PARA PENSAR AS CIDADES EM SUA DIMENSÃO CULTURAL

July 14, 2017 | Autor: Alysson Amaral | Categoria: Urbanismo, Cidades criativas, Políticas Culturais, Sistema Nacional de Cultura
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PARA PENSAR AS CIDADES EM SUA DIMENSÃO CULTURAL Alysson Amaral1

RESUMO: Este artigo pretende identificar os desafios para a construção de uma agenda pública para a cultura no Brasil que contemple a diversidade local, tendo como ator protagonista as cidades e seu corpo cultural. O Sistema Nacional de Cultural- SNC, legitima o desenvolvimento e o acionar das instâncias locais, tanto aquelas de participação cidadã (Conselhos de Políticas Culturais e/ou de Patrimônio, por exemplo) como aquelas vinculadas diretamente à gestão pública (Secretarias de Cultura Municipais e/ou similares). É, pois, nosso intuito, perceber a dinâmica na construção dessa agenda coletiva identificando seus principais avanços e fragilidades. PALAVRAS-CHAVE: Política Cultural, Sistema Nacional de Cultura, Cidade. “- As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nenhum nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas. - Ou as perguntas que nos colocamos para nos obrigar a responder, como Tebas na boca da Esfinge.” ITALO CALVINO2

A posta em cena: a cidade e o sistema nacional de cultura. Em função da demanda emergente para a implementação de um modelo de gestão para as políticas culturais no cerne das administrações municipais no Brasil, é que buscaremos compreender como a agenda da cultura se localiza tanto nos procedimentos administrativos das cidades como no cotidiano de sua política cultural e urbana.

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Mestre em Sociologia da Cultural e Analise Cultural pelo Instituto de Altos Estudios Sociales IDAES/USAM (Argentina) e membro da Red CLACSO de Políticas Culturais. Como fundador da DHARMA- Cultura e Desenvolvimento é consultor na área cultural atuando na gestão e desenvolvimento de projetos inovadores para a área, assim como no monitoramento e avaliação de políticas setoriais, entre os principais trabalhos desenvolvidos destaca-se consultoria para a UNESCO e o Ministério da Cultura. Atuou como diretor do Teatro Francisco Nunes, analista de políticas culturais do Centro de Cultura Belo Horizonte e gerente de Coordenação, Planejamento e Monitoramento de Projetos na Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte. Correio eletrônico: [email protected]. 2 Em “As Cidades Invisíveis”, 1990, Cia das Letras, SP, p. 44. 1

Como ponto de partida para nossa argumentação explora-se as linhas de abordagem desenvolvidas pelo próprio Ministério da Cultura – MinC para o universo das políticas culturais a partir de três pilares: a cultura em sua dimensão simbólica – no qual a arte e a cultura se conectam com a interpretação do que fazemos no mundo e que no Brasil se expressa concretamente a partir das relações sociais permeadas pela ampla diversidade cultural; a cultura em sua dimensão cidadã – no qual a cultura é um fator de inserção social e tratada como um direito fundamental e uma necessidade básica dos cidadãos; e por fim, a cultura em sua dimensão econômica – na qual as noções de empreendedorismo, inovação e sustentabilidade se conectam ao seu papel como fator de desenvolvimento local e regional. O processo de descentralização das políticas culturais no Brasil se constitui, na atualidade, como um vetor de forte reflexão e debate no âmbito local que versa sobre a aplicabilidade dessas políticas nas cidades. Dessa forma, a cidade se converteu no principal ator para a gestão da práxis cultural, correspondendo a ela, em suas instâncias tanto de poder e decisão como nos processos participativos abertos, situar a pauta cultural no âmbito das políticas públicas, urbanas e de desenvolvimento local. No Brasil, o universo das políticas públicas e das instituições que a executam foi afetado, nas últimas décadas, pela promulgação da Constituição Federal de 1988 através, principalmente, do rearranjo do pacto federativo proposto em seu texto. A agenda pública, a partir de então, orientou-se pela articulação, o deslocamento e a criação de novas institucionalidades, fato recorrente também em função dos compromissos advindos do processo de redemocratização e do diálogo crescente entre o poder público e a sociedade civil. Entretanto, as transformações das políticas públicas que afetam a área da cultura são muito mais recentes. O ponto de inflexão ocorreu a partir do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006), com Gilberto Gil à frente do Ministério de Cultura no qual se reformulou as atribuições do próprio ministério (Decreto 4.805/2003), permitindo o estabelecimento de um novo significado para o papel da cultura na esfera pública. Assim, foram estabelecidos novos canais de diálogo com as outras esferas subnacionais de poder e a sociedade civil. Em 2005, através da realização da I Conferência Nacional de Cultura, as diretrizes participativas, deliberativas e da gestão compartilhada no campo das políticas culturais começaram a fundamentar-se de maneira mais institucionalizada3. O MinC, paralelamente ao processo da I CNC, concentrou seus esforços para criação do Sistema Nacional de Cultura – SNC cujo objetivo central é o fortalecimento da estrutura institucional da área da administração pública responsável pelo campo da cultura, de maneira a

A I CNC é uma das etapas do processo de elaboração do Plano Nacional de Cultura – PNC, instituído pela Emenda Constitucional nº 48 de 1º de agosto de 2005. O PNC é aprovado em 2010 por meio da LEI 12.343/2010 (ele está constituído por 53 metas nas quais há catorze - quase um terço delas - que citam e afetam explicitamente a realidade municipal). Também é fruto dessa Conferência a institucionalização do Conselho Nacional de Políticas Culturais – CNC, por meio do Decreto nº 5.520/2005. 3

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descentralizar e universalizar a gestão das políticas culturais no Brasil. Finalmente, em 2012, o Sistema Nacional de Cultura – SNC é incluído, ao texto constitucional, por meio do artigo 216 A: “O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento - humano, social e econômico - com pleno exercício dos direitos culturais”. (CF, Art. 216A) Portanto é nosso interesse ressaltar, dada incipiência e o impacto dessas políticas para o setor cultural e cujos reflexos e consequências se fazem diretos no campo organizacional da cidade, a importância para a conjugação e articulação dialógica entre o campo de conhecimento das políticas culturais e o do planejamento e política urbana. O SNC, por exemplo, estimula a inauguração de elementos estruturantes que afetarão diretamente o desenho institucional das administrações locais. Do ponto de vista da gestão e institucionalidade prevê a criação de: i)

Órgãos Gestores para a Cultura (Secretarias Municipais de Cultura e/ ou similares);

ii)

Conselhos Municipais de Políticas Culturais, de cunho paritário; e,

iii)

Estabelecimento periódico de Conferências Municipais de Cultura.

Como ferramentas para a gestão irá propor o desenvolvimento de: i)

Sistema Municipal de Financiamento à Cultura;

ii)

Programas de Formação para a área da cultura;

iii)

Sistema Municipal de Informações e Indicadores Culturais; e,

iv)

A definição em Lei, de um Plano Municipal de Cultura, com metas previstas para 10 anos.

Cabe mencionar, ainda, a consolidação de programas orientados às ações da sociedade localizadas no âmago das cidades e ou regionais que também afetam o universo local das políticas culturais como, por exemplo, o Programa Cultura Viva (Portaria 156/2004, atualizada por meio da Lei Cultura Viva – LEI nº 13.018/2014). Por outro lado, a agenda da cultura é inserida no escopo de programas de grande envergadura do governo federal como, por exemplo, no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que lançou o Programa Mais Cultura (Decreto nº 6.226/2007) da ordem de 4,7 bilhões de reais (até 2010) cujo objetivo principal tem foco na “qualificação do ambiente social das cidades e do meio rural por meio da ampliação de equipamentos e do acesso à produção e à expressão cultural”, com metas quantitativas claras. Mais recente destaca-se no PAC II a linha de investimento denominada “Cidades Históricas” (2013) e que destinou 1,3 bilhões de reais para 44 cidades brasileiras. Assim, imagina-se que a consolidação do Sistema Nacional de Cultura, nos próximos anos, implicará no aprofundamento das transformações do campo da gestão pública para a área cultural nas três esferas de poder do país. Uma das características centrais para o êxito dessa política se relaciona 3

com a prática de transferências de recursos que fomentará e viabilizará a execução da agenda em desenvolvimento para a área4. Dessa forma, cobra-se agilidade gerencial das cidades para que todos os processos e mecanismos sejam estruturados segundo o desenho institucional citado num rápido espaço de tempo. Interpretes e encenação: cidades imaginadas. De certo modo, ainda que ditas políticas estejam explicitadas no texto constituinte, não há a garantia para que os processos de institucionalização e governança local sejam uniformes e equitativos. Pelo contrário, verifica-se a capacidade desigual dos governos locais para a promoção de serviços públicos e para a manutenção e gestão de procedimentos democráticos nas instâncias municipais. Por ora nos interessa destacar o rol de transformações que está em jogo nas cidades brasileiras no que tange a sua capacidade gerencial e institucional para o atendimento da agenda cultural. Identifica-se uma demanda insurgente, um cenário multifacetado e realidades díspares com relação ao pertencimento/cumprimento da métrica ou modelagem inerente à condição de “município adepto” ao SNC. Primeiramente e vinculando-se às três dimensões de cultura já explicitadas (simbólica, cidadã e econômica), cabe abordar nessa sessão, um ponto crítico de inflexão do nosso estudo que se relaciona com a própria definição “do cultural” e, mais especificamente, com as motivações que orientam o quadro ideológico das políticas culturais na contemporaneidade. É, portanto, necessário identificar o valor específico da política cultural uma vez que essa faz parte das superfícies de significações que darão base à intervenção política, dimensionada tanto pelo “domínio político”, pela crítica social, como pelo processo de dominação econômica. O debate conceitual de cultura que margeia esse artigo, se relaciona com o ingresso da diversidade cultural no centro dos debates teóricos em função do crescimento dos processos de interconexão global e da multiplicação das relações interculturais no cotidiano das cidades. A diversidade cultural trás consigo, no entanto, problemas estruturantes complexos: por um lado ela é celebrada como o vetor de desenvolvimento social, humano e até econômico e em outros casos é aquela que aniquila a própria diferença.

Homi K. Bhaba (2003) contribui com esse debate, ao

identificar o momento atual como transitório e como aquele no qual o espaço e o tempo produzem figuras complexas de diferença e identidade, no qual há uma consciência do sujeito enquanto categoria estendida – raça, gênero, geração, localidade, orientação sexual, etnias, etc. – em movimento e disputa constante para definição de espaços/territórios de reconhecimento (seja ele social ou simbólico). São muitos os referenciais de análise que mediam as implicações práticas da diversidade cultural como intervenção ético-política na contemporaneidade: a ideia de que o globo é um “arquipélago de culturas diversas”; de interposição de fronteiras, de que as tecnologias de comunicação geram uma “aldeia global”, as conexões entre os processos migratórios e de circulação 4

Tal mecanismo está em vias de aprovação por meio da PEC 150 e do PROCULTURA. 4

de bens simbólicos e serviços para o domínio ideológico, entre outras. Assim, no plano das políticas culturais, uma geração de intelectuais começou a sistematizar e aprofundar o debate a partir da inclusão da diversidade cultural no campo prático da ação. Miller e Yúdice (2004) destacaram que as políticas culturais têm suas bases na performatividade em contraponto a uma ação constante e que por isso são políticas formuladas “ao toque”. Compartilhamos com eles a visão de que as políticas culturais consistem em “mecanismos” para administrar, sistematizar e regular as instituições; e, que cumprem metas e atendem tanto as esferas burocráticas e estatais como aquelas criativas e orgânicas da sociedade. Por outro lado, as indústrias culturais e a crescente circulação e fluxo de bens simbólicos hegemônicos no mundo, determinando relações de desigualdade e assimetrias entre países centrais e periféricos, fez com que o debate sobre a diversidade cultural se potencializasse globalmente. Tal contexto tencionou e estimulou a agenda internacional para a consagração de um espaço que englobou a “diversidade cultural” como “bandeira” para as políticas culturais e o desenvolvimento sustentável. Nos países latino-americanos, por exemplo, as políticas culturais passaram a ser consideradas como estratégias para garantir a capacidade nacional de produção simbólica local num cenário competitivo desfavorável5. Jeremy Rifkin (2001) propôs, nesse cenário, a ideia de “capitalismo cultural” para uma avaliação crítica sobre a produção e circulação de bens culturais. Já Mattelart (2002) e Simiers (2004) defenderão o “pluralismo cultural” como antítese ao “imperialismo cultural”. Para nosso estudo nos interessa a gênese das políticas culturais locais formuladas em diálogo com a sociedade. Nesse sentido, destacamos as contribuições de George Yúdice (2006) que descreveu a cultura como recurso a ser gerenciado pelo estado em articulação com a sociedade. O autor considera a “cidadania cultural”, elemento para a garantia das diferenças culturais e da diversidade cultural, como recursos intangíveis 6. Bayardo (2008) irá propor uma tipologia para descrever a evolução das políticas culturais a partir de quatros gerações em sintonia com a práxis internacional para a consolidação dos direitos universais. A primeira geração das políticas culturais corresponde aquelas nas quais ocorre a institucionalização pública da área cultural com o objetivo de legitimar os bens simbólicos nacionais (o estado aparece como o ator principal para sua realização); as de segunda geração são aquelas políticas que fazem referência à expansão conceitual e pragmática da cultura até os domínios das indústrias culturais e meios de comunicação; as de terceira geração são aquelas que imbricaram a

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No entanto, é notória nos territórios nacionais dessa região a replicação da mesma lógica das indústrias culturais de capital concentrado, tal como na formulação frankfurtiana, gerando, assim, centralidades e subalternidades no contexto simbólico local. 6 Néstor Garcia Canclini (2005), caminhará no mesmo sentido para a afirmação da “cidadania cultural” no estado nacional, estruturada a partir da avaliação de que a globalização é um processo de fracionamento das relações socioeconómicas que gera um reordenamento das diferenças e desigualdades em escala planetária. Para ele o papel da política cultural deve apoiar-se no projeto do multiculturalismo. 5

cultura e o desenvolvimento a partir da fusão da área cultural com outros segmentos de negócio (turismo, gastronomia, lazer, patrimônio cultural, etc.), elaboradas a partir da assertiva do “recurso” como necessário para o desenvolvimento econômico e social das nações. Estaria em marcha, na atualidade, uma quarta geração de políticas culturais, formulada a partir de um ideal de transformação político que altera a redistribuição de poder, nas quais a diversidade cultural e a justiça social são os fins para dito movimento. Néstor Garcia Canclini (1987) é quem desenvolverá como paradigma da gestão cultural a política via “Democracia Participativa”. Por meio deste paradigma, se defende a coexistência de múltiplas culturas em uma mesma sociedade propiciando um desenvolvimento autônomo e relações igualitárias de participação7. Segundo esse novo paradigma as políticas culturais deveriam representar os grupos que compõem uma sociedade em sua totalidade e diversidade. Aponta para o entendimento da cultura num sentido continuo, e não a reduz a um caráter discursivo ou estético, já que estimula a ação coletiva, através de uma participação organizada e plural. Através da métrica SNC, portanto, caberá dimensionar os estágios e processos para a concretização das políticas culturais aliados ao viéis da participação. De fato, há a interlocução entre as instâncias de poder local e a demanda da sociedade no campo cultural? São ideais e legítimos os espaços participativos? Como ocorre o controle e a regulação cultural num processo de co-gestão? Os resultados produzidos por meio da participação são os desejados? Como são compatibilizados os interesses das esferas econômicas, sociais e políticas no seno das ações das políticas culturais? Há, de fato, uma transformação do campo das políticas públicas e do universo das cidades rumo à consagração de equilíbrios e igualdades? A boca da Esfinge: para uma autonomia do campo cultural nas cidades. Um problema que irá tangenciar a resposta para essas perguntas corresponde ao fato de que historicamente no Brasil as políticas culturais executadas no âmbito federal se caracterizaram pela sua evolução disforme, ou seja, foram políticas abruptamente interrompidas e que se desenharam sem o princípio de continuidade. Tal diagnóstico resulta em assumir que o campo para o planejamento das políticas culturais é altamente complexo na atualidade e visa reverter um déficit histórico com relação ao desenvolvimento do setor no país em todas as instâncias públicas de poder. A seguir apontamos algumas questões e problemáticas relevantes para o campo das políticas públicas a partir da redemocratização do país.

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Segundo a teoria dos paradigmas das políticas culturais desenvolvida pelo autor, o contraponto ao paradigma da “Democracia Participativa” pode ser notado em práticas unidimensionais e elitistas que compõe outros paradigmas do campo da gestão cultural – mecenato, tradicionalista, estadista e privatizante – apontando para uma linha evolutiva que demarca conflitos, assim como a hierarquização da cultura segundo padrões hegemônicos de produção e apropriação.

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Segundo Celina Souza (2004) as políticas públicas recorrem ao princípio federativo como elo para a transferência ou aumento do poder político e tributário para as entidades subnacionais (estados e municípios), baixo a consigna de ideal democrático, através do empoderamento (empowerment) das comunidades locais no processo decisório sobre as políticas públicas. Para Mônica Starling (2012, p.145), a descentralização das políticas públicas irá abarcar quatro tendências para a gestão local: “ (...) a) a repartição de responsabilidades em torno da formulação, da implementação e do controle de políticas entre as esferas nacional, estadual e municipal; b) a transferência de recursos para as esferas subnacionais de poder, de forma a possibilitar a provisão de bens e serviços públicos; c) a existência de mecanismos de coordenação intergovernamental e d) a estruturação de um sistema de gestão que envolva o diálogo com a sociedade, ou seja, a ampliação da participação da sociedade organizada na gestão das políticas públicas.” (STARLING, 2012, p. 145.). O impulso à descentralização pode ser apreciado principalmente a partir dos anos 90 por meio da municipalização exitosa dos serviços de educação e saúde. Como já demonstrado em outros setores e serviços, o universo cultural também passa a ser estimulado para gerar uma agenda descentralizada na atualidade e cujo expoente, ou a célula, será a cidade. Por sua vez, o redimensionamento das políticas culturais pode ser percebido por meio de uma série de evoluções que ocorreram nas últimas décadas e que afetaram sua abordagem enquanto campo de conhecimento e prática. Néstor Garcia Canclini (1987) indicou algumas dessas transformações, parte delas já vivenciadas pelo campo das políticas culturais no Brasil: i)

Os modelos e publicações sobre as políticas culturais deixaram de ser meramente burocráticos com foco apenas na descrição do aparto institucional, das atividades realizadas e da forma jurídico-adminsitrativo que a rege. Atualmente as políticas culturais proporcionam uma reflexão crítica sobre sua capacidade de gerar um desenvolvimento cultural na sociedade. Em outras palavras: as políticas culturais são dimensionadas a partir da ideia de proteção e promoção dos bens simbólicos locais, da preservação do patrimônio e memória nacional, das desigualdades sociais, dos fluxos e circulação de bens culturais bem como na democratização do acesso em âmbito global e do reconhecimento da diversidade cultural.

ii)

Muitas práticas de políticas culturais foram registradas e publicadas a título de relatório de gestão pública, atendendo à dimensão mais política já citada. Na atualidade novos aportes são feitos para se relevar o grau de abrangência dessas políticas culturais segundo estudos empíricos os mais diversos.

iii)

O protagonismo para a proposição e execução de políticas culturais se desloca da ação governamental quase exclusiva para uma ação mais participativa e inclusiva que diversifica as vozes por meio do diálogo com novos atores, a saber: movimentos sociais,

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ONG´s, redes de networking, sociedade civil organizada entre outros. Dessa forma, aparece um modelo de “co-gestão” e cooperação que visa legitimar tais políticas. iv)

Os intercâmbios e acordos internacionais, com destaque para a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais 8 - CPPDEC - ampliam o debate das políticas culturais para além da perspectiva nacional com uma perspectiva de ação tanto regionalizada como global.

v)

A política cultural passa a ser compreendida como uma política de continuidade e que deve ser planejada e administrada segundo parâmetros que relacionem seus resultados em função da sua finalidade e atores involucrados, tendo nas instâncias locais, ou seja, nas cidades, o nicho especializado para seu acionar.

Em linhas gerais, as transformações do campo das políticas culturais têm como base as crises econômicas sucessivas do modelo capitalista, tanto dos modelos keynesianos como marxistas, que evidenciaram a incapacidade de soluções econômicas e políticas para o controle das contradições sociais. Ou seja, as questões apenas materiais são insuficientes, em si mesmas, para a promoção de um desenvolvimento sustentável nos estados modernos. Dessa forma, o papel da cultural e da diversidade cultural, começa a ser associado ao desenvolvimento econômico e à solidariedade ética para uma coesão social. O significado do trabalho, da recreação, da produção e hábitos de consumo é valorado a partir dos sentidos sociais que estes geram na sociedade e, portanto, começam a ser agenda do estado para a criação de formas alternativas de desenvolvimento local. Por exemplo, Canclini (1987) sugere que na América Latina, a partir dos movimentos de oposição, dos debates sobre as ditaduras e da redemocratização, é reestruturado o papel especifico para as culturas populares. Dessa forma, a cultura se destaca como importante para a construção de uma hegemonia e do consenso nos estados latino-americanos. Para este autor: “A redefinição do conceito de cultura facilitou seu reposicionamento no campo político. Ao deixar de designar unicamente o universo dos livros e belas artes, ao conceber a cultura – em um sentido mais próximo à concepção antropológica – como o conjunto de processos onde se elabora a significação das estruturas sociais, e as reproduz e transforma mediante operações simbólicas, é possível vê-la como parte da socialização de classes e de grupos para a formação de concepções políticas e dos diferentes modelos de desenvolvimento adotados pelas sociedades.” (CANCLINI, 1987, p.21.) Essa redefinição do conceito de cultura aponta para sua diversificação temática. Nos países latinos americanos a função da cultura revela-se nas problemáticas campesina e urbana, migratória e ecológica, além da formação de memória nacional e consensos políticos. Para Canclini (1987) essa

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A “Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade de Expressões Culturais”, é, juridicamente, contemplada a partir de 2005, por meio da UNESCO e países signatários, dentre os quais figura Argentina, Brasil e o México. 8

“visibilidade social” do universo cultural é o que levou os estados a desenvolver políticas mais orgânicas para o setor. Ao mesmo tempo, significa a própria pressão social à agenda pública. Contudo, as últimas décadas se distinguiram por convergências sociais diferentes àquelas que definiram a antiga ordem urbana industrial e os significados e valores compartilhados naquele tempo. O recrudescimento das relações capitalistas gerou instabilidades tanto trabalhistas como em relação à noção de identidade e pertencimento do individuo com relação ao seu habitat. Assim, as políticas culturais são formatadas e influenciadas pelas próprias transformações socioeconômicas e espaciais que afetam a cidade contemporânea, mais notadamente, os grandes centros urbanos. Dentre as mudanças mais relevantes (e que afetarão tanto o desenho das políticas culturais como o das políticas urbanas) podemos citar: a reestruturação dos fluxos de capital e a trasnacionalização de bens e serviços em nível global; o surgimento da sociedade informacional com novas vertentes técnicas e científicas; a transição de uma economia industrial para uma economia de serviços; a mutabilidade das identidades em função do deslocamento e cruzamento das fronteiras culturais (hibridismo cultural). Tal painel tende a deslocar e consagrar novos mecanismos de interação para a formulação, execução e legitimação das políticas públicas nas instâncias subnacionais de poder (estados e municípios). Em parte, as políticas compartilhadas buscam responder à problemática urbana, social e econômica consequentes da interdependência global que acirrou as desigualdades socioeconômicas, contradições e assimetrias territoriais e regionais. Sendo a cidade protagonista, alvo/objeto privilegiado das políticas culturais, torna-se necessária a consideração e análise das suas interfaces, dinâmicas e impactos com/no espaço urbano através da sua rede complexa de inter-relações e vivências. O espaço urbano é onde se faz notar os efeitos de assimilação e integração socioeconômica, ambiental e cultural assim como os processos que evidenciam separações e marginalizações nessa instância. Doreen Massey proporá uma nova perspectiva para se pensar o espaço (e as espacialidades) na contemporaneidade a partir do processo indentitário que lhe atravessa e que cobra novas práticas de gestão e resultado com relação a ele (a autora utiliza a ideia de responsability para articular o uso e os sentidos do espaço). Rogério Haesbaert analisará os processos de desterritorialização política (advinda da crise do estado-nação e do livre fluxo do capital) e das identidades culturais (frutos de processos comunicacionais, migrações, etc.) como um fato que desembocará na necessidade para o encontro de lógicas multiterritoriais (em efeito dialético) que contemplem a diversidade social e cultural inerentes ao campo analítico da cidade. Dessa forma, se evidencia as cidades como espaço social e simbólico, cenário onde se formam, afirmam e reestruturam as identidades, onde se reinventa o cotidiano, esse último relacionado às práticas sociais, às relações interculturais e as diversas modalidades de integração, e onde desembocam interesses e estratégias da agenda internacional. Como já explicitamos a cultura, na atualidade, adquire uma centralidade na transformação da vida local e cotidiana, afetando o universo

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da cidade. Por sua vez, a dinâmica social da cidade provoca deslocamentos culturais, que em última instância irão afetar as identidades e subjetividades de seus habitantes. É, pois, nesse jogo relacional que encontraremos os hiatos e pontos de silêncio que devem ser explorados a partir do desenvolvimento de políticas culturais na esfera da cidade. Os estudos urbanos e as ciências sociais produziram várias questões de confluência que podem ser contempladas no exercício cotidiano para que as cidades decifrem, como Édipo em Tebas, caminhos possíveis para a plena consagração de uma política cultural orgânica e em sintonia com seu corpus social, seja através da estrutura estanque proposta pelo SNC ou por meio de formas criativas e flexíveis da gestão. Como a cabeça e o busto de mulher, as patas de leão, o corpo de cão e cauda de dragão da Esfinge de Tebas deve-se observar todos os nortes e impactos comuns ao universo cultural no seno das cidades a título de decifrar toda a complexidade imposta à área. Que se decifrem seus aspectos simbólicos e estéticos, que se compreenda a função estratégica da cultura para gerar valor de branding aos centros urbanos; que se critique o consumo cultural que conduz à práticas culturais orientadas à espetacularização e gentrificação do espaço público; e que se negue que a agenda das políticas culturais permita a incorporação da lógica privada do capital concentrado em muitas de suas zonas de intervenção. Só assim será possível caminhar em sintonia e livremente rumo à pauta da diversidade cultural. Tais questões vão ao encontro do que Lefebvre definiu filosoficamente com o direito à cidade e a necessidade corrente para se reinventar um programa político de reforma urbana, nos quais os simulacros relativos aos valores de uso e troca na cidade devem ser desmascarados. Embora cético em suas conclusões, o autor, chega a revisar o processo de autogestão, de participação e de integração como possibilidades (ainda que não puras e destituídas de interesses econômicos, políticos e de poder) para a realização e amadurecimento do campo de intervenção das políticas urbanas, culturais e sociais. Assim, a cidade como expressão política organizada local, a cultura como sistema de significados, a identidade com espírito essencial, básico e estruturante do território são elementos que simultaneamente ajudam a inovar na concepção das políticas públicas sobre as quais se debruçará a cidade futura.

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