Para ser o que não penso, para pensar o que não sou - PUC-SP, 2013

September 13, 2017 | Autor: Fabiana Jardim | Categoria: Sociología
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I Encontro de Pesquisa "Michel Foucault" entre Pesquisadores em Educação (FEUSP) e o Grupo de Pesquisa Michel Foucault (PUC-SP) São Paulo, 12 e 13 de novembro de 2013

Para ser o que não penso, para pensar o que não sou: dos percursos de pesquisa e dos encontros que nos movem Fabiana A. A. Jardim (FEUSP)

Gostaria de começar agradecendo à Danielle Kowalewsky e à Elisa Vieira, pelo convite para participar desse encontro; como a Flávia Schilling e o Márcio Fonseca já chamaram a atenção ontem, é uma prática que apesar de parte essencial do espírito universitário, é cada vez mais difícil de promover no cotidiano acadêmico, constrangidos que estamos por toda uma série de demandas e prazos. No entanto, sem encontros a vida acadêmica não fica apenas solitária, mas também estéril – vejam que a ideia de “encontro”, ao menos para mim, é tão importante que está nesse título que escolhi, vinculado ainda ao trabalho do deslocamento em relação a nós mesmos. De modo que me junto ao desejo expresso pela Dani de que este seja o primeiro de outros, muitos. Para já entrar no assunto, vou começar a partilhar o lugar que Foucault ocupa na minha trajetória. Ontem a Flávia contava que sua trajetória começara nos anos 1980, o Márcio nos anos 1990, e eu venho aqui falar de uma trajetória que começa no início dos 2000. Entrei na graduação em Ciências Sociais, na USP, em 1996. Acho que ainda entrei num momento bastante privilegiado, no sentido que a iminência de reformas previdenciárias ainda não tinha apressado a decisão da aposentadoria de alguns professores, nem a greve estudantil e algumas de suas truculências tinham levado outros a também se aposentarem. Assim, tive aulas ainda com um conjunto de professores que, ainda que pertencentes a diferentes gerações, tinha em comum uma espécie de ethos no que se refere à compreensão do que é fazer sociologia no Brasil e aos métodos e procedimentos de pesquisa. Não é que houvesse um conjunto de autores legítimos a ser lido, ao contrário: as ideias de imaginação sociológica e a possibilidade de dialogar com autores para pensar o próprio problema estavam o tempo todo expressos na prática de muitos daqueles professores. Começo dizendo isso não apenas porque nessa crise em que a USP se encontra atualmente há um estímulo ao trabalho de rememorar, mas principalmente para explicar desde logo que meu contato mais sistemático com Foucault, embora ele fosse lido em 1

I Encontro de Pesquisa "Michel Foucault" entre Pesquisadores em Educação (FEUSP) e o Grupo de Pesquisa Michel Foucault (PUC-SP) São Paulo, 12 e 13 de novembro de 2013

disciplinas como as ministradas pela Vera Telles ou pelo Sergio Adorno e fosse objeto numa optativa dada pela Irene Cardoso, só foi se dar no doutorado, e muito em função dessa inquietação acerca do que significa pensar o presente da sociedade brasileira. Na pesquisa de mestrado, depois de uma breve incursão – um pouco frustrada – na Teoria Literária, eu me dediquei a pensar o que era a nossa experiência salarial num momento liminar (de crise profunda das formas de gestão do emprego e também de crise da ideia de direitos e de proteção social ligada a ele), a partir da consciência sociológica de pessoas também em situação liminar, que escapavam das normas que definem o que é um desempregado ao desistir da atividade da procura. Minhas referências naquele momento eram Simone Weil e Hannah Arendt, a sociologia da vida cotidiana de José de Souza Martins e também todo um momento do pensamento social brasileiro, que nos anos 1970 e 1980 se dedicara a compreender os modos de vida marginais que se instalavam no coração mesmo das cidades industriais, tingindo a nossa modernização de cores bastante específicas. Foi uma pesquisa qualitativa, feita a partir de uma coleção de notícias de jornal/reportagens de TV, entrevistas com pessoas que viveram essa situação de desemprego duradouro e desistência da procura e, claro, as inúmeras conversas realizadas ou ouvidas em ônibus ou pontos de ônibus. Ainda que o objeto fosse o trabalho, creio que é possível dizer que o centro do meu problema era compreender a nossa experiência salarial, agora experiência já num sentido foucaultiano, e de cidadania. Creio que um achado central daquela pesquisa, ainda que jamais formulado nesses termos até agora, foi a compreensão do sujeito cotidiano, o que o José de Souza Martins chama de “homem simples”, como o palco de entrecruzamentos históricos diversos que concorrem para dar sentido ao vivido. Na prática das pessoas que entrevistei, não eram apenas valores de diversas esferas que estavam em luta, mas os tempos históricos diversos em que cada um desses valores ganhou significados concretos. Algo que eu tinha aprendido com o Martins, mas que ao mesmo tempo eu não consegui continuar pensando a partir dos termos da sociologia da vida cotidiana, pois a ideia de uma totalidade a ser reposta pelo pensamento sociológico, a partir dos fragmentos de consciência social dos indivíduos diferentemente posicionados, não me parecia um caminho profícuo, ao menos não a mim. Entrei no doutorado, assim, com um projeto que insistia na dimensão da interação cotidiana como lugar para decifrar as camadas das diferentes formações históricas 2

I Encontro de Pesquisa "Michel Foucault" entre Pesquisadores em Educação (FEUSP) e o Grupo de Pesquisa Michel Foucault (PUC-SP) São Paulo, 12 e 13 de novembro de 2013

atualizadas no presente. A ideia inicial era continuar pensando a constituição do cidadão, do trabalhador a partir do que ocorria no espaço da intermediação de mão-deobra. Foucault começava a aparecer, mas ainda muito timidamente, muito fragilmente na ideia do poder como “estruturação de um campo de ações possíveis”. E aí a crise. A crise, é claro, faz parte do percurso do pensamento: é parte fundamental desse esforço que temos que fazer de vez em quando para nos despregarmos de como entendemos o mundo e formulamos os problemas até ali. Me lembro que naquela época eu fiquei quase obcecada com um uma ideia da Adélia Prado, quando diz que “mulher é desdobrável” ou com uma outra ideia, formulada desse jeito pelo meu querido amigo Mauricio, que falava dos momentos em que é necessário “despedir-se de si mesmo”. E vocês vêem como tudo isso se relaciona ao título estranho desse relato, pois mais tarde, já quase às vésperas de defender, descobri - também pela sugestão do Mauricio – esse trecho tão preciso em que o Foucault pergunta “Que devo ser eu, eu que penso e que sou o meu pensamento, para eu ser o que eu não penso, para que o meu pensamento seja o que eu não sou?”. Meu encontro com Foucault, então, se deu no momento em que os termos que até então me pareciam férteis para pensar as questões que me mobilizam me paralisaram. Com os prazos atuais, vocês imaginam o que foi essa crise já com dois anos de doutorado, toda uma outra pesquisa encaminhada, um capítulo da tese escrito... Mas, em alguma medida, insistir num caminho estéril para cumprir os prazos também me parecia uma violência, uma espécie de traição com o espírito da Faculdade onde eu estava. Assim, foi nas notas de rodapé das Metamorfoses da questão social que fui reencontrando Foucault – um Foucault muito específico, dos cursos Em defesa da sociedade, do Segurança, Território, População, do Nascimento da Biopolítica, e que articulava todo um conjunto de autores reunidos dos seminários daqueles anos. E foi assim que acabei rearticulando a pesquisa para tentar fazer uma espécie de arqueologia do desemprego nas práticas estatais brasileiras – procurando em documentos, leis, textos de discussão e de propaganda etc. as maneiras pelas quais a questão da falta de emprego é formulada, se ela se configura ou não como um problema. Um uso bastante recortado do Foucault, mas que creio que pode ser atribuído à urgência que dificultou a frequentação – tão essencial para o trabalho da pesquisa, como o Márcio ontem mostrou.

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I Encontro de Pesquisa "Michel Foucault" entre Pesquisadores em Educação (FEUSP) e o Grupo de Pesquisa Michel Foucault (PUC-SP) São Paulo, 12 e 13 de novembro de 2013

Depois do doutorado entregue e defendido, foi sendo possível retomar o Foucault, em leituras menos “interessadas” – no grupo de estudos que mantenho com meus alunos da graduação já há três anos, nas discussões do Grupo de Pesquisadores em Governo, Ética e Subjetividade (GES), na preparação de algumas aulas... O convívio mais longo e menos pressionado tem sido prazeroso, ainda que por vezes tão difícil. Mais recentemente, a perspectiva foucaultiana tem me ajudado a reencontrar um caminho em relação à literatura (e a um tipo específico de literatura que são as ficções distópicas, com suas reflexões imaginativas sobre a subjetividade política e as relações de poder) e também em relação ao trabalho de campo de tipo qualitativo, na compreensão de que as dificuldades impostas por um país que não exatamente preza os arquivos e a memória documental deve estimular a imaginação de modo a permitir a recuperação da história e das formações de práticas de outras maneiras. Além disso, toda uma historiografia recente tem construído as condições de pensar a constituição de nossa cidadania e de nossa subjetividade política em outros termos, contribuindo talvez para que seja possível pensar as diferenças das governamentalidades que nos atravessam. Finalmente, e para não me alongar demais, creio que a principal vantagem de pensar com Foucault, é que apesar de se tratar de uma mesma pessoa, dificilmente se corre o risco de se ficar aprisionado numa única grade de análise – ele foi tantos, tão diferentes, reunidos por seu compromisso com o presente e por seu desejo de liberdade, que parece que também não nos permite a acomodação: a gente desconfia que entendeu alguma coisa, aí lê outro texto em que ele inverte, desloca, muda de ideia. Para encerrar, então, queria dividir com vocês um trechinho do Nuno Ramos, em o Ó, comentando a prisão das identidades: “Feitos à semelhança de algum protótipo, à própria semelhança estamos presos, como bois à mó (a mó dentro da mó, boneca russa de pedra). Nada em nós ventila, só o vento dentro do vento nos alcança, sem notícia nem claridade, nem viagem nem sal marinho. Concatenado à relojoaria noturna, circular, das bonecas russas das galáxias, girando dentro de si mesmas em velocidades espantosas, olho enfatuado por um olho que não é meu, já tomado pelo que viu e ainda vê. Um olho que tem a luz colada, em dobras de repetição e de contagem. Cada vez que pisco, encontro o que já via antes. Como é possível isto?”1.

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“Bonecas russas, lição de teatro”. In: Nuno Ramos. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2010: p.100-1. 4

I Encontro de Pesquisa "Michel Foucault" entre Pesquisadores em Educação (FEUSP) e o Grupo de Pesquisa Michel Foucault (PUC-SP) São Paulo, 12 e 13 de novembro de 2013

Na minha trajetória, os encontros com Foucault são essas rachaduras – por vezes pequenas, por vezes largas – por onde um vento me alcança e é possível piscar para encontrar a diferença.

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