14]. Olhando para o que se passa no interior do império Chinês, verificamos que também aí se concebe alguma margem de autonomia para [9] Cfr. Pär Kristoffer Cassel, Grounds of Judgment: Extraterritoriality and Imperial Power in Nineteenth-Century China and Japan, Oxford University Press, 2012, p. 8. [10] Cfr. Jane Burbank e Frederick Cooper, Empires in World History: Power and the Politics of Difference, Princeton University Press, 2010, p. 143 e 212-213.

[11] Cfr. Stephen C. Neff, Justice Among Nations: A History of International Law, Harvard University Press, 2014, p. 316 e Richard S. Horowitz, “International Law and State: Transformation in China, Siam, and the Ottoman Empire during the Nineteenth Century”, Journal of World History, Vol. 15, n.º 4, 2005, p. 460-461. [12]

Cfr. Kayaoğlu, ob. cit., p. 42.

[13] Cfr. John E. Wills, Jr., “Maritime Europe and the Ming”, in China and Maritime Europe (1500-1800): Trade, Settlement, Diplomacy and Missions, John E. Wills, Jr. (Ed.), Cambridge University Press, 2010, p. 59. [14] Cfr. Roderich Ptak, “China and Portugal at Sea: The Early Ming Trading System and the Estado da Índia Compared”, in China and the Asian Seas: Trade, Travel and Visions of the Other (1400-1750), Ashgate, 1998, p. 26.

[ 53 ]

Para não perturbar os mandarins irritados: a propósito de um parecer do Procurador-Geral da Coroa (1847): António Vilhena de Carvalho

a resolução dos conflitos que envolvam de modo exclusivo populações estrangeiras. Dela beneficiam, por exemplo, os muçulmanos presentes nas zonas de Cantão ou de Fujian desde a dinastia Tang. E se bem que a partir dos Ming a legislação penal chinesa tende de modo expresso para a universalidade, aplicando-se inclusive aos estrangeiros, a prática demonstra algum grau de indiferença perante os crimes que envolvam não chineses[15], em particular quando são cometidos na periferia do império[16]. As primeiras incursões chinesas no direito internacional de matriz europeia – o Tratado de Nerchinsk de 1689 e os Tratados de Kiakhta de 1727 e 1768, celebrados pelos Qing com o império dos Romanov – são também elas exemplos demonstrativos de que à China interessa sobretudo o controlo sobre os seus próprios súbditos, podendo a punição dos crimes cometidos por estrangeiros no seu território ser entregue, em certas circunstâncias, a quem em concreto revele maior aptidão para o exercício dos respetivos poderes jurisdicionais[17].

3. Macau no século XVIII: a dupla ilusão A implantação da primeira comunidade de europeus no sul da China, durante a dinastia Ming, não receberá por isso reação diferente. Aos portugueses que progressivamente se estabelecem em Macau a partir de meados do século XVI, as autoridades chinesas reservam um tratamento que é consentâneo com o quadro atrás descrito em traços largos: autonomia para se regularem por si próprios mas, em simultâneo, vigilância atenta sobre os termos do relacionamento com as populações chinesas [15] Cfr. R. Randle Edwards, “Ch’ing Legal Jurisdiction Over Foreigners”, in Essays on China’s Legal Tradition, Jerome Alan Cohen, R. Randle Edwards e Fu-Mei Chang Chen (Eds.), Princeton University Press, 1980, p. 224.

[16] Refira-se, a título de exemplo, o decreto imperial de 27 de dezembro de 1757, que determina a não interferência por parte das autoridades chinesas num homicídio de um marinheiro inglês por um francês: “In the event that the barbarians from the outer oceans fight and kill each other, We should not

apply the law of Our Interior”. Cfr. A Documentary Chronicle of Sino-Western Relations (1644-1820): Compiled, Translated, and Annotated by Lo-Shu Fu, The University of Arizona Press, 1966, Vol. I, p. 193. [17]

Cfr. Cassel, ob. cit., p. 43-45.

[ 54 ]

Revista do Ministério Público 146 : Abril : Junho 2016

com quem interagem. Aos portugueses de Macau não repugna este separar de águas. E tanto assim é que o primeiro Regimento dado à Ouvidoria de Macau em 16 de fevereiro de 1587, ordena que o Ouvidor se não intrometa na Jurisdição do Mandarim do distrito, relativamente à que ele exercita sobre os Chins e Chinchéus[18]. Tal não invalida que no século XVII se tenha assistido em Macau a um progressivo aumento do controlo por parte das autoridades da província de Guangdong, com a imposição de regras que se estendem aos portugueses, as quais, no limite, implicam uma responsabilidade penal nos termos das leis chinesas. Está em causa sobretudo a proibição do tráfico de escravos, do embarque de chineses em barcos portugueses, do contrabando e do comércio ilegal, e da construção de edificações novas[19]. Seja como for, o controlo exercido é temperado por uma grande dose de pragmatismo de parte a parte, com o Senado de Macau a intervir, nas situações de potencial conflito, mostrando, na síntese feliz de Charles Boxer, a mixture of simulated obedience, secret compromise, and bribery[20]. A transição dinástica que se produz na segunda metade do século XVII não trará, neste particular, alterações significativas. Sendo os Qing uma dinastia estrangeira, estarão no entanto mais atentos à possibilidade de conluio entre europeus e chineses que coloque em risco a ordem do império, e mais vigilantes sobre o modo como as autoridades provinciais na proximidade daqueles, aplicam as leis chinesas. Mas será já no século XVIII que se verificam os primeiros casos que porão à prova, de modo [18] Cfr. artigo XVIII do Alvará de 26 de março de 1803. [19] Cfr. Jorge M. dos Santos Alves, “A ‘Contenda da Ilha Verde’, Primeira Discussão sobre a Legitimidade da Presença Portuguesa em Macau (1621)”, in Um Porto Entre Dois Impérios: Estudos Sobre Macau e as Relações Luso-Chinesas, Livros do Oriente, 1999, p. 144-146. Do mesmo autor, cfr. ainda

Macau: O Primeiro Século de Um Porto Internacional, Centro Científico e Cultural de Macau, 2007. [20] Cfr. C. R. Boxer, Portuguese Society in the Tropics: The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia, and Luanda, 15101800, The University of Wisconsin Press, 1965, p. 53. Este panorama não passou despercebido a Peter Mundy, o viajante inglês que visitou Macau em 1637, e que

deixou testemunho escrito do que aí observou: “por muitas vezes os chineses procuram extorquir dinheiro aos portugueses acusando-os de terem morto ou abusado dum chinês, pois há muitos que vivem com eles na cidade ou perto da cidade, e, assim, há um mandarim ou Juiz próprio para julgar as suas questões” (in Charles Ralph Boxer, Macau na Época da Restauração (Macau Three Hundred Years Ago), Fundação Oriente, 1993, p. 54).

[ 55 ]

Para não perturbar os mandarins irritados: a propósito de um parecer do Procurador-Geral da Coroa (1847): António Vilhena de Carvalho

claro, a capacidade do império chinês, sob o domínio dos Qing, em articular uma presença estrangeira estável no seu território, com a obediência ao seu sistema penal e ao respeito das suas instituições. O primeiro deles ocorre em 1743, em Macau. Num homicídio cometido por um português em que a vítima é um chinês, o magistrado de Xiangshan solicita a entrega do autor do crime, para ser julgado e punido pelas autoridades de Cantão de acordo com as leis chinesas. A recusa do governador de Macau em aceder a esta pretensão, tem o condão de gerar uma série de memoriais entre as autoridades chinesas na proximidade de Macau, as autoridades provinciais em Cantão, e a cabeça do império em Pequim, que fixarão os termos de referência para futuros casos de homicídios de chineses perpetrados por estrangeiros. A consciência de que os portugueses terão tendência a não colaborar com a justiça provincial, não entregando um dos seus para um julgamento fora de Macau, induz assim a um simulacro de cooperação entre autoridades judiciárias, com os magistrados chineses a acompanhar de perto os trâmites do processo instaurado pelas autoridades portuguesas, e a assistir à execução da pena capital sendo ela aplicada ao caso[21]. Mas se o episódio de 1743 acabou por ter um desfecho de certo modo consensual, revelando uma capacidade de acomodação entre as partes desde que respeitado o fim último da punição dos infratores, poucos anos depois, em 1748, será de novo testada a tolerância chinesa perante os crimes cometidos por estrangeiros nas margens do império. Dois militares da guarda de Macau espancaram então dois chineses, durante uma ronda noturna, daí resultando a sua morte[22]. Os corpos das vítimas não viriam a ser encontrados, tendo sido com probabilidade atirados ao mar, e quando mais tarde as autoridades chinesas requerem a entrega dos cadáveres e dos alegados homicidas para determinar as causas do sucedido, o Governador [21]

Cfr. Edwards, ob. cit., p. 227-229.

[22] Sobre os pormenores deste caso, veja-se a curiosa descrição que dele faz

Anders Ljungstedt em An Historical Sketch of the Portuguese Settlements in China; and the Roman Catholic Church and Mission in China, Boston: James

Munroe & Co., 1836, p. 105-107. Cfr. igualmente Beatriz Basto da Silva, Cronologia da História de Macau, Livros do Oriente, 2015, Vol. I, p. 267-268.

[ 56 ]

Revista do Ministério Público 146 : Abril : Junho 2016

de Macau não acede aos pedidos, providenciando pelo envio dos militares portugueses para Timor. A reação chinesa perante a impossibilidade prática de um julgamento e da aplicação subsequente de uma pena, traduz-se, de início, na determinação do encerramento do comércio chinês em Macau, cortando assim as fontes de abastecimento habituais do território – procedimento que não é caso único na história de Macau e que atesta a sua permanente condição de fragilidade. Caberá então ao Senado tornear a intransigência do Governador, discutindo com os mandarins quantas peças de ouro valem o regresso ao estado de normalidade anterior. A importância deste caso vale tanto pela revelação de um Governador desafiante, que se intromete na estratégia de conciliação entre o Senado e os mandarins, que é, à época, a norma constitutiva e não escrita do território – desafio esse que acabará por lhe custar o cargo[23] –, como pela tensão que irá gerar entre as autoridades de Cantão e o imperador, que não deixará de ter importantes consequências em Macau. Yue Jun, Governador de Guangdong, ao descrever para Pequim o que ocorrera pouco antes em Macau, apresenta como razoável o degredo dos autores dos crimes para Timor, tendo presente que o Governador de Macau se manifestou intransigente na sua entrega. A reação do imperador Qianlong em novembro de 1748 é dura. Considera “ridículas” as explicações avançadas por Yue Jun, manifesta a sua incompreensão pelo facto de a um caso de tamanha gravidade não ser aplicada a pena de morte, e determina que de aí em diante, em situações semelhantes envolvendo estrangeiros, sejam aplicadas as leis chinesas, sob pena de não haver paz nos seus domínios[24]. Poucos meses depois, em abril de 1749, quando toma conhecimento de que os alegados homicidas já se encontram em Timor, havendo por isso “dois mares” a separá-los da China tornando impraticável a sua punição de acordo com as leis chinesas, Qianlong aproveita o ensejo para discorrer de modo abstrato sobre os [23] Cfr. António Martins do Vale, “António José Teles de Meneses”, in Governadores de Macau… p. 107-109.

[24] Cfr. A Documentary Chronicle …, p. 186. Cfr. também Li Chen, Chinese Law in Imperial Eyes: Sovereignty, Jus-

tice & Transnational Politics, Columbia University Press, 2016, p. 52-53.

[ 57 ]

Para não perturbar os mandarins irritados: a propósito de um parecer do Procurador-Geral da Coroa (1847): António Vilhena de Carvalho

termos em que devem ser tratados os estrangeiros que há longo tempo vivem no seu império. Misericórdia e disciplina nos momentos próprios, devida proporcionalidade na aplicação das penas, vigilância no combate à impunidade, são os princípios que preconiza. E para evitar que no futuro se repitam as manifestações de fraqueza reveladas no ano anterior, declara que “sempre que um caso idêntico ocorra, deveremos reger-nos de acordo com as nossas leis, para que os bárbaros assim saibam como temê-las e respeitá-las”[25]. O incómodo que Qianlong não disfarça sobre o sucedido em Macau, poderá ter estado na origem de uma súbita posição de força das autoridades provinciais no final do ano de 1749[26]. O território é então confrontado com a determinação dos mandarins em erigir em local público duas estelas de pedra, em português e em chinês, fixando um conjunto de doze estipulações a respeitar pela população de Macau. Duas delas são consideradas gravosas pela comunidade portuguesa, determinando-se numa a proibição de conversão dos chineses ao cristianismo e, na outra, o procedimento que deverá obrigatoriamente ser seguido sempre que se verificar a prática de crimes por “réus europeus”[27]. Mobilizados [25]

Cfr. A Documentary Chronicle…, p. 187.

[26] Cfr. A. M. Martins do Vale, Entre a Cruz e o Dragão: O Padroado Português na China no Século XVIII, Fundação Oriente, 2002, p. 352. [27] A primeira parte da cláusula que diz respeito às questões criminais, é, no fundo, uma expressão do sistema preconizado em 1744 pelas autoridades de Cantão, sancionado por Pequim, para ser aplicado aos casos graves – como o de homicídio – sujeitos a pena de morte. A novidade de 1749 é que agora se pretende igualmente regular o procedimento a seguir nos crimes em que não seja aplicável a pena capital. É o seguinte o teor da referida cláusula: “O Réu Europeu se

deve infalivelmente entregar para se julgar daqui por diante acerca de algum Europeu, que pelos crimes de homicídio, e de rapina é digno de ser castigado com Pena de morte, deve seguir o costume do ano 9 do Qianlong [1744], o qual costume é sobre examinar, e visitar o Corpo morto, e o Crime do dito Réu; depois do dito exame se deve entregar o Réu ao Mandarim da Casa Branca, para com o Senado de Macau o guardar com diligência: Para isso o Mandarim da Casa Branca deve dar fiança de tomar à sua conta, e guardar ao dito Réu, o qual não será remetido aos Mandarins Superiores, porque só bastará dar-se-lhe notícia do crime e esperar pela sua resposta: Depois de se dar esta então o Mandarim da Terra deve logo executar com o Senado a sentença dada. Se porém algum outro

Réu Europeu tiver feito outros crimes pelos quais deve ser castigado com o Desterro, nesse caso só deve ser julgado do Juiz China, o qual o julgará perto de Macau, depois de julgado, se deve entregar o dito Réu ao Senado sobre fiança esperando até os Mandarins superiores confirmarem a sentença que o Mandarim executará com o Senado, os outros crimes porém menos graves deve o Senado somente julgar, e depois dar parte ao Juiz China, cuja resposta dever esperar, e em vindo, deve-a executar” (cláusula 5.ª). A tradução portuguesa das estipulações constantes da estela de pedra que contém a versão chinesa, encontra-se publicada em Instrução para o Bispo de Pequim e Outros Documentos para a História de Macau, Manuel Múrias (org.), Agência Geral das Colónias, 1943, p. 33-39)

[ 58 ]

Revista do Ministério Público 146 : Abril : Junho 2016

para a necessidade de fazer reverter uma situação que coloca em perigo uma parcela importante da autonomia de Macau, com a agravante de ser difícil explicá-la a Goa ou a Lisboa, os representantes portugueses da cidade negoceiam com os mandarins uma solução de compromisso. E, como habitualmente, ela surge: a estela com as estipulações em língua chinesa vai para lugar recatado no Pátio do Mandarim, em Mong-ha, em vez do frequentado bazar; a estela em português, a colocar no Senado, não conterá a disposição contenciosa sobre a religião, e dará uma abreviadíssima e inócua explicação sobre como proceder sempre que num crime de homicídio seja português o autor e chinês a vítima[28]. Encontrar-se-á melhor exemplo daquela que foi a realidade de Macau durante séculos? À ilusão de Pequim de que em Macau se aplicam as leis chinesas, à crença em Lisboa de que há ali uma parcela de soberania portuguesa, os portugueses e chineses que convivem naquele ponto remoto do sul da China, respondem colaborando conscientemente num jogo de aparências. Não importa que os portugueses de Macau saibam o que se encontra na estela chinesa, como tão pouco importa que os chineses de Macau ou de Cantão não ignorem o que está ausente da estela portuguesa. O pragmatismo é a regra de ouro local, para que a vida siga o seu curso, sem sobressaltos, naquele microcosmos tão especial. Quase cem anos passados sobre este episódio, não deixa de ser curioso observar um Procurador-Geral da Coroa divergir da arrogância imperial das metrópoles europeias de então, arvorando-se em inesperado intérprete da política de cautela e prudência tão própria de um estabelecimento que retirou da convivência com vizinhos poderosos, porventura a mais perdurável marca da sua identidade.

[28] “Que respeita ao que se há de obrar se algum Cristão matar China se assentou que se observe o estilo, que se acha praticado, e que deem os Por-

tugueses parte ao seu Monarca”. Para uma comparação das versões chinesa e portuguesa das estipulações, cfr. A. M. Martins do Vale, Os Portugueses em

Macau (1750-1800), Instituto Português do Oriente, 1997, anexo 5.º.

[ 59 ]

Para não perturbar os mandarins irritados: a propósito de um parecer do Procurador-Geral da Coroa (1847): António Vilhena de Carvalho

Anexo: Parecer do Procurador-Geral da Coroa

de 30 de julho de 1847. Idem em Portaria do Ministério da Marinha remetendo o ofício da Província de Macau sobre a revogação do Alvará de 26 de Março de 1803 quando dispõe no § 6 que no caso de morte de China sendo o réu condenado em pena capital se executa esta logo sem dependência de recurso. Senhora = A necessidade para a conservação do Estabelecimento de Macau de manter sempre a melhor harmonia com as Autoridades Chinesas, o perigo de perturbações, barbaridades, e insultos a que este Estabelecimento ficava exposto da parte dos Mandarins irritados com a morte de algum dos seus nacionais, quando não era castigado com prontidão, foram as razões que ditaram a disposição excecional do § 6 do Alvará de 26 de Março de 1803, que sem dependência do recurso a Relação do Estado, mandar logo executar a sentença condenatória ainda de pena capital proferida pela Junta da Justiça sobre o crime de homicídio de algum China. Em matéria de tanta monta cumpre proceder com toda a cautela e prudência, e não vejo que hoje deixem de existir os mesmos perigos que motivaram aquela medida extraordinária. Este Estabelecimento Português tão distante do centro da Monarquia e destituído de força própria, só com muita habilidade e indústria poderá ser sustentado, e convém evitar com todo o desvelo quaisquer conflitos que o possam arriscar. A alteração de uma prática seguida há tantos anos que muito lisonjeia o amor-próprio dos Súbditos do Celeste Império, e lhes afiança a segurança individual no trato com os Portugueses há de ser-lhes mal recebida, e não é fácil ajuizar quais serão as suas consequências. Um passo precipitado pode ser grandemente danoso. Demais a revogação do citado § 6 do Alvará de 26 de Março de 1803 é do domínio da Lei, e não considero esta medida urgentemente exigida pelo bem daquele Estabelecimento Ultramarino para poder ser decretada pelo Governo de V. Majestade nos termos da Lei de 2 de Maio de 1843. O Governador de Macau propõe-se intimar ao Vice-Rei de Cantão a cessação deste

[ 60 ]

Revista do Ministério Público 146 : Abril : Junho 2016

procedimento, e nestes termos parecia-me conveniente que se aguardasse o resultado desta intimação que se observasse o modo por que era recebida ou impugnada, e conhecendo-se então com mais segurança o efeito da medida se propusesse ao Corpo Legislativo a revogação da Lei quando se mostrasse que dela não resultavam perigos para a estabilidade e segurança do Estabelecimento. É este o meu juízo com o qual satisfaço a Portaria do Ministério da Marinha de 21 do corrente mas V. Majestade resolverá o mais justo. PG da Coroa 30 de Julho de 1847 = o Procurador Geral da Coroa = José de Cupertino de Aguiar Ottolini =

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.