Paradigmas de investigação em Ciências Sociais

May 30, 2017 | Autor: Pedro Patacho | Categoria: Ciências Sociais, Investigação, Metodologias de Pesquisa, Paradigmas
Share Embed


Descrição do Produto

Mulemba - Revista Angolana de Ciências Sociais Novembro de 2013, Volume III, N.º 6, pp. 13-28 © Mulemba, 2013

Paradigmas de investigação em Ciências Sociais*

Resumo: No campo da investigação em ciências sociais, sobretudo em ambiente académico, há habitualmente uma ênfase excessiva nas questões de método, concebendo-se as metodologias quantitativas como opostas às metodologias qualitativas ou, em alternativa, procurando a complementaridade entre métodos quantitativos e métodos qualitativos num mesmo plano de pesquisa. Seja como for, esta centragem no método obscurece com frequência aquelas que são as questões essenciais da investigação em ciências sociais e determinantes para a sua coerência e qualidade: Qual o enquadramento paradigmático de determinado trabalho de investigação? São os diversos paradigmas de investigação compatíveis? É possível combinar elementos de um e de outro paradigma numa investigação que represente o melhor de duas ou mais visões diferentes do mundo? Neste artigo apresentamos uma sistematização da discussão em torno dos paradigmas de investigação em ciências sociais e afirmamos a necessidade de recuperar e intensificar estes debates no seio da academia, particularmente em contextos de investigação. Palavras-chave: Paradigmas de investigação, filosofia da ciência, investigação científica, ciências sociais.

1. Situando o debate As expressões investigação quantitativa e investigação qualitativa, habitualmente utilizadas para designar diferentes abordagens *

**

Parte deste artigo baseia-se numa conferência proferida pelo autor na Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Agostinho Neto (UAN), em Luanda, em Agosto de 2013. O autor agradece aos professores e estudantes da FCS-UAN os contributos críticos para o aprofundamento dos argumentos apresentados durante a conferência, o que conduziu à estruturação deste artigo. Professor Adjunto do Instituto Superior de Ciências Educativas (ISCE), Portugal, e investigador no Departamento de Pedagogia e Didáctica da Universidade da Coruña, no Reino da Espanha, onde prepara a sua tese de doutoramento. É Director das Edições Pedago.

Artigos - Paradigmas de investigação em Ciências Sociais

Pedro Manuel Patacho**

13

Pedro Manuel Patacho 14

na investigação em ciências sociais, têm uma longa história não isenta de conflitos, de controvérsias e de contradições no seio da comunidade científica. Embora desde o início do século XX tenham existido importantes desenvolvimentos metodológicos no campo das ciências sociais, com o recurso frequente a métodos descritivos, métodos biográficos e estudos de caso, a verdade é que as ciências sociais foram profundamente marcadas nos seus primórdios por uma determinada concepção da ciência estreitamente ligada às ciências físicas de naturais e a determinadas formas de conceber e conhecer a realidade plasmadas nos modelos de pesquisa destas áreas do saber. Como salienta Flick, durante muito tempo foram seguidos sobretudo princípios rígidos no planeamento e no desenvolvimento da investigação em ciências sociais que impuseram um modelo de pesquisa próximo do método experimental e cujos objectivos eram claros: «isolar [...] causas e efeitos, operacionalizar adequadamente as relações teóricas, medir e quantificar os fenómenos, conceber planos de investigação que [permitissem] a generalização dos resultados, formular leis gerais» (2005: 2-3). Foi apenas na década de 60 do passado século XX que as críticas à investigação social experimental e quantitativa ganharam vigor e se constituíram numa corrente alternativa à perspectiva até então dominante (GLASER & STRAUSS 1967). Nessa altura, intensificaram-se as críticas aos paradigmas vigentes e reivindicou-se a legitimidade de outras abordagens na investigação em ciências sociais, o que veio a abrir importantes debates no seio da filosofia da ciência, que se prolongaram nas décadas seguintes. Ao longo das décadas de 70 e 80 do século XX, e no seio de inúmeras disciplinas académicas, produziram-se acaloradas discussões filosóficas em torno dos aspectos ontológicos, epistemológicos, axiológicos e metodológicos definidores daquelas que ficaram conhecidas como sendo as duas grandes orientações na investigação em ciências sociais, a saber: a orientação positivista/empirista e a orientação construtivista/fenomenológica. É hoje consensual que esses debates emergiram em oposição à enorme influência da tradição positivista/ empirista sobre as práticas de investigação em ciências sociais. Ainda que com ritmos diferenciados, tanto no que toca aos diversos países, como às várias áreas do saber, ao longo daquelas décadas aprofundaram-se as clivagens entre as orientações positivista/empirista e construtivista/fenomenológica, tendo surgido novas posturas

Artigos - Paradigmas de investigação em Ciências Sociais

epistemológicas que, nalguns casos, se vieram a revelar totalmente inconciliáveis. Por exemplo, no campo da investigação educacional, Nathaniel Gage publicava em 1989 um artigo sintomaticamente intitulado A guerra de paradigmas e as suas consequências, no qual se referia aos ataques devastadores dos anti-naturalistas, dos interpretativistas e dos tóricos críticos. Esses ataques à orientação positivista/ empirista vinham-se acumulando, nessa altura, relativamente à investigação tradicional em educação. Retomamos aqui uma síntese dessas críticas tal como descritas por Gage no seu artigo (pp. 4-6). A crítica anti-empirista reclamava a não existência de um método de investigação comum a todas as áreas do conhecimento que reivindicam o estatuto científico. Dito de outra forma, na perspectiva dos anti-empiristas, os sujeitos humanos e os contextos especificamente humanos não poderiam ser adequadamente estudados com recurso apenas e só aos métodos habitualmente utilizados nas ciências físicas e naturais. Esta questão metodológica decorria de visões radicalmente opostas de conceber os sujeitos humanos, os grupos de sujeitos, as interacções humanas e os contextos especificamente humanos enquanto objectos de estudo das ciências sociais. Isso significava também uma concepção radicalmente oposta da relação sujeito-objecto no processo de investigação, bem como um entendimento diferente da natureza do conhecimento produzido no contexto dessa relação. A crítica interpretativista rejeitava a pretensão de objectividade dos comportamentos dos sujeitos e, consequentemente, do conhecimento produzido em ciências sociais, reclamando a necessidade de estas se focarem no estudo dos significados subjectivos tal qual expressos pelos sujeitos no seu agir quotidiano. Os interpretativistas rejeitaram violentamente o foco da investigação tradicional nos comportamentos dos sujeitos como sendo basicamente uniformes, ou seja, com base na ideia de que os fenómenos se repetiriam de forma padronizada independentemente dos contextos. Pelo contrário, reclamaram que a investigação deveria focar-se na forma como os sujeitos constroem e negociam significados, de maneira dinâmica e muitas vezes incoerente, pois a realidade não passa de uma mera ilusão, já que não é pré-existente, mas sim uma construção social. Dito de outra forma, o efeito que têm nas acções dos sujeitos as suas interpretações e visões particulares do mundo cria possibilidades de agir muito diferentes perante situações similares. Isto

15

Pedro Manuel Patacho 16

significava também a concepção de um sujeito investigador intrinsecamente subjectivo, cujas acções e decisões são informadas pelas suas próprias interpretações e visões do mundo. Desta forma, o conhecimento científico seria sempre subjectivo e o caminho para o produzir interpretativo. Por sua vez, a teoria crítica colocava em causa a ideia de uma suposta neutralidade científica, de uma busca desinteressada do saber, reclamando a não existência de tal coisa como conhecimento neutro, pois todo e qualquer conhecimento é sempre influenciado pelos valores e interesses que estão na sua génese, ainda que os sujeitos não tenham disso consciência. Dito de outra forma, todo e qualquer processo de investigação, todo e qualquer conhecimento está sempre ao serviço de determinados interesses numa estrutura social que é marcada por relações de poder, de tal forma que, em vez de se preocuparem em medir tudo e todos e reclamarem uma objectividade impossível, os investigadores deveriam tornar explícitos os compromissos políticos latentes nos seus processos de investigação, orientando os seus esforços para a ampliação das possibilidades de construção de uma melhor democracia e de uma sociedade mais justa, contribuindo para a luta contra a opressão, a desigualdade e a discriminação. Estas críticas e estes debates marcariam as décadas seguintes e transformariam a investigação em ciências sociais, ainda que de forma diferenciada, lenta e não isenta de conflitos. Os manuais de investigação apontavam caminhos frequentemente contraditórios. Por exemplo, em 1994, na quinta edição do seu Conducting educational research (a primeira edição havia sido publicada em 1972) escrevia Bruce Tuckman que «o processo de investigação segue o método científico, ou seja, propõe um problema a resolver, formula uma hipótese, de forma operacional (testável) e, então, tenta verificar esta hipótese por meio da experimentação [...]» (p. 22). Exactamente no mesmo ano, mas na primeira edição do Handbook of qualitative research, Norman Denzin e Yvonna Lincoln escreviam que o processo de investigação «significa diferentes coisas em diferentes momentos [...] Em geral, trata-se uma actividade situada que coloca o [investigador] no mundo [...] um conjunto de práticas interpretativas [...] através das quais os investigadores procuram compreender os fenómenos no seu contexto natural, captando o seu significado do ponto de vista dos sujeitos que neles se encontram implicados» (1994: 3). Estávamos, com efeito, perante duas

visões muito diferentes do que era (ou poderia ser) investigação em ciências sociais. Estas diferentes visões eram reveladoras das disputas entre paradigmas no seio da investigação em ciências sociais. Disputas pela legitimidade e pela hegemonia intelectual e paradigmática (GUBA & LINCOLN 1994). Os paradigmas emergentes no seio da orientação construtivista/fenomenológica competiam com os paradigmas «herdados» da orientação positivista/empirista por uma maior legitimidade e, entre si, por legitimidade intelectual e influência sobre a investigação em ciências sociais.

Durante os últimos vinte anos, as disputas pela obtenção de legitimidade que opuseram os paradigmas de investigação emergentes aos paradigmas «herdados», bem como as disputas entre os novos paradigmas pela hegemonia ou supremacia intelectual, conheceram importantes desenvolvimentos. Dito de outra forma, as questões de legitimidade clarificaram-se em resultado da indiscutível afirmação dos novos paradigmas e da influência permanente que vieram a ter sobre a investigação. Na perspectiva de Lincoln, Lynham e Guba (2011), nos últimos 20 anos tiveram lugar importantes mudanças no campo da investigação em ciências sociais. Em primeiro lugar, no que diz respeito à questão da legitimidade: a) Verificou-se um interesse crescente na literatura sobre investigação por ontologias e epistemologias bem diferentes daquelas que subjazem à tradicional pesquisa quantitativa de base experimental. Emergiram com todo o vigor novas abordagens à investigação influenciadas por diferentes correntes e perspectivas, entre elas, as teorias feministas, as teorias críticas, a teoria queer, as teorias pós-coloniais, as teorias pós-modernas e pós-estruturais. b) Muitos investigadores tradicionais, que habitualmente apenas realizavam investigação quantitativa de base experimental, começaram a interessar-se de forma crescente pelas metodologias qualitativas, sobretudo porque no seio dos seus departamentos os alunos de graduação e de pós-graduação começaram a colocar questões de forma particularmente intensa sobre possibilidades

Artigos - Paradigmas de investigação em Ciências Sociais

2. As duas últimas décadas

17

alternativas de pesquisa em ciências sociais, bem como sobre possibilidades de combinar abordagens metodológicas quantitativas e qualitativas. c) A quantidade de materiais disponíveis sobre novas abordagens na investigação em ciências sociais aumentou de forma exponencial. Livros, revistas científicas, artigos em revistas, comunicações e conferências, cursos breves, workshops, software de análise de dados qualitativos, entre muitos outros materiais tornaram-se amplamente disponíveis. d) Os novos paradigmas de investigação que eram ainda emergentes nas décadas de 60 e de 70 do passado século XX afirmaram-se nos últimos 20 anos e alcançam a maturidade. A sua legitimidade é hoje reconhecida e aceite, a par dos paradigmas tradicionais.

Pedro Manuel Patacho

No que toca à questão da hegemonia entre os novos paradigmas:

18

a) Tornou-se hoje evidente o abrandamento da competição entre os novos paradigmas de investigação e a emergência de confluências entre os mesmos. Consequentemente, a metodologia de investigação surge interlaçada com a natureza das várias disciplinas científicas (sociologia, psicologia, ciência política, etc.), assim como com determinadas perspectivas mais ou menos presentes no seio dessas disciplinas (perspectivas marxista, feminista, queer, etc.). b) É hoje consensual que o avanço da investigação em ciências sociais não está tanto na disputa entre paradigmas de investigação, mas mais na compreensão dos aspectos em que cada um desses paradigmas exibem diferenças e contradições, mas também confluências e possibilidades de compatibilidade. Neste contexto contemporâneo, complexo e exigente, mais do que definir apressadamente uma metodologia para a sua pesquisa, o ponto de partida para qualquer investigador em ciências sociais deve seruma profunda reflexão acerca dos paradigmas de investigação e dos argumentos que os suportam. Os paradigmas constituem assunções básicas que representam diferentes visões do mundo e que definem a própria realidade, pelo que orientam para diferentes formas de conceber e de conhecer a realidade social. A definição de um objecto de estudo e a escolha dos métodos serão então posteriores ao posicionamento do investigador, bem como à sua temática,

no seio de um determinado paradigma ou numa posição paradigmática resultante da confluência de aspectos específicos de determinados paradigmas que sejam compatíveis entre si. Deste ponto de vista, a habitual polémica entre métodos quantitativos versus métodos qualitativos acaba por ser uma questão estritamente metodológica de menor importância, pois consequência natural de reflexões ontológicas, epistemológicas e axiológicas nas quais o investigador se deve, forçosamente, envolver. Os diferentes paradigmas de investigação podem ser definidos precisamente em função das respostas que os seus defensores dão a estas questões fundamentais, a saber: a questão ontológica, a questão epistemológica, a questão axiológica e a questão metodológica (RIZO 2002; LINCOLN, LYNHAM & GUBA 2011).

Na primeira edição do Handbook of qualitative research, Guba e Lincoln (1994) apresentaram os vários paradigmas de investigação em ciências sociais com base em critérios ontológicos, epistemológicos e metodológicos. Em 2002, num artigo intitulado Las disputas entre paradigmas en la investigación educativa, Felipe Rizo, da Universidad Autónoma de Aguascalientes, no México, comentava criticamente essa sistematização e salientava a relevância dos critérios axiológicos para a diferenciação dos vários paradigmas de investigação. Fazia ainda referência à sistematização proposta por Tashakkori e Teddlie (1998), que apresentava um paradigma que os autores designavam por Pragmatismo e que se relacionava com o que então chamaram de metodologias mistas. Não nos interessa aqui ter em conta essa sistematização e muito menos essa orientação pragmatista por razões que adiante se perceberão e que têm que ver com as possibilidades de compatibilidade entre diferentes paradigmas. Em 2011, na quarta edição do Handbook of qualitative research, Lincoln e Guga, agora em co-autoria com Lynham, reconhecem a relevância dos aspectos axiológicos para a definição dos vários paradigmas por ser, tal como os outros critérios, «um ponto essencial de ruptura entre a orientação positivista e formas convencionais de investigação, em oposição às orientações interpretativas na investigação» (p.116). Fazemos aqui uma breve referência a cada um desses critérios:

Artigos - Paradigmas de investigação em Ciências Sociais

3. Paradigmas de investigação

19

Pedro Manuel Patacho

3.1. Aspectos ontológicos

20

Os aspectos ontológicos têm que ver com a natureza da realidade e, portanto, do objecto de estudo da ciência. As divergências ontológicas situam-se entre aqueles que consideram a existência de uma diferença fundamental entre os objectos de estudo das ciências naturais e os objectos de estudo das ciências sociais e aqueles que consideram a não existência dessa diferença fundamental. Reflectir sobre esta questãoimplica ainda abarcar duas outras questões relacionadas e que têm que ver, por um lado, com a natureza do investigador (o sujeito que conhece) e, por outro lado, com a relação sujeito-objecto. Assim, as questões ontológicas implicam considerar a dimensão interior dos sujeitos humanos, quer enquanto sujeitos investigadores, quer enquanto objectos de estudo. Esta dimensão da interioridade, as suas implicações em termos de causalidade dos fenómenos e da sua irrepetibilidade, bem como o carácter histórico dos fenómenos humanos e sociais parecem constituir os aspectos ontológicos essenciais. É no entendimento diferenciado destes aspectos que se vão matizar as diferentes abordagens ou paradigmas na investigação, o que possibilita variações na leitura do mundo, deste as posições positivista e pós-positivista (que tendem a desconsiderar eventuais diferenças entre os objectos de estudo das ciências naturais e os das ciências sociais, a considerar o investigador como neutro e meramente receptivo e uma relação sujeito-objecto marcada pelo distanciamento entre ambos), até às posições crítica, construtivista, e participativa (que assumem uma diferença insuperável entre os objectos de estudo das ciências naturais e os das ciências sociais, sendo a realidade construída pelos sujeitos e não existindo para além deles, rejeitando-se assim a busca de objectividade e aceitando-se a realidade como uma construção social intersubjectivaque não existe para além dessa interacção sujeito-objecto).

3.2. Aspectos epistemológicos Estão obviamente relacionados com a questão ontológica. Aceitando a postura ontológica de que não existem diferenças fundamentais entre os objectos de estudo das ciências naturais e os das ciências sociais, é razoavelmente linear aceitar também a ideia de

3.3. Aspectos axiológicos Para além de se distinguirem em aspectos ontológicos e epistemológicos, os paradigmas de investigação distinguem-se igualmente por elementos axiológicos, como a influência dos valores na investigação científica. Há muito que se compreendeu a impossibilidade de uma ciência neutra e desnudada de valores. As diferenças situam-se entre posições que consideram que a influência de um determinado quadro ou hierarquia de valores é controlável e compatível com o alcance de uma razoável objectividade do conhecimento e posições que consideram essa influência determinante das formas de investigar e dos resultados que se obtêm, de tal forma que tais valores e interesses, sempre latentes no trabalho de investigação, devem ser tornados explícitos pelos investigadores no seu trabalho científico, pois estão intimamente ligados às escolhas às suas escolhas e decisões no processo de investigação.

3.4. Aspectos metodológicos As habituais designações de métodos quantitativos versus métodos qualitativos dizem respeito, mais precisamente, a aspectos metodológicos da investigação científica. As principais diferenças metodológicas situam-se na clarificação de três aspectos essenciais:

Artigos - Paradigmas de investigação em Ciências Sociais

que não exista uma diferença fundamental entre o conhecimento produzido e utilizado nas ciências naturais e aquele que é produzido e utilizado nas ciências sociais. Contudo, ao introduzir-se a questão da interioridade inerentemente subjectiva dos seres humanos, a ênfase na construção de significados e a dimensão historicista, segundo a qual as configurações do mundo humano são sempre o resultado de processos históricos de formação, o conhecimento produzido e utilizado nas ciências sociais assume uma característica eminentemente interpretativa. A concepção da realidade como uma construção social e as orientações historicistas, enquanto formas diferenciadas de abordagem aos fenómenos e aos contextos especificamente humanos, impuseram assim a inevitabilidade de um conhecimento das ciências sociais cuja natureza tende a ser interpretativa.

21

Pedro Manuel Patacho 22

as técnicas e procedimentos utilizados, a relação entre teoria e prática e a definição dos critérios de qualidade da investigação. Há, naturalmente, tipos ideais de abordagens metodológicas que podemos designar de quantitativas e de qualitativas. Contudo, as técnicas de investigação encontram a sua coerência de utilização enquadradas numa determinada estratégia global de investigação, a qual pode ser predominantemente quantitativa ou predominantemente qualitativa. Mais isso dependerá, muito naturalmente, do entendimento do objecto de estudo, da relação sujeito-objecto na natureza do conhecimento científico e da complexa relação entre a teoria e a prática, o que implica o posicionamento paradigmático do investigador. Cada tradição metodológica foi desenvolvendo critérios de qualidade particulares para a avaliação da qualidade da investigação realizada. A investigação qualitativa, ainda que muito diversificada, é hoje autónoma e criou os seus próprios critérios de qualidade, muito ligados à autenticidade dos significados no que toca à sua significância para os sujeitos implicados e contextos estudados. Na sua discussão em torno dos paradigmas de investigação em ciências sociais Lincoln, Lynham e Guba (2011) apresentam uma sistematização baseada nestes critérios de análise, embora dando particular destaque aos critérios ontológicos, epistemológicos e metodológicos. Assim, referem-se aos seguintes paradigmas de investigação: Positivista, Pós-positivista, Crítico, Construtivista, Participativo. Apresentam as principais preocupações subjacentes a cada um destes paradigmas, definem-nos relativamente a cada um daqueles critérios e discutem depois, entre outras questões, as possibilidades de confluência entre eles. A sistematização apresentada permite compre ender os principais aspectos em que os diferentes paradigmas se distinguem e aqueles em que se aproximam, tornando evidente que alguns são compatíveis e outros não, uma vez que partem de pressupostos ontológicos e epistemológicos distintos. Desta forma consideramos apropriado apresentar aqui uma breve síntese dessa sistematização (Quadro 1), ainda que correndo o risco de, precisamente por ser uma síntese, não concedermos o adequado destaque a todos os aspectos que os autores consideraram relevantes. Reproduzimos também um outro quadro apresentado por Lincoln, Lynham e Guba (2011), no qual caracterizam os diversos paradigmas de investigação relativamente a vários aspectos relacionados com a pesquisa em si (Quadro 2).

Critérios

Aspectos Ontológicos

Aspectos Epistemológicos

Aspectos Metodológicos

Positivista Realismo, Investigação “tradicional”

Póspositivista

Crítico

Construtivista

Participativo

Compreender pela interpretação das percepções subjectivas

Transformação baseada na participação democrática

Forma modificada de positivismo

Produção de mudança social em favor dos oprimidos

- Existe uma única realidade objectiva; ela é pré-existente aos sujeitos. - Existe uma verdade única, estável, que pode ser estudada através da medição. - O objectivo da investigação é conseguir prever e controlar a realidade.

- Reconhecimento de que a realidade não poderá nunca ser totalmente compreendida. - Crença na existência de uma realidade única, mas cuja compreensão total pode não ser possível devido à existência de inúmeras variáveis impossíveis de controlar

- Os seres humanos existem num mundo baseado na luta pelo poder. - As interações dos sujeitos são indissociáveis do privilégio e da opressão que podem ser baseadas na raça, etnia, género, classe, capacidades físicas ou mentais, orientação sexual, etc.

- A realidade é uma construção social baseada nas experiências dos sujeitos, específicas e localmente situadas. - Existem múltiplas realidades que são permanentemente reconstruídas. - A realidade é uma construção intersubjectiva de significados desenvolvidos socialmente e experiencialmente.

- A realidade é co-construída socialmente mediante participação. - O sujeito apenas pode conhecer quando conhecido por outros: co-construção de significados - Visão da realidade baseada na participação.

- Crença na total objectividade do conhecimento. - Não há nenhuma razão para interagir com os sujeitos ou fenómenos estudados. - O rigor científico (objectividade) é tudo o que interessa, e não o impacto dos investigadores e do conhecimento na sociedade e nos sujeitos estudados. - Validação estatística e pelos pares

- Apenas é possível aos investigadores aproximar-se da realidade. - A investigação e a confirmação estatística constituem uma base incompleta para a tomada de decisões. - A interação com os contextos e os sujeitos deve ser controlada e mantida no mínimo possível. - Validação estatística e pelos pares

- A investigação orienta-se para a compreensão das estruturas sociais, da liberdade e da opressão, do poder e do controlo.. - Os investigadores acreditam que o conhecimento produzido pode modificar as estruturas opressivas existentes e as relações de poder.

- Conhecimento subjectivo: investigador e sujeitos constituem uma única entidade. - Os resultados da investigação são literalmente uma co-criação do processo de interacção. - Significados construídos. - Ênfase nos pontos de vista dos sujeitos. - Aquilo que somos e como entendemos o mundo são aspectos centrais de como entendemos os outros e o mundo.

- Conhecimento holístico e subjectivo porque ligado a contextos e experiências específicas: baseado na experiência e na participação.

- Crença no método científico, hipotéticodedutivo. - Idênticos às ciências experimentais convencionais. - Valorização dos dados produzidos em estudos que possam ser replicados.

- Crença no método científico, hipotéticodedutivo. - Relevância da estatística no processo interpretativo. - Tendência para colocar mais questões em função das possíveis variáveis não conhecidas. - Preocupação com o distanciamento do investigador para aumentar a objectividade.

- Ênfase em estratégias dialógicas/ dialécticas. - Ênfase na participação dos sujeitos com vista à emancipação e à construção de bases para a transformação social.

- Hermenêutica/ dialética: práticas interpretativas. - Construções e reconstruções de significados através da comparação e contrastação dialética. - Ênfase em abordagens naturalistas (observação, entrevistas, análise de textos, documentos variados)

- Participação política em investigação-acção colaborativa. - Uso de linguagem e construção de significados enraizados num contexto partilhado. - Ênfase na prática: construção de novos conhecimentos através da aplicação de conhecimentos.

Quadro 1. Paradigmas de investigação (adaptado de LINCOLN, LYNHAM e GUBA 2011: 102-105)

Artigos - Paradigmas de investigação em Ciências Sociais

Paradigmas

23

Técnica; quantitativa e qualitativa; teorias substantivas

Formação do investigador

Autenticidade, confiabilidade, catalisador da acção

Contextualização sociohistórica; erosão da ignorância e dos equívocos; estímulo para a acção transformadora

Epistemologia da prática: primazia do conhecimento prático, conhecimento em acção No seio de comunidades de investigação embebidas em comunidades de prática Ligação ao experiencial, ao vivido, ao conhecimento da prática; conduz à acção com vista à melhoria das condições para o exercício da prática.

Participativo

«Participante» no contexto investigado como facilitador da reconstrução de múltiplos significados

Envolvimento na acção através da prática reflexiva; clarificação da teoria por meio de narrativas, e outras formas de representação Iniciação dos investigadores através do envolvimento activo nos processos estudados

Intrínseca – ligada ao processo de investigação

Em contexto; qualitativa e quantitativa; história; valores altruístas; empowerment; libertação

«Intelectual transformador» que toma partido, activista

Intrínseca – quadro moral definido

Incluídos – devem ser revelados e têm um papel formativo

Reconstruções progressivamente mais informadas e sofisticadas

Construído e reconstruído individual e colectivamente, por vezes de forma colaborativa

Construtivista

Revisionismo histórico; generalização por similaridades

Estrutural (com relevantes contributos da perspectiva histórica)

Crítico

Quadro 2. Paradigmas de investigação (traduzido pelo autor a partir de LINCOLN, LYNHAM & GUBA 2011: 101)

Técnica e quantitativa; teorias substantivas

«Investigador desinteressado»; apenas fornece dados objectivos que informam os processos de decisão

Extrínseca

Postura do investigador

Ética

Excluídos – a sua influência é negada

Perspectiva convencional de «rigor»: validade interna e externa, fiabilidade, objectividade

Critérios de qualidade da investigação

Valores

Acumulação gradual; adição; generalizações e ligações de causa-efeito

Acumulação do conhecimento científico

As hipóteses não falsificadas são prováveis factos ou leis

Pós-positivismo

As hipóteses verificadas são estabelecidas como factos ou leis

Positivismo

Pedro Manuel Patacho

Natureza do conhecimento científico

Aspectos-chave

Paradigmas

24

No campo da investigação em ciências sociais, sobretudo em ambiente académico, há habitualmente uma ênfase excessiva nas questões de método, concebendo-se as metodologias quantitativas como opostas às metodologias qualitativas ou, em alternativa, procurando a complementaridade entre métodos quantitativos e métodos qualitativos num mesmo plano de pesquisa (cf. MUQUEPE 2013). Seja como for, esta centragem no método obscurece com frequência aquelas que são as questões essenciais da investigação em ciências sociais e determinantes para a sua qualidade: Qual o enquadramento paradigmático de determinado trabalho de investigação? São os diversos paradigmas de investigação compatíveis? É possível combinar elementos de um e de outro paradigma numa investigação que represente o melhor de duas ou mais visões diferentes do mundo? As respostas a estas questões são relevantes, uma vez que a não resposta deixaria implícita a ideia de que todos os paradigmas de investigação são, de certa forma, compatíveis, sendo possível o desenvolvimento simultâneo de práticas de investigação informadas por diferentes paradigmas. Como vimos, os paradigmas constituem diferentes visões do mundo, apontando para diferentes formas de conceber a realidade social, para diferentes formas de a conhecer e para a produção de diferentes tipos de conhecimento, que perseguem finalidades diferentes, mas que reivindicam todos o estatuto de conhecimento científico. Ainda assim, do ponto de vista de Phillips (2006) a compatibilidade é possível desde que nos aspectos definidores dos respectivos paradigmas (aspectos ontológicos, epistemológicos, axiológicos e metodológicos) eles sejam semelhantes ou que, pelo menos, haja uma forte relação entre eles. Neste sentido, por exemplo, o Positivismo e o Pós-positivismo são claramente compatíveis. Da mesma forma, em vários aspectos, os paradigmas interpretativos (Crítico, Construtivista, Participativo) são igualmente compatíveis. Por outro lado, e com base na sistematização proposta por Lincoln, Lynham e Guba (2011) torna-se evidente que do ponto de vista filosófico e paradigmático, a compatibilidade entre visões do mundo positivistas/pós-positivistas e interpretativas émuito difícil, embora seja perfeitamente possível o recurso a metodologias quantitativas e qualitativas em ambas as orientações. Dito de outra

Artigos - Paradigmas de investigação em Ciências Sociais

4. Reflexões finais

25

Pedro Manuel Patacho

forma, as possibilidades de pesquisa multimetodológica não devem obscurecer a imperiosa necessidade de reflexão em torno das várias orientações de investigação intimamente associadas a diferentes visões do mundo. Esta questão é importante porque se relaciona directamente com inúmeras decisões que os investigadores tomam antes de elegerem uma determinada temática e conceberem um plano de investigação. Ainda que não se apercebam, a sua visão do mundo é determinante nos processos de tomada de decisão, pelo que se impõe um exercício profundo de reflexão crítica sobre as questões que moldam essa mesma visão. A escolha de um tema, o interesse por determinadas correntes teóricas, a problematização da realidade social não são processos neutros, mas culturalmente fundados na pessoa do investigador, na sua história, no seu percurso de vida, nas suas escolhas, em suma, na sua autobriografia. Assim, a principal discussão na investigação em ciências sociais não deverá ser a questão do método, mas sim, essencialmente, a questão paradigmática. Deste ponto de vista, é importante que os estudantes de graduação e de pós-graduação se envolvam intensamente em debates ontológicos, epistemológicos e axiológicos através dos quais encontrem um sentido profundo para as suas práticas de investigação e uma clarificação da sua posição no mundo enquanto investigadores.

26

Referências bibliográficas DENZIN Norman & LINCOLN Yvonna 1994 (1.ª edição), «Introduction: the discipline and practice of qualitative research», in N. Denzin & Y. Lincoln, (orgs.), Handbook of qualitative research. Thousand Oaks, Sage Publications, pp. 1-29. FLICK Uwe 2005, Métodos qualitativos na investigação científica. Lisboa, Monitor. GAGE Nathaniel L. 1989, «The paradigm warsand their aftermath: a “historical” sketch of research on teaching since 1989», Educational Researcher, vol. 18(7), October, pp.4-10.

GUBA Egon & LINCOLN Yvonna 1994 (1.ª edição), «Competing paradigms in qualitative research», in Norman Denzin & Yvonne Lincoln (orgs.), Handbook of qualitative research. Thousand Oaks, Sage Publications, pp.105-117. GLASER Barney & STRAUSS Anselm 1967, The discovery of grounded theory: strategies for qualitative research. New York, Aldine

MUQUEPE Fernando 2013, «Metodologia da Ciência Política. Uma abordagem crítica dos métodos qualitativos e quantitativos», in Fernando Muquepe, Miguel Domingos Bembe & Paulo Faria, O estudo científico da política: abordagens epistemológicas e metodológicas. Luanda, Edições Mulemba; Mangualde, Edições Pedago. PHILLIPS D. C. 2006, «A guide for the perplexed: scientific educational research, methodolatry, and the gold versus platinum standards», Educational Research Review, Vol. 1(1), pp.15-26. RIZO Felipe M. 2002, «Las disputas entre paradigmas en la investigación educativa», Revista Espanola de Pedagogía, LX, n.º 221, pp. 27-50. TASHAKKORI Abbas & TEDDLIE Charles 1998, Mixed methodology. Combining qualitative and quantitative approaches. Thousand Oaks, Sage Publications. TUCKMAN Bruce W. 1994, Conducting educational research. Fort Worth, Harcourt Brace & Company.

Artigos - Paradigmas de investigação em Ciências Sociais

LINCOLN Yvonna; LYNHAM Susane & GUBA Egon 2011 (4.ª edição), «Paradigmatic controversies, contradictions, and emerging confluences revisited», in Norman Denzin & Yvonne Lincoln (orgs.), Handbook of qualitative research. Thousand Oaks, Sage Publications, pp.97-128.

27 Title: Research Paradigms in Social Sciences Abstract: In the field of social science research, particularly in the academia, there is usually an excessive emphasis on questions of method, conceiving quantitative methods as opposed to qualitative methods or, alternatively, looking for the combination of both quantitative and qualitative methods in same research plan. Anyway, centering research discussion on methods often obscures those that we think are the core issues of research in social sciences, the kind of issues that determines its consistency and quality: What is the paradigmatic framework of a specific research work? Are the various research paradigms compatible? You can be combined elements of one and another research paradigm that represents the best of

two or more different worldviews? In this paper we present a systematization of discussion on the paradigms of research in social sciences, and claim the need to recover and intensify these debates within the academy, particularly in research projects.

Pedro Manuel Patacho

Keywords: Research paradigms, philosophy of science, scientific research, social sciences.

28

Pedro Manuel Patacho É licenciado em Educação pelo Instituto Superior de Ciências Educativas (ISCE) e mestre em Educação pela Universidade de Lisboa. Actualmente prepara a sua tese de doutoramento na Universidade de Coruña, no Reino de Espanha, onde é investigador no Departamento de Pedagogia e Didáctica. Supervisiona trabalhos de mestrado em diversas áreas e tem leccionado diversos cursos na formação inicial e pós-graduada, entre eles: Metodologia de investigação e Técnicas avançadas em investigação qualitativa. É membro do Conselho Editorial e Editor Assistente da Revista Angolana de Sociologia, órgão da Sociedade Angolana de Sociologia (SASO) e do Conselho redactorial do Forum Global de Investigação Educacional. As suas principais áreas de interesse situam-se no campo da Investigação Etnográfica em Educação e da Sociologia da Educação, em particular: Educação e Justiça Social; Participação Democrática nas Escolas; Educação e Activismo Social; Análise das Políticas Educativas e Curriculares. Dentre os seus trabalhos mais recentes destacam-se: «Práticas educativas democráticas», Educação & Sociedade, vol. 32, n.º 114, pp. 39-52; «Os professores como activistas sociais», Itinerários, n.º 8, pp. 37-47; «Mercantilização da educação. Tendências internacionais e as políticas educativas em Portugal», Currículo sem Fronteiras, vol. 13, n.º 3, pp. 561-587, Setembro-Dezembro de 2013; «Sociologie des Brazzavilles Negras: um livro à frente do seu tempo», Mulemba – Revista Angolana de Ciências Sociais, vol. III, n.º 5, Maio de 2013, pp. 151-160. [e-mail: [email protected]]

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.