Para uma arte que se inventa a todo tempo cabe uma ferramenta de análise que se invente junto com esta arte
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Texto publicado originalmente nos Anais do Encontro Nacional de Composição Musical de Londrina, 2014.
Para uma arte que se inventa a todo tempo cabe uma ferramenta de análise que se invente junto com esta arte
Silvio Ferraz Para este texto resolvi escrever um ensaio. Acredito ser o ensaio o lugar de escrita do compositor, do artista em geral. Os escritos acadêmicos são por demasiado áridos e sua retórica tem força extrema de dragar qualquer invenção. Por isto, escrevo um ensaio livre. Exercício muito difícil, sobretudo o de evitar nota de rodapé e remissões constantes que legitimem o texto a partir de outros que por sua vez se legitimaram a partir de outros. • • • O que podemos chamar de invenção ? Encontro uma resposta formulada pelo francês Gilbert Simondon, inventar é criar um desvio. Inventamos quando nos deparamos com um entrave, com um problema, com um impasse. O impasse nos impõe criar uma passagem para poder continuar. E só há um jeito de ultrapassar o impasse: criar um desvio. Inventar é criar um desvio. • • • Uma arte que se inventa a todo tempo é aquela em que a todo tempo nascem novos impasses e para cada impasse um desvio. • • • Se penso a invenção como desvio, como posso pensar a análise desta invenção? O que vem a ser analisar? • • • Para alguns a análise é um modo de verificar se um modelo qualquer foi seguido à risca. Analisa-‐se Villa-‐Lobos para se verificar se ele seguiu ou não a forma sonata. Ou seja, a análise é um instrumento indexador da boa e da má arte. Ou seja, ela se arroga antecipar a invenção, antecipar o impasse, como sendo aquela que verifica se o compositor empregou a boa solução. Poderia, e seria ótimo assim, dizer que tal posição não é mais empregada. Mas não é fato. • • • Ainda nesta linha de pensamento alguns trabalhos de análise musical limitam-‐se a aplicar uma ferramenta e testar seus limites. Ou seja, o objeto não é mais a música mas a própria análise.
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Texto publicado originalmente nos Anais do Encontro Nacional de Composição Musical de Londrina, 2014.
• • • Existiria ainda um outro lugar para a análise, e este lugar é aquele que chamarei de análise viva. Análise viva é aquela que é contemporânea à música viva que se propõe a analisar. Suas ferramentas nascem de problemas que a própria música propõe a quem escuta. E vale lembrar que uma música suscita problemas diferentes para diferentes ouvintes. E que uma música suscita problemas diferentes para um mesmo ouvinte em momentos diferentes. • • • Mas de onde vem os problemas que movem a análise viva? Estes nascem de uma música ou de uma escuta que surpreende. Quando uma música ou escuta surpreendem um ouvinte, ela interpõe um impasse: o que está se passando? Como o compositor conseguiu tal ou qual efeito? Como um compositor conseguiu suspender o tempo, o espaço, ou mesmo conseguiu fazer com que o seu público mergulhasse na peça? • • • Tais perguntas, que nascem do impasse de ser surpreendido, que nascem do impasse de o ouvinte deparar-‐se que algo que lhe arrebata a escuta... elas levam a respostas diferentes e uma delas é aquela de desmontar para remontar, de desfazer para refazer. Mas como desmontar? É preciso ter a ferramenta certa para desmontar. É aqui que primeiro tenta-‐se o uso daquele repertório de ferramentas velhas, que estão guardadas nas gavetas dos cursos de análise, harmonia, contraponto, solfejo, história da música. Ferramentas velhas, meio enferrujadas, um pouco como aparafusar com ponta de faca. • • • Uma música nova, que se inventa, que nasceu de um impasse pede assim novas ferramentas. Mas como e de onde forjar novas ferramentas? Muitos compositores geraram junto com suas obras as ferramentas que as desmontam. Outros forjaram ferramentas que serviam apenas para montar, mas que não ajudavam muito na desmontagem. E, por vezes descobrimos que a ferramenta criada por um pode servir para desmontar a obra de outro. • • • Dentro da lógica que me propus aqui, uma ferramenta nasce tal qual uma obra, ela nasce do próprio impasse. Um impasse é uma interrupção, uma surpresa, uma quebra na continuidade do quotidiano. Há obras que não conseguem surpreender , há pessoas que não se surpreendem com nada, há outras que se surpreendem com tudo, há obras que surpreendem a todo tempo: Sagração da Primavera. Há obras que surpreendem em apenas um pequeno momento. Há obras que surpreendem em uma
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época e depois não conseguem mais movimentar as escutas. Outras que passaram desapercebidas e de repente ressurgem como uma Fênix. • • • Vou dar um exemplo. Uma obra que me impressionou bastante logo à primeira escuta foi o primeiro estudo dos Estudos para piano de Ligeti. Como aquilo foi escrito. Ligeti deixou dicas em seus rascunhos. Mas era preciso conhecer o rascunho para analisar. E nem sempre se tem o rascunho. Então passei à perguntar-‐me sobre o que teria me surpreendido naquela obra. A primeira resposta que encontrei não estava na música do ocidente, ou estava, mas estava entremeada aos diálogos da música do ocidente com a música de outras culturas. Claro, a primeira surpresa foi aquela de como Ligeti, o compositor de Atmospheres e Apparitions estava compondo como Bartok, mas não sendo Bartok. De que artifícios ele estava se valendo para retomar a questão melódica e do tempo pulsante superada por sua música de texturas do final dos anos 1960? • • • Após fazer um levantamento do que talvez estivesse me surpreendendo, cheguei ao caminho para encontrar as ferramentas. Me surpreendera a questão melódica e a questão do ritmo pulsante. Então de que ferramentas eu dispunha para analisar a questão, por exemplo, do ritmo pulsante? Buscar esta resposta na caixa de ferramentas velhas não foi bem o caminho mais apropriado. No entanto buscar a ferramenta na caixa de ferramentas destinadas a outras música foi um caminho. Buscar a ferramenta dentre aquelas forjadas por um etnomusicólogo para a análise da música africana; as ferramentas de Simha Arom para análise da música polifônica de trompas da tribo Banda Linda da África Central. • • • Em suas músicas de trompas os Banda Linda tocam apenas duas notas seguindo ritmos distintos e reiterados mas todos sobre uma mesma métrica. O resultado é um jogo complexo de polifonia e melodias parasitas, as quais nascem da proximidade de alturas e pequenas sequencias quase lineares entre alturas vizinhas:
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De fato Ligeti teve em mente as polifonias não ocidentais diversas na composição de seus estudos, mas é justamente a sobreposição de dois modos de pensamento musical que revela meu interesse neste conjunto de peças. Não o fato de a partir da análise compreender a música de Ligeti. Talvez alguns compositores precisem compreender obras, não é meu caso, simplesmente acredito em ser surpreendido, o que é o reverso de querer saber como algo é para melhor compreender. Não é necessário saber como uma coisa é para se gostar dela. Mas saber quais algumas das possíveis propriedades de alguma coisa para a partir dela inventar outras que compartilhem propriedades com a primeira coisa. • • • A partir das polifonias por sobreposições de disparos de sons próximos ou distantes, desdobrar as estratégias de Ligeti em seus Estudos a partir do princípio de sobreposição de camadas em defasagem gradual, algo que o liga diretamente a Steve Reich, e que por conseguinte liga os dois compositores aos Banda Linda. • • • Existe aqui uma distinção então entre a análise como recurso para quem necessita de anexar ao enunciado sonoro um significado (seja este estrutural ou simbólico) e como recurso para simplesmente se inventar outras músicas que compartilhem com a primeira algumas propriedades. • • • Outro exemplo que me parece interessante compartilhar aqui é o de análise de obras diversas de Bach. E no caso é uma protoanálise (já que não a escrevi nem desenvolvi de fato em texto) da
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passagem entre os compassos 37 e 43 do Prelúdio da 3ª Suite para violoncelo solo, BWV 109. Desta mesma passagem fiz duas leituras distintas. A primeira apenas fazendo o jogo de alternar arpejos, em inversões coordenados pela ordenação das cordas do violoncelo (tal qual o arpejo de La Menor, la-‐mi-‐do), com as breves transições escalares. A expansão desta imagem de alternâncias foi retomada como gesto fundamental na composição de meu Segundo Responsório. Já uma segunda leitura veio não do gesto musical, ou seja dos objetos musicais arpejo-‐transição escalar, mas da gestualidade instrumental presente no dedilhado possível para esta passagem.
Este estudo topográfico do gesto, convertido agora em gestualidade instrumental (em dedilhado, no caso do violoncelo) foi recentemente trabalhado por Gustavo Pena em sua análise da 3ª Partita de Bach e tal distinção entre gestualidade instrumental e gesto musical vem sendo conceitualizado pelo violoncelista William Teixeira em análise da Sequenza XIV que realizamos em colaboração. Trata-‐se de trazer para a análise musical não apenas a partitura, mas o instrumento implícito no gesto musical descrito na partitura. • • • Poderia ainda descrever muitas outras análises por topografias, e inclusive análises de gestos próprios. Para um compositor que inicia suas composições a partir de gestos, tal qual tenho realizado, a análise dos gestos tem uma importância fundamental para o desenrolar de uma composição. Ou seja, agora falo da análise não de uma obra inteira, mas da análise de um simples objetos para convertê-‐lo em gesto musical ou gestualidade instrumentos, o que tomo como um primeiro material composicional. ••• Vale então distinguir alguns lugares para o que se chama análise musical: o lugar da análise na academia musical, como disciplina; a análise como lugar de inventar escutas, como uma ética coletiva; a análise como modo de reinventar uma música, como poética. Por outro lado vale também distinguir que uma análise vive momentos distintos; na composição o percurso material síntese obra; na análise o
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percurso é o obra/excerto análise material; e na performance o percurso obra análise material ressintese performance. E também que cada um destes momentos pode se desdobrar em outros, que a análise não é apenas o desdobramento de um objeto em material, mas que este desdobramento traz sempre consigo as marcas das ferramentas que utilizou, e que este desdobramento tem momentos distintos: desmontagem, ou levantamento de dados, e proposição, ou seja análise propriamente dita validada por alguma generalização e verificação. • • • No que tange ao levantamento de dados que uma análise pressupõe lembro aqui da relação entre os matemáticos Tycho Brahe e Johannes Kepler. Brahe passou a vida realizando cálculos de órbitas e determinando a localização dos astros, mas os cálculos de Brahe necessitavam de uma interpretação. Foi dado a Kepler solucionar tais cálculos e através de uma imagem específica ( a de ver a terra a partir de Marte, Cf. Arthur Koestler, The Sleepwalkers) que lhe permitiu suas proposições relacionadas à órbita da terra. No domínio da análise musical um grande número de levantamento de dados tem sido realizado pelas escolas de análises algébricas, mas um dia estes dados todos deverão ser finalmente analisados por alguém. Ou seja, há uma confusão ao acreditar-‐se que a análise se basta na etapa de coleta de dados. • • • Toda coleta é realizada por tal ou qual instrumento. Neste sentido, existem dados que vêm viciados pela ferramenta de coleta e outros que são coletados com ferramentas que levantam dados irrelevantes, como levantar coleções do tipo módulo 12 na música espectral sem considerar a distribuição espacial. E nem todo levantamento terá utilidade em todas análises, mas podemos ser surpreendidos. Mas no domínio da composição não existem dados equivocados ou restritos, como por exemplo aqueles levantados pelo questionável sistema de Edmond Costère. Estes cálculos questionáveis ganharam força de invenção nas realizações composicionais de Willy Correa de Oliveira nos anos 1970, sobretudo em seus Preludios, Instantes e em seu Concerto para piano. • • • No ciclo de palestras L’art survivrá a ses ruínes, o artista plástico e poeta Anselm Kiefer observa o quase óbvio de que arte se alimenta de tudo. A leitura de Kiefer permite distinguir três relações entre a arte e outras disciplinas ou mesmo nas relações entre as artes: (1) A relação técnica, na qual uma domínio vem ao auxílio de outra enquanto ferramenta para compreensão ou produção; (2) A relação poética, onde todo domínio se transforma em reservatório de imagens para a invenção; e (3) A relação legitimadora, em que enquanto disciplinas cujo discurso é tido como operador de verdades, os domínios acabam sendo tomados de empréstimo para legitimar uma ação artística. • • •
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A composição musical se alimenta de tudo, e um desses “tudo” é a análise musical. De fato, a análise musical poderia bem ter nascido da prática composicional. Sem dúvida nasceu desta prática, mas não só para alimentá-‐la como também para regulá-‐la e avalia-‐la. E tal qual a metáfora do crossover cromossomático, é da disparidade das ferramentas que nascem grandes invenções. Lembro aqui não apenas das topografias que narrei anteriormente, mas do cruzamento entre a semiótica peirceana, o cinema de Eisenstein, e a acústica, realizado por Willy Correa de Oliveira em seu Beethoven, proprietário de um cérebro; ou do cruzamento entre a história de um relojoeiro, as histórias de Manelão retomadas por Guimarães em Grandes Sertão Veredas, e a música de Manoel Dias de Oliveira em O Multifário Capitam Manoel Dias, outro jogo de invenção realizado por Willy Correa e com resultados diversos em sua música. Lado a lado com tal modo da análise de invenção, teríamos as análises formais que, por exemplo determinaram o lugar de Villa-‐Lobos, ora tido como um charlatão ora como um grande inventor de ironias e tópicas ou de simetrias numéricas (a crença de o número salva o louco!). Neste caso não vale sequer citar os autores, praticam a análise como legistas, como juiz do verdadeiro e do falso. • • • A análise nasceu junto com a composição, fosse para que a própria seguisse em seus caminhos, fosse para que alguém tornasse fácil sua difusão (como no caso histórico das normas do Canto Gregoriano), ou ainda para que a controlasse, sobre ela lançasse a mão do juiz que restringe e julga o bom e o mau. É surpreendente a introdução que Felix Salzer escreve em seu Structural hearing, deixando claro que escreve um livro para provar os descaminhos da música no começo do século XX e a superioridade da música tonal. Surpreendente também a frase de Schoenberg em seu Style and Idea, onde afirma que “o popular e o erudito se misturam tão mal quanto a água e o óleo” ao lançar juízo sobre a música de compositores que viviam a força de tal heterogeneidade. É aqui que mora o perigo da análise escolástica, a análise que se arroga legitimar uma ou outra música, uma ou outra escola, um ou outro compositor. E é a ela que acredito que a composição deva se opor, buscando mais e mais a análise que simplesmente inventa, que cruza domínios inusitados para dali nascer o objetivo último do músico, o de fazer música. É esta análise que compositores e instrumentistas podem compartilhar, sempre tendo por objetivo último o de gerar uma música. E é aí também que músicos e outras artes vivem uma grande potência como bem demonstrou Mondrian trazendo a força do Jazz para sua obra, Klee trazendo o tempo musical para sua pintura, a música no cinema de Eisenstein, Kurosawa, von Tiers, o barroco nas coreografias nada barrocas de Pina Baush e nos filmes de Tarkovsky e Sokurov, o cinema na música de Willy Correa de Oliveira, a pintura na música de Feldman... • • • Por fim fecho este texto em defesa da análise de invenção, irmã e parceira da composição de invenção e lanço uma frase de Deleuze lendo a fórmula do eterno retorno de Nietzsche: “O que
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quiseres, queira-‐o de tal maneira que também queiras seu eterno retorno”. Ao que não é dado retornar, já que ora julga uma coisa ora julga outra, vale não querer seu retorno.
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