Parricídio e infanticídio altruístas - o homicídio atrelado à \"boa morte\"

June 1, 2017 | Autor: R. Paes Henriques | Categoria: Bioethics, Bioética
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PACO’S DIGITAL

VERSÃO DIGITAL ELABORADA POR PACO’S AGÊNCIA DIGITAL

ÍNDICE 03 FANTASIAS PARRICIDAS

Mythos Editora Diretor-Executivo: Helcio de Carvalho Diretor-Financeiro: Dorival Vitor Lopes

09 FILICÍDIO E INFANTICÍDIO ALTRUÍSTAS

Editor-Executivo: Alex Alprim ([email protected]) Revisão: Giacomo Leone Neto

12 O QUE É PARRICÍDIO?

18 DEPRESSÃO PÓS-PARTO, PSICOSE PUERPERAL E INFANTICÍDIO

Produtor Gráfico: Ailton Alipio ([email protected]) Colaboradores: Aline Riboli Marasca, Amaury Cantilino, Ana Teche, Carla Fonseca Zambaldi, Fabio Malcher, Fernanda Hamann de Oliveira, Mariagrazia Marini Luwisch, Marina Rezende Bazon, Nelson da Silva Jr., Patrícia Manozzo Colossi, Paula Gomide, Roberta Noronha Azevedo, Rogério Paes Henriques e Vera Iaconelli. Gerente de Vendas/Livros: Adriana Ferreira S. Costa Coordenação de Consignação: Mônica A. Silva

23 TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS E RISCO DE INFANTICÍDIO MATERNO

27 VIOLÊNCIA CONJUGAL: DISCUTINDO AS ORIGENS, QUESTIONANDO DESTINOS

Números Atrasados: Fabiana Dionísio Circulação: Antonia B. Coelho Impressão: Gráfica São Francisco Distribuição Nacional: Fernando Chinaglia Reclamações, Sugestões, Dúvidas: [email protected]

34 NEONATICÍDIO E ABORTO: PARADOXOS DO AMOR MATERNO NO LAÇO SOCIAL

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(PRODUÇÃO, PROJETO GRÁFICO, DIAGRAMAÇÃO E PUBLICIDADE) Paco´s Serviços Gráficos Dir. Executivo/Projetos: Alex Alprim Dir. Financeiro: Paula Francisquini Designer-Chefe: Percila Souza Designer-Júnior: Pedro Faria Designer-Assistente: Jefferson Rodrigues, Fabiano Gomes

PATRICÍDIO: UM TABU

46 M A U S - T R AT O S INFANTIS

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Revista de Psicologia Especial é uma publicação da Mythos Editora. Redação e Administração: Av. São Gualter, 1296, São Paulo - SP CEP. 05455-002 - Fone: (11) 3024-7707 - Os artigos aqui publicados, quando não assinados, seguem a licença de CREATIVE COMMONS, sendo vedada no entanto, qualquer reprodução ou uso que se faça desse material para fins de lucro ou financeiros; no mais, quando o artigo for assinado, seu © Copyright pertence ao autor e é dele a total e completa responsabilidade jurídica e civil sobre o mesmo. Fica proibida a reprodução total ou parcial de qualquer foto ou artigo desta revista que tenha sido assinado por seus autores. A revista não se responsabiliza por conceitos emitidos em artigos assinados. NÚMEROS ATRASADOS: temos estoque limitado de nossas publicações. Se deseja alguma edição anterior desta publicação, entre em contato com Fabiana Dionísio, pelo telefone (11) 3021-7039 ou enviando uma carta para NÚMEROS ATRASADOS: Av. São Gualter, 1296 - São Paulo - SP. PROMOÇÃO ESPECIAL: na compra de cinco ou mais revistas, a taxa de correio não será cobrada. Distribuída pela Dinap S/A – Distribuidora Nacional de Publicações, Rua Dr. Kenkiti Shimomoto, nº 1678, CEP 06045-390 – São Paulo – SP

REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL

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REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL

FANTASIAS PARRICIDAS REFLEXÕES A PARTIR DA PSICANÁLISE E DA LITERATURA.

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ATAR O PAI. ESSA IDEIA TENDE A NOS PARECER ESTRANHA, OU MESMO REPULSIVA. NO ENTANTO, A CONTRAPELO DO SENSO COMUM, A PSICANÁLISE ENSINA QUE, MUITAS VEZES, NAQUILO QUE NOS PARECE MAIS ESTRANHO, ENCONTRAMOS ALGO DE FAMILIAR. NAQUILO QUE NOS PARECE MAIS REPULSIVO, ENCONTRAMOS A MARCA DO RECALQUE. E FREUD DESCOBRIU, DESDE MUITO CEDO EM SEU PERCURSO TEÓRICO-CLÍNICO, QUE A FANTASIA PARRICIDA É CONSTITUTIVA DO SUJEITO. UMA FANTASIA QUE, EVIDENTEMENTE, PREFERIMOS ESQUECER. Um dia, cada um de nós desejou, ou ainda deseja, se ver livre da instância paterna. Uma instância que simboliza a lei. Que diz não. Que proíbe o acesso a um prazer sem limites. Ora, o primeiro grande limite que a civilização impõe ao prazer de uma criança é a proibição do incesto. Por mais apaixonado que um bebê seja por sua mãe – pelo olhar dela, a voz dela, o seio dela –, alguém precisa cumprir o papel de deixar claro para o pequenino uma lei básica da cultura à qual ele acabou de chegar. Um filhinho não pode namorar sua mamãe. Simples assim. Acontece que esse filhinho tende a rivalizar com aquele que lhe proíbe o acesso ilimitado à mãe. É no âmbito dessa rivalidade que surgem os impulsos parricidas. A entrada na civilização exige que o sujeito reprima tais impulsos, convertendo-os em fantasias inconscientes. Fantasias incestuosas e parricidas fazem parte do que Freud denominou o complexo de Édipo, um tema denso e frequentemente mal interpretado por críticos apressados, que tentam reduzir a psicanálise a uma espécie de laissez-faire inconsequente. Na realidade, para Freud, o Édipo é um momento crucial de estruturação do sujeito,

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ARTE - FANTASIAS PARRICIDAS

“Na realidade, para Freud, o Édipo é um momento crucial de estruturação do sujeito, justamente porque é quando se estabelecem as bases para sua relação com a cultura.”

justamente porque é quando se estabelecem as bases para sua relação com a cultura. Para entrar na civilização, o sujeito é barrado em seu gozo. E a instância paterna é justamente aquela que tem a função estrutural de sustentar essa barra. Uma saída para o Édipo, apontada por Freud, é a identificação do menino com o pai. Se não posso ter mamãe, quero crescer e ser tão bacana quanto papai, para poder ter mulheres tão bacanas quanto mamãe. No caso da menina, há outros caminhos envolvidos, mas eles também giram em torno do que é central no Édipo: a entrada do sujeito no registro da lei. A civilização exige uma renúncia à barbárie e à anomia. Não é possível que cada pessoa faça o que quiser, sem qualquer respeito ao outro. O recalque de impulsos perversos é uma maneira de lidar com essa impossibilidade. Entretanto, o recalque não faz desaparecer o recalcado. Pelo contrário. Tais impulsos perversos permanecem latentes, inconscientes, como se fizessem força para se manifestar. Assim se criam os sintomas da neurose, a estrutura clínica que mais se aproxima do que se pode considerar a “normalidade”. Algum quinhão de mal-estar é, portanto, inevitável à vida em sociedade, como demonstra Freud num dos seus livros mais célebres, O mal-estar na cultura, de 1930. Uma análise, entre outras

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coisas, é capaz de dar lugar àquilo que recalcamos. A literatura – arte da palavra ou da letra, seja em prosa, verso ou dramaturgia – também é capaz de dar lugar àquilo que recalcamos. Obviamente, ler um livro não equivale a fazer uma análise. Mas literatura e psicanálise têm em comum o fato de se apoiarem na palavra como matéria-prima de uma práxis, isto é, uma prática que permite tratar o real pelo simbólico, como declarou certa vez o psicanalista Jacques Lacan. Freud sempre conferiu aos escritores literários um acesso privilegiado ao conhecimento sobre o sujeito. Afirmou inclusive que alguns escritores chegam a certas formulações sobre o funcionamento do inconsciente mais diretamente do que a própria psicanálise. Daí decorre um interessante paradoxo: não raro, é pela ficção literária que se formulam importantes verdades. Foi na obra de um escritor, Sófocles, que Freud encontrou os elementos necessários para a conceituação do complexo de Édipo. A história do rei de Tebas, que matou seu pai Laio e desposou sua mãe Jocasta, com quem teve quatro filhos, remonta a um mito muito mais antigo do que a tragédia grega Édipo Rei, datada do século V a.C. Entretanto, a forma como Sófocles costurou essa narrativa não é irrelevante para a abordagem psicanalítica. A tragédia sofocliana não é cronológica: inicia quando Édipo já realizou os crimes do parricídio e do incesto, mas não tem qualquer consciência disso. Uma condição facilmente comparável à do sujeito moderno – no plano simbólico, claro. Assim, algumas obras literárias permitem ao sujeito a realização, no âmbito da fantasia, de desejos proibidos. Para vivermos em sociedade, não podemos matar, nem mesmo agredir qualquer pessoa que nos desperte ódio ou raiva, assim como não podemos manter relações sexuais com qualquer pessoa que nos desperte desejo. Esses impulsos reprimidos, convertidos em fantasias, quando ganham vida nas narrativas literárias, costumam ter o efeito de capturar o leitor. (Um efeito bem conhecido pelos roteiristas de Hollywood, cujas produções exploram exaustivamente temáticas violentas e sexuais.) Nos primórdios da psicanálise – antes mesmo da primeira formulação explícita do complexo de Édipo, em A interpretação dos sonhos, de 1900 –, Freud escreveu uma carta ao amigo Wilhelm Fliess, relatando que se perguntava por que a tragédia de Sófocles, tantos séculos depois de escrita, ainda produzia no leitor moderno um efeito fortemente cativante. Ali, Freud arriscou uma resposta a sua própria pergunta: todos seríamos Édipos, na nossa fantasia, e gozaríamos intimamente de ver realizados nossos impulsos parricidas e incestuosos. Freud jamais abandonou essa hipótese primordial. E em diversas ocasiões, voltou a abordá-la a partir de um profícuo diálogo entre literatura e psicanálise.

ARTE - FANTASIAS PARRICIDAS

Num artigo de 1927, intitulado Dostoiévski e o parricídio, ele destaca: “Dificilmente pode deverse ao acaso que três das obras-primas da literatura de todos os tempos – Édipo rei, de Sófocles, Hamlet, de Shakespeare e Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski – tratem todas do mesmo assunto, o parricídio”. E Freud acrescenta que, em todas elas, “o motivo para a ação, a rivalidade sexual por uma mulher, é posto a nu”. Comparadas as três obras, o parricídio mais claro e direto se vê efetivado em Édipo rei, onde o próprio Édipo comete o ato parricida, embora desconheça que é filho de Laio no momento em que o mata. Segundo Freud, esse desconhecimento é exatamente o atenuante que faz com que possamos nos identificar ao protagonista, permitindo que a tragédia nos seja suportável. Isso porque qualquer via simbólica de realização de um desejo reprimido – um sonho, uma fantasia, uma obra literária etc. – só pode se tornar consciente se há algum tipo de distorção do desejo. Se Édipo fosse um parricida confesso e assassinasse seu pai sem qualquer remorso, não nos emocionaríamos por seu terrível destino. Provavelmente o execraríamos como um perverso incapaz de nos suscitar qualquer identificação. No entanto, nos comovemos profundamente pelo sofrimento de Édipo no clímax da tragédia, quando se descobre culpado e, num gesto de autopunição, arranca os próprios olhos.

Já na tragédia de Hamlet, o parricídio se dá por uma via indireta. Pela via da fantasia. Não é Hamlet, e sim seu tio, quem assassina seu pai e desposa sua mãe. Mas quando o fantasma do pai vem assombrar o protagonista, exigindo que ele vingue sua morte, Hamlet se mostra incapaz de levar a cabo esta exigência. Um dia, ele desejou fazer tudo o que o tio fez. Matar seu pai, deixando sua mãe livre para um novo parceiro – ele próprio. Quando vê seus desejos tornados realidade, Hamlet se paralisa, como se fosse culpado dos crimes do incesto e do parricídio. Já no romance dostoievskiano, o assassinato do pai também é cometido por um outro, o irmão do herói. Mas Freud chama atenção para o fato de Dostoiévski atribuir ao assassino traços pessoais marcantes de sua própria vida, em especial as recorrentes crises epiléticas, “como se estivesse procurando confessar que o epilético, o neurótico nele próprio, era um parricida”. Freud é perspicaz ao apontar que, em Édipo rei, o parricídio se realiza de forma mais direta do que em Hamlet e Os irmãos Karamazov. Tão direta que talvez não fosse possível numa narrativa moderna, como as de Shakespeare e Dostoiévski. Shakespeare, contemporâneo de Descartes, viveu e trabalhou durante o século XVII, uma época na qual se situa o nascimento do sujeito moderno, conforme o concebe a psicanálise. Época marcada

“Comparadas as três obras, o parricídio mais claro e direto se vê efetivado em Édipo rei, onde o próprio Édipo comete o ato parricida, embora desconheça que é filho de Laio no momento em que o mata. ”

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pela emergência da ciência moderna, orientada por fundamentos lógicos-matemáticos cartesianos. No contexto tradicional teocentrista, que caracterizava a maior parte do território europeu durante a Idade Média, a Bíblia sagrada fornecia respostas a qualquer tipo de pergunta. Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Qual o meu papel na sociedade? Todas as respostas já estavam escritas, antes mesmo que fosse preciso perguntar. Todas as fases da vida eram simbolizadas por ritos de passagem, que determinavam coletivamente para o sujeito seu lugar simbólico no âmbito social. O que é ser uma mulher? O que é ser um homem? O que é ser uma criança? Cada qual tinha lugares e funções bem definidas, de acordo com princípios e tradições religiosas. No momento em que esses princípios e tradições começaram a ser questionados, paulatinamente dando lugar a uma visão de mundo antropocentrista e individualista, cada pessoa passou a ser responsável pelo seu destino, suas crenças e suas certezas (ou dúvidas). Deus não fornecia mais todas as respostas. Como posso ter certeza da minha própria existência?, perguntou Descartes, testemunho precursor da crise existencial do sujeito moderno. Como posso ter certeza de que meu conhecimento sobre o mundo é exato e verdadeiro?, perguntou ele também, e apostou no formalismo lógico-matemático como meio de acesso à sistematização do conhecimento humano. Aposta que a ciência tomou como norte para sua modernização, num movimento que se alastrou até os dias de hoje. Para ser confiável, o conhecimento científico precisa ser mensurável, quantificável, comprovado estatisticamente, na esteira de um discurso que busca asserções para preencher o vazio deixado pela morte de Deus-Pai. Foi no século XIX que esse processo atingiu as ciências humanas, que assumiram a missão de produzir conhecimentos exatos e precisos também acerca do próprio homem. O positivista Auguste Comte, por exemplo, chamava a sociologia de “física social” (sic.), defendendo que o método de estudo das sociedades se espelhasse no método científico adotado pelas ciências da natureza. A psicologia científica também tem origem nesse momento, com experimentos de laboratório para medir sensações, percepções e outros processos psicológicos, deixando de fora, entretanto, tudo que há de singular, inexato, estranho e ilógico no funcionamento humano. O que escapa à estatística. O que não é mensurável. Não por acaso, a psicanálise também surge exatamente nesse momento, no final do século XIX, para se ocupar de um sujeito excluído pela ciência moderna. O sujeito do inconsciente, acossado por conflitos quanto ao seu lugar simbólico no social. E por impulsos considerados inadequados, dos quais ele se vê forçado a se livrar. Esse sujeito paradoxal é marcado pela ambivalência afetiva, descrita por Freud como a coexistência de sentimentos opostos com relação a uma mesma

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pessoa. O exemplo mais evidente de tal situação é fornecido pela famosa crise da adolescência, caracterizada pela coexistência explícita de sentimentos de amor e ódio com relação aos pais, ou qualquer instância de autoridade (a polícia, o Estado, as leis, “o sistema”...). Entretanto, não são só os adolescentes que nutrem sentimentos ambivalentes. Freud percebeu que a ambivalência afetiva costuma marcar a maior parte dos relacionamentos mais importantes para cada um de nós. O que acontece é que, em geral, um dos dois sentimentos coexistentes permanece recalcado. Às vezes, o ódio permanece latente, e o amor manifesto. Outras vezes, é o amor que se mantém oculto, e o ódio se mostra com toda a sua força. A rivalidade entre pais e filhos é tema recorrente em narrativas modernas e antigas, sejam literárias ou míticas. Na Teogonia de Hesíodo, por exemplo, até Zeus, deus dos deuses, precisou ser escondido do pai Cronos para não ser engolido vivo, quando bebê. Cronos devorava todos os filhos ao nascerem, porque previa que um deles iria destroná-lo. Acertou. Foi morto pelo único filho que não conseguiu matar. O próprio Freud, no livro Totem e tabu, de 1913, articula uma espécie de mito que trata do parricídio e suas consequências para a civilização. Em tempos imemoriais, teria existido uma horda dominada por um pai despótico, que monopolizava o acesso às mulheres do grupo, proibidas aos filhos. Cansados de tal restrição, os filhos decidem se unir para assassinar o pai, e depois devorar sua carne. Após o festim, porém, os irmãos são acossados pelo sentimento de

“O positivista Auguste Comte, por exemplo, chamava a sociologia de “física social” (sic.), defendendo que o método de estudo das sociedades se espelhasse no método científico adotado pelas ciências da natureza.”

ARTE - FANTASIAS PARRICIDAS

“Pais e mães demonstram uma dificuldade extrema em dizer não aos filhos, que crescem como pequenos tiranos, disparando ordens aos familiares e encenando escândalos às menores frustrações.”

culpa. E instituem o acordo de que nenhum deles tentaria tomar o lugar paterno. Nenhum deles gozaria ilimitadamente da força ou das mulheres da horda. A aceitação coletiva a esses limites passa a ser, então, o que garante uma convivência viável entre eles. Porém, como vimos, um impulso reprimido não se extingue. Permanece latente, produzindo efeitos. Por isso mesmo, se qualquer irmão da horda desobedece ao contrato social, os outros se sentem autorizados a exigir sua punição. Se eu não posso ter algo, não me parece justo que o outro tenha. Assim se justificam diversos mecanismos de controle social, desde os mais toscos – como os linchamentos coletivos de criminosos – até os mais sofisticados – como a própria existência da polícia, braço armado do Estado (representante máximo da res pública), a quem se reserva o monopólio legítimo do uso da força. O mito freudiano de Totem e tabu deu origem a inúmeros desdobramentos nos campos da psicanálise e das ciências humanas em geral. Chama atenção o fato de que os filhos não se contentam em assassinar o pai. Eles se alimentam dele. O pai morto permanece, para sempre, simbolicamente vivo, e sua ausência se faz presente na regulação das normas que organizam a comunidade dos irmãos. Eles também sentem culpa, uma evidência da ambivalência afetiva. Não se sentiriam culpados se não nutrissem pelo pai sentimentos amorosos. O adolescente também precisa, em certa medida, matar o pai. Precisa encontrar seu próprio caminho na vida. Tornar-se maior, responsável, passar a responder por

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si mesmo, sem precisar que outro responda por ele. Essa não é uma tarefa simples, mesmo para pessoas que atingem uma idade cronologicamente adulta. Atualmente, muitos psicanalistas denunciam uma crise da autoridade paterna na cultura ocidental. Essa instância de interdição tem se mostrado cada vez menos efetiva. Pais e mães demonstram uma dificuldade extrema em dizer não aos filhos, que crescem como pequenos tiranos, disparando ordens aos familiares e encenando escândalos às menores frustrações. Mais de cem anos depois de escrito, o mito de Totem e tabu continua a nos ensinar. Não bastou aos irmãos matarem o pai. Precisaram se servir dele, para poder ultrapassá-lo. Esse é mais um paradoxo de que se ocupa a psicanálise. Matar o pai não corresponde a aniquilá-lo. Ele permanece vivo dentro de nós. É isso que nos permite dar um passo decisivo na direção do desejo. Porque, ao contrário do que supõe o senso comum, desejo e prazer não necessariamente andam de braços dados. Em geral, é necessária a renúncia a um prazer imediato, para que o sujeito ocupe uma posição desejante. Uma posição que tende a provocar turbulência e fazer barulho, como é típico do desejo. Mas que ajuda a atenuar o peso do sofrimento neurótico, pela possibilidade de fazer circular, para o sujeito, o frescor de um novo sopro de vida. * Fernanda Hamann de Oliveira é psicanalista-membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica e professora de Psicologia na Faculdade de Educação da UFRJ.

REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL

FILICÍDIO E INFANTICÍDIO ALTRUÍSTAS O HOMICÍDIO ATRELADO À “BOA MORTE”.

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E MODO GERAL, AO SE ABORDAR OS TEMAS DESTE NÚMERO ESPECIAL DA REVISTA DE PSICOLOGIA (MYTHOS EDITORA), “FILICÍDIO” – ATO DE MATAR OS PRÓPRIOS FILHOS – E “PARRICÍDIO” – ATO DE MATAR OS PRÓPRIOS PAIS –, AUTOMATICAMENTE SOMOS COMPELIDOS A CORRELACIONÁ-LOS COM PATOLOGIAS PSÍQUICAS (“PSICOPATIA”, “SOCIOPATIA”, “PERSONALIDADE ANTISSOCIAL” ETC.) QUE, SUPOSTAMENTE, OS EXPLICARIAM, COMO SE ESSES RÓTULOS OS ESGOTASSEM. Tais categorias, como já sugerimos em trabalhos anteriores (Henriques, 2009; 2012; 2014; 2015), resultam tão somente da medicalização da maldade e, longe de explicar ou esgotar os fenômenos do filicídio e do parricídio, perpetuam chavões atrelados a eles, à moda de um Cesare Lombroso1. Explicar o filicídio e/ou o parricídio de maneira simplista por intermédio da tipologia do psicopata (indivíduo mau, frio, calculista, manipulador, egocêntrico etc.), por exemplo, é optar pela individualização de um problema que se situa mais além, no âmbito coletivo. Esse modo de explicação favorece a demonização unilateral dos autores desse tipo de crime. Grande parte da responsabilidade por isso é da mídia, que divulga amplamente os filicídios e parricídios cometidos por motivo torpe – como se supôs serem os casos Nardoni e Richthofen, por exemplo –, justamente aqueles que conseguem siderar o grande público e dar bom retorno de audiência. Todavia, seriam todos os filicídios e parricídios cometidos com intenções malignas e egoístas, justificando assim a associação automática deles com as categorias psiquiátricas citadas? Ou esses crimes específicos são justamente os conteúdos aos quais temos acesso facilitado pela mídia, que atua

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1 - Psiquiatra italiano, Lombroso (1835-1909) é considerado o pai da antropologia criminal, a qual buscava detectar potenciais criminosos por meio de suas características corporais.

CONTRAPONTO - FILICÍDIO E INFANTICÍDIO ALTRUÍSTAS

“O filme francês Há tanto tempo que te amo tem como personagem principal uma mulher de meia-idade, Juliette, recém-saída da cadeia, (...). Seu olhar melancólico encobre seu crime hediondo: o assassinato de seu próprio filho. Sua sentença: quinze anos de prisão, cumpridos à risca em regime fechado.”

de modo seletivo promovendo suas coberturas espetaculosas, tão ao gosto da audiência? Na contramão do apelo midiático, proponhome aqui a abordar os chamados “filicídios altruístas” e “parricídios altruístas”, isto é, aqueles cometidos por indivíduos que visam a livrar o outro (filhos e pais, respectivamente) de um sofrimento insuportável. Para tanto, recorrerei a dois filmes que, no presente momento da redação deste ensaio, estão em cartaz na Rede Netflix: Há tanto tempo que te amo e Invasões bárbaras. Ambos abordam especificamente atos pretensamente altruístas que visam ao livramento de pessoas amadas, acometidas de sofrimentos inaturáveis causados por doenças incuráveis. Desde Kant2, sabe-se que não há lei moral válida universalmente independente do contexto, aquilo que ele buscou em vão com seu conceito de “imperativo categórico”. Assim, por exemplo, o mandamento religioso “Não matarás”, que se pretende universal, só é válido contextualmente em tempos de paz, sendo automaticamente anulado em épocas de guerras – inclusive por Estados teocráticos; e isso sem contar aquilo que se convencionou designar por “legítima

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defesa”. Da mesma forma, mesmo aqueles homicídios praticados contra filhos e contra pais – que soam a priori como ignominiosos – devem ser analisados contextualmente. Tais filmes auxiliam nesse processo de relativização, ao abordá-los quando praticados com fins “misericordiosos”. Em outros termos: mesmo um ato aparentemente infame por si só, como o assassinato de filhos e pais, apenas pode ser valorado a posteriori, levando-se em conta a sua singularidade e os seus efeitos. O filme francês Há tanto tempo que te amo tem como personagem principal uma mulher de meia-idade, Juliette, recém-saída da cadeia, que passa a morar na casa de sua irmã mais nova junto com o cunhado, o pai do cunhado e dois sobrinhos. Seu olhar melancólico encobre seu crime hediondo: o assassinato de seu próprio filho. Sua sentença: quinze anos de prisão, cumpridos à risca em regime fechado. Acerca desse ato, o mistério é garantido pelo roteiro até o final do filme. Desde que o cometeu, nenhuma palavra foi dita por ela acerca de suas motivações, nenhuma tentativa de se defender foi feita, até que sua irmã descobre um laudo médico antigo revelando

2 - O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) é considerado um dos ideólogos do Iluminismo (Aufklärung), movimento cultural europeu que estabeleceu as bases da Modernidade.

CONTRAPONTO - FILICÍDIO E INFANTICÍDIO ALTRUÍSTAS

um diagnóstico de doença crônica irreversível na criança morta, vítima do crime. O clímax do filme ocorre no momento em que Juliette, ex-médica que teve seu registro profissional cassado após o crime, confessa ter matado seu próprio filho por não suportar mais vê-lo sofrer em função de sua doença incurável. A partir desse momento, seu crime é relativizado, e ela deixa de encarnar o arquétipo de Medeia3. Já o filme franco-canadense Invasões bárbaras, ganhador do Prêmio Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2004, aborda os últimos dias de vida de um senhor idoso, professor universitário aposentado, o idealista Rémy, que, também acometido por uma doença crônica irreversível, opta por abreviar seu sofrimento causado por tal doença, antecipando seu inevitável fim trágico. O filme narra a reunião dos seus amigos em torno dele e sua memória afetiva dos melhores momentos de sua existência. No contexto bucólico de uma pacata casa de campo, cercado da afetuosidade dos seus próximos, Rémy recebe uma injeção letal aplicada por seu próprio filho. Ele morre sereno com olhar terno e agradecido, apertando a mão de seu filho. Ambos os filmes abordam o que se convencionou chamar em Bioética4 de “eutanásia” (do grego: eu = boa; thanatos = morte). Trata-se do homicídio praticado com fins misericordiosos para livrar alguém de um sofrimento insuportável. Parte-se do pressuposto de que a vida não possui um valor absoluto. Os antigos gregos, inclusive, possuíam dois termos para nomear a vida: bios (vida qualificada) e zoé (vida comum). Não basta viver a qualquer preço em nome do cultivo sacrificial de uma presumida dádiva divina. É preciso viver com qualidade de vida, ou melhor, é preciso levar uma vida qualificada. A qualificação da vida é justamente aquilo que nos permite retirá-la da sua dimensão biológica, nua, singularizando -a; é o processo simbólico por meio do qual nos apropriamos de nossas vidas. Essa capacidade de apropriação da vida pode ser perdida em função do adoecimento radical, decretando-se assim a morte simbólico do sujeito ou sua morte em vida. É isso que os filmes Há tanto tempo que te amo e Invasões bárbaras retratam. Ambos questionam o tênue limite entre o cruel e o clemente. A abordagem aqui realizada do filicídio e do parricídio não implica uma adesão cega e militante à causa da eutanásia, que poderia desviar-se de sua finalidade altruísta e levar a formas devastadoras de eugenia5. No outro extremo, a condenação cega e militante da eutanásia pode levar ao prolongamento indefinido do sofrimento humano causado por doença incurável por meio da tecnologia médica, a despeito da vontade do doente. Acreditamos que o próprio sujeito que sofre é o

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“Trata-se do homicídio praticado com fins misericordiosos para livrar alguém de um sofrimento insuportável. ”

único capaz de julgar a qualificação ou não da sua vida e tomar a decisão que lhe for mais favorável. As eutanásias retratadas pelos filmes examinados relativizam o filicídio e o parricídio, que deixam de ser automaticamente associados à crueldade e explicados à luz da patologização da maldade, por intermédio de categorias psiquiátricas de caráter duvidoso, como “psicopatia”, “sociopatia”, “personalidade antissocial” etc. * Rogério Paes Henriques é psicólogo, psicanalista, pós-doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Professor da Universidade Federal de Sergipe. Autor dos livros Psicopatologia Crítica: guia didático para estudantes e profissionais da psicologia (Ed. da UFS, 2012), Freud e a Narrativa Paranoica: Schreber revisitado (EDUSP, 2014) – 1º lugar no Prêmio Jabuti 2015 na Categoria Capa – e A Psiquiatria do DSM: pílulas para que te quero (Ed. UFS, 2015). Participou como autor da coletânea de artigos A Fabricação do Humano: psicanálise, subjetivação e cultura (Zagodoni, 2014), que obteve o 2º lugar no Prêmio Jabuti 2015, na categoria Psicologia.

3 - Personagem da mitologia grega que matou seus filhos por capricho, para se vingar do pai deles. 4 - Trata-se da disciplina filosófica Ética aplicada ao contexto médico. 5 - Trata-se da perigosa doutrina associada ao melhoramento da espécie humano, por meio da seletividade das coletividades.

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O QUE É PARRICÍDIO O ATO DE MATAR ALGUÉM É CONDENÁVEL, E QUANDO ESSE ALGUÉM OCUPA UM LUGAR SINGULAR NA VIDA DAQUELE QUE COMETEU O CRIME, O DESCONFORTO É AINDA MAIOR. ESSE É O CASO DO PARRICÍDIO, TERMO UTILIZADO PARA O HOMICÍDIO PRATICADO PELO FILHO OU FILHA CONTRA O PAI OU A MÃE.

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Fotodivulgação: Flickr-cbamber85

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CHAMADO DE MATRICIDA O FILHO (A) QUE EXECUTA A SUA MÃE, E PATRICIDA O FILHO (A) QUE EXECUTA O SEU PAI. A MORTE DO PAI OU DA MÃE PELAS MÃOS DE UM FILHO FELIZMENTE É UMA REALIDADE QUE ACONTECE COM POUCA FREQUÊNCIA, SOMENTE EM 2% DOS HOMICÍDIOS (HEIDE, 2013; GOMIDE, 2010; PALERMO, 2010). ENTRETANTO, INEVITAVELMENTE CHOCA E CAUSA REPULSA, POIS CONFRONTA A IDEIA NATURAL SOBRE A ORDENAÇÃO NORMATIVA DA CONDUTA HUMANA. O parricídio, muitas vezes, é apontado como o crime mais grave que alguém pode cometer, pois, espera-se que a relação entre pais e filhos seja de amor, carinho e respeito. Como sobreviver se esta relação é inexistente? Como viver bem quando a violência faz parte do contexto? Como apagar da memória cenas de maus tratos e negligências ocorridos no próprio lar? Tem-se a visão que é no seio familiar que se encontra segurança, proteção e harmonia, no entanto, isso nem sempre é a realidade. É certo que a família tem um papel de extrema importância para o desenvolvimento do indivíduo, devido às influências nas atitudes e comportamentos dos filhos por meio das práticas educativas implementadas. Para além dessas influências, é o primeiro e o mais importante contexto de socialização que a criança conhece (Bronfenbrenner, 1986). Entretanto, a contribuição da família pode assumir duas valências distintas. Por um lado, pode assumir um importante papel de amparo e proteção, por outro lado, pode atuar como um fator de risco. É o que ocorre nas famílias dos parricidas. Onde deveriam ter afeto, carinho, segurança e bem-estar, tiveram suas histórias marcadas por maus-tratos, abusos físicos, psicológicos e negligência. Foram maltratados por quem deveria protegê-los e amá-los. Esses filhos não mataram seu pai ou sua mãe, e sim, seu torturador (Heide, 2011; Gomide, 2010; Myers & Vo, 2012; Teche & Gomide, 2016). Os pais não exerceram suas funções

CRIME - O QUE É PARRICÍDIO?

(paterna ou materna), foram tiranos, fizeram com que o filho tivesse sua infância desperdiçada por gravíssimos abusos físicos e psicológicos, fomentando o rancor. Os filhos foram excessivamente punidos pelos pais, a ponto de não controlarem seus impulsos e cometerem o crime. O parricídio é um crime diferenciado entre os homicídios em geral, maioritariamente ocorre em casa, com armas disponíveis no momento do confronto, o que demonstra não ser um crime premeditado. É considerado, por diversos estudiosos, como crime único. O autor comete o assassinato em defesa de si ou de outro integrante da família e normalmente não tem histórico criminal (Heide & Petee, 2007; Hillbrand, 2010; Gomide, 2010; West & Feldsher, 2010, Teche & Gomide, 2016). O patricídio é mais comum que o matricídio, ou seja, os pais são a maioria das vítimas do parricídio. E é predominantemente cometido por filhos homens (Heide, 2011; Marleau et al., 2003; Ferreira, 2010; Shon & Roberts, 2010; West & Feldsher, 2010; Myers & Vo, 2012; Gomide et al., 2013, Teche & Gomide, 2016). Em 246 casos de parricídio analisados por Gomide et al. (2013), no Brasil, foram encontrados 71% de crimes contra os pais, 25% contra as mães e 4% contra ambos; sendo que 86% dos crimes foram cometidos por homens e 14% por mulheres. Estatísticas essas similares às encontradas por Marleau (2002), Boots e Heide (2003) e Shon e Roberts (2010). Matricídios ocorrem com maior frequência quando o autor do crime é portador de esquizofrenia (Bourget et al., 2007; Schug, 2011; Ogunwale & Abayomi, 2012). Normalmente, as mães são responsáveis pela medicação que muitas vezes acontece de forma forçada, e o filho pode então desenvolver manias de perseguição ou ideias delirantes e cometer o assassinato (Byoung et al., 2012). O parricídio, em geral, é cometido com muita violência, indicando assim, uma raiva profunda. É como se o autor, por meio daquela ação, colocasse um ponto final a algo que lhe causava muita dor e sofrimento. Sentem-se aliviados após a ação. Alguns para livrarem-se do corpo da vítima,

“O parricídio é um crime diferenciado entre os homicídios em geral, maioritariamente ocorre em casa, com armas disponíveis no momento do confronto, o que demonstra não ser um crime premeditado.”

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enterram-no. A partir das histórias dos parricidas, é possível compreender que a tragédia é decorrência de longos anos de conflitos crônicos (Heide,1993). Normalmente, há uma evolução dos abusos em relação à frequência e intensidade, até chegar ao ponto mais elevado da violência, que é o assassinato. Gomide e cols. (2013) encontraram diversos motivos para o parricídio relatados na mídia: abusos, maus-tratos, defesa da mãe e/ou irmãos, legítima defesa, discussão, dinheiro, drogas, problemas mentais, depressão, “bebedeira”. A maioria dos motivos relatados nos jornais podem ser considerados banais, sendo 35,6% por discussões, 21,8% por problemas mentais ou psicológicos, 13,3% em defesa da mãe ou familiares, 6,8% por xingamentos, 4,45% por vingança ou autoritarismo, 8,9% por maus-tratos e legítima defesa e 9,31% por questões financeiras. Porém, as autoras destacam que os jornais não têm acesso aos verdadeiros determinantes desse crime. A literatura aponta características comuns nas histórias dos filhos que mataram os pais: família desestruturada, ambiente familiar violento, ausência da figura paterna, jovens socialmente isolados, abuso de substâncias, pais dependentes químicos, abuso físico, psicológico e sexual (Ferreira, 2010; Gomide, 2010; West & Feldsher, 2010; Heide, 2013; Teche & Gomide, 2016). Shon e Roberts (2010) exploraram arquivos de parricídio seguidos de assassinato em massa e suicídio nos EUA, os resultados indicaram que parricídios seguidos por assassinatos em massa e suicídios surgiram de uma situação de conflito intrafamiliar intenso e de forma espontânea, ganhando força à medida que o conflito se expandia. Os arquivos mostraram que os assassinatos pós-parricídio aconteceram em casa, começaram por uma discussão que evoluiu para um confronto físico. Os parricidas utilizaram a arma disponível no momento e mataram o principal oponente (pai ou mãe), e aqueles que tentaram intervir em defesa da vítima, tornaram-se alvos dos ataques

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“De acordo com Nurco e Lerner (1996), as experiências vividas por crianças e adolescentes no contexto familiar têm fortes influências no comportamento delinquente na fase adulta.”

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seguintes. Segundo Heide (2011), nos parricídios com múltiplas vítimas o agressor, tanto adulto quanto jovem, não agiu sozinho. De acordo com Nurco e Lerner (1996), as experiências vividas por crianças e adolescentes no contexto familiar, têm fortes influências no comportamento delinquente na fase adulta. Os autores afirmam que a dependência de drogas está ligada à deficiência dos cuidados e das relações da figura paterna no contexto familiar. Garbarino (1999) afirma que ter sido vítima de abuso aumentam as chances de um jovem cometer um homicídio. Embora poucos menores vítimas de abuso cometam o parricídio, são mais vulneráveis a desenvolverem comportamentos antissociais do que os filhos que recebem um tratamento afetuoso pelos pais (Moore, 1987). Quando se fala em filhos que mataram os pais, logo vem a pergunta: “E o caso Suzane Richthofen?” Casoy (2006) acompanhou do início ao fim as investigações policiais e escreveu a história do caso Richthofen. Os depoimentos de Suzane prestados à polícia, revelaram um desentendimento familiar crônico. Filha de pais alcoólatras, que a abusavam física e psicologicamente, e que controlavam inclusive seu relacionamento amoroso. Os pais prometiam deserdar a filha, caso ela persistisse com o namoro. Espancavam a filha na frente do namorado. O pai em várias ocasiões ameaçou bater no futuro genro. Num dado momento, o qual era a terceira vez em que a polícia havia sido acionada anonimamente para atender uma situação de briga na casa da família Richthofen, o pai de Suzane disse aos policiais “Qualquer dia desses ainda quebro esse moleque!” (p. 65). Essas informações não são facilmente acessadas pela sociedade. Tem-se uma visão romantizada da figura materna e paterna, de que os pais geraram, cuidaram, educaram e deram tanto amor, para, em um piscar de olhos, o filho desrespeitar e tirar sua vida de uma forma tão trágica. Quando na maioria dos casos não é o que ocorre. Pinheiro (2011) descreve em sua tese de doutorado, um parricida que relata ter matado o pai para libertar-se da pressão que este exercia sobre ele. O pai era agressivo e mal-humorado, não conversava com os filhos. Queria que ele estudasse Medicina e ele escolheu Agronomia, o que gerou mais conflitos. Em uma ocasião, o pai contratou um rapaz para agredi-lo. Ele ficou sabendo. “Senti ódio mortal do meu pai”. O pai, um tempo depois, ameaçou deserdar os filhos. Ele, já casado, tinha sua família, matou o pai em defesa das irmãs.“Após matá-lo parecia que eu estava livre. Me senti livre da angústia que sentia” (p. 72). Num dos casos descritos por Ferreira (2010), a filha matou o pai que atacou sua mãe com um facão, para defender a mãe, a filha golpeou a

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cabeça do pai com uma barra de ferro. O pai era alcoólatra e usuário de drogas, tinha passagem na polícia por roubo e era violento com todos os familiares. Um caso noticiado pela mídia brasileira, o “Caso Severina”, descreve a história de uma senhora, vítima de abuso sexual, físico, psicológico e negligência, que encomendou a morte de seu pai de 65 anos, com quem vivia maritalmente e teve doze filhos, sendo cinco sobreviventes. Severina foi levada a julgamento e absolvida pela Justiça. Nesse caso, o Sistema de Justiça Criminal reconheceu a situação de vítima de Severina, em virtude de todos os abusos sofridos por ela. Severina havia procurado a justiça diversas vezes e nada foi feito. Segundo o promotor do caso, “Severina foi vítima de mais de cinco mil crimes não julgados ou investigados e que consumiram 35 anos de sua vida” (Wanderley, 2011). Gomide (2010) relata o caso de um adolescente que matou a mãe a facadas. Foi vítima de abuso físico, psicológico, sexual e negligência. Era espancado pela mãe, inclusive enquanto dormia. Ela manipulava seus órgãos genitais durante o banho e dava beijo de língua. Aos 12 anos, ele assistiu,

escondido, a um filme pornográfico pela primeira vez e percebeu que as cenas do filme eram similares às que fazia com sua mãe. Sentiu nojo e ódio. Desde então impedia que ela o tocasse. O relacionamento ficou ainda mais agressivo a partir desse rompimento. No dia do crime, ela descascando uma fruta, pediu um beijo e ele negou. Ela deu um tapa na cara do filho, que naquele momento tirou a faca de sua mão e desferiu-lhe golpes. Por trás da dramaticidade dos casos acompanhados por Teche e Gomide (2016), também foram desvelados maus-tratos, negligência e conflitos crônicos. Em um dos casos, o filho matou o pai e sentiu-se aliviado após o crime. Foi espancado desde pequeno pelo pai, o qual era alcoólatra e violento com toda a família. Frequentemente via o pai agarrar a mãe pelos cabelos e esfregar o rosto dela na parede. Não gostava de se lembrar dessa cena, porque ela saía com o rosto sangrando. Era obrigado a trabalhar juntamente com sua mãe e seus irmãos. O pai não trabalhava, mas exigia que lhe trouxessem dinheiro. Aos treze anos presenciou o pai espancar sua mãe, que veio a falecer três dias após as agressões. O outro caso,

“Num dos casos descritos por Ferreira (2010), a filha matou o pai que atacou sua mãe com um facão, para defender a mãe, a filha golpeou a cabeça do pai com uma barra de ferro.”

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um matricida, que teve uma relação bastante conflituosa com a mãe. Foi mãe solteira, quando o pai soube da gravidez, abandonou-a. O matricida morou com a avó materna até seus oito anos de idade. A avó era rígida e batia por qualquer motivo. Aos 11 anos foi morar com sua mãe. Quase não a via. Ela saia cedo para trabalhar, quando chegava, ele já estava dormindo. Sentia falta de atenção e carinho. A mãe o abusava física e psicologicamente. Era punitiva e fazia restrição de afeto e atenção. Frequentemente ficava dias sem conversar com o filho. Os conflitos pioraram com o tempo. Os filhos, ao crescerem, criam seus próprios ideais, interesses e costumes, que frequentemente entram em atrito com os valores, pensamentos e regras impostas pelos pais, isso, costumeiramente, gera conflitos complexos, difíceis de serem resolvidos. Há uma grande tendência dos pais prestarem mais atenção nos comportamentos que estão em desacordo com as regras

preestabelecidas por eles, e na tentativa de sanarem tais comportamentos, os pais utilizam-se de formas punitivas, observam Del Prette e Del Prette (2010). A agressão física e verbal são frequentes, porém pouco eficazes, pois o comportamento pode cessar apenas naquele momento, e ainda, gerar mágoas profundas, bem como, passar a ideia de que a criança, para resolver seus conflitos precisa utilizar-se de estratégias agressivas ou revidar as agressões. As crianças maltratadas pelos pais vivem uma sensação de perigo e medo constante, ficam preparadas para o próximo episódio de abuso, mantendo-se em estado de alerta emocional. Esse estado de alerta excessivo pode ser um fator de risco para o comportamento agressivo. Os traumas que ocorrem na infância e na adolescência poderão afetar os subsistemas cerebrais, e influenciar nas futuras avaliações de perigos e respostas frente a qualquer estímulo que seja percebido como

“A agressão física e verbal são frequentes, porém pouco eficazes, pois o comportamento pode cessar apenas naquele momento, e ainda, gerar mágoas profundas, bem como, passar a ideia de que a criança, para resolver seus conflitos precisa utilizar-se de estratégias agressivas ou revidar as agressões.”

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“Os traumas que ocorrem na infância e na adolescência poderão afetar os subsistemas cerebrais e influenciar nas futuras avaliações de perigos e respostas frente a qualquer estímulo que seja percebido como ameaça.”

ameaça. Quanto mais ameaçado ele se sentir, mais comportamentos violentos terá, devido às capacidades de regulação cerebral e aos mecanismos em face do estresse, agindo de maneira impulsiva e muitas vezes agressiva. Frequentemente, os meios de comunicação social vêm acompanhados de discursos fortemente negativos em relação aos parricidas e positivos em relação às vítimas, até mesmo pejorativos, tais como “o filho usuário de drogas matou o pai, um trabalhador, bom caráter”; “coitadinho desse filho, é um santinho... se ele fez isso com o próprio pai ou própria mãe, o que será capaz de fazer para outra pessoa?”. Infelizmente não aparecem as verdadeiras histórias desses agressores, que na realidade, foram vítimas a vida inteira, sem repertório alternativo para colocar um ponto final aos seus sofrimentos. O sentimento de terror que o homicídio de um filho contra o pai causa na sociedade, está relacionado a idealização romantizada de que no ambiente familiar encontra-se proteção e confiança. No entanto, em muitos casos, os conflitos e as mais diversas formas de violência, sejam elas

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físicas e/ou psicológicas, estão instaladas no interior dessas relações. É importante ressaltar que o abuso e os maus tratos na infância, por si só, pode não ser um fator determinante para o parricídio, mas a frequência e a intensidade que ocorrem podem desencadear tal tragédia. Essa frase define muito bem o contexto do parricídio: “Do rio que tudo arrasta se diz violento, porém ninguém diz, violentas as margens que o comprimem”, Brecht. * Ana Teche é doutoranda em Psicologia Clínica no ISPA- Instituto Universitário – Lisboa, PT; Mestre em Psicologia Forense pela Universidade Tuiuti do Paraná; Pós-graduada em Neuropsicologia Clínica e Intervenção Neuropsicológica pelo Instituto Português de Psicologia – Lisboa, PT; Psicóloga graduada pela Faculdade Evangélica do Paraná.  e-mail: [email protected]. ** Paula Gomide é doutora e mestre em Psicologia Experimental (USP); Psicóloga (UEL); Professora aposentada da UFPR; Coordenadora do Programa de Mestrado da Universidade Tuiuti do Paraná; Autora dos livros: Menor Infrator a caminho de um novo tempo (Juruá, 1990); Pais Presentes Pais Ausentes: regras e limites (Vozes, 2004) e Inventário de Estilos Parentais: Manual de aplicação (Vozes, 2006); Organizadora do livro Comportamento Moral (2010).

REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL

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DEPRESSÃO PÓS-PARTO, PSICOSE PUERPERAL E INFANTICÍDIO ENTRE OS TRANSTORNOS EMOCIONAIS NAS MULHERES NO ESTADO PÓSPARTO, PODEM SER ENFATIZADOS MELANCOLIA DA MATERNIDADE (BABY BLUES), DEPRESSÃO PÓS-PARTO E PSICOSE PUERPERAL. A PRIMEIRA É UM QUADRO TRANSITÓRIO QUE MARCA O FIM DA GRAVIDEZ, JÁ A DEPRESSÃO PÓS-PARTO É MAIS SEVERA, PODENDO DURAR ATÉ DOIS ANOS. POR FIM, NA PSICOSE PUERPERAL A DEPRESSÃO É ACOMPANHADA DE DELÍRIOS E CERTA TENDÊNCIA À AGRESSIVIDADE, PRINCIPALMENTE EM RELAÇÃO À CRIANÇA.

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DEPRESSÃO PÓS-PARTO OCORRE NAS PRIMEIRAS QUATRO SEMANAS APÓS O PARTO. É UM MAL QUE ATINGE 10% A 15% DAS MULHERES E TEM RISCO AUMENTADO EM 25 A 50% NAS MULHERES COM EPISÓDIO DE DEPRESSÃO MAIOR ANTERIOR, SENDO QUE 1% DESENVOLVE A CHAMADA PSICOSE PUERPERAL, QUANDO A MULHER SOFRE DE ALUCINAÇÕES E PODE CHEGAR AO EXTREMO DE MATAR O PRÓPRIO FILHO. A mulher com depressão pós-parto apresenta um distúrbio de humor de grau moderado a severo, de caráter multifatorial, clinicamente identificado como um episódio depressivo. Segundo estudos científicos as mulheres têm uma probabilidade duas vezes maior de terem depressão, principalmente durante a vida reprodutiva e nos períodos de oscilações hormonais como o pré-menstrual, o pós-parto e a perimenopausa, que é o período ao redor da menopausa, caracterizado pelas oscilações dos níveis hormonais e sintomas físicos e psíquicos como ondas de calor, insônia, tristeza e irritabilidade.

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É importante estabelecer a diferença entre tristeza e depressão pós-parto. A tristeza pós-parto é quase fisiológica. Segundo as estatísticas, de 50% a 80% das mulheres apresentam certa tristeza e irritabilidade, que têm início em geral no terceiro dia depois do parto, dura uma semana a quinze dias no máximo e desaparece espontaneamente. Já a depressão pós-parto começa algumas semanas depois do nascimento da criança e deixa a mulher incapacitada e com dificuldade de realizar as tarefas do dia a dia. Dentre os eventuais transtornos emocionais nas mulheres no estado puerperal (estado após o parto, pelo qual passam todas as mulheres, quando o corpo ainda não voltou às suas condições normais e que pode prolongarse de 40 a até 60 dias após o nascimento do bebê), podem ser enfatizados melancolia da maternidade (baby blues), depressão pós-parto e psicose puerperal. A melancolia da maternidade (baby blues) é um quadro transitório benigno que remite sem necessidade de intervenção médica nos primeiros quatro a dez dias do pós-parto, em que a mulher necessita de orientação e amparo. Afeta sobremaneira as primíparas e se caracteriza por um estado de fragilidade e hiperemotividade. O choro e a tristeza são acompanhados por sentimentos de falta de

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MATERNIDADE - DEPRESSÃO PÓS-PARTO

“Dentre os eventuais transtornos emocionais nas mulheres no estado puerperal (...), podem ser enfatizados melancolia da maternidade (baby blues), depressão pós-parto e psicose puerperal.”

confiança e incapacidade para cuidar do bebê. É uma angústia, muitas vezes mantida em segredo, porque parece não fazer sentido. Corresponde a uma etapa de reconhecimento mútuo entre a mãe e o bebê. É o tempo necessário para a mãe compreender que o bebê é um ser separado dela e marca o fim da gravidez psíquica. A depressão pós-parto pode iniciar na primeira semana após o parto e pode durar até dois anos. Caracteriza-se pela presença de um conjunto de sintomas que prejudicam a relação mãe-bebê. Desencadeia um quadro depressivo acompanhado de sentimentos de incapacidade de cuidar do filho e dificuldades para enfrentar a nova configuração familiar. A sintomatologia típica inclui sentimentos de culpa, transtornos do sono, flutuações de humor com grande tendência a tristeza e ausência de sintomas psicóticos. A psicose puerperal é uma síndrome com características de depressão, delírios e pensamentos da mãe sobre ferir o bebê ou a si mesma. Assemelha-se à depressão pós-parto, porém faz com que a mulher desenvolva certa tendência à agressividade, principalmente em relação à criança. A mãe pode manter delírios de perseguição, medo excessivo de magoar o bebê e sentimentos de estar a enlouquecer e nos casos mais graves ocorrem inclusive fantasias homicidas em relação à criança, as quais, em situação extrema, podem chegar ao infanticídio. (Segundo o Código Penal, infanticídio é “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”.) O infanticídio é assim conceituado por se tratar de um crime onde a própria mãe tira a vida do recém-nascido estando em estado mental alterado, não sendo capaz de se responsabilizar pelos próprios atos. Enquanto a depressão pós-parto gera uma sensação de desleixo e apatia, levando a mãe a não ter

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vontade de cuidar de si e muito menos da criança, a psicose puerperal, é uma manifestação psicopatológica importante, que necessita de cuidados especiais em relação a possíveis condutas suicidas, condutas de agressões e até morte da criança. A psicose puerperal surge, normalmente, no primeiro período pós-parto de uma mulher, com duração variável de semanas a meses. A mulher sofre de confusão mental, alucinações e mudanças rápidas de humor, passando da euforia para a depressão, podendo chegar a ser bastante agressiva com o filho e cogitar a possibilidade de infanticídio, ou seja, de matar ou facilitar a morte do próprio filho recém-nascido. A mãe portadora deste distúrbio mantém um estado de delírio permanente. Os cuidados com a criança devem ser feitos por alguém da família, que possa estar presente. O marido deve ter atenção redobrada à esposa.

SINTOMAS O primeiro sintoma é a tristeza que não está relacionada só com o nascimento da criança. Não está restrita ao fato de não se considerar boa mãe nem suficientemente capaz para cuidar do bebê. A tristeza permeia outros contextos de sua vida. Outros sintomas são a sonolência, a falta de energia durante o dia, o desinteresse pelo marido, o desejo sexual que não retorna e as alterações do apetite. A ansiedade também faz parte do quadro de depressão pós-parto. A mulher pode ter ataques de pânico sem ser portadora desse transtorno ou pode desenvolver comportamentos obsessivos em relação à criança, como agasalhá-la demais ou verificar a cada instante se ela está respirando. A depressão pós-parto é diagnosticada quando

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a paciente manifesta pelo menos cinco dos seguintes sintomas ao mesmo tempo, por mais de duas semanas: fadiga, desânimo, distúrbio do sono e apetite, choro incontrolável, desinteresse pelo bebê, medo de fazer mal ao bebê ou a si mesma, variações de humor, culpa excessiva, preguiça, confusão mental, tristeza durante a maior parte do dia, interesse reduzido em todas as atividades, agitação, autoestima muito baixa, pouca capacidade de concentração, pensamentos sobre suicídio ou morte. Dentre os sintomas mais comuns destacam-se: humor depressivo com profunda tristeza, um sentimento de vazio, ausência de prazer nas atividades diárias, fadiga, instabilidade emocional e irritabilidade, alterações da concentração e do pensamento, sentimentos e ideias suicidas.

CAUSAS A presença de conflitos emocionais está associada a fatores fisiológicos e emocionais e à situações de vida da mulher, como estresse, dificuldades entre o casal, pouco suporte familiar, gravidez indesejada, etc. Entre as causas possíveis destacam-se hipóteses biológicas (alteração das concentrações hormonais); hipóteses relacionadas que se referem às relações do indivíduo com a família quer no passado, quer no presente; hipóteses psicológicas, com predisposição prévia para perturbação depressiva ou dificuldades experienciadas durante a gravidez, como ansiedades ou dúvidas em prosseguir a gravidez. Recentemente a importância do bebê tem sido posta em evidência, tendo surgido um modelo explicativo inovador que assenta nas dificuldades temperamentais do bebê como fator de estresse, nas complicações de saúde relativas ao bebê e na percepção que a mãe tem do comportamento deste. A importância dos fatores sócio econômicos é ambígua. Do ponto de vista psicodinâmico, o nascimento da criança representa o rompimento da relação simbiótica entre o bebé e a mãe. Esse processo de separação pode desencadear na mãe vivências depressivas e psicóticas, reativadas por conflitos e lutos mal elaborados da infância. Nesse momento, a mãe precisa desenvolver um vínculo afetivo, que lhe permitirá identificar-se com a criança, colocando-se no lugar dela e imaginando as necessidades da criança. O parto envolve a separação de dois organismos que estavam vivendo juntos em uma relação simbiótica de total dependência e permanente contato íntimo. Ao nascer, a criança encarrega-se de uma variedade de funções fisiológicas que até então eram cumpridas pela mãe, como a respiração, a alimentação e outras. A mãe, que se adaptara ao estado de gravidez e incorporara o feto no seu esquema corporal, deverá passar por um novo processo de ajustamento, retornando a situação de não gravidez. No momento do parto, há na mulher um

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sentimento de perda e de esvaziamento de partes importantes de si mesma e medo do desconhecido. Já a etapa do puerpério é caracterizada pela dualidade entre a situação do perdido, gravidez, e do adquirido, o bebê. Segundo a perspectiva psicanalítica, o conflito edipiano materno é ativado com o nascimento do bebê. Nesse sentido, a maternidade é compreendida como um resgate e conquista da identidade feminina, sendo o bebê considerado um representante do falo paterno. Quando a mãe dá à luz uma criança do sexo feminino, revive sua história em relação à própria mãe de forma mais intensa, ocorrendo sentimentos ambivalentes, resultantes das dificuldades da elaboração da própria identidade feminina materna. A perspectiva psicanalítica sugere que após o parto a mulher tem de realizar o luto de uma série de experiências presentes, nomeadamente o luto do filho imaginário, ideal (expectativas) e experiências passadas, como luto de anteriores experiências de separação com a mãe, ela identifica-se com o bebê e revive através dele a relação com a mãe. Na psicose e na depressão pós-parto a identidade materna é difusa e enfraquecida, devido a dificuldades e conflitos vividos em sua experiência anterior com a própria mãe. A depressão pós-parto é um sinal de que a mãe não está a realizar convenientemente o trabalho psicológico do pós-parto, que consiste em aceitar que o seu filho não é tão especial como imaginou, tarefa que pode ser dificultada quando as expectativas da mãe são quebradas (p. ex.: sexo, temperamento do bebê, aparência física). Como principais fatores de risco devemos apontar para pessoas com histórico pessoal ou familiar de transtorno bipolar do humor, episódio prévio de “O primeiro sintoma é a tristeza que não está relacionada só com o nascimento da criança. Não está restrita ao fato de não se considerar boa mãe nem suficientemente capaz para cuidar do bebê.”

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psicose (p. ex.: em uma gestação anterior), ser primípara (primeiro filho), história psiquiátrica pregressa, fatores estressantes socieconômicos.

TRATAMENTO O tratamento é diferenciado e individualizado de acordo com a gravidade clínica. A pessoa que sofre com essa depressão, geralmente está indecisa, de tal forma que alguém da família tem que tomar decisões, inclusive para começar o tratamento. A primeira opção deverá ser a prevenção. É preciso oferecer educação, psicoterapia de apoio e até medicação quando bem indicada e orientada. Podem ser necessários antidepressivos, que inclusive podem ser dados durante a gravidez e a amamentação. O tratamento deve envolver uma equipe multidisciplinar, com o obstetra, o psiquiatra e o psicólogo. O enfoque é sempre biopsicossocial, como em todos os transtornos mentais. Pais e familiares devem também ser orientados. Nunca se deve esquecer dos aspectos da vida do casal e das próprias expectativas de mudanças da vida social que podem intimidar ou assustar algumas futuras mães. Em casos mais graves, outra hipótese de tratamento é a eletroconvulsoterapia que, segundo estudos médicos, é apontada como muito eficaz para o tratamento de crises psicóticas em mulheres que acabaram de ser mães e que podem ter ideias de suicídio e de infanticídio. Nesse caso, a passagem de uma corrente elétrica pelo cérebro provoca uma convulsão que de acordo com os médicos e investigadores provoca uma espécie de reset no cérebro que melhora a psicose. Embora existam alguns estigmas, devido à imagem associada aos choques elétricos do passado, hoje, a eletroconvulsoterapia, praticada em meio hospitalar, sob anestesia, e num contexto de “sala cirúrgica”, nada tem de bárbaro, permite uma melhoria acentuada e rápida dos doentes deprimidos mais graves, de doentes com esquizofrenia ou depressão catatônica e é, seguramente, o melhor tratamento para todos aqueles com intenção suicidária incoercível. A depressão afeta a pessoa como um todo. Fatores da vida da mulher podem provocar, piorar ou perpetuar a depressão. A culpa por estar deprimida, por sentir-se incapaz de cuidar do bebê, por não conseguir se sentir feliz, deve ser tratada em psicoterapia. A psicoterapia pode ajudar a mulher tanto na prevenção quanto no pós-parto para compreender o que sente e se reorganizar junto ao seu bebê e à família.

CONCLUSÃO A depressão pós-parto traz consequências para o desenvolvimento infantil, alterando a relação mãe-bebê, que, por sua vez, afetará diretamente o desenvolvimento da criança. A depressão pós-parto

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“A depressão pós-parto deve ser tratada e exige apoio integral da família, especialmente do marido que deve dar atenção redobrada e ter uma dose grande de compreensão.”

materna pode apresentar-se, em maior ou menor intensidade, dificultando o estabelecimento de um vínculo afetivo adequado e saudável ao desenvolvimento infantil. O desempenho da função materna afetado pela depressão pode trazer consequências negativas à qualidade da interação mãe-bebê e na capacidade materna de proteger, acolher e estimular seu bebê; tais implicações podem repercutir negativamente no desenvolvimento emocional, social e cognitivo da criança. A depressão pós-parto deve ser tratada e exige apoio integral da família, especialmente do marido que deve dar atenção redobrada e ter uma dose grande de compreensão. Embora tenha um bom prognóstico, não deve ser descuidada pois poderá agravar-se e prejudicar a vida da mulher, do bebê e da família. Quando os sintomas mais graves acometem a puérpera, e esta entra em estado psicótico, o quadro torna-se perigoso, pois representa risco de suicídio e infanticídio. A união de forças entre os profissionais de saúde e da própria família pode transformar esse momento em uma fase em que a mulher se sentirá mais confiante para expressar seus sentimentos, sentindo-se acolhida e ajudada. O tratamento psicológico é muito importante para as gestantes e puérperas para uma gravidez saudável, bem como na prevenção e cura de possíveis problemas psicológicos, inclusive de episódios de suicídio e infanticídio. * Mariagrazia Marini Luwisch é psicóloga clínica e psicoterapeuta. É responsável pelo site www.psico-online.net e pelo blog http://consultoriodepsicologia.blogs.sapo.pt. e-mail: [email protected]. End.: Av. Luís Bivar, 93, 6º E. 1.050-143 – LISBOA-PORT. Tel.: +351 966- 062- 421.

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TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS E RISCO DE INFANTICÍDIO MATERNO DIFERENTES MOTIVOS PODEM LEVAR A MÃE A MATAR SEU PRÓPRIO FILHO. SEGUNDO O PESQUISADOR OBERMAN (2003), HÁ CINCO TIPOS DE INFANTICÍDIO MATERNO.

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INFANTICÍDIO É O HOMICÍDIO DA CRIANÇA NO PRIMEIRO ANO DE VIDA. O INFANTICÍDIO MATERNO É AQUELE COMETIDO PELA MÃE. APESAR DE SER UM ATO CHOCANTE E DIFÍCIL DE SER COMPREENDIDO, ESSE ATO SEMPRE ESTEVE PRESENTE AO LONGO DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE E ENTRE DIVERSAS CULTURAS. Há relatos de infanticídio desde a Pré-História. A história bíblica de Abraão, que oferece seu filho Isaac em sacrifício, é um dos primeiros relatos de caso de tentativa de infanticídio. O infanticídio também está presente na mitologia grega. Eurípides, 431 a.C., descreveu a história de Medeia que mata os dois filhos antes de fugir para Atenas num ato de fria e premeditada vingança em relação ao marido infiel. No Império Romano, o infanticídio era comum e considerado um ato natural e permitido, seja para controle de natalidade, seja para eliminar um bebê indesejado ou com malformações congênitas. Apenas na Idade Média, com a expansão do cristianismo, o infanticídio passou a ser visto como um pecado. Na atualidade, a maioria dos países e culturas compreendem o infanticídio como um crime. Mas ainda há diversidade de entendimento culturais desta prática. Por exemplo, na China e na Índia, há permissibilidade para o infanticídio de bebês do sexo feminino. Também entre a cultura indígena dos ianomâmis, no Brasil, essa também é uma prática lícita. As mães decidem se o bebê deve viver ou não. Diferentes motivos podem levar a mãe a matar seu próprio filho. O pesquisador OBERMAN (2003), após avaliar centenas de casos de infanticídio materno, desenvolveu uma categorização e a subdividiu em cinco tipos: 1) O neonaticídio, em que a mãe mata o recém-nascido logo após o parto, ainda nas suas primeiras 24 horas de vida. Esse tipo de infanticídio tem características próprias e será descrito mais adiante. 2) O infanticídio decorrente de negligência ou descuido. A mãe deixa de prover as necessidades ou segurança da criança, o que culmina com a sua morte. 3) O infanticídio que ocorre durante episódio de violência, castigo ou maltrato com a criança. Nessa situação, nem

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sempre a morte da criança é intencional, mas é resultado de uma longa história de violência. 4) O infanticídio materno em conjunto com o companheiro, em que geralmente reflete um contexto de violência doméstica ou abuso da criança. A mulher muitas vezes é também vítima de violência do companheiro e falha em dar proteção à criança. 5) O infanticídio intencional, no qual a mulher mata propositalmente seu filho. Nessa última categoria, apesar de não abranger a maioria dos casos, se inclui as mulheres que sofrem de algum transtorno mental. O emblemático caso americano de Andrea Yates ilustra a condição. Andrea Yates matou seus cinco filhos pequenos, afogando-os na banheira de sua casa, no Texas, em 2001. Foi inicialmente condenada a prisão perpétua e depois da revisão do caso foi inocentada devido insanidade. Andrea era casada, era enfermeira, tinha 32 anos. Ela e o esposo pretendiam ter “tantos filhos quanto fosse possível”. Após o nascimento do terceiro filho, apresentou sintomas depressivos, passou a frequentar seita extremista e teve tentativas de suicídio. Após o nascimento do quarto filho, teve diagnóstico de psicose pós-parto, necessitou de internação e tratamento psiquiátrico, sendo recomendado que não tivesse mais filhos. Andrea abandonou tratamento e teve outro bebê. Após o falecimento de seu pai, cerca de três meses após o parto, houve recaída do quadro psiquiátrico. Ela apresentou quadro psicótico, acreditava que os filhos não seriam salvos, que por sua causa iriam para o inferno, ouvia vozes que considerava ser de Satã. Necessitou novamente de internação psiquiátrica, após sua alta, contrariando as recomendações médicas, foi deixada sozinha cuidando das crianças. Ela matou os cinco filhos e ligou para o esposo dizendo “it is time” (já é hora). “Após o parto, ocorrem súbitas alterações nos níveis hormonais que podem refletir no funcionamento mental e tornar esse período da vida uma época vulnerável para o desenvolvimento de transtornos mentais.”

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Ela afirmou que já planejava há muito tempo a morte das crianças, porque “não era uma boa mãe” e “as crianças não estavam se desenvolvendo bem”. Foi inocentada pela corte americana por ter sido considerada sem capacidade de discernir o certo ou errado no momento do crime, sendo encaminhada para internação psiquiátrica.

DEPRESSÃO E PSICOSE PÓS-PARTO O pós-parto é período de vulnerabilidade para o surgimento, agravamento ou reaparecimento de transtornos psiquiátricos. O pós-parto é um período de significativas alterações biológicas, físicas, sociais e emocionais. Isso requer capacidade de adaptação pessoal e interpessoal, especialmente para a mulher que está tendo seu primeiro parto. A grávida e sua família têm grandes expectativas de que o pós-parto será um momento de alegria e realização em virtude da chegada do bebê. Mas este período não é cercado apenas de felicidade, pois é também um período de estresse psíquico e alterações hormonais. A mulher sofre privação de sono, é submetida à sobrecarga de responsabilidade devido aos cuidados do bebê e tem de se adequar às mudanças na dinâmica familiar e as alterações da rotina diária. Após o parto, ocorrem súbitas alterações nos níveis hormonais que podem refletir no funcionamento mental e tornar este período da vida uma época vulnerável para o desenvolvimento de transtornos mentais. O adoecimento mental nessa época traz impacto marcante na qualidade de vida da mulher, interfere nas relações familiares, prejudica a relação mãe-bebê e em casos graves pode culminar com suicídio e/ou infanticídio. Infelizmente, os transtornos mentais no pós-parto são ainda pouco diagnosticados e tratados. A depressão pós-parto é o transtorno afetivo mais comum no pós-parto, tem prevalência de cerca de 13%. Na depressão pós-parto, a mulher começa da apresentar, geralmente alguns dias semana, um quadro de humor deprimido, tristeza ou angústia e perda de prazer ou interesse nas atividades habituais. Além desses sintomas, podem ocorrer alteração significativa no peso, alterações no sono, agitação ou lentificação, fadiga ou perda de energia, sentimento de inutilidade ou culpa excessiva ou inadequada, capacidade diminuída de pensar ou concentrar-se. Esses sintomas perduram por mais de duas semanas, ocorrem na maior parte do dia, quase todos os dias, e representam uma alteração a partir do funcionamento anterior. Além disto, causa sofrimento significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou outras áreas importantes da vida. As mulheres com depressão pós-parto podem apresentar preocupações, ímpetos ou imagens, recorrentes em suas mentes, envolvendo agressão ao bebê. Por exemplo, persistentemente vem em sua mente a cena do bebê morto, ou sangrando, ou machucado.

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Ou mesmo, contra sua vontade, vem em seu pensamento o ímpeto de jogar o bebê no chão, ou cortá-lo, ou afogá-lo. Esses sintomas são chamados pensamentos obsessivos (ou obsessões) e tem como característica invadir a consciência contra a vontade, de forma repetitiva, persistente e estereotipada. São experimentados como intrusivos e inapropriados (ou seja, “egodistônicos”). A mulher tem o sentimento de que o conteúdo da obsessão é estranho, não está dentro de seu próprio controle nem é um tipo de pensamento que ele esperaria ter, mas é capaz de reconhecer como produtos de sua própria mente e não impostos de fora (como em casos de psicose). A mulher percebe as obsessões como excessivas e irracionais. Elas não são meras preocupações com problemas da vida. São acompanhadas de ansiedade ou desconforto acentuados e não estão relacionados a risco de infanticídio. Os pensamentos obsessivos tendem a melhorar com a melhora do quadro depressivo. A identificação das mulheres com depressão pós-parto e o tratamento psiquiátrico são imprescindíveis para a recuperação. A psicose pós-parto é um transtorno mental não muito comum, ocorre em 0,1-0,2% das mulheres no pós -parto, mas é um quadro grave e envolve risco de suicídio e infanticídio. A mulher com psicose pós-parto começa a apresentar sintomas já nos primeiros dias após o parto. Ocorre agitação, insônia, delírios, ideias de grandeza ou perseguição que não correspondem à realidade, desorientação, confusão mental e comportamento desorganizado. Podem aparecer ideias delirantes envolvendo o bebê. Por exemplo, delírios de que o bebê é defeituoso ou está morrendo, de que o bebê tem poderes especiais ou de que o bebê é um deus ou um demônio, de que o bebê não é o seu filho. Em decorrência do quadro delirante, podem estar presentes ideias e planos infanticidas. A mulher com psicose pós-parto, que comete o ato infanticida, muitas vezes, o faz com intuitos altruístas delirantes,

“É comum, nas mulheres que cometem neonaticídio, o comportamento de esconder deliberadamente ou negarem a gestação.”

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para aliviar ou poupar a criança de um mal real ou imaginário, e pode ser seguido de suicídio. A psicose pós-parto é uma emergência psiquiátrica e eventualmente requer hospitalização.

NEONATICÍDIO “Uma mulher de 29 anos foi presa... sob suspeita de matar a filha recém-nascida ao jogá-la dentro de uma sacola de lixo em um terreno baldio, logo após o parto. A criança chegou a ser socorrida, mas não resistiu às fraturas e hemorragia.... Segundo informações da polícia, o caso só foi descoberto porque a mulher passou mal e foi a um hospital. No local, o médico que a atendeu percebeu que ela tinha acabado de ter um filho. Ele chamou a polícia depois que ela negou ter feito parto. Em depoimento, a mãe disse que não sabia que estava grávida e que o parto aconteceu quando ela estava urinando”, Folha de São Paulo, 30/12/2010. O neonaticídio é um crime que dificilmente é cometido por outra pessoa que não seja a mãe. Geralmente são mulheres jovens, solteiras, sem relacionamento com o pai da criança, com baixa condição socieconômica e que residem com os pais. Essas mulheres tiveram seus partos, geralmente sozinhas, em casa ou em banheiro público e tentam de esconder o crime. Comumente elas não têm história de transtornos psiquiátricos e não apresentam sintomas psiquiátricos no momento do crime. É comum, nas mulheres que cometem neonaticídio, o comportamento de esconder deliberadamente ou negarem a gestação. A negação da gestação é a não consciência de que se está gestante a despeito das evidências. Esse fenômeno psíquico difere da dissimulação, que é a atitude voluntária e deliberada de esconder para terceiros a gestação e seus sintomas (MILLER, 2005). A mulher não tem consciência de que está grávida, mesmo diante de exames ultrassonográficos. O ganho de peso não ocorre ou é atribuído a outros motivos, às vezes a mulher continua menstruando e os movimentos fetais são confundidos com gases intestinais. Essas mulheres não fazem pré-natal nem se preparam para a chegada do bebê. Geralmente essas mulheres são surpreendidas pelo trabalho de parto. STRUYE et al. (2013) ressalta que a negação da gravidez geralmente ocorre em mulheres jovens, apresentam características de imaturidade, passividade e dependência. Geralmente vivem em ambiente social pobre em comunicação ou suporte, têm pouca ou nenhuma educação sexual ou compreensão anatômica dos órgãos reprodutivos. É frequente o medo de ser abandonada, punida ou estigmatizada devido à gestação. Os autores descrevem o caso clínico da Sr. D., que teve um bebê sozinha no banheiro de sua casa enquanto seu companheiro e seus outros 3 filhos dormiam. Segundo o relato dela, ela não sabia

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que sabia que estava grávida e ficou em choque e não sabia o que estava acontecendo. Ela pressionou o bebê contra o peito por longo período e quando “voltou a si” percebeu que o bebe tinha morrido. Ela escondeu o corpo do bebê jardim. Como o corpo do bebê foi descoberto ela foi encaminhada para julgamento. Ela era formada em serviço social, de classe média e sem história de transtorno mental. O ambiente familiar era marcado por falta de afetividade e diálogo e o casal não pensava em ter mais filhos. A negação não é uma doença especifica, é considerado em mecanismo mental de defesa diante de uma realidade difícil. Mulheres que apresentam negação da gestação têm alto risco de cometerem neonaticídio. Seja com a atitude ativa de matar o recém-nascido, após o parto, por meio de estrangulamento ou sufocamento, seja abandonando-o. Mulheres abandonam recém-nascidos em latas de lixo, na rua, em sacos plásticos, ou em locais com possibilidade de serem encontrados, como em hospitais. Esses recém-nascidos podem morrer, por sangramento pelo cordão umbilical ou por falta de alimentação ou proteção contra o frio. A natureza do neonaticídio ainda não é bem compreendida. Alguns autores como REYNOLD (1970) e MENDLOWICZ et al. (1999) identificaram a presença de sintomas dissociativos no momento do crime, como despersonalização e amnésia, que se refere à sensação de estar fora de seu próprio corpo e à incapacidade de lembrar detalhes ou sensação de branco no mente. Sintomas dissociativos não ocorrem “Mulheres que apresentem sintomas psicóticos, como alterações de juízo da realidade requerem uma cuidadosa avaliação e devem receber com brevidade tratamento psiquiátrico.”

exclusivamente nas mulheres que cometem neonaticídio e não podem justificar o crime. Esses sintomas podem ocorrem com qualquer mulher no momento do parto e são mecanismos mentais de proteção diante de situações estressantes (ZAMBALDI et al. 2011). O neonaticídio é uma prática que ocorre em todas as culturas, lugares e épocas. É também um comportamento comum entre primatas e animais não primatas. Segundo a teoria evolucionista, a morte da cria pela mãe, em certas circunstâncias, é um comportamento que melhora as possibilidades de procriação futura e perpetuação dos genes. A mãe mata a cria quando, por razões externas, a expectativa de vida daquele filhote é pequena. Nessas condições, a mãe opta por interromper os cuidados ou abandonar a prole e se dedicar a adquirir recursos para se recuperar e ter outras gestações em condições melhores. ANDREA et al. (2012) observa que as mulheres que cometem neonaticídio são jovens, com baixa condição sócio econômica, sem relações conjugais estáveis e geralmente gestantes do primeiro filho. Diferentemente das mulheres que cometem infanticídio, elas tentam esconder o crime e não tem ocorrência de suicídio. Com isso, ele associa o neonaticídio com a teoria de adaptação evolucionista, levanta hipótese de este ser um padrão de comportamento que ocorre como instinto de preservação, onde a morte do recém-nascido propicia a mulher a obter melhores recursos e condições para nova gestação com maior possibilidade de sobrevivência.

PREVENÇÃO A gestação e o pós-parto é uma época que a mulher com frequência procura serviços de saúde, seja para o pré-natal, seja para a avaliação obstétrica ou pediátrica, puericultura e vacinação do bebê. É importante que a equipe de saúde esteja atenta aos aspectos emocionais tanto quanto aos aspectos físicos. A identificação precoce e tratamento dos transtornos mentais no pós-parto é muito importante para a prevenção do infanticídio. Familiares também devem estar sempre alertas para a presença de sintomas psiquiátricos. O encaminhamento para avaliação especializada é recomendado para que haja um diagnóstico precoce. Mulheres que apresentem sintomas psicóticos, como alterações de juízo da realidade requerem uma cuidadosa avaliação e devem receber com brevidade tratamento psiquiátrico. Negligências nos cuidados com o bebê e ideias infanticidas ou suicidas devem sempre ser investigadas. Caso estejam presentes, eventualmente podem ser necessários a internação hospitalar e o afastamento do bebê. * Carla Fonseca Zambaldi é doutora em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento, psiquiatra da Universidade Federal de Pernambuco. ** Amaury Cantilino é psiquiatra e professor da Universidade Federal de Pernambuco, Doutor em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento.

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REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL

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VIOLÊNCIA CONJUGAL:

DISCUTINDO AS ORIGENS, QUESTIONANDO DESTINOS INDEPENDENTEMENTE DO MODO COMO SE APRESENTAM, OS ATOS AGRESSIVOS NO CASAL TRAZEM UM IMPACTO IMPORTANTE PARA TODOS OS ENVOLVIDOS NAQUELE CONTEXTO. DE MODO ESPECIAL, OS FILHOS TORNAM-SE GRANDES ATINGIDOS, POIS CRESCEM EM UM CONTEXTO NO QUAL APRENDEM QUE A VIOLÊNCIA É UM RECURSO ACEITÁVEL PARA A RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS QUE OCORREM NA CONJUGALIDADE.

A

VIOLÊNCIA CONJUGAL TEM SIDO TEMA DE ESTUDO DE MUITOS PESQUISADORES, EM DIFERENTES PARTES DO MUNDO. APESAR DE SER UMA TEMÁTICA AMPLAMENTE DEBATIDA E ABORDADA A PARTIR DE DIVERSAS PERSPECTIVAS, IDENTIFICAM-SE IMPORTANTES DIFICULDADES EM SEU ENFRENTAMENTO E UMA FRAGILIDADE NOS SERVIÇOS DE ATENDIMENTO, DADO A SUA COMPLEXIDADE. AS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA NO CASAL PROMOVEM SOFRIMENTO NÃO APENAS AOS CÔNJUGES, MAS TAMBÉM AOS FILHOS QUE SE INSEREM NO CONTEXTO VIOLENTO, À FAMÍLIA EXTENSA E ÀS RELAÇÕES SOCIAIS QUE ENVOLVEM O CASAL. De modo conceitual, podemos definir a violência conjugal como a ocorrência de qualquer dano físico, psicológico e/ou sexual praticado por, pelo menos, um dos parceiros de uma relação conjugal (Anacleto et al., 2009). Conceitualmente,

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RELAÇÕES - VIOLÊNCIA CONJUGAL

“É comum que as duplas conjugais vivenciem situações recorrentes de xingamentos, humilhações, controle, ciúme descontrolado e não percebam esses comportamentos como violência.”

pode apresentar-se, com maior frequência, sob as formas física, sexual e psicológica, expressando-se de forma isolada ou combinada. No Brasil, a lei que busca coibir a violência contra a mulher (Lei nº 11.340 - Maria da Penha) ainda contempla as violências patrimonial e moral. É possível referir então, que a violência conjugal mostra-se de diferentes formas, nem sempre explícitas e de fácil reconhecimento. Quando manifesta sob a forma física, revela-se nas atitudes agressivas em relação ao parceiro, e pode deixar marcas do corpo (Trindade, 2004). Em sua manifestação sexual, contempla a coerção do cônjuge a uma relação íntima, sob

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o uso da força, pressão psicológica ou chantagem (Straus, Hamby, Boncy-McCoy, & Sugarman, 1996). Já em sua expressão psicológica, é um fenômeno ainda mais complexo, pois ainda que seja comumente encontrada nas relações conjugais, por vezes, é uma violência de difícil reconhecimento, pois pode adquirir características de sutileza, envolvendo os parceiros em uma relação disfuncional (Alvim & Souza, 2005; Miller, 1999). A clínica com casais e os relatos de cônjuges envolvidos em situações de violência mostram que, comumente, o reconhecimento da violência psicológica se dá apenas após a ocorrência da violência física (Alvim & Souza, 2005). É comum que as duplas conjugais vivenciem situações recorrentes de xingamentos, humilhações, controle, ciúme descontrolado e não percebam esses comportamentos como violência. No entanto, mesmo quando somente esta forma de violência está presente na relação, pode ser muito desgastante, sendo, frequentemente, considerada pior do que a violência física, na experiência de muitas pessoas. O fenômeno, em sua manifestação psicológica, é descrito por Hirigoyen (2006) como microviolências, expressas por meio do controle, ciúme patológico, assédio, aviltamento, humilhação, intimidação, indiferença às demandas afetivas e ameaças. Assim, não se trata de quantificar qual a pior expressão da violência, mas compreender a expressão de “violências ‘mais’ ou ‘menos’ visíveis”. Independente do modo como se apresentam, os atos agressivos no casal trazem um impacto importante para todos os envolvidos naquele contexto. De modo especial, os filhos tornam-se grandes atingidos, pois crescem em um contexto no qual aprendem que a violência é um recurso aceitável para resolução de problemas que ocorrem na conjugalidade (Alves et al., 2012; Pinheiro et al., 2012; Santos e Costa, 2004). Diante disso, é preciso compreender os aspectos que ajudam a compor a subjetividade humana. Será que nascemos prontos? Ou nos construímos como sujeitos a partir das experiências de afeto, acolhimento, abandono, negligência, violência (entre outras tantas experiências possíveis) às quais somos submetidos ao longo da vida? De fato, para além dos aspectos genéticos, o ser humano, constitui-se, de maneira primordial, a partir das relações que estabelece com figuras que fornecem apoio e proteção, em especial na infância. Nesse sentido, a família passa a ser uma grande fonte de cuidado, favorecendo o desenvolvimento físico, afetivo e social dos indivíduos. É ela, a família, que serve

RELAÇÕES - VIOLÊNCIA CONJUGAL

também de “laboratório” para experiências nas relações humanas. Assim, muito do que sabemos como ser pai, mãe, esposo ou esposa, provém de modelos que nos são ensinados – ainda que, por vezes, não intencionalmente – por pessoas do núcleo familiar. A partir disso, cabe referir que a herança transgeracional permeia o nosso desenvolvimento e contribui para a perpetuação de experiências da vida familiar. Chamamos “transgeracionais”, os padrões familiares que tendem a se repetir de uma geração a outra (Wagner, 2005). Podem ser legados, mitos, ritos, crenças, valores ou segredos, que se perpetuam através dos anos e acabam por fazer parte da história da família. Entretanto, esses padrões se estabelecem sem que, necessariamente, os envolvidos percebam sua recorrência. Se por um lado, são elementos constitutivos da cultura familiar fornecendo uma percepção de pertencimento; podem, contudo, em situações graves, reforçar a ocorrência de modelos disfuncionais de relação. Diante disso, quando se cresce em um ambiente familiar permeado pela violência (seja ela qual for, e de forma isolada ou combinada), é possível que essa realidade seja naturalizada para essas pessoas. Assim, no futuro, ao se deparem com um cônjuge de comportamento semelhante, essa condição pode ser percebida como “natural”, embora não sem sofrimento. E assim, os parceiros da relação acabam por participar de algum modo desse contexto, contribuindo para a manutenção da violência como uma forma de relacionar-se com o outro. Muitas vezes,

é apenas no trabalho psicoterápico que se abre a possibilidade de compreender as repetições familiares e a herança de padrões de interação disfuncionais, permitindo ao sujeito possibilidades de rompimento de padrões disfuncionais. Se alguém nasce e cresce em um contexto em que pesem relações intrafamiliares violentas (sejam elas agressivas, abusivas e/ou negligentes), é provável que esse alguém seja um adulto marcado pela dor. Entretanto, ainda assim, mesmo com uma história de sofrimento, é possível que esse sujeito acabe por naturalizar esse modelo relacional. Por pior que possa ser, é o modelo reconhecido como “familiar”. Com isso, tende a levar para suas relações futuras os padrões vivenciados na família de origem. Deste modo, aqueles indivíduos que convivem em um ambiente em que ofensas, xingamentos, insultos e empurrões, por exemplo, são parte do modo como se comunicam, tendem a naturalizar esses comportamentos e minimizar a percepção da gravidade de determinadas situações disfuncionais. E, assim, perpetuam-se relações conjugais e/ou familiares de violência. É relevante clarificar que a violência conjugal é mais do que um fenômeno assimétrico, que coloca de um lado o agressor que precisa ser punido e de outro, a vítima que precisa de proteção e cuidados. De modo amplo, posicionamentos feministas apontam o homem e a mulher em posições respectivas de algoz e vítima. Aqui, não estamos negando os aspectos culturais que favorecem essa compreensão. Não se trata de desconsiderar as características de

“E assim, os parceiros da relação acabam por participar de algum modo desse contexto, contribuindo para a manutenção da violência como uma forma de relacionar-se com o outro.”

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RELAÇÕES - VIOLÊNCIA CONJUGAL

gênero que o fenômeno da violência conjugal contempla. É fato que vivemos em uma cultura com papéis, por vezes, rígidos em relação ao feminino e masculino. Por certo, este é um aspecto que contribui para a manutenção do fenômeno da violência conjugal. Contudo, o que fazemos aqui, é ampliar o “zoom” da lente que observa o fenômeno, que busca enxergar a violência entre cônjuges a partir de uma compreensão sistêmica, relacional, que insere homens e mulheres como partícipes de uma relação que acontece, no mínimo, a dois. A clínica psicológica com casais é rica em casos de homens e mulheres que vivenciam situações de violência na relação atual, e que relatam ser uma experiência, em alguma medida, semelhante, à relação vivenciada por seus pais, avós e ou casais próximos em suas famílias de origem. Os relatos dessas pessoas reforçam o quanto, por vezes, o ser humano pode ser refém de uma família disfuncional, que não consegue apresentar aos filhos um modelo mais saudável que possa ser perpetuado nas relações conjugais e familiares futuras. Nesse sentido, ainda são poucas as possibilidades de intervenção com o casal envolvido no contexto violento, a partir de uma compreensão relacional, em que homem e mulher participam, em alguma medida, do estabelecimento e da manutenção da conjugalidade violenta. Estudos nessa direção destacam a relevância de favorecer a qualidade da relação conjugal, como forma de proteger os membros do ambiente familiar. Parece um tanto natural que, ao administrar de modo assertivo os conflitos experienciados pela dupla conjugal, haja uma repercussão positiva e funcional nos demais subsistemas familiares, favorecendo a saúde dos filhos (Mosmann, Zordan & Wagner 2011; Villas Boas, Dessen & Melchiori, 2010). Ao contrário, casais cujos relacionamentos são predominantemente disfuncionais (casos que incluímos os contextos de violência conjugal) apresentam chances aumentadas de perpetuarem um modelo relacional negativo, com diferentes expressões de violência. Ao lançarmos um olhar ampliado para a ocorrência da violência conjugal, percebemos a impossibilidade de tratarmos apenas uma causa ou compreendermos a existência de somente uma origem. Nessa percepção, considera-se a interação de diversos elementos; entre eles: “Os relatos dessas pessoas reforçam o quanto, por vezes, o ser humano pode ser refém de uma família disfuncional, que não consegue apresentar aos filhos um modelo mais saudável que possa ser perpetuado nas relações conjugais e familiares futuras.”

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RELAÇÕES - VIOLÊNCIA CONJUGAL

as características individuais, as relações interpessoais, os aspectos contextuais e a perspectiva temporal, que inclui a transmissão dos padrões vividos nas famílias de origem. Existem estudos, em diferentes partes do mundo (para se ter uma ideia da magnitude do fenômeno), que buscam identificar associações entre a violência no casal e aspectos diversos, como forma de explicar a origem da violência. Características sociodemográficas (Zanoti-Jeronymo, Zaleski, Pinsky, Caetano, Figlie & Laranjeira, 2009), psicopatologias (Boyle, O’Leary, Rosenbaum & Hassett-Walker, 2008), abuso de álcool e outras substâncias (Whiting, Simmons, Havens, Smith & Oka, 2009), baixo suporte social (Banyard & Modeki, 2006) e vivência em ambiente comunitário violento (Koenig, Stephenson, Ahmed, Jejeebhoy & Campbell, 2006), são aspectos apontados por esses estudos e que podem contribuir, em alguma medida, para o fenômeno da violência. Já com relação às consequências do convívio em um contexto familiar violento podem ser as mais diversas e podem revelar-se diferentes para homens e mulheres. De modo amplo, incluem: psicopatologias, transtornos de comportamento, cometimento de atos infracionais e, de modo especial, envolvimento em relacionamentos íntimos violentos na vida adulta (Milner et al., 2010; Noll, Trickett, Harris & Putman, 2009;

Silva, Menezes & Lopes, 2010; Durand, Schraiber, França-Junior & Barros, 2011; Weisbart et al., 2008). Portanto, o que se vê é uma gama de fatores que, com maior ou menor impacto, aumentam a probabilidade da ocorrência de agressões no casal. Contudo, não podemos crer que a experiência de violência nas famílias de origem, por exemplo, se tornará um determinante fatal para a reprodução desse modelo na vida adulta. Atualmente, entende-se que alguns elementos de história de vida podem servir como importantes fatores de proteção à psicopatologia e às relações disfuncionais. Cyrulnik (2005) dedicou-se ao estudo desses elementos, chamados por ele de “tutores de resiliência”, definindo acontecimentos ou pessoas relevantes, percebidos como positivos para o indivíduo, que favoreçam o processo de mudança e abrem a possibilidade de uma constituição relacional mais saudável. Esses tutores podem ser o contato com pessoas significativamente positivas, que forneçam outros modelos de identificação, assim como intervenções psicológicas, que possibilitem a ressignificação das vivências dolorosas. Romper padrões vivenciados durante anos, em fases de grande impacto para nossa constituição como sujeitos, não parece uma tarefa fácil. Ao mesmo tempo em que temos na família, um modelo violento e pouco saudável,

“Ao lançarmos um olhar ampliado para a ocorrência da violência conjugal, percebemos a impossibilidade de tratarmos apenas uma causa ou compreendermos a existência de somente uma origem.”

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RELAÇÕES - VIOLÊNCIA CONJUGAL

“Ainda que carreguemos uma pesada bagagem familiar (positiva e negativa), importante para o reconhecimento de quem somos e de onde viemos, esta não pode se tornar, unicamente, um fardo de sofrimento. ”

este modelo nos é apresentado por pessoas com quem temos um vínculo de proximidade e afeto, dificultando o distanciamento dessa forma de se relacionar. A busca por auxílio profissional qualificado pode clarificar a existência dos padrões familiares e inserir a possibilidade de fazer diferente, rompendo com padrões relacionais disfuncionais; permitindo, assim, novos modelos de relações afetivas. Ainda que carreguemos uma pesada bagagem familiar (positiva e negativa), importante para o reconhecimento de quem somos e de onde viemos, esta não pode tornar-se, unicamente, um fardo de sofrimento. A partir disso, destaca-se a relevância da realização de processos psicoterápicos com

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sujeitos e/ou com casais em situação de violência. Essas intervenções podem significar para essas pessoas, continência e acolhimento; ao mesmo tempo em que podem expressar-se como potenciais para restaurar as relações familiares e favorecer o rompimento do ciclo de violência conjugal através das gerações. * Patrícia Manozzo Colossi é psicóloga, mestre e doutoranda em Psicologia Clínica, Especialista em Psicoterapia de Casais e Famílias, Docente do Curso de Psicologia das Faculdades Integradas de Taquara-FACCAT/RS. e-mail: [email protected]. ** Aline Riboli Marasca é psicóloga, especialista em Psicodiagnóstico e Avaliação Psicológica. e-mail: aline.marasca@ gmail.com.

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Fotodivulgação: Flickr-QuinnDombrowski

REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL

REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL

NEONATICÍDIO E ABORTO:

PARADOXOS DO AMOR MATERNO NO LAÇO SOCIAL NO ÂMBITO DA MATERNIDADE, OS BEBÊS VARIAM DE DEJETO A PRECIOSIDADE. A EXISTÊNCIA DO ORGANISMO NÃO É GARANTIA DA EXISTÊNCIA DO SUJEITO; A EXISTÊNCIA DO SUJEITO PASSA PELA ORDEM SIMBÓLICA QUE O ANTECEDE E LHE OFERTA UM LUGAR NA TRAMA SOCIAL. EMBORA TENHAMOS O ORGANISMO DE UM BEBÊ, COM SEU POTENCIAL DE SUJEITO, EM CULTURAS NAS QUAIS O INFANTICÍDIO NÃO É CRIME, O LUGAR QUE LHE CABE NESTAS SOCIEDADES É O DE DEJETO, DE RISCO PARA TODOS.

O

INFANTICÍDIO NÃO É CRIME. PELO MENOS NÃO O É EM TODAS AS CULTURAS. TAMPOUCO O É O ASSASSINATO, UMA VEZ QUE TEMOS O ASSASSINATO AMPARADO POR LEI NA FORMA DA PENA DE MORTE. Portanto, ao entrar no tema, cabe lembrar que a morte eletiva de recém-nascido é normatizada, como todo ato humano, por convenções sociais que, por sua vez, variam nas culturas e ao longo da história (FORTES,1940; OLIVEIRA,1959; CROCKER,1985; LIDORIO,2000). Se a reprodução é a reprodução do tecido social, condição para a perpetuação da espécie, qualquer nascimento que coloque em risco o grupo de origem será evitado ou eliminado. No caso das culturas de subsistência, a chegada de um bebê que tenha qualquer anomalia que o impeça vir a ser independente e prestativo, a chegada de múltiplos, ou de um bebê muito próximo do irmão anterior, coloca em risco esta subsistência. A contracepção, sempre precária nestes grupos, e o infanticídio são mais seguros, uma vez que o aborto é muito arriscado para a gestante. O infanticídio, nunca simples e sem ônus para o sujeito que o impetra, mesmo quando não considerado criminoso, é muitas vezes incompreensível aos nossos olhos. Para nos aproximarmos dele, é importante ampliarmos nossa perspectiva problematizando o lugar do bebê.

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1 - Neonaticídio designa a morte do recém-nascido provocada até 14 horas após o parto.

TABU - NEONATICÍDIO E ABORTO

“O feto e o bebê recém-nascido são, a princípio, seres biológicos com potencial, desde que sua saúde permita, para se tornarem sujeitos.”

O feto e o bebê recém-nascido são, a princípio, seres biológicos com potencial, desde que sua saúde permita, para se tornarem sujeitos. Em útero e ao acabar de nascer, o bebê já é comprovadamente cheio de competências (SOULÉ & CYRULNIK, 1999) para estabelecer relações com os genitores e nasce já com certo cabedal de vivências (PIONTELLE, 1995) que não pode ser negado. A voz dos pais, o cheiro da mãe, a preferência pelo gosto do leite próximo ao gosto do líquido amniótico, a avidez no olhar o rosto humano logo ao nascer são algumas delas. Essas competências, no entanto, verdadeiramente fascinantes, não garantem a constituição psíquica do bebê, que se dá à posteriori. As vivências em útero não estão atravessadas pelo registro simbólico, condição para o advento do sujeito humano. De forma que uma descarga de adrenalina vivida em útero, por exemplo, embora seja perceptível para o feto e até possa criar traço mnêmico, não significa nada, ou seja, não tem valor significante, podendo decorrer tanto de uma cena de violência, quanto de um orgasmo vivido pela mãe. A partir do nascimento, com as novas interações corporais e a nomeação das manifestações do

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bebê (interpretações do choro como demanda e não como sons aleatórios), os significados passam a ser encarnados nele e, com sorte, o sujeito advirá. Queremos com isso salientar que a existência do organismo não é garantia da existência do sujeito e que, a existência do sujeito passa pela ordem simbólica que o antecede e lhe oferta um lugar na trama social. O ser humano, nesse sentido, está necessariamente condenado a nascer duas vezes, a primeira como organismo, a segunda como sujeito no interior de uma ordem simbólica que o reconheça e onde ele se faça reconhecer como tal. Embora tenhamos o organismo de um bebê, com seu potencial de sujeito, nos casos acima citados das culturas onde o infanticídio não é crime, o lugar que lhe cabe nestas sociedades é o de dejeto, de risco para todos. Não havendo lugar simbólico para esse organismo, não haverá filho e tampouco, adoção de filho. Com isso, queremos apontar para o fato de que todo o bebê humano requer ser adotado pelo seu grupo pertencimento, sendo filho natural ou não, uma vez que, como dissemos a simples existência orgânica não garante esta assunção. Trataremos, então, das ideias de reconhecimento

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e conhecimento (IACONELLI, 2015) utilizadas aqui para distinguir duas posições no contato com o organismo do bebê. A primeira, de reconhecimento, implica dois momentos distintos: um primeiro momento, no qual alguém reconhece tratar-se de um bebê e não de dejeto; e outro, no qual alguém reconhece um bebê como seu bebê, pois lhe atribui essa pertença, fato associado ao investimento narcísico da mãe e aos determinantes do laço social. Há um bebê, assim considerado, que é meu bebê. Quanto ao segundo momento, o do conhecimento, referimo-nos ao bebê que se dará a conhecer, ao estranho, ao bebê que nos surpreende por não ser idêntico ao imaginado. Evento relativo ao investimento objetal, posto que é singular. Reconhecimento, em suas duas formas, e conhecimento são posições fundamentais do exercício da função materna, ou seja, que se considere um bebê, que ele pertença a alguém que o englobe em seu narcisismo e que este alguém também seja capaz de suportar o corte da estranheza que faz do bebê um outro. Então, o que verão as gestantes/parturientes ao olhar um/seu bebê? Sobre isso, nada sabemos de antemão, embora usualmente se espere algo da ordem de uma ilusão, de um engodo. Ilusão antecipatória de sujeito, que segundo Marie-Christine Laznik, “trata-se, sobretudo, de uma forma particular de investimento libidinal, que permite aos pais uma ilusão antecipadora, onde eles percebem o real orgânico do bebê aureolado pelo que aí se representa, aí ele (o sujeito) poderá advir” (LAZNIK, 1997, p. 39). Uma mãe, nos primeiros contatos com o bebê, diante desse estranho, deverá atribuir-lhe algo seu, digamos, deverá ser capaz de ver-se no bebê, para que este possa ser reconhecido na filiação como sendo o bebê dela e do pai por ela escolhido. Mas, ao mesmo tempo, ela deverá deixar necessariamente em aberto um espaço para vir a conhecê-lo, quer dizer, admiti-lo como outro, inédito, estranhá-lo, não reconhecer-se no bebê. Nos casos de infanticídio autorizado pelo laço social, a mãe que está em acordo com a interpretação vigente não reconhece um bebê. O que ela reconhece? Dejeto e ameaça ao laço social Muitas são as razões para que uma mulher não estabeleça uma relação entre feto ou recémnascido filho, da qual partiria o reconhecimento de um bebê, das mais corriqueiras às mais dramáticas. Acreditamos que o lugar do psicólogo seja de escutar caso a caso sem prejulgar o comportamento, pois atribuição de valor ao concepto, ao feto ou ao bebê é sempre normatizada pela cultura e diferente de um sujeito para outro. É isso que permite que na nossa cultura o aborto seja legalizado em alguns países e em outros não. Nunca haverá um consenso universal sobre o tema, posto tratar-se de uma convenção

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que visa à manutenção do tecido social e que, uma vez sendo culturalmente aceita, passa a encontrar enormes resistências para ser modificada. Cria-se um discurso que justifica a convenção atribuindolhe um caráter natural apoiado em discursos científicos, morais ou religiosos, dependendo da mítica que opera no grupo. Na atualidade, o estatuto ontológico do feto/ bebê é provavelmente o que mais oscila nos discursos sobre os corpos. Comparado à variação do estatuto dos corpos nas questões de gênero, a sua essência se altera de modo indubitavelmente mais radical, dependendo de vários fatores culturais, tanto no que tange a uma ideologia neoliberal, que o coloca como produto a ser adquirido e comercializado, quanto no discurso da lei, que sofre pressões de diferentes agentes sociais (IACONELLI, opus cit). Mas, o estatuto ontológico do bebê também oscila entre os diferentes sujeitos e em cada sujeito, como objeto passível de ser investido com todas as ambivalências afetivas daí decorrentes. Tais variações são de um espectro que vai do grupamento celular ao sujeito, do ser vivo ao ser humano, pois a contemporaneidade

“Uma mãe, nos primeiros contatos com o bebê, diante desse estranho, deverá atribuir-lhe algo seu, digamos, deverá ser capaz de ver-se no bebê, para que este possa ser reconhecido na filiação como sendo o bebê dela e do pai por ela escolhido.”

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reserva aos conceptos/embriões/fetos/recém-nascidos um estatuto insólito, regido por questões de mercado (LE BRETON, 2003, 2011; ATLAN, 2006), que nada respondem às aspirações éticas. No âmbito da maternidade (instituição de saúde), nos óbitos fetais2, os bebês variam de dejeto a preciosidade. No nível singular, encontraremos as gravidezes almejadas, a partir de diferentes aspirações sociais e pessoais, de forma que, ao percorrer ao longo da história as falas reveladoras do valor de uma mãe e de um bebê, percebemos estar vivendo tempos insólitos para a maternidade. Convivem na atualidade posições francamente opostas e surpreendentemente válidas, como a da importância de ser mãe para a mulher, rivalizando com a da importância de ser profissional, manter-se jovem, estar bem casada... Nunca antes a maternidade revelou-se tão contraditória. Idealizada como uma das conquistas necessárias para o sujeito da Pós-Modernidade, - e não mais como a principal conquista, como era o caso na Modernidade - a maternidade hoje concorre diretamente com outras aspirações, das quais as mulheres não querem ou não podem se furtar. O que parece à primeira vista ser a possibilidade de operar diferentes escolhas

acaba por se revelar um imperativo de não perder nada. A valorização social se dá para as mulheres que conseguirem ser, ao mesmo tempo, boas profissionais, boas mães, mantendo-se, ao mesmo tempo, jovens e atraentes. Não se pode perder nada, portanto não se pode de fato escolher. Não há mais um modelo inequívoco de maternidade. Reiteremos essa afirmação: os bebês sempre foram alvo de cuidados e de negligências, a partir de diferentes critérios de atribuição de valor a cada um (legítimo, bastardo, herdeiro...). Hoje esses valores estão diretamente ligados a questões econômicas e do biopoder, de forma que se modificam segundo leis de mercado e conforme interesses alheios ao sujeito. Ora, é preciso reconhecer que os pais pós-modernos estão imersos num discurso que lhes oferece pouco suporte para lidarem com suas próprias ambivalências. Embora pensemos a atualidade como um tempo de posicionamentos insólitos quanto ao tema do valor dos bebês, é importante reconhecer que nunca haverá consenso absoluto uma vez que o estatuto de um bebê envolve, por um lado, considerar o ponto a partir do qual um feto ou recém-nascido é considerado um bebê; definida essa questão fundamental,

“A valorização social se dá para as mulheres que conseguirem ser, ao mesmo tempo, boas profissionais, boas mães, mantendo-se, ao mesmo tempo, jovens e atraentes.”

2 - As questões do óbito perinatal são reveladoras da inconsistência do estatuto do embrião, feto. Para maiores esclarecimentos ler: IACONELLI, V. Luto Insólito, desmentido e trauma: clínica psicanalítica com mães de bebês. Revista Latino Americana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 10, n. 4, p. 614-623, dez. 2007.

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deve-se por outro lado considerar seu lugar (já tomado como sujeito, mesmo que de forma antecipatória) na comunidade (herdeiro aguardado, fruto de relações licitas ou ilícitas, fruto de violência...), o que lhe outorgará diferentes valores. Entendidos como sujeitos supostos, quando os bebês estariam formados, afinal? Essa é uma pergunta impossível de ser respondida sem levarmos em conta a perspectiva da qual partimos: biológica, psíquica, jurídica, religiosa ou filosófica. Não supomos uma relação de causa e efeito, mas de atravessamentos, de ruídos, interdições e possibilidades. Pergunta perturbadora quando parte da própria gestante, para quem podemos supor estar a priori respondida pela experiência corporal, e que nos revela o desconfortável reconhecimento de que não, esta pergunta não se responde pela gravidez. Quando uma mulher grávida se pergunta isso, somos alçados da organicidade para o mundo humano a partir da graça ofertada pelo olhar do outro. Quão acalentador pode ser acreditar que esse outro sempre comparece, ou seja, que uma gestante/parturiente tem em si um olhar materno inequívoco, ou ainda, que o criador não capitula jamais diante da criatura, sendo essa vacilação e mesmo a capitulação circunscrita ao âmbito da patologia, na esperança de se discriminarem supostas boas mães das loucas e das más. Quão tenebroso pode ser o reconhecimento de que esse olhar vacila, não tem fiador, de forma estrutural, posto que se trata de uma construção contingencial, sem garantias, podendo ou não ligar-se ao evento orgânico. Trata-se de uma tragédia ainda mais assustadora que a de Medeia, pois essa personagem da tragédia grega nunca duvida que é mãe de seus filhos. Esses são filhos que são desde sempre reconhecidos simbolicamente como sendo dela e de Jasão, e é isso que dá o sentido de que ela os mate, pois se trata justamente de ferir o amante em seu ponto mais vulnerável. Medeia se reafirma assim como mulher acima da mãe, mas nunca duvida do fato de ser mãe (RIBEIRO, 2011). Mas essa é outra história.

“Entendidos como sujeitos supostos, quando os bebês estariam formados, afinal? Essa é uma pergunta impossível de ser respondida sem levarmos em conta a perspectiva da qual partimos: biológica, psíquica, jurídica, religiosa ou filosófica.”

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* Vera Iaconelli é psicóloga, psicanalista, mestre e doutora pelo IPUSP, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, participante dos Fóruns do Campo Lacaniano de São Paulo, diretora do Instituto Gerar de Psicologia Perinatal e Parental, autora do livro Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna (Annablume, 2015). End.: Rua Natingui, 314 - Vila Madalena - São Paulo-SP - Tel 11 3032-6905 / 11 9 9942-1912. ** Nelson da Silva Junior é psicanalista, doutor pela Universidade Paris 7, professor Livre Docente da USP e do Instituto Sedes Sapientiae, autor de: Le fictionnel en psychanalyse. Une étude à partir de l’œuvre de Fernando Pessoa. Villeneuve d’ Asq: Presses Universitaires du Septentrion, 2000 e Linguagens e Pensamento. A lógica na razão e desrazão, Casa do Psicólogo, 2007. e-mail: [email protected]. Endereço Alameda Iraé, 620, cj 16. Tel.: 50 51 53 11.

REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL

PATRICÍDIO:

UM TABU POR QUE TANTO HORROR E ESTRANHEZA?

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Á CRIME. DESDE QUE HÁ LEI, HÁ CRIME, HÁ TRANSGRESSÃO À LEI. O QUE INSTIGA À REFLEXÃO É POR QUE ALGUNS CRIMES MOBILIZAM TANTO AS PESSOAS, A OPINIÃO PÚBLICA, E OUTROS NEM TANTO, AINDA QUE, DO PONTO DE VISTA OBJETIVO, O RESULTADO DO CRIME SEJA, APARENTEMENTE, O MESMO, A MORTE, POR EXEMPLO. TAL É O CASO DO PATRICÍDIO, O ASSASSINATO DO PRÓPRIO PAI, QUE CONSTITUI MAIS DO QUE UM CRIME COMO OUTRO QUALQUER, SENDO UM TABU.

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O patricídio choca profundamente. Tal afirmação muito pouco pode ser questionada, mas isso não impede que se questione o que estaria por detrás de tamanha ojeriza e comoção diante de um crime dessa ordem. Por que o patricídio é um tabu? Por que é fonte de tamanho horror enquanto outros assassinatos não o são? Essas são as questões principais em torno das quais o presente artigo se desenvolve. A resposta que mais prontamente se apresenta é a de que se trata do assassinato de alguém que, ao menos supostamente, seria uma pessoa muito amada, querida, importante na vida daquele que o comete. O que levaria alguém a matar uma pessoa tão amada? Os crimes passionais – por exemplo, maridos que matam esposas, uxoricídios, ou esposas que matam maridos, maritricídios – também se enquadram nessa categoria, mas nem de perto geram tamanha estranheza e horror. Assim, o amor pela vítima não parece justificar plenamente a comoção que o patricídio acarreta; há algo a mais nisso. Diante de um patricídio, há uma sensação muito pregnante de que um limite muito sério foi ultrapassado, algo inadmissível, imperdoável, gerando fortes sentimentos que podem ser localizados, principalmente, em duas vertentes. A mais evidente é o horror, a repulsa, mas ao lado desta costuma existir a estranheza, a dificuldade em compreender como tal foi possível, como alguém seria capaz de algo assim. Nos crimes passionais – por mais reprováveis que sejam –, razões como ciúmes ou a não aceitação de um término de relacionamento podem causar reprovação, mas em geral não geram estranheza. Esse tema é abordado por Freud em um clássico texto, “Das Unheimliche” (FREUD, 1919), traduzido por “O estranho”, “O sinistro”, ou ainda “O inquietante”, a depender da edição consultada. Heim em alemão significa familiar, lar, pátria, e o prefixo un denota negação, logo, Unheimlich é a característica de algo, a princípio, não familiar e fonte de angústia e horror. No entanto, ao pesquisar o uso desse termo em diversas línguas, passando pelo latim, grego, francês, inglês, espanhol, italiano, e, claro, alemão, sua língua nativa, Freud se depara com algo surpreendente, o caráter ambíguo desse termo, que pode ao mesmo tempo expressar o estranho e o familiar: “[...] o inquietante é aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar” (p.331). Algo contraditório parece se esboçar aqui. Como algo pode ser estranho e familiar ao mesmo tempo? Aquilo que permite que esta aparente contradição não seja desprovida de sentido é a descoberta maior de Freud: o inconsciente. Até Freud, toda a subjetividade é igualada à consciência, ou seja, tudo o que se pode apreender do sujeito somente pode advir de pensamentos conscientes, racionais. A descoberta freudiana é que os pensamentos são basicamente inconscientes, e que alguns deles podem vir a

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“Esse tema é abordado por Freud em um clássico texto, Das Unheimliche (FREUD, 1919), traduzido por O estranho, O sinistro, ou ainda O inquietante, a depender da edição consultada.”

se tornar conscientes, mas, para tal, devem obedecer algumas condições, tais como não serem insuportáveis, ou profundamente reprováveis ao sujeito, por exemplo. Ou seja, o sujeito pode ter pensamentos inconscientes que conscientemente ele reprovaria severamente, com os quais não concorda, e, sobretudo, que nem reconheceria como seus. São pensamentos que, embora sejam seus, podem gerar profunda estranheza ao próprio sujeito, ao passo que o que fosse totalmente estranho ao sujeito tenderia a encontrar a indiferença. A partir da concepção inédita de Freud acerca dos pensamentos inconscientes, a estranheza diante de algo, com a angústia correspondente, passa a ser entendida também de modo inédito: “Unheimlich seria tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu.” (p.338), ou seja, algo que o sujeito conhece inconscientemente, mas a que nunca teve acesso consciente, causando-lhe profunda estranheza. A forte presença desse sentimento diante de um patricídio aponta, então, para algo familiar, já que “[...] o inquietante das vivências produz-se quando

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complexos infantis reprimidos são novamente avivados, ou quando crenças primitivas superadas parecem novamente confirmadas.” (p. 371; grifos do autor). Embora a noção de recalque, repressão, seja complexa, no escopo do presente artigo em nada se perde em rigor ao se tomar o reprimido como aquilo que deve permanecer inconsciente, pois seria intolerável ao sujeito caso se tornasse consciente. O que pode haver de familiar e reprimido ao mesmo tempo em um patricídio? Todas as relações primordiais de um sujeito, em especial aquela com seus pais, com aqueles que se ocupam da criança, tendem a ser fortemente carregadas de uma ambivalência de sentimentos, ou seja, amor e ódio coabitam os pensamentos acerca dessas importantes figuras. Todavia, a vertente de ódio tende a ficar oculta, ou, na semântica freudiana, recalcada, reprimida. Ao discorrer acerca do complexo de Édipo, trama subjetiva na qual a criança se articula a seus pais, Freud indica que o objeto supremo de amor de uma criança, seja menina, seja menino, é a mãe (FREUD, 1924). Com isso, o pai tende a ser tomado como um rival, sendo alvo de grande animosidade. O mito de Édipo interessou fortemente a Freud em suas pesquisas por tocar nos dois maiores tabus da civilização: o incesto e o patricídio. O mito de Édipo não é o único a versar sobre incesto e patricídio, mas se destaca pelo fato de que ele não sabia que matara seu pai e desposara sua mãe, o que parece interessante a Freud, pois coaduna com sua descoberta de que, inconscientemente, cada sujeito é um pequeno Édipo que tem

de se deparar com tais impulsos primordiais: “[...] a lenda grega apreende uma compulsão que toda pessoa reconhece porque sente sua presença dentro de si mesma. Cada pessoa da platéia foi um dia, em ponto menor ou em fantasia, exatamente um Édipo [...]” (FREUD, 1897: 358-9). De forma alguma, isso autoriza que alguém mate seu pai ou se deite com sua mãe. Ao enunciar tais impulsos como primordiais e inconscientes, Freud o faz justamente localizando na renúncia a tais impulsos a própria condição da civilização, que é fundamentada em uma lei – a maiúscula indica o caráter simbólico dessa lei. A lei simbólica não é o mesmo que uma lei qualquer. Se alguém deixa de roubar algo ou matar alguém porque sabe que está sendo visto e que vai ser punido pela autoridade legal, isso não significa que a lei esteja em jogo. Quando alguém não rouba algo ou mata alguém mesmo que isso não tenha consequências práticas, mas porque isso representa uma afronta aos valores do próprio sujeito, aí estamos no campo da lei simbólica, uma lei interna, na qual o sujeito é seu próprio juiz, experimentando o sentimento de culpa quando ultrapassa certos limites. Ao tratar da origem da civilização, Freud demarca a origem da própria lei, o momento em que a lei deixa de ser aquela externa sustentada pela força bruta e passa a ser internalizada pelos sujeitos. Para tratar de tal questão, Freud elabora um mito de origem, que ele desenvolve em Totem e tabu (FREUD, 1912-1913). Esse monumental ensaio é dividido em quatro partes, sendo a primeira intitulada “O horror

“Embora a noção de recalque, repressão, seja complexa, no escopo do presente artigo em nada se perde em rigor ao se tomar o reprimido como aquilo que deve permanecer inconsciente, pois seria intolerável ao sujeito caso se tornasse consciente.”

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ao incesto”, por meio da qual Freud explora a intrigante constatação de que em toda formação humana o incesto é proibido, em especial aquele do filho com a mãe. O incesto não é somente proibido, ele é um tabu, ou seja, é uma proibição enérgica, fundamental, cuja violação é totalmente inaceitável. O tabu traz consigo o sentimento de horror diante de sua quebra, mobilizando profundamente a todos e exigindo expiação. A segunda parte do ensaio tem o título “O tabu e a ambivalência dos sentimentos”, sendo enfatizado o fato de todo tabu ser fortemente carregado de ambivalência emocional, ou seja, ao lado da veemente proibição que cada um se impõe ao tabu, haveria uma forte inclinação, decerto inconsciente, a quebrá-lo: “Afinal, não é necessário proibir o que ninguém deseja fazer, e, de todo modo, o que se proíbe enfaticamente deve ser objeto de um forte desejo.” (p. 114). Não é preciso se criar leis para coisas que ninguém deseja realizar, logo, quanto mais uma lei é enfática, mais aquilo que é proibido tende a ser alvo de interesse. A questão que Freud destaca é que a vertente da inclinação a praticar aquilo que o tabu proíbe permanece inconsciente, recalcada, reprimida, ao passo que a da proibição, da reprovação, é plenamente consciente, parecendo, para o sujeito, ser a única vertente presente. Assim, se o patricídio é um tabu, a enorme comoção, horror e estranheza em torno dele se justificaria por ser um crime que encontra eco nas inclinações inconscientes de cada um: “Este é, afinal, um dos fundamentos do sistema de punição humano, e tem por pressuposto – corretamente, sem dúvida – que os mesmos impulsos

proibidos se acham tanto no infrator como na comunidade que se vinga” (p.117-8). Inconscientemente, todos somos patricidas, e isso remonta à própria origem da civilização, segundo Freud, que tem no totemismo sua primeira forma. No totemismo, há um pequeno agrupamento ou clã totêmico que devota um totem, em geral um animal, do qual eles se supõem descendentes. Nesse clã, predominam dois tabus primordiais: não se pode matar ou comer o totem, e deve prevalecer a exogamia entre os membros do próprio clã, que somente poderiam ter relações sexuais com membros de outro clã, descendentes de outro totem. A hipótese mítica de Freud de como a vida humana chegou a essa primeira forma parte principalmente de três grandes contribuições. A primeira provém Charles Darwin, que supõe que a primeira forma humana de vida em grupo se aproximaria da formação observada em diversos mamíferos, de um pequeno grupo com apenas um líder macho que monopoliza as fêmeas para si, expulsando os mais jovens assim que eles crescem. É o que Freud chama de horda primeva, denominando o chefe da horda de pai primevo. A partir das ideias de Darwin, Atkinson supõe que os membros expulsos um dia voltam e matam o líder da horda, havendo uma disputa entre os vencedores pelo posto do antigo líder. Tal ciclo somente se interromperia, segundo ele, a partir da intervenção das fêmeas, que intercederiam na disputa para que seus filhos não morressem. Freud acompanha Atkinson somente na primeira parte de sua hipótese, refutando a segunda. Para montar sua própria hipótese, ele ainda recorre a outra contribuição.

Fotodivulgação: Flickr-torbakhopper

“Se alguém deixa de roubar algo ou matar alguém porque sabe que está sendo visto e que vai ser punido pela autoridade legal, isso não significa que a lei esteja em jogo.”

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Robertson Smith percebe em diversas tribos totêmicas que ficaram apartadas do restante da civilização uma recorrente refeição totêmica, um cerimonial realizado em determinadas datas, no qual o animal totêmico – que é sagrado para aquele clã, tido como seu ascendente – é morto e devorado por todos do clã. Ninguém pode deixar de participar e, afora a refeição totêmica, o totem permanece como intocado, sendo um grave tabu fazer qualquer tipo de mal a ele. A partir dessas três contribuições, Freud elabora sua hipótese, que pode ser bem resumida ao se acompanhar o destino do pai primevo. Freud percebe que as relações mais carregadas de tabu observadas são aquelas com os soberanos (chefes ou líderes), inimigos e mortos, que são insígnias que se pode atribuir ao próprio pai primevo. Como detentor do monopólio sexual e da violência, o pai primevo se constitui como um líder, exceção que desfruta de todo o gozo, interditando o acesso dos demais a este. Tal interdição tem um duplo desdobramento. O primeiro é que o pai primevo se torna um inimigo, instigando sentimentos de hostilidade nos alijados das

“Robertson Smith percebe em diversas tribos totêmicas que ficaram apartadas do restante da civilização uma recorrente refeição totêmica, um cerimonial realizado em determinadas datas, no qual o animal totêmico – que é sagrado para aquele clã, tido como seu ascendente – é morto e devorado por todos do clã.”

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satisfações dos impulsos. O outro desdobramento é bastante interessante. Freud localiza que a condição ao laço social, à civilização, é a inibição dos impulsos, tanto os sexuais quanto os agressivos. Se cada um vivesse seus impulsos de modo totalmente livre, não haveria civilização possível. Os impulsos desinibidos quanto às metas sexual e agressiva não são propícios à formação de laços duradouros, logo, o pai primevo não faz laço com os demais, pois vive seus impulsos de forma desinibida. Ironicamente, ao inibir as satisfações dos outros machos da horda, ele favorece um laço baseado em impulsos inibidos quanto à meta. De certa forma, o próprio pai primevo “[...] obrigou-os à abstinência e, por conseguinte, ao estabelecimento de laços afetivos com ele e entre si, que podiam resultar dos impulsos de meta sexual inibida. Ele os compeliu, por assim dizer, à psicologia da massa.” (: 87). O pai que não faz laço favorece o laço, e esse laço tem como objetivo a eliminação do líder que se tornou inimigo, levando-o à terceira e última insígnia: morto. Reunidos, os insatisfeitos matam o pai primevo, e canibalizam seu corpo em busca de uma identificação com ele, de obter seus poderes. Nesse momento, há uma decisão capital em jogo, diante de um impasse. O acesso à satisfação é concebido somente no modelo da exceção, tal como era o pai primevo, cabendo somente a um. Como só conseguiram eliminar o pai primevo em grupo, há mais de um vencedor. Caso eles lutem entre si, ocupando o vencedor o lugar do pai primevo, o paradigma da horda primeva permanece, e a civilização ainda não se estabelece. Uma verdadeira mudança de paradigma depende da renúncia ao lugar do pai primevo, que deve permanecer vazio. Todos devem renunciar ao monopólio da satisfação sexual e agressiva, concebendo-se que o destino daquele que ocupar o posto de pai primevo será inevitavelmente o mesmo: a morte e o despedaçamento do corpo. É importante ressaltar que é somente por retroação – a partir da renúncia à ocupação de seu lugar – que a eliminação do pai primevo se torna um patricídio. Ao renunciarem, os assassinos se descobrem irmãos e as fêmeas da horda tornamse mães e irmãs. O pai primevo terá sido Pai. A partir desse efeito retroativo, instauram-se, como forma de preservar a civilização, os tabus do incesto e do patricídio. A lei simbólica se estabelece, e cada membro internaliza em si a lei que interdita a quebra dos tabus primordiais da civilização. O sentimento de culpa surge, demandando expiação. A refeição totêmica se estabelece com dupla função. Por um lado, todos compartilham a culpa, já que ninguém pode deixar de participar da refeição. Por outro, há uma reencenação do triunfo sobre o tirânico pai primevo, uma reafirmação do poder do grupo sobre aquele que insistir em manter o monopólio das satisfações para si.

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“Culpados pelo patricídio primordial todos, inconscientemente, somos, mas por nossos atos devemos ser, sobretudo, responsáveis.”

Freud indica que um evento dessa importância certamente deixou traços indeléveis no psiquismo do homem (p.235), marca que é transmitida de geração em geração, embora permaneça inconsciente tanto naquele que transmite quanto naquele que recebe tal marca; inconscientemente, todos somos cúmplices desse crime primordial. Eis a surpreendente e escandalosa hipótese freudiana acerca da origem da civilização: ela é baseada em um crime, e não um crime qualquer, mas um patricídio. O aspecto de estranheza que permeia a reação diante de um patricídio tem relação com isso que deveria ficar velado e surge, sendo familiar por estar registrado no psiquismo. Psiquicamente, todos somos patricidas, e quando alguém o faz na realidade tais marcas são reativadas, trazendo consigo forte sensação de estranheza, não sem boa dose de horror conjugada a ela. O horror tem duplo fundamento. Boa parte da fonte de horror diante de um patricídio provém do fato de, inconscientemente, o sujeito se sentir cúmplice de tal ato, algo que tende a ser sentido como insuportável, intolerável, acarretando forte comoção. Além disso, não se deve esquecer que aquilo que motivou o patricídio fundamental foram os impulsos incestuosos, cuja renúncia constitui a base da civilização. Dessa forma, o caráter abjeto do ato patricida também advém do quanto ele ativa em cada um aquilo que deveria ficar o mais inconsciente possível, os impulsos incestuosos inconscientes. De modo sucinto, pode-se dizer que, segundo Freud e a psicanálise, somos tocados profundamente

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pelo patricídio, tomados de forte sensação de horror e estranheza diante de algo assim, por nos reconhecermos todos, em alguma medida, no patricida, ou seja, por sermos inconscientemente patricidas. Decerto que tais conclusões não devem gerar senão desconforto e alguma dose de descrença ao leitor, sendo importante um esclarecimento antes do fim deste artigo. Mesmo que se localize o patricídio como uma ocorrência regular no psiquismo, há uma enorme distância entre aquilo que existe no inconsciente, que um sujeito pode morrer sem jamais ter acesso consciente, e um ato perpetrado na realidade. A questão da responsabilidade subjetiva ganha relevo aqui, sendo importante diferenciá-la da culpa. Culpados pelo patricídio primordial todos, inconscientemente, somos, mas por nossos atos devemos ser, sobretudo, responsáveis. Que fique claro: o impulso patricida inconsciente em nada justifica que um sujeito realize tal ato, tampouco o exime de sua responsabilidade. Se somos todos inconscientemente patricidas, porque as notícias de crimes dessa natureza são raras? Temos aqui a medida da eficácia da lei simbólica, uma vez que não é por temor de punição dos órgãos legais que os patricídios são inibidos. Não matamos nossos pais porque eles já estão mortos simbolicamente. * Fabio Malcher é psicanalista, doutor em Teoria Psicanalítica pelo PPGTP do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). e-mail: [email protected].

REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL

MAUS-TRATOS

INFANTIS O USO DA FORÇA FÍSICA SOBRE O CORPO DA CRIANÇA, QUALQUER QUE SEJA A FINALIDADE ATRIBUÍDA AO GESTO, ESTÁ SEMPRE ATRELADA A CONSEQUÊNCIAS NEGATIVAS.

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Á EVIDÊNCIAS DE QUE, AO LONGO DA HISTÓRIA, AS CRIANÇAS, EM TODO O MUNDO, VÊM SENDO SUJEITADAS A DIVERSAS FORMAS DE VIOLÊNCIA, COMO TRABALHO FORÇADO, ABANDONO, AGRESSÕES E ATÉ MESMO O HOMICÍDIO (ZIGLER & HALL, 1989; SCANAPPIECO & CORNNELL-CARRICK, 2005). NAS CIVILIZAÇÕES ANTIGAS, ALÉM DOS MOTIVOS RELIGIOSOS, OUTRAS CONDIÇÕES DE VIDA FAVORECIAM O SACRIFÍCIO DE CRIANÇAS: O FATO DE PORTAREM ALGUM TIPO DE DEFICIÊNCIA; DE SEREM DE UM OU DE OUTRO SEXO, TENDO EM VISTA O ESTABELECIMENTO DE CERTO EQUILÍBRIO DEMOGRÁFICO; DE SEREM MENOS RESISTENTES ÀS CONDIÇÕES DE VIDA EM CERTOS GRUPOS SOCIAIS, E REPRESENTAREM UM PESO ECONÔMICO (MARTINS & JORGE, 2010; LINS, 2012). Nesse quadro, o castigo corporal das crianças é também uma prática secular, empregada na maior parte do tempo sob a alegação de que se presta à socialização. Observam-se nos textos sagrados, como a Bíblia ou o Corão, menções a situações em que se impõem às crianças castigos corporais. Na Bíblia Sagrada, por exemplo, há versículos que veiculam a importância de o castigo físico ser aplicado para disciplinar as crianças: “Não poupes ao menino a correção: se tu o castigares com a vara, ele não morrerá; castigando-o com a vara salvarás sua vida da morada dos mortos” (Weber et al., 2004). A teologia cristã, assim, favoreceu a ideia e a prática dos castigos corporais das crianças, tendo por base a concepção de que elas tenderiam ao mal, dado que nasciam sob a égide do pecado original, devendo, portanto, serem submetida à vigilância e à correção para se tornarem adultos de bem (Weber et al., 2004). Muito lentamente, devido à confluência de uma série de fatores, a representação de infância vem se transformando e, assim, gradativamente, uma maior sensibilidade com relação ao que vivem as crianças vem se desenvolvendo, entendendo-se que precisam de proteção e cuidados especiais, e que a família e a comunidade em que se encontram inseridas devem se responsabilizar pelo seu bem-estar (Lins, 2012). Contribuindo para isso, nos anos de 1960, em virtude dos avanços na radiologia pediátrica, tornaram-se evidentes as situações nas quais crianças sofriam injúrias em

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razão de práticas parentais baseadas em punição/ castigo corporal. O médico Henry Kempe e alguns colegas, em 1962, publicaram um artigo científico propondo uma classificação médica para o conjunto de danos físicos causados pelas ações dos pais/cuidadores sobre o corpo das crianças, denominando o fenômeno como “the battered child syndrome”; assim, esse passou a ser considerado um problema médico e provocou o interesse da ciência pelo tema (Cicchetti & Carlson, 1989; Ochotorena & Madariaga, 1996). Nesse ponto, caberia explicitar um questionamento que, talvez, já esteja sendo feito pelo leitor. Todo tipo de punição corporal é nociva e deve ser considerado abuso físico? Não há uma medida que diferencie castigo físico de abuso físico? Por de trás desse questionamento, há a ideia, de senso comum, de que a punição corporal é uma coisa, e está associada a consequências positivas para a criança e, por isso, é legítima, ao passo que o abuso é outra coisa e está associado a consequências negativas para a criança e, por isso, é ilegítimo. Ao bem da verdade, as definições de abuso infantil e de castigo corporal variam bastante, mesmo no âmbito científico, pois são baseadas nos valores de uma sociedade a respeito da maneira apropriada de educar uma criança, sendo esses muito suscetíveis a mudanças. O que é considerado abuso hoje, não foi visto dessa forma antes de 1960 e, provavelmente, será visto diferente nas próximas décadas (Scanappieco & Cornnell-Carrick, 2005). Na atualidade, porém, se tomarmos como critério para distinguir castigo corporal do abuso físico a natureza das consequências de um e de outro para as crianças, as evidências de que se dispõem indicam que o uso da força física sobre o corpo da criança, qualquer que seja a finalidade atribuída ao gesto, está sempre atrela a consequências negativas. Elizabeth Gershoff, uma importante pesquisadora da área, com o intuito de avançar o conhecimento a esse respeito, realizou extenso trabalho de revisão no qual buscou estabelecer uma distinção entre comportamentos parentais que podiam ser classificados como “punição corporal” e aqueles que podiam ser classificados como “abuso” (Gershoff, 2002). A partir daí, focalizou somente os estudos científicos que tinham trabalhado com situações de “punição corporal” e, assim, passou a analisar as consequências para as crianças correlacionadas a essa prática. Seus resultados indicaram de modo irrefutável que o uso de punição corporal se mostrou associada, como resultado, a muitos comportamentos infantis inadequados, todos considerados indesejáveis nas crianças: deterioração da qualidade do relacionamento com os pais/cuidadores, deterioração da saúde mental, declínio da internalização das normas morais, aumento do número de comportamentos antissociais, aumento da agressividade nas crianças, a curto e a longo prazo, mesmo quando adultos, com o aumento do risco de virem a “abusar” de seus próprios filhos ou cônjuges.

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“Sabe-se que a punição corporal é eficiente para suprimir comportamentos inadequados em uma criança de modo imediato; mas, ao que tudo indica, a curto, médio e longo prozo, promove mais comportamentos inadequados, além do quê, não se mostra eficaz para eliciar comportamentos novos, os comportamentos desejáveis.”

Gershoff (2002) verificou também a existência de uma forte associação entre o uso de “punição corporal” pelos pais e o “abuso físico” das mesmas crianças, denotando que os pais/cuidadores propensos a implementar práticas de castigo corporal, estão mais a risco de também implementar aquelas que podem ser classificadas como “abusivas”. Sabe-se que a punição corporal é eficiente para suprimir comportamentos inadequados em uma criança de modo imediato; mas, ao que tudo indica, a curto, médio e longo prazo, promove mais comportamentos inadequados, além de que, não se mostra eficaz para eliciar comportamentos novos, os comportamentos desejáveis. Assim, a conta não fecha. Ou seja, a balança entre os prós e os contra a punição corporal de crianças pende no sentido de indicar que essa prática, embora aparentemente mais “leve”, também produz consequências nefastas para as crianças e não deve acontecer, do mesmo modo que os abusos físicos. Em algumas sociedades, devido a transformações culturais, inclusive por conta da difusão de dados científicos sobre os prejuízos ao desenvolvimento infantil, advindos do uso da punição física, caminhouse na direção de proibir, em lei, o uso dos castigos corporais, quaisquer que sejam, em consonância às proposições dos tratados e convenções sobre direitos humanos e direitos da criança. A Suécia foi o primeiro país a proibir a punição corporal de crianças, em 1979. Em paralelo à promulgação da lei, foram realizados trabalhos educativos com a população, a fim de que o ordenamento jurídico fosse efetivo e impactasse

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a prática parental no cotidiano (Gershoff, 2002; Morlachetti, 2010; De Souza, 2011; Romano, Bell & Norian, 2013). Ao longo dos anos, outros países passaram a proibir em lei o castigo físico em suas legislações: Croácia, Áustria, Dinamarca, Finlândia, Itália, Sudão do Sul e Tunísia, entre outros. Atualmente são 31 os países com legislações que proíbem o uso da punição física (Romano et al., 2013). No Brasil, até por volta de 1985, respaldados pelo princípio do pátrio poder, os pais, e mais especialmente a figura paterna, tinham o “poder” de decidir sobre a vida dos filhos, tidos como sua “propriedade”; isso incluía a decisão de como educá-los. Em função das discussões promovidas pelos movimentos sociais em defesa dos direitos humanos, nos anos subsequentes, conseguiu-se a aprovação de emendas constitucionais reiterando princípios básicos da Convenção Internacional dos Direitos das Crianças, aprovada em novembro de 1989, e ratificada pelo Brasil por meio do Decreto de n° 99.710, de 21 de novembro de 1990. Assim, o artigo 227 da Constituição Federal de 1988, estabeleceu os direitos das crianças e dos adolescentes e estipulou que sua garantia é uma obrigação da família, da sociedade e do Estado, indicando, ainda, que sejam colocados a salvo de qualquer tipo de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (Constituição da República Federativa do Brasil, 1989). Nessa esteira, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) veio para regulamentar esse dispositivo constitucional estipulando às crianças e aos adolescentes os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, resguardando-lhes, ainda, o direito à proteção integral. Apesar de esses ordenamentos jurídicos terem estabelecido novos parâmetros para o tratamento do segmento infanto-juvenil, seu conteúdo não é claro com relação à temática da punição corporal, permanecendo em aberto o espaço para a existência de diferentes opiniões e divergências sobre o assunto, dentro das diversas especialidades que direta ou indiretamente lidam com crianças e adolescente. No conjunto, as legislações criam contradições e ambiguidades com relação ao uso da punição corporal em crianças (De Souza, 2011). O Código Civil (Lei 10.406/2002), por exemplo, concebe que os pais, com o intuito de educar os filhos menores, podem utilizar na sua função correcional o direito de castigar seus filhos, o chamado jus corrigendi, e, dentro disso, proíbe apenas o castigo físico aplicado de maneira “imoderada”, em seu artigo nº 1.638, que versa sobre o tema da perda do poder familiar. Para autores seguidores deste pensamento, o jus corrigendi é necessário, uma vez que o dever de educar gera o direito de corrigir e, segundo o Código Civil, apenas o castigo “imoderado” seria proibido (De Souza, 2011). Outros autores lançam os questionamentos: O que seria moderado? Qual a medida do imoderado? Ademais, em consonância com as normas

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internacionais referentes aos Direitos da Criança e do Adolescente, afirmam que o castigo surge como um resquício do pátrio poder e que a aceitação implícita do castigo moderado pelo Código Civil vai de encontro aos direitos fundamentais da pessoa humana, que deveriam ser invioláveis. Nesse corrente de pensamento, acredita-se que todo castigo físico é um abuso físico e, portanto, configura uma forma de violência, dado que corrompe a dignidade e o respeito a que todos têm direito (De Souza, 2011). Com vistas a clarear esses pontos escuros, a chamada Lei Menino Bernardo (Lei nº 13.010/2014) foi promulgada, recentemente. Assim denominada em homenagem a Bernardo Boldrini, garoto de 11 anos, morto em abril de 2014, no Rio Grande do Sul, sendo os acusados pelo fato seu pai e sua madrasta, essa legislação, também conhecida como a Lei da Palmada, aportou alterações a quatro artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em uma tentativa de melhor definir o que seria castigo físico e tratamento cruel e degradante, além de também alterar as sanções previstas aos que descumprirem a lei. Para o que nos interessa, cabe analisar as alterações propostas no 1° artigo da lei. Este modifica o art.18 e o art.70 do ECA. A nova redação do art.18-A define que as crianças e os adolescentes têm o direito de serem educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto. Deixa claro que essa é uma obrigação não só dos pais, mas da família ampliada, dos agentes públicos e de qualquer pessoa encarregada de cuidar deles. O parágrafo único deste mesmo artigo define

“No Brasil, até por volta de 1985, respaldados pelo princípio do pátrio poder, os pais, e mais especialmente a figura paterna, tinham o ‘poder’ de decidir sobre a vida dos filhos, tidos como sua ‘propriedade’ (...)”

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“O artigo 18-B define as medidas que devem ser aplicadas aos pais, aos integrantes da família extensa, aos agentes públicos, ou qualquer pessoa encarregada dos cuidados das crianças e dos adolescentes, que apliquem castigos físicos ou tratamento cruel ou degradante às crianças e aos adolescentes.”

o que seria considerado castigo físico e tratamento cruel ou degradante, como se segue: I - castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em: a) sofrimento físico; ou b) lesão; II - tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que: a) humilhe; ou b) ameace gravemente; ou c) ridicularize. O artigo 18-B define as medidas que devem ser aplicadas aos pais, aos integrantes da família extensa, aos agentes públicos, ou qualquer pessoa encarregada dos cuidados das crianças e dos adolescentes, que apliquem castigos físicos ou tratamento cruel ou degradante às crianças e aos adolescentes. São medidas a serem aplicadas pelo Conselho Tutelar: encaminhamento a programa de proteção à família, encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico, encaminhamentos a cursos ou programas de orientação, obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado e advertência. Cumpre mencionar, com relação a este aspecto, que o projeto inicial que tramitou no Congresso Nacional previa que qualquer tipo de punição corporal fosse considerado crime, havendo assim, um abrandamento da

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versão original. Quanto ao art. 70-A, esse define que o poder público deve atuar de forma articulada na elaboração de políticas públicas e na execução de ações destinadas a coibir o uso de castigo físico e o tratamento cruel ou degradante, e difundir formas não violentas de educação de crianças e de adolescentes, definindo algumas dessas ações: promoção de campanhas educativas, integração de órgãos destinados à defesa dos direitos da criança e do adolescente, formação continuada de profissionais, incentivo a resoluções de conflitos pacíficas, inclusão de ações desde o prénatal que estimulem os pais à reflexão e orientação sobre alternativas ao castigo físico e promoção de espaços intersetoriais para atuação junto a famílias com situação de violência. Há divergência entre os especialistas em Direito quanto aos avanços que a esta lei trouxe ao cenário nacional. Dias (2014) aponta que a lei foi importante, principalmente, por aportar algum avanço com relação ao Código Civil, cujo conteúdo admitia o emprego de castigo “moderado”. Com a Lei Menino Bernardo, nem o castigo moderado nem o imoderado são permitidos e isso representa um progresso importante. Aponta, ainda, que medidas tomadas pelos pais ou responsáveis, que entrem em confronto com a lei, configuram falta ao poder familiar, podendo o juiz adotar medidas previstas no Código Civil e Penal, a depender da gravidade do caso. Vale ressaltar que o castigo que resulta em lesão corporal já remetia a comportamento punido, previsto no Código Penal (arts. 129 e 136). A autora sublinha, no entanto, que o ponto mais frágil da Lei Menino Bernardo não se refere propriamente ao castigo físico, mas à violência psicológica e à negligência que sabidamente causam danos de iguais proporções e não foram contemplados no texto (Dias, 2014). Cavalcante (2014) a esse respeito tem entendimento distinto. Acredita que a menção ao “tratamento cruel e degradante” remete a diversas outras situações relativas a práticas negativas dos adultos juntos às crianças e aos adolescentes, para além daquelas que no escopo da punição física. O autor refere que o termo “tratamento cruel e degradante” envolve aspectos emocionais como, por exemplo, agredir verbalmente uma criança ou deixar a criança privada de algo de que goste muito (exemplos de ações que podem ser classificadas como abuso psicológico/emocional). Com relação à questão de considerar a punição corporal como crime, Cavalcante (2014) ressalta que, embora a Lei 13.010/2014 não preveja essa tipificação, dependendo da situação concreta, o castigo físico ou o tratamento cruel ou degradante podem configurar crime previsto no Código Penal ou no Estatuto da Criança e do Adolescente. O art. 232 do ECA tipifica o delito de submeter criança ou adolescente sob sua

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autoridade a vexame ou constrangimento. O artigo 129 do Código Penal prevê que se o castigo físico provocar lesão corporal haverá punição com base na lei. Este Código também prevê, em seu artigo 136, que é crime expor a perigo a vida ou a saúde da pessoa sob sua autoridade, abusando dos meios de disciplina ou sujeitando-a a trabalho inadequado. Outros estudiosos (Rodrigues & Tomé, 2014) da área, entretanto, defendem que já havia legislação suficiente no Brasil para o resguardo dos direitos infantojuvenis, como a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código Penal e o Código Civil, e apontam que a referida lei não trouxe mudanças significativas. Indicam que a Lei Menino Bernardo não proibiu de fato o castigo físico e que apenas foram proibidos castigos que resultem em: a) sofrimento físico ou b) lesões. O que a lei fez, segundo esses autores, foi conceituar, no universo jurídico, o que seriam condutas consideradas incompatíveis com os direitos infantis. A grande questão nessa esfera é a ampla margem de manobra para aquilo que será considerado sofrimento físico, uma vez que esse parâmetro requer algum tipo de interpretação. Caberá aos juízes, no uso do poder discricionário que têm, definir o que seria tal conceito, baseados no contexto de cada situação, até que a ciência venha dar alguma contribuição nesse sentido também (Rodrigues & Tomé, 2014). Essas diferentes possibilidades de interpretação sobre os avanços trazidos pela nova lei, talvez, reflita

“A grande questão nessa esfera é a ampla margem de manobra para aquilo que será considerado sofrimento físico, uma vez que esse parâmetro requer algum tipo de interpretação.”

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as contradições ainda presentes na sociedade brasileira, atinente ao ponto de consciência que atingimos do problema que os castigos corporais de crianças/ adolescentes representam. Conforme indica Donoso e Ricas (2009), os adultos apresentam, em geral, um discurso no qual incorporaram conhecimentos advindos da área da Psicologia e da Pedagogia, não recomendando o uso do castigo físico e indicando priorizar outros métodos educativos. As práticas de punição corporal, contudo, paradoxalmente, são amplamente empregadas e coexistem com esses discursos, sendo naturalizadas, entendidas como necessária para que a criança/adolescente adquira os valores morais e éticos esperados pela sociedade, concebidas, portanto, não só como um direito dos pais, mas até mesmo com um dever. Vale frisar que o Estudo Mundial sobre Violência contra Crianças, divulgado pela Organização das Nações Unidas em 2006 (OEA, 2009) aponta que apenas 2% das crianças de todo o mundo estão livres do castigo corporal no lar. Um posicionamento sem ambiguidades emerge, todavia, em âmbito internacional, nas definições propostas por organizações internacionais de defesa dos direitos infantis, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Sociedade Internacional para Prevenção do Abuso e da Negligência Infantil (IPSCAN). Baseados em estudos na área da Psicologia e de ciências afins, esses organismos apontam que os castigos físicos não são benéficos, tampouco pressupostos para a promoção do desenvolvimento infantil adequado. Assim, em documento publicado em 2006, a OMS e a ISPCAN

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propuseram que é abuso físico é: (...) o uso intencional da força física contra uma criança que resulta (ou tem grandes chances de resultar) em prejuízos à saúde, à sobrevivência, ao desenvolvimento ou à dignidade da criança (OMS & IPSCAN, 2006, p. 10). Além disso, reiteram que um castigo físico leve pode representar um primeiro passo para castigos mais graves, merecendo, portanto, ser erradicado como forma de educar crianças, por meio de ações junto às famílias e na comunidade. Essa definição subentende a existência de um continuum de gravidade do problema, devendo-se entender os castigos corporais são abusos físicos de maior ou menor gravidade, em termos das consequências para as crianças/adolescentes, do comportamento manifesto pelos adultos, dos fatores de risco e mecanismos associados a sua manifestação. Focalizando os comportamentos manifestos, devem-se fazer distinções, por exemplo, quanto à natureza, à intensidade e à frequência do uso da punição corporal. Chutar uma criança é diferente de dar um tapa, e dar um tapa é diferente de dar dez tapas, uma vez ao mês ou uma vez na semana, configurando situações distintas, em termos de gravidade. O mesmo se dá quando se pensa que a ação sobre o corpo da criança pode atingir regiões abaixo da cintura, acima da cintura ou a região da cabeça, o que também implica em situações bastante distintas em termos de gravidade. Essas variações nos níveis de gravidade da punição corporal dão-se também em razão dos fatores de risco associados. As crenças prevalentes na família a respeito dos modos de criar filhos e do que se deve esperar/exigir de uma criança, os traços de personalidade dos pais, o nível de raiva e de impulsividade dos adultos nas situações relacionadas à correção do comportamento infantil, o uso de álcool ou de outras substâncias, pelos adultos, os níveis de estresse que perpassam a vida familiar, financeiro ou de outra ordem e o apoio social de que dispõem, a presença de violência conjugal, dentre outros fatores, podem incidir conjunta ou separadamente em uma família, de modo a configurar situações mais ou menos complexas, por detrás da problemática em foco (Larrivée, Tourigny & Bouchard, 2007). Todas essas ponderações devem também levar em conta a idade da criança castigada. Nesse tocante, contudo, é importante frisar, conforme aponta estudo realizado por Stewart e colaboradores (2000), que o início das punições corporais se dá, em geral, próximo ao primeiro ou ao segundo ano de vida da criança, momento em que ela ainda é extremamente vulnerável. Assim, nesse panorama de grande heterogeneidade do problema, considera-se que se deve dispor de rol bastante variado de ações visando prevenir e

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“Essas variações nos níveis de gravidade da punição corporal dão-se também em razão dos fatores de risco associados.”

tratar as situações em que há punição corporal de crianças. É fundamental que as políticas públicas e os programas voltados a essa situação também sejam heterogêneos, de forma a dispor serviços à população, dos “mais leves”, baseados em ações educativas na comunidade, aos “mais intensivos”, baseados em ações especializadas e multimodais, junto a determinadas famílias ou a grupos de famílias mais vulneráveis. Importante que se diga, alinhando-se ao propõe a Lei Menino Bernardo, não se defende a ideia de que os pais ou responsáveis que fazem uso de punição corporal sejam prontamente criminalizados em função de suas práticas parentais, ao menos não em um primeiro momento. Propõe-se, à luz daquilo que se defende para as crianças, que os comportamentos inadequados/inaceitáveis dos adultos sejam transformados em adequados/aceitáveis por meio de um processo de educação que exclua a imposição de dor física e de sofrimento psicológico, que esse processo seja promotor da aquisição não só de novas habilidades, mas sobretudo de novos valores, de modo que se instale uma nova cultura que envolva a criação das crianças, sendo essa livre de qualquer forma de violência (em qualquer grau). * Marina Rezende Bazon é professora-doutora do Departamento de Psicologia, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto -SP, da Universidade de São Paulo. É coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Desenvolvimento e Intervenção Psicossocial (GEPDIP). ** Roberta Noronha Azevedo é psicóloga, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto-SP, da Universidade de São Paulo. É membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Desenvolvimento e Intervenção Psicossocial (GEPDIP).

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