Parmênides inventor do não-ser.

July 7, 2017 | Autor: Nicola Galgano | Categoria: Parmenides, Negation, Negation - Not-Being Plato and Parmenides
Share Embed


Descrição do Produto

PARMENIDES INVENTOR DO NÃO SER Nicola Stefano Galgano – Doutor em Filosofia, USP Comunicação no XIX Simpósio Interdisciplinar de Estudos Greco-Romanos - PUC - 2012

O Poema de Parmênides é considerado um dos mais importantes textos fundadores de nossa maneira de pensar, à qual muitas vezes nos referimos como Cultura Ocidental. As razões para esta fama são muitas e merecidas porque nos versos do Poema encontramos, pela primeira vez, tratados filosoficamente – ou seja, como objeto de reflexão – temas como verdade, falsidade, certeza, erro, razão, ser, não ser, e outros ainda. Nenhum desses temas escapou à análise dos estudiosos e desde a metade do século XIX os estudos sobre Parmênides continuam incansáveis, inclusive com um claro aumento do interesse principalmente a partir da segunda metade do século XX. Entre todos esses temas, aquele mais estudado é certamente o tema do ser, talvez graças à matriz da moderna história da filosofia, a qual afunda suas raízes no idealismo alemão com Hegel. Aqui tratarei um tema – o não ser – que foi sim estudado, mas não tanto quanto o tema do ser ou aquele da verdade e talvez mereça alguma atenção a mais. Se nós nos perguntássemos ‘o que é o não ser?’ logo perceberíamos de ter criado para nós um belo problema. Perceberíamos que queremos definir algo que, pela intenção do significado, por nossa própria intenção de significado que queremos atribuir, não é algo. Portanto, o que é aquilo que não é? Não é fácil enveredar por este caminho e segui-lo e adentrá-lo profundamente. Esta situação conceitual parece mais um joguinho e o estudioso pode facilmente deixar de lado e se dedicar a estudos “mais sérios”. Para começar, procuremos compreender que sentido atribuímos ao ‘não ser’. Essencialmente, não ser significa negar algo que é. Mas, já dizia Aristóteles, ‘ser’ pode ser dito de muitas maneiras. Portanto, se todos estão de acordo sobre o significado do negar, não todos estão de acordo sobre o significado a ser atribuído àquele ‘algo que é’. A divergência nesse ponto, isto é, em que sentido tem que ser entendido o ‘ser’ de Parmênides, é um dos motivos de discussão entre os estudiosos. De minha parte, estou convencido que tenha que ser entendido em sentido existencial (embora seja necessário explicar o que isto signifique, já que o conceito ‘existência’ não existia na época de Parmênides) e é nessa linha que desenvolverei as minhas considerações1. Dizer existencialmente que algo não existe resulta, afinal, em quatro possibilidades de referências, isto é, quatro tipos de não ser. Antes de tudo, podemos fazer uma primeira distinção entre não ser absoluto e não ser relativo. Esta distinção foi feita já por Platão, o qual de fato, escreve

As outras maneiras possíveis de interpretar o ‘ser’ parmenidiano, a interpretação predicativa, a veritativa e outras, desenvolvidas por muitos estudiosos, apresentam desvantagens exegéticas que não posso esclarecer aqui. 1

o Sofista exatamente para dizer que o não ser absoluto de que Parmênides pretendia falar era algo absurdo e somente aquele relativo tinha um sentido quando aplicado aos fenômenos. Com as nossas palavras, isto é, sem recorrer a algum sistema lexical de referência, podemos dizer que o não ser absoluto se refere ao não ser em si, embora ainda não saibamos qual noção esta definição quer indicar; enquanto o não ser relativo se refere ao não ser de algo, isto é, o não ser quando referido a um ente preciso. Parmênides não fez esta distinção mas, como veremos, fala do não ser absoluto; nós sabemos isto tanto pelo tipo de texto que ele escreveu, quanto pela objeção de Platão, que certamente não teria escrito o Sofista se Parmênides em seu Poema fizesse referência ao não ser relativo. A distinção sucessiva não foi feita por Platão e não é feita pela maioria dos estudiosos, mas eu acho que seja indispensável. O não ser pode ser referido a todos os entes ou a alguns entes ou a um ente apenas. Portanto, proponho a distinção entre um não ser referido à totalidade e um não ser referido parcialmente a um ente ou a um grupo de entes. Resultam assim os seguintes tipos de não ser: o não ser absoluto, de dois tipos, não ser absoluto total e não ser absoluto parcial; e o não ser relativo, este também de dois tipos, o não ser relativo total e o não ser relativo parcial. Além disso, por comodidade de leitura, introduzirei um hífen na gráfica do não ser, de forma a não confundir o conceito do qual tratamos com algum desenvolvimento sintático da argumentação; portanto a nova veste gráfica de nosso conceito será não-ser. Procuraremos agora expor as noções de cada uma dessas possibilidades. Feito isto, compararemos nossos resultados com o texto do Poema, alcançando assim uma noção da proposta de Parmênides. Comecemos pelo não-ser mais comum e antecipamos logo que se trata do não-ser relativo parcial. Dizemos que algo não é quando o algo que se apresenta é diferente daquilo que nós esperávamos que se apresentasse. Os exemplos são inúmeros, mas temos que lembrar que na linguagem comum não se usa a expressão não-ser, mas a expressão nada. Se, por exemplo, se diz “procurei na gaveta, mas não encontrei nada”, se quer dizer que o “nada encontrado” corresponde à expectativa de encontrar algo específico, isto é, aquele algo que estava sendo procurado e que, afinal, não estava presente. Portanto, o ‘nada’, neste caso, se refere (é relativo) a um algo específico que não se apresentou. Um outro exemplo: “Nada disso tudo me convenceu”. Aqui é fácil ver o aspecto relativo do ‘nada’; de tudo isto, isto é, do grupo destas coisas, nenhuma me convenceu; era esperada a presença de uma ou mais coisas convincentes, mas nenhuma coisa (não-ser relativo a este grupo de coisas) se apresentou convincente. Os exemplos podem continuar indefinidamente porque o não-ser relativo parcial faz parte da nossa linguagem mais comum. Ademais, ele se aplica não somente aos entes sensíveis, mas também aos entes de razão, como os números. Por exemplo, o não-ser de 5 vale ‘-5’ (menos 5), isto é, vale a ausência de cinco. Um pouco diferente é o discurso

para o não-ser relativo total. Vimos que o não-ser relativo parcial se refere a um ente ou então a um grupo de entes. O conjunto da totalidade dos entes é geralmente denominado ‘o todo’, de onde segue que a negação do ‘todo’ é aquilo que podemos chamar de não-ser relativo total. Como veremos mais adiante, a negação da totalidade é impossível, mas vamos ficar ainda mais um pouco na esfera lógica sem entrar, por enquanto, na ontologia. E na esfera lógica, o não-ser do todo funciona normalmente e facilmente. Permanecendo ainda no campo da matemática, encontramos operações que são “formalmente” legítimas: o todo + o todo = 2 o todo. Porém, essa operação é possível tão somente se não se faz referência àquele ente concreto que é ‘o todo’ (ou seja, se não se faz referência ao sentido ontológico da expressão ‘o todo’) porque, obviamente, não pode haver uma duplicidade do todo porque, por definição, o todo é único (ou seja, é o conjunto da totalidade dos entes). Entretanto, se fazemos essa exceção ontológica, então, podemos operar da forma comum, basta tratar ‘o todo’ como algo ho0mogêneo e logo operar segundo os normais critérios lógicos. Passemos agora ao não-ser absoluto. A referência ao ‘todo’ é essencial porque nos leva historicamente ao problema principal desses pensadores: estabelecer qual era a ordem do todo, ordem que eles denominavam princípio ou princípios. Quando se raciocina com ‘o todo’, as coisas se complicam por uma razão simples: o tema do raciocínio inclui aquele que raciocina ou, em outras palavras, o objeto do conhecimento inclui o sujeito que conhece. Portanto, se se diz ‘nada’ referido à totalidade dos entes, é necessário negar também a negação que, enquanto ação (ação de negar), é uma positividade, isto é, um ente existente. Por isso, negar a ação de negar significa realizar a ação que nega a ação de negar, isto é, significa afirmar. Portanto, se tentamos negar o todo, veremos que é impossível, porque a negação do todo implica a negação da negação, que é uma afirmação; exatamente quando queremos negar o todo somos obrigados a admitir ao menos uma afirmação: a ação que afirma a negação da negação. Esta impossibilidade pode ser levada ainda mais adiante. De fato, além da negação da negação, deve-se pensar também à negação daquele que nega, isto é, do sujeito que conhece. Mas, negar o sujeito que conhece significa impedir a realização da negação, não somente no sentido de negar o negar, mas exatamente no sentido concreto de gerar uma paralise cognitiva, uma queda geral do sistema, um black-out, para usar um termo que vem da engenharia. Em outras palavras, a negação do todo implica também que o sujeito que nega negue a si próprio; mas, eliminando o sujeito que nega, ela elimina também a sua ação cognitiva de negar, logo anula a ação que nega. A esta negação, que constitui a negação em si e que pretende até mesmo a autonomia de negar a ação que nega (ainda que não consiga), podemos dar o nome de não-ser absoluto (ab-solutum, solto, autônomo, não ligado a nada) total.

Mas a negação em si, o não-ser absoluto, pode também ser referido a um ente; constituiria então o não-ser absoluto parcial. Ainda que de início possa parecer uma estranheza conceitual, o não-ser absoluto parcial faz parte de nossas visões e se refere a objetos que absolutamente não são. Um exemplo é o triângulo quadrado, o qual, mesmo que podemos, em certo sentido, supô-lo, não podemos de maneira nenhuma nem, sequer pensá-lo. O triângulo quadrado não somente é um ente que não existe mas também é um ente que não pode jamais existir, logo o seu não-ser não depende de nenhuma circunstância, logo é absoluto. O triângulo quadrado não existe porque é contraditório, porque a triangularidade exclui essencialmente a quadrangularidade e, portanto, a afirmação da quadrangularidade excluiria essencialmente a triangularidade e vice-versa. Aqui o discurso complica-se não pouco e nos afasta de nosso tema. Voltemos, então, a Parmênides. Parmênides fala do não-ser; mas a qual dessas quatro espécies ele se refere? Já dissemos que se refere ao não-ser absoluto. Ele também fazia a distinção entre não-ser absoluto total e parcial? Parece que não; entretanto, aparentemente sem querer, ele fala de ambas as espécies de não-ser. No fragmento 2, segundo a ordenação de Diels-Kranz, Parmênides diz: ... que é, e que não é não ser ............................................... ... que não é e que é preciso não ser Este, então, eu te digo, é atalho de todo insondável Pois nem conhecerias o que não é (pois não é exeqüível) Nem o dirias...2 Do inteiro fragmento 2 deixamos de lado as questões dos caminhos de investigação (versos 1-2), da verdade e da persuasão (verso 4), e concentramos nossa atenção apenas sobre nosso tema principal: o não-ser. Para Parmênides, o não-ser é incognoscível. Para melhor esclarecer esta sua posição, antes de tudo, devemos notar que é fruto de uma reflexão3. Vamos então tentar reconstruir esta reflexão. Se com a imaginação nego um ente, percebo que posso fazê-lo sem muita dificuldade, por exemplo: nego este livro e obtenho o específico não-livro não-escrito e que talvez nunca será escrito. Depois posso estender esta negação a muitos entes específicos, imaginando sua anulação, até mesmo em grupos ou classes. Depois ainda imagino anular o mundo inteiro. E depois, por fim, imagino de anular o todo. Como vimos antes, este pensar o anular o todo me obriga a pensar o anular daquele que pensa, ou seja, do ato cognitivo. É exatamente a anulação do

2

Para evitar ambigüidades e outros problemas exegéticos, os quais, no caso de Parmênides, são sempre muito grandes, evito traduzir o fr. 2 integralmente. 3 Não pode ser de outra forma. Não se pode afirmar que o não-ser não é inteiramente indagável (panapeuthéa) se não se está num universo de discurso relativo à investigação do pensamento, ou seja, à reflexão. De um lado, esta preocupação está expressa nos versos 1 e 2, ‘caminhos de investigação para o pensamento’, e, de outro lado, pelo próprio adjetivo ‘insondável’, não indagável, onde a indagação se refere à indagação do pensamento, portanto, à reflexão.

ato cognitivo que estabelece inexoravelmente que é impossível pensar completamente o não-ser do todo, porque o pensamento do não-ser do todo compromete a própria ação do pensar exatamente quando esta quer pensar o não-ser de si mesma. Pensar o não-ser do ato cognitivo que nega, destrói o ato que nega, pelo que o ato que nega não consegue negar a si próprio como ato que nega. Isto significa que é impossível pensar completamente o não-ser do todo em sentido absoluto. Não por acaso encontramos em Parmênides: este, então, eu te digo, é atalho de todo insondável. Parmênides diz que o não-ser é um caminho de investigação, onde a investigação é exatamente a reflexão sobre o não-ser, talvez parecida como aquela que acabamos de expor. Porém, o caminho de investigação do não-ser (absoluto) chega a esta conclusão: não é possível pensar o não-ser (absoluto). E, portanto, se não é possível pensá-lo muito manos é possível expressá-lo, dizê-lo, fazer um discurso. Então é ainda Parmênides que nos diz que, além de ser impossível, o não-ser é também indizível. Vimos, na nossa reflexão, que de início imaginamos a anulação de um ente (não-ser relativo parcial) e que isto pareceu-nos possível. Podemos agora dizer que Parmênides não se refere a este tipo de não-ser. Depois imaginamos a anulação do mundo (não-ser relativo total), no sentido de um mundo ideal que não inclui aquele que o imagina. Este também pareceu possível ao pensamento e este também não corresponde àquele descrito por Parmênides. Finalmente, experimentamos imaginar o não-ser do todo, quando o todo inclui também aquele que, imaginando, realiza a investigação (não-ser absoluto total) e encontramos as características do fr. 2: o não-ser (absoluto total) pode ser investigado, mas a investigação revela a impossibilidade de alcançar a pensabilidade completa, o não-ser (absoluto total) é impensável e, portanto, também indizível. Então, esclarecemos a noção de não-ser de Parmênides, assim como está descrita nos versos 5-8 do fr. 2. Porém, a impossibilidade do pensar absolutamente o não-ser revela um outro aspecto que, quem sabe, pode nos indicar uma gênese da filosofia de Parmênides. De fato, no verso 3, Parmênides diz: “... é, e não é não ser”. Ora, este é não é um é qualquer, mas de um tipo específico, isto é, do tipo “não é não ser”. Como ele consegue saber que este é não é não-ser? Surge a suspeita de que Parmênides tenha tentado negá-lo; além do mais, deve tê-lo feito com todos os recursos de que dispunha. E depois de todas as tentativas chegou à conclusão de que não era possível negar este é. A suspeita parece conduzir a uma gênese do é, isto é, da noção parmenidiana do ser, a partir de uma reflexão sobre a negação da realidade. Se a suspeita estiver certa, então este é passa a ser exatamente o remanescente, o resíduo incorruptível da reflexão sobre a anulação do todo. Surge agora a exigência de dar um passo para trás. Dissemos que quando se nega o ato que nega (que é um ato cognitivo), não se consegue mais pensar o não-ser. Portanto, o ato que nega,

quando é negado, não sabe mais nada a respeito do ser, porque o sistema pensante sofre um blackout. Sabe apenas que não há o não-ser. Mas, quando sabe disso? O sabe apenas se se recupera do black-out. O ato pensante, obviamente encarnado no sujeito da cognição, quando emerge novamente do black-out diz: “é!” porque o não-ser é impossível. Estamos próximos da expressão poética de Parmênides. De fato, deixando a questão gnosiológica e voltando à análise ontológica, vamos relembrar que a negação que nega a negação é uma afirmação; em outras palavras, toda negação é sempre a afirmação de uma negação, logo, também a negação que pretende negar a negação em si. A negação em si é inegável porque negar a negação significa realizar o ato positivo de negar algo, e isto é afirmar. Se nos perguntamos qual nível de consciência Parmênides podia ter a respeito da negatio negationis, temos que responder que sua visão extremamente radical induz a postular uma consciência do problema não muito embrional. De fato, dizer que ‘o ser é aquilo que não é não-ser’ (ou então, que ‘o ser não é possível que não seja’) significa que negar o negar significa afirmar, portanto, dizer que o ser necessariamente é. Isto explica também aquelas palavras, bastante misteriosas, do verso 5: não é, e é necessário que não seja. Acabamos de ver, negar o não-ser é impossível, portanto, o não-ser é inegável (porque se fosse negável se transformaria em ser) e, portanto, permanece exatamente aquilo que é: não-ser4. Parmênides descobre essencialmente o não-ser, no sentido daquela negação do todo que é impossível de pensar e de dizer. É com o não-ser que ele fundamenta a noção de ser. Parece-me inútil aqui, agora, tentar estabelecer se em Parmênides a proeminência é do ser ou do não-ser. Acredito que seja inútil porque não sabemos – e provavelmente nunca saberemos – a verdadeira gênese de suas reflexões concretas. Mas é certo que o não ser tem peso essencial em sua noção de ser, um peso quase nunca evidenciado como merece. Isto se deve provavelmente, antes de tudo, a Platão que, no Sofista, desqualifica cruamente a importância do não-ser. Hoje, talvez mais acostumados à aparentes contradições da realidade, acredito que podemos conseguir tomar uma maior distância de Platão e podemos conseguir ver um pouco melhor estes fantásticos pensadores – isto é, os pré-socráticos – investigadores visionários da realidade.

4

Obviamente, podemos perguntar se esta última expressão é legítima: o não-ser é aquilo que não é (portanto, é, é algo preciso: aquilo que não é). Esta crítica já fora feita por Górgias e talvez dá suporte a toda a sua filosofia. Mas aqui nos limitamos à palavras de Parmênides e as palavras de Parmênides são estas: é e não é não ser... não é e é preciso não ser.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.