Parcialidade e materialidade: a destribuição do ser e do saber no espiritismo cubano

September 4, 2017 | Autor: D. Espírito Santo | Categoria: Anthropology of Knowledge
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I. Introdução: Ser-Saber-Estar i. Vários meses após a minha chegada a Havana, conheci Plácido. Vivia em um bairro pobre na periferia da cidade, em La Lisa – terá sido em tempos um bairro burguês, agora decaído, como muitos outros, na miséria e no desgaste – numa casa humilde de dois quartos que partilhava com a mãe anciã e com o padrasto inválido. Plácido também era inválido – um homem de estatura extremamente limitada sofrera de uma doença congênita em criança que o deixou com as pernas deformadas e com as costas corcundas. Movia-se com dificuldade, apesar de ter apenas 30 e alguns anos. Vim ter em sua casa através de uma amizade em comum, que, contando-me do caráter invulgar da sua vidência como médium, insistiu que eu o conhecesse em benefício do meu trabalho. Em Havana, o talento de um médium espírita propaga-se de boca em boca, através de recomendações, histórias de previsões impressionantes, de curas impossíveis e, especialmente, de comunicações emotivas com almas de familiares mortos. Tal como havia feito em numerosas outras ocasiões, segui o conselho do meu amigo e fui com uma companheira ao seu encontro. Fomos dar

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em uma encruzilhada em frente à casa de Plácido, que, lá de dentro, já pressentira a nossa chegada. A verdade é que tínhamos nos perdido no labirinto de ruas poeirentas cuja denominação se fazia a partir de números e não de nomes, e cujas moradias dilapidadas tornavam difícil a sua distinção. Ali, longe do centro turístico da cidade, não circulavam dólares nem estrangeiros. “Já estava à espera de vocês”, disse-nos Plácido do seu terraço, sorridente, “o meu espírito disse-me que estavam perdidas”. Os seus olhos expressivos brilhavam com antecipação. Plácido era divorciado, branco. Tinha um filho de 13 anos que adorava, mas que não via tempo suficiente. Mostrou-nos uma fotografia dele e do menino, felizes, à frente de uma igreja, no que me pareceu ser o dia da primeira comunhão do filho. Desde esse primeiro momento que a minha impressão foi a de um homem profundamente solitário, talvez incompreendido, idiossincrático. E também a de um indivíduo intimamente ligado a um mundo que transcendia as suas próprias limitações físicas e materiais. O mundo dos espíritos, dos mortos; um mundo que, por um lado, parecia conseguir facilmente acessar, como se estivesse no ar à sua volta, e que, por outro, parecia já incorporar, já o ser. Visitei-o várias vezes, percebendo, após cada visita, mais nitidamente a interpenetração inegável destas duas esferas, hermeticamente separadas na maioria das sociedades ocidentais. Plácido era, sem dúvida, um homem excêntrico, até mesmo para os parâmetros religiosos cubanos, dentro dos quais o excêntrico é norma. A sua sensibilidade à informação extra normal era palpável a cada momento, às vezes até perturbadora: o seu olhar era penetrante. Até em circunstâncias não ritualísticas tinha reações imprevisíveis, como se estivesse “vendo” sempre mais em nós, através dos nossos corpos, e no nosso entorno algo mais do que pudéssemos imaginar pelas designadas vias “racionais” ou

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“lógicas”. De vez em quando desmanchava-se em risos histéricos vindos de lugares cavernosos na sua garganta, risos que não pareciam lhe pertencer, e que, no minuto seguinte, paravam sem explicação. Outras vezes, a sua cara contorcia-se com expressões e maneirismos nervosos, os seus olhos se fechavam, voltavam a se abrir, e Plácido recompunha-se à normalidade, ao presente. O que mais me surpreendia nestas ocasiões era a minha própria incapacidade de discernir quando ele se encontrava “montado”, como se diz em Cuba – querendo dizer possuído por um espírito –, e quando não. A sua existência parecia consistir numa oscilação constante entre estados ambíguos de proximidade e outros de distância em relação aos mortos, alguns dos quais, aos nossos olhos, revelar-se-iam mais evidentes do que outros. Em conversa conosco, sentado na sua sala, era-lhe natural, de um momento para outro, mudar o tom da sua voz, grunhir, acelerar repentinamente o ritmo do que enunciava, começar a pronunciar verdades e profecias, a prever o nosso futuro e a diagnosticar os nossos problemas de saúde como se fôssemos irmãos ou amigos de longa data, e em seguida desacelerar estas comunicações, caindo num silêncio contemplativo, cansado. Plácido simplesmente nunca era só ele mesmo – havia nele e através dele uma multiplicidade de espíritos em constante movimento, chamando a atenção, encontrando em suas cordas vocais e em seus gestos expressão, consolidação, presença. Se tivesse que pensar naquilo que Plácido “era”, os contornos do seu corpo não seriam adequados para descrevê-lo, porque, de alguma forma, não o continham. Plácido dizia que trabalhava com o seu “espírito” sentado em cima dos seus ombros, passando-lhe informação. A sua mediunidade era auditiva, entre outras. Ouvia. Vim a descobrir subsequentemente, que quem ele ouvia era o espírito de um padre católico mexicano, falecido na guerra da independência mexicana

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nos princípios do século passado. Um ser de muito conhecimento, dizia. Embora tivesse lhe custado habituar-se à presença constante deste ser na sua vida, à sua linguagem, e aos seus métodos de adivinhação, que como seu médium, Plácido herdava, “agora é tão fácil como beber um copo de água”, admitia. A esta naturalidade muitos cubanos chamam “dom”. Plácido lembra-se de ter sido “especial” na sua infância. Descreve-se como possuidor de uma graça de Deus, até mesmo genialidade, embora diga ser um talento associado à própria luminosidade dos espíritos que o acompanham. Cresceu nas províncias em Cuba, no campo, com pais católicos que não concebiam, e que muito menos falavam sobre fenômenos mediúnicos ou religião africana, que durante o governo revolucionário dos anos 1960 rapidamente se tornou tabu. Quando Plácido começou a sentir a aproximação do mexicano tinha apenas 8 ou 9 anos. Era uma presença potente, dava-lhe arrepios e sensações elétricas no corpo. Compreensivelmente, assustava-o. O espírito perseguia-o à noite, vinha-lhe sussurrar aos ouvidos no silêncio da escuridão, e Plácido costumava se esconder debaixo da sua cama em fúteis tentativas de fazer com que aquela voz grossa e masculina se esvanecesse. Até a sua adolescência, esforçou-se por ignorá-la; e ninguém à sua volta reconhecia os sintomas. Ignorou-a até o momento de ter uma grande prova. Nesse dia, o espírito acautelou-o, dizendo que não fosse montar a cavalo, algo que Plácido fazia com frequência, pois caso fosse ia se ferir gravemente. Plácido não prestou atenção a ele e, como seu espírito havia previsto, caiu, deteriorando o seu já frágil estado físico. Não seria, porém, até aos 17 anos de idade que estaria disposto a aceitar o seu destino como médium, quando, numa festa de aniversário de um amigo, entrou subitamente em transe com o mexicano, que tomou seu corpo com força desmedida. “Foi uma revelação”,

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explica Plácido: “percebi que não tinha escolha, se não me desenvolver como médium.” E foi um desenvolvimento de muitos anos, conseguido através da prática mediúnica constante, de atenção aos pressentimentos e às visões, e de uma contínua prestação de homenagens, dádivas, e cerimônias rituais. Ao cultivar a sua entidade mexicana, apareceram outras entidades – um haitiano, um africano, um índio – espíritos que estavam latentes na sua vida, mas que, todavia, estavam adormecidos, aguardando que os pusessem para trabalhar. Eram vozes, corpos e conhecimentos que faziam dele um ser extenso, distribuído, com capacidades e alcances para além de um indivíduo contido, como o entendemos. Em Pinar del Rio, província de Cuba de onde provinha, esses alcances o haviam tornado famoso localmente. “Deus no céu e Plácidito na terra”, segundo Plácido, é o que ainda consta, com respeito à sua extraordinária visão. O propósito desta breve história introdutória não é demonstrar o lado excêntrico dos médiuns de Havana, muito menos a irracionalidade das suas crenças ou semelhantes patologias; nem é, tampouco, embarcar por uma análise sociológica da construção do nome ou da fama do médium cubano, coisa que não seria difícil em tais contextos. É, talvez mais no espírito de contrariedade, provocar alguma inquietação ao leitor como prelúdio à discussão que se seguirá. Inquietação sentida também pela autora no começo da investigação, pois, muito claramente, estava perante uma ontologia do ser absolutamente distinta à eurocêntrica. Tendo iniciado meu trabalho de campo com uma série de perguntas clássicas pertencentes à antropologia da religião – como é que um médium aprende a ser médium? Que fatores socioestruturais influem na transmissão do conhecimento? Qual o papel do conhecimento espírita no cosmos religioso mais amplo? –, acabara com a sensação da insuficiência das mesmas. No fundo, não se

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tratava de conhecimento transmissível, se não transformador e vivível, se é que existe tal palavra. O processo de aprendizagem, propriamente, e a geração de conhecimento que o acompanhava, alertavam-me para algo mais, isto é, para a existência de uma noção de pessoa muito particular entre médiuns: ela era, nomeadamente, uma pessoa múltipla, plural, expansiva, conectada, em que a definição e a autoconsciência do ser e do saber englobavam os mesmos espíritos, que se manifestavam. Não sendo somente vozes para um além invisível, os médiuns eram pessoas que nasciam de tais relacionamentos, que longe de fixos, se encontravam em perpétua mutação e desenvolvimento, tornando-os sistemas vivos, por assim dizer, ou até mesmo comunidades de seres. O seu talento consistia primariamente em trabalhar os vínculos que o expandiam, ativando a fluidez entre os seus elos, criando, assim, o momento necessário para a recepção de informação, para a visão, e consequentemente, para a comunicação. Este não era um ser homúnculo, portanto, centralizado, predicado numa essência imutável, como o individualismo moderno o planteava,1 mas profundamente relacional, e, mais interessantemente, transdimensional – no que se refere à sua capacidade de aceder a temporalidades e de praticar a sua agência para além das margens dos simples atributos físicos. Dizia o conhecido antropólogo e cibernetista Gregory Bateson que é absurdo falar de dependência, agressividade, orgulho, e assim por diante. São palavras que encontram sua raiz naquilo que acontece entre pessoas, não dentro delas.2 “Se nós jogarmos fora a ideia de que o cão é uma criatura e o coelho, outra, e em vez disso, considerar por inteiro o coelho-cão como um só sistema, podemos então perguntar: quais são as redundâncias que devem existir dentro deste sistema para que uma parte do sistema corra atrás de a outra?”3. Neste texto farei semelhante pergunta em re-

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lação à construção do ser e do saber no espiritismo cubano: quais são as premissas ontológicas que permitem que o ser seja um corolário do saber, e vice-versa? Afinal, o cão e o coelho não serão aqui dois lados da mesma moeda? Não se especificarão mutuamente no desempenho da sua corrida? Quem correrá atrás de quem? Ou, voltando aos dados etnográficos concretos, como me perguntaram retoricamente uma vez, qual o mais verdadeiro, o mundo dos mortos ou o dos vivos? Ao esboçar os princípios de uma antropologia do conhecimento espírita, explorarei as implicações de tal ontologia para uma concepção de espaço e de tempo que não se inspira numa visão convencional da pessoa, e tentarei tirar algumas conclusões, específicas e gerais. Por um lado, como nos lembra Marcio Goldman em sua análise das práticas do Candomblé,4 uma perspectiva antropológica sobre fenômenos mediúnicos é impossibilitada sem o desvendar primeiro de uma teoria da pessoa, por mais alheia que seja à nossa. E se a promessa aqui, como explica Martin Holbraad, “não é a de nos apoiarmos dos conceitos nativos eles mesmos, mas de produzir equivalentes aproximados deles”,5 com o objetivo final de chegar a novos conceitos – e, adicionarei, entendimentos potencialmente enriquecedores aos nossos – então terei de procurar de dentro do nosso repertório uma linguagem que seja suficientemente criativa para tais efeitos, ou seja, que me permita levar a sério a alteridade. Por outro lado, qualquer premissa ontológica se encontra imbricada na experiência prática e fenomenológica, não é apenas conceitual. Deste modo, procurarei, igualmente fazer justiça ao que me parece ser uma capacidade plenamente humana de a pessoa não se confinar a ela mesma, e de fazer parte de sistemas sociais e materiais maiores, cujos conhecimentos excedem sempre os da soma das suas partes. O conhecimento, aqui, é distribuído, intra e interpessoalmente; e es-

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ta distribuição tem dividendos no sentido de entendermos mais abertamente as possibilidades do ser, entre elas, aquelas que se prendem com configurações espaço-temporais. ii. Fredrik Barth foi um dos primeiros antropólogos para quem o conhecimento se tornou uma categoria de indagação analítica.6 Refletindo também o que Roger Keesing7 alega ser uma grande necessidade de transformar as prioridades interpretativas da antropologia em preocupações como a produção, o controle e o consumo do conhecimento, Barth delimita as vantagens de nos afastarmos de análises que se baseiam em noções abstratas e totalizadoras da cultura. Segundo ele, a pessoa é um agente, e não um recipiente, de conhecimento; e o conhecimento emerge predominantemente por meio das especificidades da ação e da prática, como também através da sua aplicação, transação e realização no campo das relações sociais. Enquanto que o “conhecimento proporciona ao ser humano materiais para a reflexão e premissas para a ação”, diz Barth, a noção de cultura “já tende a abranger estas mesmas reflexões e ações”.8 Para Barth, a procura eterna do antropólogo pela coerência conceitual através da abstração empírica, exemplificada por meio de termos como estrutura social, lógica interna, e por aí vai, arrisca ofuscar os complexos padrões de geração, validação, e uso do conhecimento em qualquer sociedade, bem como as consequências empíricas e socioestruturais que as mesmas veiculam. Ao usar o conhecimento como instrumento analítico, argumenta Barth, somos levados a levar em conta os imprescindíveis processos de intercâmbio e fluxo, assim como a função da criatividade humana e da sua capacidade transformadora perante o seu mundo. A solução de Barth consiste fundamentalmente na concentração da

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natureza da interação propriamente dita, em que o processo é precedente à forma. No âmbito do quadro de uma antropologia dos fenômenos religiosos, este argumento realça sem dúvida, a circularidade de assumir que o conhecimento religioso consiste em exteriorizações de preceitos simbólicos e cosmológicos pré-fabricados. Como diz Talal Asad, não se trata só do fato dos significados religiosos estarem intimamente ligados à vida social e constrangidos pelos processos da sua formação e transmissão; é também o caso das condições que proporcionam um entendimento da verdade religiosa estarem frequentemente determinadas por relações de poder.9 Enquanto que a típica conceitualização do que é religioso o vê como representando, ou afirmando algo sobre a ordem do universo, onde a crença atua como a condição a priori da experiência religiosa, Asad mantém que um estudo do significado religioso jamais poderá se divorciar do contexto da sua gestação, na medida que este se encontra alojado na prática, ao invés de ser uma dimensão que se encontre pairando no ar. Até será possível concebê-lo como uma forma de “ação técnica”10 através do qual o religioso disciplina o seu corpo e a sua mente. Saber, em outras palavras, está ligado ao ser no dia a dia, onde o propósito final, como diz Barth, é de ver “a cosmologia como uma tradição viva de conhecimento – e não como um grupo de ideias abstratas entesouradas em representações coletivas”.11 Neste texto, concordarei com a ênfase de Barth sobre a primazia do processo, e sobre a importância de entender a direção e o movimento do conhecimento, além da sua validação social. Mas também tentarei levantar algumas questões que nos encorajarão a levar estes temas a bom porto, nomeadamente, ao reincorporar uma perspectiva ontológica na análise, atribuindo, desta forma, importância às estruturas ideológicas preexistentes. O conheci-

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mento é um conceito desafiador, com o qual se trabalha precisamente porque escapa a uma definição antropológica fechada. Não se liga à prova; não é a-histórico nem objetivo; existem tantos conhecimentos como formas de saber; enfim, poderá não haver nada que se pareça a uma unidade ou a um pedaço de conhecimento, mas apenas processos e interações, como propõe Barth. Mas é exatamente esta a questão: que o conhecimento deve, em si mesmo, constituir um objeto etnográfico de estudo, e não só um analítico. Ou melhor, só após o primeiro, será possível conceber o segundo. Barth afirma que teremos de converter os interesses implícitos de uma sociologia do conhecimento em uma antropologia do conhecimento “capaz de lidar com material esotérico cultural e uma vasta gama de organizações sociais, para que um retrato das condições criativas de quem cultiva o conhecimento, e as formas que o seguem”12 se torne possível. Consequentemente, a importância dada por Barth ao manejo e à transação do conhecimento, como, por exemplo, o conhecimento religioso: que na Nova Guiné, por um lado, é amiúde coberto de mistério e segredo, e que, por outro lado, entre muçulmanos em Bali, deverá ser ensinado apropriadamente para reter o seu valor. Não obstante, a meu ver, a necessidade de retratar as condições criativas do religioso tem de ir além do meramente transacionável, pois aqui também não escaparíamos à acusação de tratar o conhecimento como se fosse conteúdo para a mente,13 vazia ou não. Afinal, o que é o conhecimento? Proponho que para responder a esta pergunta, antes de analisarmos como ele é manobrado, disfarçado, e controlado, é necessário reconhecer que o conhecimento não existe na ausência de um ser cuja capacidade para saber o quê e como, não é óbvia, mas sim, relativa ao contexto etnográfico. O conhecimento entre espíritas cubanos poderá não ser semelhante em nenhuma manei-

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ra àquele que Barth pressupõe (ou Mead;14 ou mesmo Berger and Luckmann15), e, de fato, não o é, como demonstrarei. Dadas as observações dos últimos dois parágrafos da seção anterior, parece-me que teremos de encontrar maneira de ligar o saber com o ser dentro de um só sistema, como diria Bateson, para que um não seja subserviente ao outro, mas sim, visto como um aspecto do outro. Sustento que, quanto mais olhamos para o caso etnográfico cubano, que explorarei neste texto, mais percebemos que, ao falar de conhecimento, por um lado, e de noção de pessoa, por outro, estamos designando descrições distintas de um mesmo processo, chamemos-lhe cognição, aprendizagem, ou ontogenia. E não será o único contexto em que isso será aplicável. As análises de Alfred Gell e de Nancy Munn a respeito do sistema de troca “Kula” (ver também Damon;16 e Leach and Leach17) oferecem uma perspectiva que poderá nos servir de inspiração inicial. Na sua apreciação do trabalho etnográfico de Nancy Munn sobre os nativos da ilha de Gawa e o seu complexo sistema de trocas,18 conhecido como o “anel de kula”, o antropólogo Alfred Gell conclui que, visto como um todo, este sistema poderá ser entendido como uma forma de cognição. Neste contexto, argumenta Gell, “teremos de reconhecer que a mente pode existir quer objetivamente, quer subjetivamente”.19 Esta afirmação é desenvolvida detalhadamente no seu magistral livro, Art and Agency, o qual é dedicado a uma reconceptualização antropológica da arte, nomeadamente, a partir de uma redefinição dos parâmetros da agência. O que Gell essencialmente propõe, é que o ser do indivíduo poderá não estar limitado a coordenadas espaço-temporais específicas; ao contrário, a sua mente poderá estar distribuída através de uma escala de objetos materiais e de rastros imateriais e sociais diversos, através dos quais a sua agência sobreviverá até mesmo à morte biológica. É devido ao fato de o seu nome se as-

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sociar aos objetos valiosos que ao longo da sua vida transaciona que deste modo, a mente do operador kula poderá ser vista como existindo quer objetivamente, quer subjetivamente. Segundo Gell, isto deve-se à conceitualização de que a pessoa é constituída por tais índices físicos, estendidos pelo tempo e espaço, que o sistema de troca é também um sistema cognitivo. Esta análise, embora algo inconclusiva do ponto vista tradicionalmente cognitivo – pois não somos levados a crer que se trata de uma definição convencional da cognição – altera-nos, contudo não só a frequentemente tênue barreira entre o ser pensante e o seu mundo, mas também a relação entre a construção da sua pessoa e as formas, seres e saberes que o transcendem no tempo e no espaço. Como afirma Munn, o ponto de partida de uma análise deste sistema “é a noção de que um mundo vivido não é aquele que se presta como uma arena para a ação, se não aquele que é construído pela ação”.20 O objetivo de cada operador, como também aquele da sua respectiva comunidade, é de estender o espaço-tempo; isto é, de desenvolver relações espaçotemporais que vão além das de um único ser, engrandecendo, desta forma, a capacidade do indivíduo, ou de um grupo de indivíduos, de exercer controle sobre o seu destino, e sobre o seu nome. Estes seres extensos emergem, para Munn, nos processos relacionais de troca, processos incorporados na circulação das conchas de ilha em ilha e consolidados na realização da fama do operador, cuja notoriedade é conseguida ao longo do tempo por meio da árdua construção de caminhos de troca. Aqui, não se trata de realidades estáticas, mas sim de um continuum, onde a natureza do passado e as expectativas relativas ao futuro se fundem continuamente na percepção do presente. Portanto, como sistema cognitivo, vemos a importância da cumplicidade entre o ser e o seu entorno – social e material – que possibilita o conhecimento. Mas, mais con-

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sequentemente, vemos ainda a impossibilidade de perceber este ser como um ente traçado em um só lugar, em um só momento. O filósofo Daniel Dennett está entre os que argumentam que o ser humano tem a tendência de se distribuir pelo mundo, por objetos, sinais, agendas, calculadoras, instituições, línguas orais e escritas etc., nem que seja para facilitar o acesso à informação que progressivamente foi deixada pela sua história social.21 Num já clássico artigo titulado “The Extended Mind”,22 Andy Clark e David Chalmers exploram esta questão profundamente, perguntando-se onde a mente supostamente para e o resto do mundo começa. Segundo esses autores, não é suficiente alegar que o ambiente é um complexo depositário neumônico ou cultural, será necessário reconhecer também que desempenha um papel plenamente ativo na própria cognição humana. No final, certos aspectos do ambiente em conjunto com a pessoa são um sistema cognitivo. Desengatar a mente humana do seu mundo é equivalente à amputação ou à descuração de uma larga porção das capacidades biológicas do cérebro, dizem eles. A distinção absoluta entre o pensador e a sua cultura deveria, portanto, ser claramente repensada, dado que a história de toda prática social e todo artefato material é intrínseca à maneira como estes influem nos processos cognitivos do mesmo. Como diz Tim Ingold,23 a verdadeira contribuição de uma geração à outra consiste numa educação de atenção, e não em uma transmissão de representações. Mas aqui teremos de parar para pensar no que isto implica. Segundo as interpretações convencionais cognitivas, o conhecimento representa o mundo; ou melhor, o conhecimento é uma representação do mundo, onde a mente representa estas representações.24 Por alguma razão, a metáfora do computador é a mais básica das ciências cognitivas. Embora aqui não se discuta este tema, é de denotar que uma compreensão do ser humano como distribuído é alta-

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mente incompatível com uma visão do conhecimento como localizável, prioritariamente, dentro do crânio. Não será surpreendente que mais e mais teóricos tendem a trabalhar com um sentido mais processual da cognição (Clark;25 Hutchins;26 Oyama;27 Toren;28 Varela, Thompson & Rosch29), o que permite que seja na ação que vejamos a pessoa distribuída, onde o pensar não é definido por predisposições ou módulos mentais, mas que se encontra intimamente ligado aos parâmetros socio-históricos, que, por sua vez, permitem e moldam a ação e o desenvolvimento cognitivo. Este último ponto sugere também que os processos que levam à autoconsciência da pessoa não se limitam a uma só localização temporal ou espacial, podem ser concebidos de forma distribuída “pelo tempo de tal maneira a que os produtos de eventos prévios poderão transformar a natureza de eventos mais tardios”,30 como argumentava Munn em relação aos habitantes de Gawa. O que tiramos de tudo isto? Por enquanto, uma fonte fértil de ideias. Nas próximas seções deste artigo explorarei – alternando etnografia com teoria – os paralelismos entre um conceito espírita cubano da pessoa e a noção da cognição distribuída proposta por alguns antropólogos, Edwin Hutchins,31 entre outros. O meu argumento será que, tomando como ponto de partida uma ontologia específica do ser, será possível ver a distribuição do conhecimento em dois níveis críticos: um individual, ou micro, onde a pessoa se entende como parte de um conjunto de entes espirituais cuja conectividade é central a um autorreconhecimento como médium; e um social, ou macro, onde, particularmente em contextos rituais, o conhecimento é produzido de forma coletiva emergente, e imprevisível. Onde cada médium constitui uma componente vital de um sistema funcionante. Se ao nível individual o médium e o seu conhecimento são distribuídos no espaço

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e no tempo através das múltiplas identidades e biografias dos seus mortos,no social, esta transcendência no tempo e espaço salienta-se ainda mais, pois um sistema liga-se a outro à medida que uma pessoa se vê vinculada a todas as outras, e daí em diante. Não é a minha intenção reduzir o mundo dos espíritos e dos médiuns às propriedades da cognição humana – muito pelo contrário. Pretendo lançar-me numa espécie de experimento de antropologia simétrica cujo objetivo é melhor compreender o fenômeno da extensão do ser espírita em Cuba, um ser, como já fora mencionado anteriormente, que poderá, na nossa linguagem conceitual, ser produtivamente concebido como um sistema. Espero alcançar não apenas uma aproximação sensível às relações ontológicas subjacentes à experiência da mediunidade em Cuba, mas igualmente realçar a importância do desenvolvimento da pessoa na percepção das suas continuidades e descontinuidades espaço-temporais. A meu ver, ambas estas questões contribuem para uma compreensão de temas de interesse mais vasto, na antropologia da religião cubana, e talvez além das suas fronteiras. Também salientam, até certo ponto, as limitações da nossa linguagem antropológica para lidar com certos fenômenos que, embora naturais em certas culturas, em outras permanecem opacos, incompreendidos, ou apenas no domínio do imaginário. Claramente, aqui o termo cognição será abordado de maneira crítica, pois ao propor uma caracterização do conhecimento espírita sistêmico, estaremos implicitamente fazendo frente a uma forte tradição, propriamente cognitivista.

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II. Pessoa/Tempo i. O que é o espiritismo? Muito simplesmente, na sua versão popular, trata-se de uma das práticas mais difusas de comunicação com as almas dos mortos em Cuba.32 Embora tenha sido uma religião de certa forma elitista em Cuba, hoje o espiritismo que predomina é, como me disse astutamente um amigo, o espiritismo de la calle – da rua, por assim dizer, misturado, sem formalidades doutrinárias ou institucionais. Especificamente, é um espiritismo cruzado, que se encaixa na mais ampla esfera religiosa afro-cubana, precisamente pela sua fluidez cosmológica. Negocia os mais variados elementos de um cosmos plenamente cubano: no seu âmago falam-se de santos católicos, dos orishas dos panteões africanos iorubá, da natureza e dos mortos escuros e obsessores das práticas bantus, e nos espíritos lutadores ou iluminados de tempos passados, que hoje aparecem como guias protetores ou conselheiros. Mas seria incorrecto afirmar que o espiritismo cubano carece de estrutura ou de pensamento teórico. O trajeto da sua incorporação em Cuba, que o transformou em eixo de um imaginário religioso afro-cubano, indica precisamente o oposto: o espiritismo fornece à religiosidade cubana uma série de conceitos fundamentais para a sua própria coesão. Divagarei brevemente a propósito destes nos próximos parágrafos, ressaltando dois em particular: o conceito da evolução e o conceito da pessoa. Ambos transferem para a esfera religiosa afro-cubana uma forte ontologia do ser, sem a qual é impossível trabalhar em outras práticas rituais. Mais adiante darei maior atenção a esta ontologia, analisando também as diferentes formas, pelas quais o religioso espírita se distribui pelo seu mundo material, social, e metafísico. Embora a maioria dos espíritas cubanos digam que o espírito sempre existiu e que o homem, de alguma forma, sempre se co-

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municou com ele, também reconhecem que, como movimento discreto e filosofia religiosa, o espiritismo foi codificado pelo pedagogo francês Allan Kardec em meados do século XIX. Tomou forma num período da história do continente Europeu na qual se manifestava um interesse cada vez maior pela ideia de que o mundo imaterial ou invisível poderia se tornar compreensível através do método científico e empírico. O historiador Bryan Wilson argumenta que a partir da industrialização massiva do princípio do século XIX nasceu um novo materialismo religioso que provocou uma consciência súbita dos próprios recursos do homem, que daí em diante teria a oportunidade de se libertar de um Deus repressivo e distante.33 As ideias propostas por modas como o sonambulismo ou mesmerismo (de Franz Mesmer) já vinham traçando este caminho, que, não só prometia naturalizar o mundo sobrenatural, até aí acessível só por intermediários, mas dispensar a Igreja Católica, as suas restrições antiquadas e moralidades penalizadoras.34 A ideia de que um espírito podia utilizar objetos, tais como mesas giratórias ou sons nas paredes para se comunicar já tinha sido fonte de especulação nos Estados Unidos, devido à fama das irmãs Fox no final da década de 1840, e à demonstração pública das suas capacidades sensoriais extranormais. Isto, por sua vez, desencadeou curiosidade do outro lado do oceano, onde Kardec começara a investigar por conta própria. A sua história já é conhecida por muitos: isto é, visitando uma série de médiuns da sociedade burguesa francesa ao longo de vários anos, foi colecionando e escrevendo os dados que resultavam das suas entrevistas a espíritos de luz, que lhe traziam mensagens cada vez mais específicas e pessoais. Arquivando as centenas de comunicações que durante este tempo lhes foram fornecidas, Kardec procedeu à sua publicação. A partir de 1857, escreveria as suas obras principais – O livro dos médiuns, O livro dos espíritos, e O evangelho segundo os

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espíritos, onde questiona a interpretação tradicional católica dos livros sagrados. Estes livros, compostos na sua maioria por perguntas feitas por Kardec e as longas respostas obtidas por parte de espíritos iluminados, entre eles Platão e Santo Agostinho, comunicavam um elaborado mapa do cosmos – a existência de mundos materiais e espirituais, e as leis que os regiam nas suas interações contínuas. Deste espiritismo surgiram vários conceitos fortes, que foram subsequentemente adaptados em países do Novo Mundo. O mais preponderante fora, sem dúvida, uma noção mais elaborada da mediunidade – a habilidade de se comunicar com os espíritos – e do seu desenvolvimento. O segundo seria uma ideia cíclica da existência. Kardec expunha a imortalidade de um espírito humano imerso num processo de sucessiva reencarnação, nomeadamente, impulsionado por uma busca de realização predicada na aprendizagem moral, intelectual e espiritual. Suponha-se uma escala de evolução contínua e ascendente, onde todos os seres se encontrariam em posições mais ou menos elevadas segundo o seu nível de desenvolvimento, no topo da qual estariam somente os espíritos de quem já se encontrava longe das preocupações e dos apegos terrestres. Claramente influenciado pelo budismo e por outras filosofias orientais, caracteristicamente reapropriadas no século XIX por doutrinas vitorianas, tais como as da teosofia,35 Kardec propunha que o universo era regido por leis de causa e efeito, e pela acumulação e expiação de carma. Finalmente, Kardec alegava a forte relação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, onde um não apenas influenciava o outro de maneira constante e, às vezes, inconsciente (do ponto de vista dos primeiros), mas também, por meio de guias espirituais, a pessoa jamais estaria só ou desacompanhada. Intermediários e protetores, incumbidos desta missão desde o momento do nascimento do indiví-

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duo, estes entes seriam também os portais para a comunicação com outros espíritos, entre eles, os de mortos conhecidos ou os mais iluminados. Em suma, a pessoa, na doutrina espírita de Kardec, já começara a transformar-se em algo extenso – não só do ponto de vista cármico, pois teria tido outras existências, em outros lugares com outros conhecimentos – como também através da sua afinidade com os espíritos, por sua vez desencarnados que a rodeavam, e que, mais ou menos sutilmente, teriam a capacidade de transferir ao seu corpo e à sua mente intuições, pressentimentos, e até a sabedoria necessária para que esta pudesse completar a sua trajetória individual. Teremos também de notar que, para Kardec, os espíritos, embora não necessariamente mais dotados ou conhecedores que os vivos, possuíam “todas as percepções que tinham na Terra, porém em grau mais alto, porque as suas faculdades não estão amortecidas pela matéria”; continuava Kardec, “eles têm sensações desconhecidas por nós, veem e ouvem coisas que os nossos sentidos limitados nos não permitem ver nem ouvir”.36 Além disso, os espíritos estão em toda parte, afirmava Kardec. Portanto, ao relacionar-se com o mundo do além, até por vezes ocultamente, o ser humano estaria ligando-se a dimensões extramateriais, espaciais e temporais, como também o poderia fazer (enquanto vivo) através dos sonhos, nos quais a única coisa que o mantinha preso ao seu corpo era o “periespírito”, uma substância semimaterial que, segundo Kardec, unia a alma à matéria. Em Cuba o overlap entre os mortos e os vivos se tornaria ainda mais proeminente – se transformaria numa verdadeira fonte de criatividade identitária. Fomentada pela sua aliança histórica com as duas principais tradições (religiosas) preexistentes à sua chegada, as Reglas de Ocha e as Reglas de Palo, conhecidas comumente como santería e palo monte. O espiritismo, inicialmen-

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te com base em práticas que se associavam à espiritualidade científica e filosófica original, foi se estabelecendo entre as populações mais marginalizadas nas cidades e no campo como um espiritismo de cura, de remédio e de consulta com os antepassados. Por um lado, o kardecismo foi entusiasticamente recebido pelos setores educados e liberais da sociedade cubana, que, devido ao seu caráter progressivo, apelou imediatamente aos que lutavam por independência nacional e igualdade social e racial, frente a uma igreja católica hegemônica que favorecia a colônia. Por outro lado, não se conteve apenas nessa esfera. Embora ainda existam, hoje, sociedades e centros de espiritismo científico, este rapidamente deu lugar a formas mais empíricas de comunicação com os mortos, que se nutriam de tradições africanas e indígenas, como também de europeias. Os guias espirituais encarnariam agora peles inteiramente cubanas,37 refletindo a diversidade e a riqueza alucinantes de uma história impregnada pelo sofrimento da escravidão e pelos efeitos do deslocamento massivo, pelas influências culturais de sucessivas ondas de imigrantes e trabalhadores de países tão longínquos como os do Oriente Médio e da China, pelos costumes dos donos dos ingenios, dos intelectuais, e das damas espanholas e crioulas que constituíam as classes dominantes, pelas práticas mágico-religiosas das comunidades haitianas fugidas para a Ilha com os seus amos a partir do século XVIII, e por aí em diante. Entrando na esfera doméstica, onde ainda se enceta, este espiritismo cruzado partilharia espaço e aderentes com o curanderismo dos nativos e com as complexas mitologia e sabedoria das religiões de origem iorubá, bantu, carabalie e arará, entre outras, igualmente perseguidas na época da colônia,38 da neocolônia, e até mesmo durante os primeiros tempos da Revolução Cubana de Fidel Castro, tempos escuros para muitos religiosos cubanos.39 Como argumenta Stephan Palmié, é provável que uma

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noção generalizada de evolução tenha servido para unir segundo os mesmos parâmetros todas estas entidades (e historicidades) heterogêneas, que viriam a se encaixar, de um modo ou outro, dentro da sua escala moral ascendente.40 Hoje, em Havana, onde desempenhei meu trabalho de investigação, ser médium espírita é ter um dom. Mas é um dom intrinsecamente ligado aos próprios espíritos do médium, que através deles alcança a visão ou a vidência. Um bom espiritista é dotado de uma capacidade de captação visual e somática que excede o meramente visível, e é por ter bons muertos. Vê, ouve, sente, pressente, sonha; também poderá entrar em transe, ou aceder ao conhecimento dos seus espíritos pela escrita automática. Mas nada disso costuma acontecer a priori, ou sem grande preparação. O processo de aprendizagem, o chamado desarrollo espiritual – desenvolvimento espiritual – é constituído precisamente por uma ativação, chamemos assim, dos seus muertos, os seus guias, que são quem lhe proporciona a capacidade de atuar como conselheiro dos que o procuram. Eles se transformarão numa extensão do médium no mundo, nos seus olhos, assim como ele será o referente material dos espíritos, o corpo e a mente que lhes dará ocasião de desempenhar as suas tarefas. A importância dada ao papel destes espíritos guias fundamentais – que conformam o que em Cuba se chama el cordón espiritual – não deverá ser subestimada. Eles são percebidos não só como acompanhantes, mas como seus parceiros íntimos; a sua cumplicidade é necessariamente constitutiva do papel que cabe ao médium no seu entorno. Por vezes, os espíritos tornam-se ainda mais famosos do que os próprios médiuns, ocupando o lugar mais prestigioso no discurso de quem os consulta. Não é coincidência que os espiritistas sejam frequentemente conhecidos não como seres individuais, mas como médiuns de espíritos específicos, podendo chegar a

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ponto de os últimos se sobreporem dramaticamente em importância aos primeiros. Este era o caso, por exemplo, de uma velha e experiente médium em Centro Habana que Sara, uma amiga, regularmente consultava, para ver um espírito africano que ela tinha, chamado Palo Iansan. Sara me perguntou, por acaso: amanhã irei ver Palo Iansan, quer vir?” Nos longos meses que nos conhecíamos, observei Sara construindo uma relação de carinho e respeito com Palo Iansan, que, vez após vez, demonstrava a sua impressionante faculdade de prever eventos e de promover mudanças positivas na vida de Sara. Sara retornava à médium pelo espírito, raramente mencionando a virtuosa anciã. Outro exemplo é o de Enrique, um homem generoso e frágil de 70 e alguns anos cujo espírito – Papá Elegguá – se tornara o objeto de atenção par excellence de um grupo considerável de assistentes que, protegendo Enrique e cuidando das suas necessidades no dia a dia, veneravam Papá e o seu trabalho. Enrique, que uma vez necessitara de uma cadeira de rodas, agora consultava dia e noite, prestando o seu corpo cansado, mas já são, para o serviço. Mas este exemplo também indica algo mais. “Papá vê passado, presente, e futuro”, dizia-me; e muitas vezes, em nenhuma ordem em particular. A entrega de Enrique ao seu espírito, como a de muitos outros médiuns que conheci, consistia não só de uma consciência de missão perante o próximo, mas de uma humildade perante aquilo que, no final, também engrandecia a sua pessoa, pois o estendia. A visão trans-temporal, como revela Papá a Enrique, vinha como consequência de esta entrega total, significando a eficácia da parceria entre os dois. Enrique e Papá faziam parte de um só fio mediúnico, um fio extenso no tempo e no espaço. Em Cuba, os espiritistas são homens e mulheres, e, mais raramente, até crianças ou adolescentes. Podem descobrir o seu talento cedo ou mais tardiamente nas suas vidas, muitas vezes como

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resultado de enfermidades repentinas e/ou inexplicáveis pela medicina, ou ainda de crises existenciais. Não será invulgar que o nascer da espiritualidade aqui se associe à experiência de sensações por vezes fortemente viscerais, podendo levar à doença. Conceitualiza-se que os primeiros instantes da manifestação mediúnica consistem numa espécie de somatização espiritual, onde o neófito poderá absorver de forma não intencionada os traços físicos dos seus espíritos – e os males que tinham enquanto vivos – iminentes através da sua presença. Leonel, de 40 e alguns anos e médium de longa data, conta que a sua mediunidade fora diagnosticada erradamente aos 8 anos como epilepsia. Tinha ataques frequentes e violentos, e era um menino desassossegado e insone. Ao verificar que os medicamentos que o seu filho tomava não estavam fazendo efeito, a sua mãe, Virgína, levou-o a uma espiritista que identificou nele o espírito de um escravo africano, que sofrera demasiado em sua vida. Esse sofrimento físico era transmitido a Leonel, que ainda pequeno não pudera resistir a ele. Mas embora sejam inegáveis os momentos de catarse ou enfrentamento, as narrativas biográficas colecionadas ao longo do meu campo em Havana evidenciam, contudo, a existência de uma consciência mais distribuída com respeito ao dom da mediunidade. Muitos contam que sempre souberam que algo existia, mas que não o aceitaram até que algum momento de extrema necessidade o tornou inevitável. Os médiuns frequentemente se referiram a períodos onde a sua sensibilidade ao mundo dos mortos jazia dormente, tempos de infância gravados na sua memória nos quais foi se tornando aparente, retrospectivamente, a necessidade de se desenvolverem como médiuns. “Até muito pouco tempo atrás, eu era como São Tomás,” conta-me Ana, “precisava ver para crer.” Mas também diz Ana que desde pequena que lhe apareciam os espíritos dos seus familiares mortos, a quem conseguia descrever

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em detalhes, como se estivessem vivos. Como Ana e Leonel, muitos médiuns terminam consultando, individualmente, ou trabalhando na misas espirituales, rituais coletivos de invocação e limpeza, pois entendem-se como seres chamados à comunicação entre os dois mundos. É o seu dever pôr os mortos para trabalhar, como diziam; do contrário permanecerão mudos, dormidos, sombras de si mesmos. No espiritismo cubano, a pessoa define-se como inerentemente relacionada aos seus muertos, e portanto, múltipla. E não só os médiuns. Qualquer um de nós, diriam, é acompanhado por espíritos que influem nas nossas ações e decisões, nos nossos talentos e desejos, nas nossas fraquezas e vícios. Podemos ter espíritos de artistas ou de vagabundos, de curandeiros ou cozinheiras, de escravos ou amos, de revolucionários ou cientistas, de intelectuais ou burgueses, de bruxos ou católicos, de ciganos ou índios, de alcoólicos ou mulherengos, e por aí em diante. As suas histórias, conhecimentos e faltas, experiências e desencantos, doenças ou mortes, serão também a nossa herança como seus protegidos, pois ao existirem arraigados aos nossos panoramas moral, emocional e físico, esses entes propagam-se no tempo, como também nós nos ligamos a passados que não foram nossos, mas aos quais pertencemos. Assim é explicada a aptidão de um indivíduo às artes, à escrita, à medicina, o seu bom temperamento ou à sua agressividade, a sua natureza plácida ou dependente, a sua coragem, e a sua clarividência. Vagamente categorizados apenas como entidades de maior ou menor luz, claridade, ou evolução, os mortos são vistos como virtualmente humanos no que se refere aos seus anseios, preocupações, amabilidades e necessidades. Muitos serão espíritos “de lucha”, de batalha ou de guerra, cujas especialidades ou destrezas os equiparão para a mais dura das proteções – em Cuba sempre existem inimigos. Outros exercerão os seus

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poderes mais sutilmente: haverá a hábil cigana com quem se poderá contar em caso de dificuldades econômicas; o africano engenhoso em trabalhos mágicos que facilitará a rápida resolução de alguma questão no plano místico; o burocrata a quem se chamará em ocasiões de papéis oficiais; o árabe que poderá proporcionar a lucidez necessária na eventualidade de uma decisão importante. Os exemplos são ilimitados. Todos os espiritistas reconhecem que todos temos cordones espirituales, embora raramente se comprometam a designar quantas entidades os compõem; apenas afirmam que a mediunidade é propriedade das características destes – isto é, que o médium tem perícia terapêutica e vidente porque possui espíritos que o possuem também. A um nível ontológico, o médium e eles são um único ente. Esta será, talvez, a primeira maneira de concetualizar a distribuição da pessoa no espiritismo que, por se conceber através da relação com os mortos, exibe uma multiplicidade que a torna dispersa, não localizável num só corpo, ou em termos de uma só biografia. O médium é a epítome desta dispersão, ainda que controlada, utilizando o dote de autoconhecimento para se cultivar como elo de informação. O que existe entre o médium e eles melhor se compreenderá como um projeto contínuo de pessoa em construção – os seres de ambos jamais se encontram em estado fixo ou imutável, mas se nutrem congruentemente um do outro, especificando-se na prática e numa aprendizagem em si, ao longo do tempo. Mas existem outras dimensões da distribuição do ser. É preciso notar que, embora seja algo único a cada pessoa, o cordon espiritual, por sua vez, é também extenso, pois cada espírito e sua história encontram-se ligados a um conjunto infinitamente maior que eles, constituído de outros espíritos e das suas histórias. De fato, cada uma das entidades neste sistema – o cordón – pertence a um grupo particular de espíritos que se define através

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de um número de elementos identitários em comum. Em Cuba, este grupo se chamará comisión (comissão), e abrangerá as almas de pessoas que viveram até onde a memória histórica coletiva pode atingir. A comissão aqui será vista como um compósito de seres cujas etnicidades, nacionalidades, saberes, afiliação religiosa, profissão, e até causa de morte, os definem como pertencentes a esta categoria, unindo-os a todos os outros através dessas semelhanças. Deste modo, as implicações, para uma noção de pessoa espírita, são claramente significativas. Se um médium trabalha com um espírito índio, por exemplo, nome atribuído regularmente tanto a espíritos indígenas de Cuba como a nativos do continente americano, saberá que o poder do mesmo, pelo menos em parte, será devido à sua conexão espiritual a todos os outros espíritos índios, cujos conhecimentos e serviço empreenderão na melhor efetivação das suas intenções espirituais. Não será incomum que, solicitando a presença de um espírito específico em seu ritual, apareça ao médium uma sequência de outros seres, cujas características essenciais correspondem ao papel do primeiro dentro da mais ampla comunidade espiritual. Haverá comisiones índias, mas as haverá ciganas, africanas, árabes, médicas, e ainda aquelas que refletem o legado dos orishas, os semideuses do panteão iorubá: os que vêm com corrientes santorales, correntes deste ou aquele orisha, de Ochún, por exemplo, a deusa do amor, ou de Changó, o deus do trovão, cada qual mostrando do que é capaz. Estas ligações trans-históricas são componentes marcantes não apenas da pessoa, como ela se concebe, mas do processo de se fazer como religiosa. É bem sabido nos ambientes religiosos afro-cubanos, que os mortos têm de estar de acordo com qualquer medida ritual por parte do indivíduo: os mortos aqui são não apenas os ancestrais religiosos, a quem se rende culto, mas, mais consequentemente ainda, os do cordón espiritual, que serão

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o alicerce da própria pessoa. Afinal, o famoso ditado iku lobi ocha, traduzido em castelhano como el muerto pare al santo, ou, o morto pare o santo (o orisha), existe para enfatizar precisamente este ponto: que antes de qualquer iniciação na santería, será preciso determinar se a pessoa realmente precisa do santo. Como extensão da pessoa, é, naturalmente, o espírito quem determina. Mas se em tudo isto vemos emergir uma ontologia da pessoa, uma estrutura – por mais inacabada ou virtual que seja no começo – no processo do seu desenvolvimento, deveremos distinguir mais um nível de distribuição, desta vez de ordem material. Não é suficiente que o médium se venha a reconhecer por meio das identidades dos seus mortos – precisa exterioralizá-las para que estes sejam realmente consolidados na sua vida, e isto será conseguido materialmente. Aqui, a atenção prestada às representações espirituais: bonecas e bonecos de trapo ou de porcelana, atenciosamente vestidos de roupas coloridas apropriadas às suas comisiones, imagens e ícones, estatuetas e outras figuras que serão o índice físico dos espíritos no espaço fechado de suas casas. Aos pés desses objetos, o médium depositará flores, acenderá velas, fará oferendas de tabaco e de rum, guloseimas, joias, dádivas de café com leite e comida; sinais de homenagem e respeito e, às vezes, de promessas e outros pedidos pendentes. Ao construir as suas caras no mundo tangível, o médium fortalece a sua agência e o seu poder de intervenção. A princípio, todos os espíritos necessitam de uma ordem para que saibam seu lugar, disse-me uma vez Eduardo, um dos meus bons amigos médiuns. Essa ordem será refletida na mesma pessoa, pois ordenando-os, também ordenamos a nós mesmos, dizia. Não é coincidência que os espíritos mais materializados também sejam os mais poderosos, e, por vezes, os mais perigosos, pois sua existência já não se confina ao plano espiritual. Horizontalizando as suas presenças de formas materiais, o médium simulta-

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neamente estende a si próprio, tornando-se mais capaz de ver e agir. No fundo, as representações não apenas simbolizam como possibilitam o ser extenso, tornando-se vestígios concretos de uma distribuição espiritual que as transcende, embora sem a qual se vejam limitadas. As relações entre os espíritos e os seus médiuns vão mudando com o tempo, isto é evidenciado pela própria transformação material das representações. Adquirem rostos, contornos, expressões, as suas presenças se coordenarão com as dos médiuns, criando proximidades de aparentes distâncias, para que, por sua vez, os mesmos espíritos se possam sedimentar como aspectos dos seus seres, enlaçando-se também entre si. ii. A aprendizagem no espiritismo é, para o médium, um longo processo de transformação, que o/a leva, como argumenta Marcio Goldman, em relação aos iniciados no Candomblé, de um ser relativamente indiferenciado em direção a uma pessoa estruturada, completada pelo tempo. Mas, ao contrário do caso que Goldman descreve, aqui a estruturação deve-se ao controle sobre uma expansão, mais do que uma localização ou um cumprimento de obrigações, que em parte se dá por um acréscimo de confiança que surge de um autoconhecimento e de experiência acumulada. A pessoa não se completa no espiritismo, pois não se contém. O conhecimento adquirido não é de natureza iniciática, é inteiramente empírico; não representa o mundo, é o mundo como ela o vive e o cria. O potencial para o ser é o potencial iminente à presença espiritual, que, também como afirma Goldman, poderá ser conceitualizado como um contínuo entre o ser e o nãoser,41 com um sem número de tonalidades relativas entre os dois. Mas enquanto que o fixar do orixá no Candomblé constituirá o movimento primário que direciona o novato ao ser, no espiritis-

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mo não existe um instante crítico de união ou junção. O movimento em direção ao ser não é uma única linha traçada no espaço-tempo, é uma rede de ligações que se manifestam, mas não se limitam a, pela pessoa do/da médium, pois são ligações constituídas pelos caminhos dos espíritos, passados e presentes. Estaremos diante de um conhecimento absolutamente emergente, que não se reduz de maneira alguma a eventos de êxtase como a possessão. Tal como argumenta o antropólogo português João Vasconcelos com respeito aos médiuns do racionalismo cristão em Cabo Verde, o que se concebe como mediunidade é raramente equivalente ao que é normalmente entendido como possessão.42 A questão não é uma de perda de agência, mas de um aumento da mesma, por meio do desenvolvimento da pessoa. Mas aqui também se difere o espiritismo de outros cultos afro-cubanos, como a já mencionada santería, que, como o Candomblé, requer que o santo seja feito em conformidade com uma designada série de passos iniciáticos, e como a prática de Ifá, o prestigioso braço adivinhatório da Regla de Ocha, ao qual Martin Holbraad se dedica a analisar. O problema conceitual que espera o babalawo, o adivinho oficial do culto, é de conseguir nas suas sessões, materializar a presença de Orula, o orisha escolhido pelo deus supremo, Olofi, para testumunhar o destino de todos os homens. O problema, diz Holbraad, é um de transcendência, o que faz com que a proficiência do babalawo seja precisamente uma habilidade de engendrar saltos ontológicos.43 Mas esta habilidade é dada pela efetivação correta das iniciações que levam a Ifá. É digital, por assim dizer. O desenvolvimento do babalawo não se predica para além da sua oficialização, que imediatamente o capacita, fato exemplificado nitidamente nas passagens de ano em Havana, onde é sempre o mais junior dos babalawos que tem a honra de levar a cabo o rito de adivinhação que produz as previsões (la letra del año) para o ano que chega.

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Em contraste com o caso de Ifá, proponho que a capacitação do médium seja vista como uma consequência do seu ser, e não como algo que de antemão poderá ser previsto ou assegurado por uma cadência ritual. O que se desenvolve é a conectividade com seres que, embora existam como potenciais ao nascimento da pessoa, terão de ser expressos e materializados para ganharem existência onde realmente conta: na esfera cotidiana. Portanto, o paradoxo aqui é outro. Se na etnografia de Holbraad a imanência de Orula é alcançada pelo próprio movimento do babalawo no seu oráculo (ver 2003, 2007 para mais detalhes), no espiritismo, o que desloca o mundo dos espíritos, produzindo assim a sua presença, é o movimento do médium pelo tempo e pelo espaço, movimento que o leva a distribuir-se social e materialmente. Os espíritos são também moções no sentido em que atualizam através da ação do médium que os ativa, ação que torna palpável a amplitude da interligação entre os seres vivos e mortos, a níveis por vezes incompreendidos pelos primeiros. Isto foi se tornando mais e mais aparente à medida que transcorria o meu trabalho de campo. Dizia-me Luis, um médium experiente que entrevistei em várias ocasiões: “Digo pela minha própria experiência. Eu tenho um espírito que fez uma promessa quando estava vivo, que todos os anos tinha de ir ao cemitério jogar moedas nos túmulos. E a mim pediu para seguir efetuando esta promessa. Em todos os anos tenho de ir a um cemitério, não importa qual, invocar o seu espírito, e dizer que venho em seu nome para cumprir esta necessidade. Era um pacto que, com certeza, tinha com as deidades do cemitério, algo que lhe foi determinado no percurso da sua vida como religioso. Agora, sou eu quem o faz. Ele me passa, e eu cumpro. É uma responsabilidade que eu carrego porque acho que se está ajudando o espírito na sua evolução, mesmo se” como Luis admite, “é um comportamento que me permanece enigmático,”

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pois não sabe seu significado verdadeiro. Este exemplo é elucidativo de que Luis também é a extensão do seu espírito no mundo, tal como o último é o seu guia, o seu mapa, e a sua visão para o além. Observe-se que Plácido, que conhecemos logo ao início, também respeita os limites do seu conhecimento. Eles o entendem, dizia Plácido em relação à invulgaridade dos seus métodos de vidência (um dos quais envolve tomar as mãos dos seus clientes nas suas, pressionando-lhes nas palmas); há conhecimentos que não lhe cabe discernir por inteiro. Viver como médium também implica deixar certas coisas ao critério (e à discrição) dos seus mortos. Porém, isto não exclui o fato de serem assim também os seus conhecimentos. Como conceitualizar, então, este ser, que é extenso, mas não predeterminado; que tem estrutura, que não se cristaliza ou se esconde nos recantos da consciência, como sugere o modelo clássico da psicanálise; que é múltiplo, mas não fragmentado da maneira que Giddens44 descreve em relação aos efeitos da modernidade, nem como o propõe Rita Carter45 no seu tratamento da multiplicidade como uma propriedade natural cognitiva; que é relacional mas não fractal, como o seria, por exemplo, o ser dos Hagen na etnografia de Strathern?46 A pista, como já argumentei, está em ver ambos, tanto o ser como o seu conhecimento como algo indissociável, ressaltando o seu caráter processual, como aspectos de um mesmo todo, cuja autoconsciência emerge de maneira temporalmente e espacialmente distribuída. Esta perspectiva ressoa com a visão que propõe o filósofo Charles Taylor, por exemplo, que diz que o ser, como ente objetivo, não se encontra ocultado ou inacessível, mas sim em plano de perpétua construção, sendo consequência dos nossos esforços representativos de nós mesmos. Os princípios do conhecimento e, portanto, do auto-conhecimento, derivam da nossa agência ativa

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e incorporada, do nosso entendimento de nós mesmos como agentes, e da nossa autorreflexividade.47 Csordas48 também vê o ser como algo elusivo, até ilusório, existindo somente como reflexo de processos de orientação corporal e somática; assim o diz também Varela, que sugere o termo ser virtual,49 e o equivale à narrativa produzida pelo organismo referente às suas microidentidades em diversas arenas de ação. Mas a etnografia aqui sugere mais: não obstante a importância da narrativa, o ser em Cuba não é com certeza ilusório: é extenso, é mais do que ele próprio, é constituído por um sistema de seres maior do que o indivíduo. Ao defender um modelo alternativo da cognição, Varela, com Thompson e Rosch, dá a entender que o ser, como sistema, se autoproduz constantemente em conjunção com seu ambiente, emergindo das suas interações sociais e materiais num processo que eles chamam, e eu traduzo tentativamente, por “acoplamento estrutural”.50 Para eles, os processos mentais “são sempre sobre ou direcionados a algo que está em falta; por um lado, existe sempre um passo seguinte para o sistema na sua ação perceptualmente guiada; por outro lado, as ações do sistema são sempre dirigidas a situações que ainda estão por ser atualizadas. Portanto, a cognição como ação incorporada, tanto coloca o problema como também especifica os caminhos que deverão ser trilhados para chegar à sua solução”, caminhos que existem “só à medida que se assentam enquanto se caminha”.51 Esta teorização fará sentido à luz de alguns dos dados que apresentei, especialmente o último ponto. No espiritismo, é regularmente notado que a aparência de uma entidade liga-se ao momento específico na vida da médium que o chama: isto é, como caminho do ser, o espírito terá de ser trilhado e não assumido, o que faz com que o conhecimento que ele traz também seja uma função deste movimento e chamamento constantes. Em outras palavras, é um ser produzido pelo seu mo-

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vimento concreto pelo tempo e espaço, mas de modo não linear, pois não só este movimento, por sua vez, também é dado pelo movimento prévio dos seus espíritos, mas se constitui como um ente extenso, que só encontrará as fronteiras do seu ser no encontro com o mundo que vem a descobrir (e, portanto a construir) gradualmente. Voltando à metáfora da cognição, teremos aqui, na visão do ser humano como sistema, várias observações pertinentes para terminar esta seção. Primeiro, que o conhecimento é uma propriedade emergente da auto-organização e interação entre recursos internos e externos – sejam os internos os seres encarnados e os externos os espirituais, ou, se quisermos, os internos a pessoa e os seus espíritos, e os externos os recursos que encontram no seu mundo; segundo, que os processos que geram o conhecimento poderão estar distribuídos por membros de grupos sociais, como veremos na última parte deste texto, que explorará a dinâmica coletiva do espiritismo, portanto, a ligação entre sistemas de seres; e terceiro, que o saber não estará numa só localidade, mas distribuído através de vestígios materiais e sociais pelo tempo e pelo espaço, tornando-se assim impossível conceber o ser pensante como discreto ou contido, pois ele também nasce dessas relações transdimensionais. Se nesta segunda seção discorremos sobre os princípios básicos de uma ontologia da pessoa no espiritismo cubano, na terceira e última parte evidenciaremos as implicações destes conceitos para uma teoria do conhecimento, o que nos levará a considerar com maior lucidez a necessidade da relação entre o ser e o saber em Cuba.

III. Pessoa/Espaço i. Rapidamente me dei conta de que em Cuba o ser extenso tem efeitos; até o meu. Por exemplo: no dia seguinte ao que conheci

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um médium que se tornaria meu colega de investigação, ele surpreendeu-me ao dizer que no dia anterior teria sentido uma força destrutiva que emanava de mim, como se o conflito estivesse à beira de irromper. Não me recordava de ter sido mal educada, e fiz um esforço por me lembrar o que teria dito que lhe pudesse ter dado essa impressão errônea; até achava que tinha estado de especial bom humor. “Mas não era você”, ele me diss ele, “foi depois que percebi que era um espírito que você tem, africano, que é impulsivo e algo agressivo”. Atuou por mim sem que me desse conta. “Por isso é importante que você os conheça”, dizia-me, explicando também que às vezes não nos damos bem com alguém porque os nossos espíritos não têm afinidade com os espíritos dele ou dela. Embora nos tenhamos convertido em amigos, houvera, segundo ele, um choque inicial entre um dos meus muertos e, quem sabe, um dos dele. Esta história é relevante porque é sinal de que o que une ou desune duas pessoas, segundo a ontologia espírita cubana, invariavelmente se complexifica ao nível distribuído do ser. Do ponto de vista da eficácia e da infalibilidade de um médium, esta afinidade de qual me falou o meu amigo, toma uma importância desmedida, como ficou evidente através de outro incidente que em breve relatarei. Desta vez, dirigi-me a uma conhecida espiritista em Havana, Maria, com um companheiro cuja perna estava afetada por um ferimento de infância que não sarava por mais terapias que fizesse. Achei que Maria lhe pudesse recomendar alguma limpeza, mas também sabia que David, meu companheiro, era cético, queixando-se frequentemente do seu desencanto com a religião em Havana, embora tivesse recebido algo da santería fazia já alguns anos. Maria trabalhava com cartas, oráculo comum entre espiritistas da cidade, e as consultas demoravam não mais de 15 ou 20 minutos. No regresso a casa, David confessou-me novamente

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sua desilusão e até irritação com os médiuns. Maria havia falhado monumentalmente no seu papel, não vira nada em David e em sua vida que se assemelhasse à verdade, o que automaticamente o fez adicioná-la à sua lista de espiritistas falsas e descaradas que fingem possuir mais talentos do que realmente têm. Mas pareceu-me que as afirmações de David assinalavam algo que não era completamente inequívoco. Ele não sugeria que todas as espiritistas são impostoras, invalidando, assim, as premissas do seu ofício mais geralmente; ou que todas as espiritistas são impostoras o tempo inteiro. O David que dava a entender era uma relação mais sutil entre a existência dos espíritos e a sua manifestação, em relação a ele. A David foi dito que a sua mãe vivia longe; que acabara de brigar com a sua namorada; e que teria um filho que para ele seria muito especial. Ao contar-me estes comentários, David havia se desmanchado compulsivamente em risos. Ambos sabíamos que a mãe de David, já anciã, morava num apartamento diretamente abaixo do dele, e que era pouco provável que algum dia tivesse filhos ou namorada, pois sempre fora homossexual. A espiritista também lhe teria previsto uma viagem através de uma amizade estrangeira, dado que lhe parecera imediatamente suspeito, ainda que desejável, pois é coisa que muitos cubanos praticamente pagam para ouvir, e que as médiuns repetem com regularidade: “vas a viajar” (vais viajar), disse-lhe Maria, “yo veo papeles” (eu vejo papéis). Mas não foi tudo mau, David me admitiu finalmente, ela acertou em alguns fatos, incluindo a identificação das suas irmãs e da sua condição física desde criança. Ao inspecionar os eventos desse dia mais pausadamente, David tinha chegado à conclusão que o seu negativismo não ajudara. “Eu sempre dizia não a tudo”, disse-me sorridente. “Mesmo se houvesse a princípio uma boa ligação espiritual, é possível que a tenha quebrado eu mesmo. Mas por que eu tenho de dizer sim

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a tudo que uma espiritista me diz? Eu nunca conheci nenhuma dessas médiuns de quem falam tanto que podem falar do seu passado, presente, e futuro no momento que veem você. A maioria diz algumas verdades, uma ou duas coisas. Mas o que acontece é que as pessoas se fanatizam, tomando a palavra delas como se fosse a de Deus!” A análise de David é densamente conotativa. O que estava em questão para ele não era a existência de um mundo de espíritos per se, mas a existência de um mundo de espíritos para ele, na sua consulta, e mais especificamente, a habilidade de Maria materializá-lo em relação à sua pretensão implícita de conseguir fazê-lo. O conceito da verdade, aqui, toma, portanto, um trilho muito diferente, ligando-se às possibilidades de transladação ou movimento de um domínio de existência (o espiritual) a outro (o particular); isto é, da transformação de uma condição de possibilidade a uma de atualidade. Em questão não estaria a possibilidade em si, mas a relação entre as duas como facilitada pela médium, onde a afinidade espiritual entre ela e o seu cliente tomara importância critica neste movimento, nesse momento. Pela sua própria interpretação, David bloqueara desde o começo essa relação pelas suas constantes e abertas negações, desafios que, segundo essa lógica, atuariam como obstáculos terminais na construção de uma boa via de comunicação, portanto, de verdades. Os espíritos de Maria simplesmente não tiveram o trabalho facilitado com David. Essas duas histórias (a minha e a de David) formam um bom ponto de partida para a análise que se segue porque revelam algo fundamental sobre os princípios ontológicos do espiritismo cubano: a parcialidade do conhecimento que, como demonstrarei, é corolário da estrutura da distribuição do ser. Todo conhecimento no espiritismo é conhecimento-em-construção, porque todo ser é ser-em-construção, um ser cujos componentes (os espíritos) manifestam uma agência organizada que não se centraliza num

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único corpo. A parcialidade é fruto desta distribuição: do ponto vista espírita, nenhuma médium possui todas as verdades porque se pensa que nenhum espírito as possui. Uma boa espiritista, segundo muitos cubanos que entrevistei, é aquela que se aproxima a um conhecimento total, não aquela que professa sabê-lo todo. Como perspectivas, por assim dizer, o conhecimento que os espíritos transmitem aos seus médiuns é intrinsecamente situado, até limitado, pois embora libertos dos constrangimentos espaçotemporais das vidas materiais, todavia, eles expressam-se a partir das suas designadas identidades e experiências específicas. Eles também têm as suas especialidades, vivências, linguagens e preconceitos. Em um nível individual, observamos as consequências deste fato na percepção do que poderão ser as margens aceitáveis de falibilidade das consultas, como é o caso de David. Aqui, teríamos de notar que o elemento de afinidade entre a médium e seu cliente, onde o ato de adivinhação terá de trabalhar com a pessoa presente, e não só sobre ela, é definitório; mas também que a parcialidade da informação é algo inerente à constituição da pessoa, inescapável. Até médiuns com excelente vidência acedem a partes de verdades, materializando imagens e pressentimentos que se produzem segundo as circunstâncias e pessoas. Nos rituais coletivos do espiritismo, as chamadas misas espirituais, observamos a parcialidade do conhecimento de maneira ainda mais evidente, pois aqui os médiuns constroem juntos algo que não se reduz à soma da suas respectivas contribuições, mas que é composto pela interação das parcialidades individuais. Em um nível coletivo, portanto, vemos a importância da perspectiva e da composição de cada ser no resultado final da mensagem, resultado este que não toma forma unidimensional, mas que se expande lateralmente à medida que é trabalhado por visões distintas.

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A misa espiritual é, provavelmente, o rito mais efetuado em toda Cuba com o objetivo de comunicação com os mortos. Realizam-se por uma gama diversa de motivos, desde o falecimento de algum familiar – para dar luz à sua alma após a morte – à limpeza de entidades escuras ou obsessores, e à resolução de outras problemáticas espirituais. Também se fazem, como já mencionei, antes de cada passo ritual afro-cubano; para identificar os espíritos do cordón espiritual do cliente; e, finalmente, para o simples exercício da mediunidade entre novatos no transcurso do seu desenvolvimento, as chamadas escuelitas (escolhinhas). Frequentemente realizadas à noite, poderão durar horas, adiantando-se até às primeiras horas da manhã, até tudo já ter sido dito ou até os espíritos que requerem transe já o terem feito. De modo geral, os médiuns sentam-se em semicírculo voltados para a frente do quarto, onde normalmente está uma mesa coberta com um pano que faz as vezes de altar espiritual. Em ambos os lados desta mesa, onde também se colocam velas, flores, e vários copos de água, se sentam os médiuns com mais senioridade ou experiência, que coordenam os procedimentos. Primeiro se rezará aos bons espíritos, convidando a sua presença e proteção; cada participante subsequentemente se limpará com colônia e com água de flores e ervas em frente ao altar; e depois se cantará às comissões, uma por uma, começando pelas eclesiásticas, numa espécie de invocação musical. De fato, raramente terminam os cânticos, porque começam a fluir as mensagens dos espíritos já presentes e as interrupções são inevitáveis. Mas enquanto que para um observador laico estas comunicações possam parecer esporádicas ou isoladas, elas já estarão ligadas à geração de um sistema de informação mais amplo, no qual cada um dos presentes constitui um elo. A concentração total e ativa, aqui, é um requerimento: como participante, por exemplo, raramente pude me distrair tomando notas

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durante o ritual, porque quebraria o ritmo de todos os demais. Mas para entender esta noção de conectividade, há que considerar dois conceitos essenciais no espiritismo cubano. O primeiro é o de corriente espiritual, que se refere à corrente de boa energia que importam os espíritos à misa através da sua presença; portanto, aqui, a corriente, que também se conhece como fluído, também é o espírito, ou o potencial para a sua materialização. Mas imbuído na corriente também estará o conhecimento que ele traz à misa. Deste modo, o fluído é informação por atualizar a informação disponível a todos que se liguem a esse fluxo. O segundo conceito é o de cuadro espiritual – que se entenderá como uma pintura, ou uma imagem, sobre algo, ou alguém, e para o benefício dessa pessoa. Nas consultas individuais o cuadro é descrito por um só médium. Na misa, esse processo toma um formato distribuído, ampliado. Como imagem, o cuadro é um fragmento de informação, ou uma sequência de informações, que juntas ganham coerência e sentido, mas cuja construção é feita por partes, como as pinceladas de um artista sobre uma tela branca que ao final se vai assemelhando a algo reconhecível. Sendo pintado no domínio publico, um cuadro é o produto emergente das mediunidades idiossincráticas daqueles que o pintam, onde cada transmissão se erige sobre todas as outras que a antecederam, construindo-se sobre elas, mas modificando-as simultaneamente. Embora seja habitual que um ou outro médium inicie um cuadro, dizendo, por exemplo, que o seu espírito está lhe colocando esta ou aquela imagem, é frequente não se terminar o cuadro até todos os presentes estarem satisfeitos com a descrição que se completou ao máximo possível. Cada palavra, gesto, intuição e inspiração tornam-se condicionante da seguinte, criando algo que, se o podemos conceber assim, será conhecimento (isto é, o fluído) projetado em três dimensões, holograficamente. O que se gera,

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portanto, emerge de uma tarefa social e mediunicamente distribuída. Os exemplos não são escassos. Em Havana, desenvolvi uma relação próxima com um casal de médiuns que regularmente organizava misas em sua casa. Eduardo e Olga não só eram marido e mulher, mas trabalhavam a sua mediunidade juntos, e eficazmente, pois os espíritos de ambos, durante os anos de matrimônio, formaram uma forte aliança, alternando-se na efetuação de seus trabalhos. A parceria mediúnica, portanto, era extensa, exemplo que elucida perfeitamente a ligação que é necessária entre médiuns em contextos rituais para o sucesso dos mesmos; ligação vista por meio dos seus espíritos, mas também pela a sua habilidade de seguir os fios de informação, as corrientes, dos outros participantes, dado que é facilitado quando há afinidade. Eduardo e Olga frequentemente me convidavam para participar nas suas misas; um dia telefonaram-me para informar de uma investigação espiritual que iam fazer na casa de uma senhora, B., que tencionava receber um santo na santería, orisha-oko, o orixá da terra, dos lavradores. O que se segue é um pequeno excerto da misa, em que vários espíritos de B. são detalhados pelos três médiuns presentes, mas especialmente pelo casal: Começamos por cantar algumas das plegárias (canções) eclesiásticas, e quando terminamos Eduardo disse a B. que enquanto cantávamos, ele tinha visto o espírito de uma freira, entrando na sala, com a música. “Deixa ver um altar de uma igreja”, disse Eduardo, e “se ajoelha diante dele com as mãos viradas para o céu, aclamando. Mas enquanto se ajoelha, outras freiras também chegam e há uma comissão de freiras que fazem parte de o cordón de B.” “Luz e progresso”, disse P., outro participante, confirmando a visão de Eduardo. “Você quer aumentar mais alguma coisa ao cuadro?”, perguntou Eduardo a Olga. Ela queria. Olga

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disse a B. que aquele espírito vinha com um hilo (fio, tendência) de Obbatalá (orisha que em Cuba se sincretiza com Jesus Cristo) porque ela estava recebendo que a freira segurava um ramo de lírios brancos nos braços (símbolo de Obbatalá). Olga continuou dizendo que o espírito lidava muito com crianças, cuidava delas, que era uma espécie de madre superiora. “Vá à igreja quando puder para atendê-la”, aconselhou Olga a B. A mensagem parecia ser esta. Entretanto, Olga começara com um cuadro novo. Disse que via um espírito de uma negra africana que trabalhava com páus (que, em Cuba, indica bruxaria). Disse a B. que ela devia construir uma canastra para ela, porque é uma arma que ela tem para laborar. Eduardo continuou, dizendo que via esta canastra ao pé de uma falésia e de um oceano, como se o espírito estivesse botando coisas no mar. B. disse “Luz!” em reconhecimento; “ela vem com Yemayá (a deusa do mar)”. Aparentemente, B. já soubera da existência da africana. Olga descreveu também o espírito de um índio, “como se fosse um cacique”, disse ela, comunicando a B. a necessidade de representá-lo materialmente e de colocá-lo ao lado da porta de sua casa, para que ele possa batalhar por ela. P. confirmou esta afirmação, e disse a B. da importância de ela lhe fazer uma representação, pois são os índios que realmente nos defendem. “São guardiães de verdade”, disse Eduardo, os que nos “livram de batalhas”. P. disse também que ela deveria lhe oferecer girassóis e príncipes negros, pois assim ganharia qualquer guerra que enfrentasse. Eduardo e Olga concordaram: “Luz”, disseram. Eduardo continuou com o cuadro, dizendo a B. que vinha com o fio de Changó, e que além do mais, devia-lhe pôr uma flecha de Ochossi (um pequeno atributo que se oferece ao deus iorubá da caça). Ele também trabalha, quando tem de fazê-lo, com a africana, pois ela é religiosa e estava metida até dentro das coisas fortes, grandes. Todos cantamos uma canção aos índios em homenagem.

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Neste breve extrato podemos observar que, mesmo num curto espaço de tempo e com poucos participantes, os cuadros propostos emergiram de maneira distribuída e até inesperada. Ao contrário de um retrato pintado a duas dimensões, algo que em papel representa o mundo, nas misas os médiuns trabalham em sequência para produzir algo que só se torna acessível à medida que o constroem; aqui, o cuadro não representa a informação, atualiza-a, mas o faz segundo a perspectiva dos que atualizam, tornando a mediunidade, e, portanto, o ser, a condição básica do conhecimento produzido. Mas como também demonstra o exemplo de B., a natureza do conhecimento, e, neste caso, do autoconhecimento, no espiritismo, já é por si distribuída. Vir a conhecer as entidades constitutivas do cordón espiritual é algo que pode levar toda uma vida, pois estas só são visíveis à lente da mediunidade, de acordo com o nível do que se visibiliza nas vidas daqueles aos quais elas pertencem, e especialmente, no momento da identificação. Enquanto que alguns espíritos simplesmente não se deixam ver, outros existem ainda em parte como potenciais nas vidas dos indivíduos, potenciais que ainda estão por se transformar em presenças. Considerando todas essas contingências, o conhecimento gerado em rituais como as consultas ou as misas será, na melhor das hipóteses, fracionado ou parcial. Mas longe de ser um problema incontornável, do ponto vista do cliente, espera-se que a sua exposição contínua aos meios religiosos, especialmente os meios espíritas, poderá com o tempo revelar saberes que serão sempre mais vastos do que aqueles produzidos localmente, por médiuns individuais ou consultas soltas. Até B., uma experiente religiosa, aprendeu algo de novo com a misa de Eduardo e Olga. Durante o percurso de suas vidas, ambos médiuns e laicos se consultará com inúmeros especialistas e videntes que contribuirão para a conceitualização das suas pessoas e das

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suas vidas. Cada um desses encontros resultará em distintos conhecimentos, dos próprios, dos seus mortos, e das situações que encararão nesse momento. Visto como um processo de temporalidade mais vasta, portanto aqui, a construção do saber também é emergente, pois é um saber tecido através das redes de encontros sociais e espirituais ao longo de uma vida. Se voltarmos ao tema da infalibilidade, também veremos como esta visão processual poderá, porventura, excluir a possibilidade de incompatibilidades determinantes entre distintas verdades de distintas médiuns. A parcialidade é, em si, um modo de aceder à verdade. ii. Como aludi no princípio deste texto, e como ponto final à análise, proponho como frutífera uma comparação entre o ser espírita como sistema, e algumas das implicações do conceito da cognição distribuída e dos chamados sistemas cognitivos. A minha contenção é que ao utilizar esta noção heuristicamente, poderemos chegar a uma aproximação teórica que realça, e não reduz, a etnografia já exposta. Diz o antropólogo Maurice Bloch, em relação ao seu trabalho com a morte, que a nossa dificuldade em perceber este tema relativo a outras culturas não se deve somente a problemas de tradução. Fazemos bem em inspecionar nas nossas próprias sociedades o que nos leva ao entendimento pontual da morte: entendimento que não é só produto de uma compreensão específica dos processos de crescimento, deterioração, e renovação, mas que é um aspecto fundamental do nosso conceito da pessoa como um indivíduo separado e contido dentro de si mesmo,52 conceito este que cria uma forte barreira entre a vida e a morte. Como já vimos, no espiritismo esta barreira dissolve-se; pois, embora viva, a pessoa faz parte de um sistema de mortos, que, por sua vez, também adquirem vida mediante a sua relação

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com os vivos. Michael Lambek analisa esta relação como um sistema de comunicação, argumentando que a possessão é essencialmente uma troca de informação entre pelos menos três entidades: um espírito, um receptor, e um intermediário. A relação é a seguinte, argumenta: A (o espírito) deseja enviar uma mensagem a B (o anfitrião), mas em vez de fazê-lo diretamente, passa-a através de C (neste caso, o antropólogo Lambek). Mas, diz Lambek, o que há de extraordinário nisto é que, do ponto de vista de um ocidental, A e B serão a mesma pessoa, o que torna este um sistema de autocomunicação.53 Também vemos que este ponto se aplica ao espiritismo cubano. Os espíritos dos cordones frequentemente utilizam outros médiuns para se comunicar com os seus protegidos. Este será o caso dos espíritos de Eduardo e Olga, a última costumando entrar em transe com os mortos do marido, especialmente em situações de urgência, pois este não passa morto. Assim, diríamos até, que o ser extenso se pode distribuir por outros, onde os espíritos não se confinam a uma única referência física, mas poderão espalhar-se, por assim dizer. Porém, o espiritismo não lida apenas com a comunicação: como foi o propósito desta seção mostrar, o conhecimento disponível é indissociável do desenvolvimento do ser e das suas ações. Devemos, portanto, começar de outra premissa, que é que a pessoa não só faz parte de um sistema, pequeno ou grande, como também o é. A ideia central da cognição distribuída baseia-se na noção de que o que separa mentes individuais dos seus contornos sociais e materiais não é imóvel, mas sim dependente da natureza da tarefa cognitiva que espera o indivíduo ou grupo de indivíduos. Como dizem Hollan, Hutchins e Kirsh,54 uma das implicações desta ideia é que a organização social em si poderá ser vista como uma forma de arquitetura cognitiva. A Durkheim esta ideia certamente não seria estranha, pois foi o primeiro a sugerir que os

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grupos sociais possuem propriedades diferentes que a soma dos seus membros. Mas o que distingue a perspectiva da cognição distribuída é a sua capacidade de postular que, ao se entranhar no seu ambiente, a cognição é produto também de processos históricos, temporalmente expansivos, ligando pessoas a coisas, coisas a mais coisas, e pessoas a outras pessoas. Um sistema cognitivo, portanto, como unidade de análise, não terminará com a pele do indivíduo, mas sim como algo que deverá ser entendido como incluindo tudo o que participa na solução de um dado problema, exibindo, deste, forma, características cognitivas. Observa Ronald Giere55 que a ideia da cognição distribuída é praticamente uma extensão do conceito de processamento paralelo, ou conexionismo, um modelo informático de mente na ciência cognitiva que veio a substituir o menos apelante processamento simbólico. Inspirado pelo real comportamento das redes de células neuronais, que se pensa funcionarem de maneira paralela, simultânea, e não linear, o conexionismo tornou-se um conceito plausível entre cientistas cognitivos. Mas enquanto que a ciência cognitiva o considera útil na explicação das funções internas do cérebro, a cognição distribuída vê no modelo conexionista uma armação teórica para a explicação de sistemas propriamente socioculturais. Portanto: enquanto que no primeiro o ambiente é tratado como fonte de estímulo para o sistema cognitivo verdadeiro,56 no segundo, o sistema cognitivo verdadeiro abrange esse mesmo ambiente. O que é uma metáfora na ciência cognitiva passa a não sê-lo no tratamento da cognição como distribuída. Como já notei anteriormente, várias tendências definem essa perspectiva, incluindo um conceito da auto-organização na ausência de um controle centralizado (conhecido como emergência). Concebe-se que num sistema com características conexionistas, cada componente estará ligado só aos que imediatamente

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o rodeiam, as computações efetuam-se, assim, de acordo com regras e informações locais e não globais. A atividade de um componente poderá, assim, ser levada à sincronicidade com a do seguinte, até se chegar ao ponto do sistema inteiro atualizar o seu estado simultaneamente. Desta maneira, será possível imaginar que um sistema inteligente não necessitará de uma unidade ou planejador central para que possa responder eficazmente aos requisitos de uma designada tarefa cognitiva. Também significa que nenhuma das componentes do sistema precisa representar por completo a tarefa a fim de suceder na sua resolução. A distribuição do conhecimento, em outras palavras, não impede que a aprendizagem aconteça no sistema. Estas ideias meio abstratas e formais nos dão, todavia, um esquema interessante para o entendimento da pessoa enquanto sistema cognitivo. Embora na conceitualização espírita, o médium constitui, sem dúvida, o referente mais significativo do seu ser, como sistema extenso, por meio de vários exemplos, destacou-se a agência de um ser que é distribuído de maneira a que frequentemente tenha pouca consciência do seu significado: os espíritos atuam invariavelmente por conta própria sem deixarem por isso de fazer parte deste todo. Isto é, cognitivamente, os várias componentes do sistema não o representam na sua integridade: agem segundo parâmetros locais, e não centrais. Se considerarmos a primazia da ação, definida como o encontro ativo entre o ser e o seu mundo, observaremos ademais que os espíritos são componentes que se conhecem apenas à medida que a sua relevância é chamada ao acaso, fortalecendo-se como consequência. É o movimento do médium no seu mundo, e pela sua vida, que os ativa relativamente às suas circunstâncias e decisões. Mas talvez o aspecto mais interessante desta comparação esteja na cumplicidade material e social necessária para a consolidação deste ser e do seu

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conhecimento. A premissa mais básica do argumento para a cognição distribuída é a importância da estrutura institucional e da organização material do mundo para o sucesso cognitivo. Aqui, teremos mesmo de entender o ser como algo que se desenvolve em cooperação com o seu ambiente circundante, não só nele. Tal como o operador do sistema kula que Munn descreve, cuja fama é atingida através da circulação de bens por caminhos que ele constrói, o médium cubano também deverá se construir materialmente no seu mundo, como é imperativo nas representações espirituais, e como também é evidente pela sua própria conduta corporal. Se a cognição, no sistema kula, é distribuída por uma extensa cadeia que atravessa as muitas ilhas do “anel”, tendo ambos lugar dentro e fora das mentes de cada um de seus atores mediante o mundo material com o qual interagem, também é verdade que as mesmas conchas se tornam uma extensão do operador, pois sem elas ele não existe no sistema. Poderemos conceber de maneira similar a relação entre o médium e a materialidade dos seus mortos, manifestos não só por objetos e a presença que criam no espaço à sua volta, mas também pelas ligações que estas manifestações vão fabricando em níveis sociais pelo tempo, por sua vez constitutivas da existência do médium como médium. Se tivéssemos que repensar o termo cognitivo em termos espaçotemporais, estaríamos de acordo com Kirsh e Maglio57 quando propõem que o espaço físico também é um espaço de processamento de informação: isto é, que o tempo e espaço unificam-se sempre em qualquer evento de cognição. As conchas dos operadores kula corresponderiam, no espiritismo, aos mesmos espíritos, criando pelo seu movimento um deslocamento do ser pelo espaço-tempo, o que impulsionaria a sua transcendência como pessoa. Mas é no contexto das misas que um modelo de distribuição cognitiva nos poderá ser mais profícuo, pois a divisão de trabalho

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e seus resultados em tais rituais apontam claramente para a existência de algo que não se simplifica com uma examinação dos participantes individuais. Edwin Hutchins mostra, na sua impressionante e detalhada etnografia a bordo de um navio militar no Pacífico,58 que um sistema cognitivo pode ser simples, ou mesmo tão complexo como o da navegação. A sua definição da computação como sendo a propagação de estados representacionais distribuídos por uma variedade de meios, desde humanos a artefatos, é coerente com a ideia de que a cognição não poderá ser vista como propriedade interna de uma só pessoa. No funcionamento do navio que estudou – um porta-helicópteros, neste caso – Hutchins notou que o cálculo da posição espacial específica a cada momento requer uma constante atualização de informação que não depende apenas de um ator, mas das interações contínuas entre si, e entre cada pessoa e os seus instrumentos de navegação. A navegação é, segundo Hutchins, uma coleção de técnicas que respondem à questão da localização a um designado momento no tempo, mas que se determina através da coordenação e contraverificação constante entre todos os membros da equipe e os seus dados. A solução ao problema posicional é, deste modo, obtida de forma emergente, sendo produto de uma série de dependências sociais e computacionais estabelecidas para configurar o comportamento do grupo; dependências que significam que cada elemento se liga apenas aos seus mais próximos vizinhos, reagindo apenas aos mais relevantes sinais no seu ambiente. Portanto, aquilo que acontece localmente é que toma importância final, fazendo com que o sistema se adapte rapidamente a condições novas ou até ameaçadoras, sem jamais perder integridade ou consistência, pois não depende de um executante individual qualquer. Por outras palavras, na navegação, o sistema é autorregulado, pois o seu desempenho excede sempre a soma

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dos desempenhos de todos os membros da equipe, transcendendo as barreiras dos atores individuais.59 Nas misas também, como vimos, o resultado é emergente. O fluído que aparece como consequência da invocação dos mortos é informação latente, que, através da sua distribuição pelos meios mediúnicos se exterioriza como um cuadro, um resultado, por mais parcial que seja. A estrutura social e física da misa na formação de tais cuadros é significativa para este efeito: não só é a manutenção do lugar (isto é, do assento) de cada participante no ritual visto como crucial para a perpetuação do fluxo de conhecimento, mas concebe que cada um destes atores se conecte diretamente ao próximo, tornando a concentração e a entrega absoluta, como já mencionei, vitais para todo o “sistema”. Ontologicamente, os espíritos do cordón daqueles presentes serão os instrumentos mais básicos de trabalho; sem eles, não há misa. Mas se a pessoa se concebe como extensa individualmente, também terá de estende-se horizontalmente em função daqueles com quem trabalha nesse momento. Sistemas se ligarão a outros sistemas necessariamente. Em essência, o que os teóricos da cognição distribuída designam de um sistema sociocultural, aqui poderá ser visto na sua vertente cosmológica como um sistema “socioespiritual”, termo que acabo de inventar por falta de outro. Aniquilar a barreira entre o vivo e o morto permite-nos entender uma totalidade de relações – materiais, sociais e metafísicas – sem que uma seja precedente à outra por ser mais ou menos real. Tomando um ponto de vista puramente sistêmico, então, vemos que a produção de conhecimento requer a mútua especificação de ambos, espíritos e médiuns, especificação que é consequência da expansão através do movimento, social e material.

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IV. Apontamento final Neste texto tentei explorar uma noção de pessoa no espiritismo cubano, em várias dimensões, desde sua estrutura ontológica às implicações desta para o entendimento do conhecimento como categoria etnográfica. Propus que esse ser fosse visto como extenso e distribuído, no espaço e no tempo. Procurando, de forma não redutora, teorizar sobre a sua constituição e comportamento interativo, deveras, um dos meios através dos quais isto é possível será considerar a ideia da cognição distribuída como ponto de inspiração conceitual. Aqui devo admitir que, com oscilações de confiança durante o caminho, joguei com noções que por muitos são vistas como a antítese de uma sensível e equilibrada análise de fenômenos religiosos, noções das quais destaco a cognição. E eu mesma estarei de acordo com esta discórdia (discórdia que não me é indiferente). Todavia, procurei explicitar que é precisamente porque há a necessidade de expandir o nosso repertório analítico, que faz sentido indagar na linguagem de outros domínios de análise, palavras ou imagens que possam expressar aquilo que, às vezes pela pura alteridade, não é de fácil descrição nos meandros dos nossos próprios domínios. A questão da pessoa na antropologia está se tornando cada vez mais evidente. Por fim, o que procurei igualmente sugerir ao longo deste capítulo, foi a importância de ir mais além, seguindo, meticulosamente nesse âmbito, as ramificações desta pessoa em direção a toda uma panóplia de outros conceitos e experiência, incluindo conceitos como o do saber, do tempo e do espaço.

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Agradeço à Economic and Social Research Council (ESRC) e à Royal Anthropological Institute (RAI) por financiarem o meu doutorado, ao qual devo os dados de investigação aqui apresentados;

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ao Leonel Verdeja e ao Elmer González; à Olga e ao Eduardo Silva; ao Plácido e ao Luis Hernandez; à Xiomara Brito de Armas, ao Enriquito, e a todos os outros amigos e colegas em Cuba; e, finalmente, à Joana Santos, pela sua ajuda com a edição ortográfica final do texto. Vários nomes verdadeiros neste trabalho foram omitidos e substituídos por pseudônimos para conservar a privacidade e o anonimato de alguns indivíduos.

Notas: 1 Ver: “A category of the human mind: the notion of person; the notion of

self”, Mauss, Marcel (traduzido por W.D. Halls’, pp. 1-25; e “Of masks and men”, Hollis, Martin, pp. 217-233; em The Category of the Person, Anthropology, philosophy, history, Carrithers, Michael & Steven Collins & Steven Lukes (orgs.), 1985, Cambridge University Press. 2 Bateson, Gregory, 2002 (1979), Mind and Nature: A Necessary Unity, Hampton Press Inc., New Jersey, p.124 3 (tradução da autora, ibid, 127). 4 Goldman, Marcio, 1985, “A construção ritual da pessoa: a possessão no Candomblé”, Religiao e Sociedade, 12 (1): 22-54; Goldman, Marcio, 2005, “Formas do Saber e Modos do Ser: Observacoes Sobre Multiplicidade e Ontologia no Candomblé”, in Religiao e Sociedade, Rio de Janeiro, 25 (2): 102-120; Goldman, Marcio, 2007, “How to Learn in an Afro-Brazilian Spirit Possession Religion, Ontology and Multiplicity in Candomblé”, capítulo 7 em Learning Religion: Anthropological Approaches, organizado por Berliner, David, & Ramon Sarro, Berghahn Books, NY, Oxford. 5 Holbraad, Martin, 2003, “Estimando a necessidade: os oráculos de Ifá e a verdade em Havana”, Mana, 9(2): 39-77; p. 44. 6 Barth, Fredrik, 1987, Cosmologies in the Making, A Generative Approach to Cultural Variation in Inner New Guinea, Cambridge University Press;

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Barth, Fredrik, 1990, “The Guru and the Conjurer: transactions in knowledge and the shaping of culture in Southeast Asia and Melanesia”, Man, 25 (4), pp. 640-653; Barth, Fredrik, 2002, “An Anthropoogy of Knowledge”, Sidney W. Mintz Lecture for 2000 at the Johns Hopkins University, Current Anthropology, Vol. 42, No. 1, Feb. 2002. 7 Keesing, Roger, 1987, ‘Anthropology as interpretive quest’, Current Anthropology, Vol. 28, No. 2, pp. 161-176. 8 (tradução da autora, 2002:1). 9 Asad, Talal, 1983, “Anthropological Conceptions of Religion: Reflections on Geertz”. Man New Series, Vol. 18, No. 2 (Jun 1983) pp. 237259; p. 243. 10 ibid; p. 251. 11 tradução da autora, Barth, 1987: 84. 12 tradução da autora, Barth, 1990: 641. 13 Ver: Lave, Jean, 1988, Cognition in Practice: Mind, Mathematics and Culture in Everday Life, Cambridge University Press UK. 14 Mead, George H., 1934, Mind, Self & Society from the Standpoint of a Social Behaviorist, editado por, e com introducção de Charles W. Morris, Chicago, Ill.: The University of Chicago Press. 15 Berger, Peter, and Thomas Luckmann, 1966, The Social Construction of Reality, Penguin Books. 16 Damon, Fred H., 1980, “The Kula and generalized exchange: considering some unconsidered aspects of the elementary structures of kinship”, Man, 15: 267-292. Damon, Fred H., 1990, From Muyuw to the Trobriands, Arizona: University of Arizona Press. 17 Leach, Jerry W., & E.R. Leach, 1983, Kula: New perspectives on Massim Exchange, Cambridge University Press. 18 Munn, Nancy, 1986, The Fame of Gawa: A symbolic study of value transformation in a Massim society, Cambridge University Press.

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19 Gell, Alfred, 1998, Art and Agency: an Anthropological Theory, Ox-

ford: Clarendon Press; tradução da autora, p. 232. 20 Tradução da autora; Munn, 1986:8. 21 Dennett, Daniel C., 1996, Kinds of Minds: Towards an Understanding of Consciousness, London: Phoenix. 22 Clark, Andy, & David Chalmers, “The Extended Mind”, Analysis, 58: 10-23. 23 Ingold, Tim, 2001, ‘From the Transmission of Representations to the Education of Attention’, capítulo 4, pp. 113-154, em The Debated Mind: Evolutionary Psychology versus Ethnography, Whitehouse, Harvey (organizador), Oxford: Berg Press; p. 139. 24 Por citar os óbvios, ver: Boyer, Pascal, 1994, The Naturalness of Religious Ideas: A Cognitive Theory of Religion, University of California Press: Berkeley, Los Angeles, London, e Sperber, Dan, 1996, Explaining Culture, A Naturalistic Approach, Oxford: Blackwell Publishers. 25 Clark, Andy, 1997, Being There: Putting Brain, Body and World Together Again, Cambridge, Mass: MIT Press. 26 Hutchins, Edwin, 1995, Cognition in the Wild, Cambridge Mass: MIT Press. 27 Oyama, Susan, 2000 (1985), The Ontogeny of Information: Developmental Systems and Evolution, Durham: Duke University Press. 28 Toren, Christina, 1999, Mind, Materiality, and History: Explorations in Fijian Ethnography, London: Routledge. 29 Varela, F., E. Thompson, & E. Rosch, 2000 (1991), The Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience, Cambridge, Mass: MIT Press. 30 Tradução da autora, Hollan, James, & Edwin Hutchins & David Kirsh, 2000, “Distributed Cognition: Towards a new foundation for human-computer interaction research”, ACM Transactions on Computer-Human Interaction (TOCHI), Volume 7, Issue 2. 31 Hutchins, 1995.

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32 Ver, por exemplo: Martinez, Carlos Cordova, & Oscar Barzaga Sa-

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blon, 2000, El Espiritismo de Cordon: Un Culto Popular Cubano, Fundacion Fernando Ortiz; Mederos, Aníbal Arguelles & Illeana Hodge Limonta, 1991, Los Llamados Cultos Sincrtéticos y el Espiritismo, Editorial Academia, La Habana; Millet, Jose, 1996, El Espiritismo: Variantes Cubanas, Editorial Oriente, Santiago de Cuba. 33 Wilson, Bryan R., 1990, The Social Dimensions of Sectarianism, Sects and New Religious Movements in Contemporary Society, Clarendon Press, Oxford. 34 Ver: Abend, Lisa, 2004, “Specters of the Secular: Spiritism in Nineteenth-century Spain”, European History Quarterly, Vol. 34 (4): 507-534 35 Ver: Washington, Peter, 1995 (1993), Madame Blavatsky’s Baboon: A History of the Mystics, Mediums, and Misfits Who Brought Spiritualism to America, Schocken Books NY. 36 Kardec, Allan, 1982, O que é o Espiritismo?, Federação Espírita Brasileira, RJ; p. 155. 37 Brandon, George, 1997 (1993), Santeria from Africa to the New World: The Dead Sell Memories, Indiana University Press. 38 Ver: Román, Reinaldo L., 2007, Governing Spirits: Religion, Miracles and Spectacles in Cuba and Puerto Rico, 1898-1956, The University of North Carolina Press: Chapel Hill. 39 Ver: Bolivar, Natalia, and Roman Orozco, 1998, Cuba Santa: Comunistas, Santeros y Cristianos en la Isla de Fidel Castro, Editorial El Pais: Madrid. 40 Palmié, Stephan, 2002, Wizards and Scientists: Explorations in Afro-Cuban Modernity and Tradition, Duke University Press. 41 Goldman, 1985:47. 42 Vasconcelos, João, 2007, “Learning to be a proper medium: middleclass womanhood and spirit mediumship at Christian Rationalist seances in Cape Verde”, capítulo 8, pp. 121-140, em Learning Religion: Anthropological Approaches, organizado por Berliner, David, & Ramon Sarro, Berghahn Books, NY, Oxford; p. 127.

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43 Holbraad, Martin, 2007, ‘The power of powder: multiplicity and

motion in the divinatory cosmology of Cuban Ifa (or mana, again)’ em Henare, A., Martin Holbraad & Sari Wastell (orgs.) Thinking Through Things: Theorising Artefacts Ethnographically, London & New York: Routledge, pp. 189-225; p. 207. 44 Giddens, Anthony, 1992, Modernity and Self-Identity, Polity Press. 45 Carter, Rita, 2008, Multiplicity: The New Science of Personality, London: Little, Brown. 46 Strathern, Marilyn, 1988, The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia, University of California Press. 47 Taylor, Charles, 1985, “The person”, capítulo 12., pp. 257-281, em The Category of the Person, Anthropology, philosophy, history, Carrithers, Michael & Steven Collins & Steven Lukes (organizadores), 1985, Cambridge University Press; p. 278. Taylor, Charles, 1992, The Sources of the Self: the Making of the Modern Identity, Harvard University Press. 48 Csordas, Thomas, 1994, The Sacred Self: a Cultural Phenomenology of Charismatic Healing, Berkeley, CA; London: University of California Press. 49 Varela, Franciso J., 1999 (1992), Ethical Know-How: Action, Wisdom, and Cognition, Writing Science Series, Stanford University Press; p. 53. 50 Varela, Thompson & Rosch, 2000: 205. 51 Traducção da autora, ibid. 52 “Death and the Concept of the Person”, Bloch, Maurice, em Cederroth, Sven, & Claes Corlin & Jan Lindström (eds.), On the Meaning of Death. Essays on Mortuary Rituals and Eschatological Beliefs. 1988, Acta Universitatis Upsaliensis, Uppsala Studies in Cultural Anthropology 53 Lambek, Michael, 1980, “Spirits and Spouses: Possession as a System of Communication among the Malagasy Speakers of Mayotte”, American Ethnologist, Vol.7, No.2: 318-331; p. 321. 54 Hollan, Hutchins & Kirsh, 2000.

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55 Giere, Ronald, 2001, “Scientific Cognition as Distributed Cogni-

tion”, em Cognitive Bases of Science, editado por Caruthers, Peter & Stephen Stich & Michael Siegal, Cambridge: Cambridge University Press 56 Clark, 1997. 57 Kirsh e Maglio, 1994: 515, em Clark, 1997:66. 58 Hutchins, 1995. 59 Hutchins, 1995: 189.

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