Participação e mobilização do direito no novo CPC: o amicus curiae e a defesa das minorais

May 26, 2017 | Autor: C. Silva Nicácio | Categoria: Amicus Curiae, Sociologia do Direito, mobilização do direito
Share Embed


Descrição do Produto

Miracy Barbosa de Sousa Gustin Mônica Sette Lopes Camila Silva Nicácio 0rganização

Eficiência, eficácia e efetividade Velhos desafios ao novo Código de Processo Civil

Belo Horizonte 2016

Eficiência, eficácia e efetividade: velhos desafios ao novo Código de Processo Civil Miracy Barbosa de Sousa Gustin Mônica Sette Lopes Camila Silva Nicácio (Orgs.)

Copyright © desta edição [2016] Initia Via Editora Ltda. Rua dos Timbiras, nº 2250 – sl. 103-104, Lourdes, Belo Horizonte, MG CEP 30140-061, www.initiavia.com Editora-Chefe: Isolda Lins Ribeiro Revisão: autores Diagramação e Capa: Brenda Batista TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial deste livro ou de quaisquer umas de suas partes, por qualquer meio ou pro-cesso, sem a prévia autorização do Editor. A violação dos direitos autorais é punível como crime e passível de indenizações diversas.

______________________________________________________

P963

Eficiência, eficácia e efetividade: velhos desafios ao novo Código de Processo Civil / Miracy Barbosa de Sousa Gustin, Mônica Sette Lopes e Camila Silva Nicácio (organização). - Belo Horizonte : Initia Via, 2016. 294p. ISBN: 978-85-64912-95-3 Outros autores: Fabiana de Menezes Soares, Caroline Sthefani dos Santos Maciel, Antônio Gomes de Vasconcelos, Gabriela de Campos Sena, Gláucio Maciel Gonçalves, Alex Lamy de Gouvea, Paula Carolina de Oliveira Azevedo da Mata, Fernando Gonzaga Jayme, Marcelo Veiga Franco, Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau, Thaís Costa Teixeira Viana, Júlia Silva Vidal, Maria Flávia Diniz Viana, Giselle Fernandes Corrêa da Cruz, Adriaan Goulart de Sena Orsini, Cibele Aimée de Souza, Nathane Fernandes da Silva, Daniel Gaio, Maria Helena Damasceno e Silva Megale, Paula Vilaça Bastos, Mário Colombi Gava. 1. Direito Processual . 2. Novo Código de Processo Civil 3. Mediação. I. Gustin, Miracy Barbosa de Sousa. II. Sette Lopes, Mônica. III. Nicácio, Camila Silva. III. Título. CDU: 34(082)

SUMÁRIO

Apresentação

5

Fontes do direito e circulação de modelos jurídicos: o sistema de precedentes na common law e no novo Código de Processo Civil Fabiana de Menezes Soares Caroline Sthefani dos Santos Maciel

8

A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça: a plurivocidade do conceito e sua dimensão processual Antônio Gomes de Vasconcelos Gabriela de Campos Sena

34

A cooperação jurídica internacional por auxílio direto e a cooperação jurídica interna no novo Código de Processo Civil Gláucio Maciel Gonçalves Alex Lamy de Gouvea

79

Prova do teor e vigência de direito estadual e municipal Fabiana de Menezes Soares Paula Carolina de Oliveira Azevedo da Mata

97

A tridimensionalidade do contraditório no direito processual civil brasileiro Fernando Gonzaga Jayme Marcelo Veiga Franco

120

O (pseudo)enquadramento de demandas repetitivas como espécie de processo civil coletivo no Código de Processo Civil de 2015 Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau Thaís Costa Teixeira Viana

146

Participação e mobilização do direito no novo CPC: o amicus curiae e a defesa das minorais Camila Silva Nicácio Júlia Silva Vidal Maria Flávia Diniz Viana

173

Mediação e interculturalidade: a construção de um direito para a efetividade Miracy Barbosa de Sousa Gustin Giselle Fernandes Corrêa da Cruz

198

A pedagogia da mediação na nova ordem processual civil: participação e autonomia na abordagem dos conflitos Adriana Goulart de Sena Orsini Cibele Aimée de Souza Nathane Fernandes da Silva

215

O direito à cidade e seu processo de institucionalização no Brasil Daniel Gaio

236

A fenomenologia nos caminhos do conhecer ambiental e da tutela jurídica Maria Helena Damasceno e Silva Megale Paula Vilaça Bastos

251

Professora, como se aprende isso? Mônica Sette Lopes Mário Colombi Gava

269

APRESENTAÇÃO Após amplos debates e audiências públicas durante os cinco anos de tramitação no Congresso Nacional, o Novo Código de Processo Civil (NCPC) passou a vigorar em março de 2016 sob o marco da desburocratização e da simplificação. Desde as reformas processuais consubstanciadas na Lei da Ação Civil Pública (1985), na Lei dos Juizados Especiais (1995) e no que se passou a conhecer por “minirreformas” do Código de Processo Civil (anos 1990 e 2000), trata-se da primeira e mais ampla reforma realizada em tempos democráticos. Embora não seja objeto de consenso por parte de profissionais do direito e especialistas em direito processual, muitos de seus dispositivos inscrevem-se no imperativo de garantir celeridade processual conectada aos princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal, donde se falar do estabelecimento dos incidentes de resolução de demandas repetitivas; de um sistema de precedentes ou da necessidade de fundamentação substancial das decisões judiciais. Sob a pressão por menor morosidade, no contexto de uma prestação jurisdicional ainda largamente “sufocada” nos gargalos do sistema de justiça, os mentores da nova legislação não limitaram seus aperfeiçoamentos, contudo, na busca por celeridade, tendo sido sensíveis à reivindicação de setores sociais inteiros por mais e maior participação, marca primeira de uma jurisdição não somente eficiente e eficaz, mas efetiva porque democrática. Assim, em conformidade com seu tempo, o NCPC abre espaço para uma política mais abrangente da participação e da solução consensual de conflitos, conforme disposto no artigo 334, sobre as audiências de mediação. Uma vez que a nova legislação é ainda alvo de vivos debates e os desafios a que será submetida apenas começam a despontar no horizonte dos profissionais do direito e dos jurisdicionados em geral, apresentam-se nesta obra contribuições que tentam restituir a importância do direito processual nas reformas do sistema de justiça brasileiro como um todo, haja vista a unidade da legislação processual face à diversidade de suas estruturas burocráticas e organizacionais. Frisa-se que tais contribuições percorrem perspectivas relevantes de interseção das pesquisas realizadas pelos integrantes da Linha 2 do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG, a qual tem como temática geral Direitos humanos e estado democrático de direito: fundamentação, participação e

6 • Eficiência, eficácia e efetividade: velhos desafios ao novo Código de Processo Civil

efetividade. Cada uma delas demonstra esforços postos à disposição do conhecimento do direito, especialmente a partir de figuras jurídicas que ganham corpo e ressonância no NCPC. Compreendê-las, no cotejo com dimensões pungentes de esferas problemáticas da vida (a cidade, o meio ambiente, o trabalho), é dever dos que se disponibilizam para a pesquisa do direito e para a composição dos fenômenos jurídicos, com sua interferência na vida das pessoas, dos grupos e mesmo na dimensão futura e imponderável das contingências difusas de interesses, necessidades e demandas humanas. Uma breve passagem pelo conjunto dos trabalhos desvela abordagens criativas e instigantes, tais como a contribuição para a doutrina de precedentes no Brasil, a partir da análise da circulação de modelos jurídicos (Soares; Maciel); os efeitos da cooperação judiciária processual na atividade jurisdicional, em particular, e na administração da justiça, em geral (Gomes de Vasconcelos; Sena); as particularidades da cooperação judiciária nacional e internacional, bem como os desafios da procedimentalização de seus instrumentos à luz da Constituição Federal de 1988 (Gonçalves; Gouvea); considerações sobre a necessidade de produção normativa segundo os procedimentos da Legística, sobretudo em vista da impossibilidade de alegar descumprimento de lei por desconhecimento da legislação (Soares; Azevedo da Mata); a vivência do contraditório comparticipativo como demanda da própria democracia (Jayme; Franco); comparações entre a técnica processual do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e ações coletivas tradicionais como instrumento de tutela coletiva de direitos (Baracho Thibau; Viana); a potencialidade do instituto do amicus curiae¸ regulamentado pelo NCPC, como ferramenta de mobilização do direito para a reivindicação co-participativa de direitos das minorias (Nicácio; Vidal; Viana); reflexões sobre o potencial da mediação em contextos de diálogo intercultural para a inserção e proteção social do público imigrante, crescente no Brasil dos últimos anos (Gustin; Côrrea da Cruz); análises sobre a inserção da mediação na ordem processual civil como elemento crucial para a construção de uma cultura de participação cidadã e autonomia de indivíduos e grupos (Sena; Souza; Silva); problematizações a propósito da institucionalização do “direito à cidade” no Brasil frente às dificuldades de efetivação da reforma urbana (Gaio); abordagem fenomenológica sobre a tutela jurídica do meio ambiente, por meio de medidas preventivas e combativas que preservem o homem e o seu meio (Silva Megale; Bastos) e, finalmente, considerações sobre a importância da oralidade não apenas como princípio jurídico, mas como pilar fundador da comunicação

Apresentação • 7

humana, desvelando o direito em seu funcionamento e em sua própria episteme (Sette Lopes; Gava). Assim, brevemente apresentado, o objetivo desta coletânea e das comunicações que por meio dela se anunciam é contribuir para uma leitura atual e crítica da nova legislação processual, atentos os autores ao fato de que ela contribui para que nos aproximemos de um sentido mais amplo e efetivo de justiça. Cabe às práticas e às múltiplas concepções interpretativas perfazerem cultura o que se faz pelo palmilhar daquela boa parte do caminho que tende e deve levar à efetividade dos princípios, dos ritos e dos institutos que fazem do Código de Processo Civil de 2015 um canal das esperanças de um direito melhor e mais justo. Boa leitura! Miracy Barbosa de Sousa Gustin, Mônica Sette Lopes, Camila Silva Nicácio Belo Horizonte, outubro de 2016.

FONTES DO DIREITO E CIRCULAÇÃO DE MODELOS JURÍDICOS: O SISTEMA DE PRECEDENTES NA COMMON LAW E NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Fabiana de Menezes Soares1 Caroline Sthefani dos Santos Maciel2 Resumo: O novo Código de Processo Civil normatizou a aplicação dos precedentes jurisprudenciais no direito brasileiro, como uma forma de uniformizar e estabilizar a jurisprudência dos Tribunais. Diante disso, este artigo retorna à origem classificatória do instituto enquanto uma fonte do direito para melhor compreensão de sua estrutura. Em sequência, o trabalho resgata o seu embasamento teórico e funcionamento na tradição de common law, que poderá contribuir para a consolidação de uma doutrina do precedente no Brasil. Palavras-chave: Precedente. Jurisprudência. Fonte do direito. Common law. Novo Código de Processo Civil. Abstract: The new Code of Civil Procedure stipulated the enforcement of judicial precedents in Brazilian law, as way to unify and stabilise the Courts decisions. Therefore, this paper returns to the qualifying background of this institute as a source of law, in order to better comprehend its framework. In a row, the essay recover precedent’s theoretical basis and its functioning within common law tradition, which can contribute greatly to the entrenchment of a doctrine of precedent law in Brazil. Keywords: Precedent. Case-law. Source of law. Common law. New Code of Civil Procedure.

Professora Associada II da Faculdade de Direito da UFMG, nos cursos de Graduação e Pós-graduação. Coordenadora do grupo de pesquisa Observatório para a Qualidade da Lei, certificado pelo CNPq, e do Núcleo de Inclusão Digital da Clínica de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da UFMG. e-mail: [email protected] 2 Mestranda de Direito e pesquisadora bolsista do CNPq no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG. Advogada vinculada à Divisão de Assistência Judiciária (DAJ) em Direito Tributário. e-mail: [email protected] 1

Fabiana de Menezes Soares & Caroline Sthefani dos Santos Maciel • 9

Sumário: Introdução. 1. A Constituição como garantia de unidade e coerência do sistema de fontes do direito. 2. O direito jurisprudencial como fonte do direito: o uso de precedentes para uniformização da jurisprudência e seus limites. 3. A aplicação dos precedentes em um sistema de common law: conceitos e mecanismos basilares. 4. O sistema de precedentes no Novo Código de Processo Civil. 5. Considerações finais. Referências bibliográficas.

Introdução Em 18 de março de 2016, entrou em vigor o Novo Código de Processo Civil (NCPC) e com ele ampliou-se e, assim, valorizou-se o uso de precedentes jurisprudenciais no direito brasileiro. A grande novidade trazida pelo NCPC em matéria de direito jurisprudencial é a adoção do instituto do precedente vinculante (art. 927). A preocupação do novo legislador ao normatizar um sistema de precedentes no Brasil foi com o recorrente problema de diferentes juízes ou Tribunais proferirem decisões judiciais com orientações diversas (ou até mesmo opostas) para a solução de casos idênticos ou similares. Trata-se, portanto, de uma questão de segurança jurídica e de igualdade da aplicação da lei que se dá através da uniformização da jurisprudência (art. 926 do NCPC). O instituto do precedente jurisprudencial é, tradicionalmente, associado aos sistemas de common law, nos quais foram desenvolvidos uma série de conceitos fundamentais e de mecanismos indispensáveis à aplicação do precedente ao caso dado. Nesse sentido, para se constatar se cabe a observância de um precedente, o intérprete deve verificar qual é a ratio decidendi da decisão pretérita para determinar se o caso sub judice se insere nessa razão determinante; essa é a forma de esclarecer a existência ou não de similariedade relevante entre os dois casos. Aquilo que não foi determinante para a decisão é chamado de obiter dictum, sendo que essas questões tangenciais não vinculam o juiz ou Tribunal na forma de precedente judicial. No entanto, nem sempre, existirá essa similariedade entre os dois casos; nas hipóteses nas quais o caso presente se distingue significantemente do caso pretérito, o julgador se valerá do mecanismo de distinguishing para afastar a aplicação do precedente ao caso dado, justificando as razões para tanto. Por fim, pode-se constatar que o precedente anteriormente fixado já se tornou ultrapassado e não é mais adequado para o contexto atual. Nesse caso, a saída é o overruling, que é o instrumento que per-

10 • Fontes do direito e circulação de modelos jurídicos

mite a superação de um entendimento jurisprudencial. A utilização de todos esses conceitos e instrumentos passa por entender o precedente como uma prática argumentativa e racional, de tal forma que a decisão judicial que aplica, distingue ou supera um precedente tem de ser sempre bem fundamentada. Mas a questão do precedente volta-se, antes de tudo, ao seu reconhecimento como uma fonte do direito. Ao admitir-se, no âmago de um ordenamento jurídico, o pluralismo de normas e a existência de um sistema de fontes diversificado, surge a necessidade de unidade e coerência desse sistema, que deve se dar através da sua unificação em um fator último comum. São as normas da Constituição que trazem essa unidade e garantem um diálogo harmônico entre as fontes do direito. Desse modo, o precedente jurisprudencial terá como fator limitante ao seu reconhecimento como fonte do direito os parâmetros trazidos pela Constituição de 1988. Diante desse quadro, o presente artigo pretende comparar os parâmetros de aplicação dos precedentes jurisprudencias trazidos pelo NCPC para o direito brasileiro com a teoria de precedentes tradicionalmente aplicada em um sistema vinculado ao common law. Para tanto, esboçar-se-á, primeiramente, um delineamento geral sobre o reconhecimento das fontes como pertencentes ao direito e os reflexos dos limites desse reconhecimento no precedente jurisprudencial; em sequência, avaliar-se-á os conceitos e mecanismos relacionados ao instituto do precedente na tradição de common law para, ao final, trazer à baila a previsão do NCPC. Por fim, propor-se-á uma circulação de modelos jurídicos, que permita a construção futura de uma doutrina de precedentes consistente e compatível com o ordenamento pátrio.

1. A Constituição como garantia de unidade e coerência do sistema de fontes do direito Antes de mais nada, cabe trazer à baila o sentido trazido pelo vocábulo fontes do direito. Conforme destaca Fabiana de Menezes,3 “o sentido original do termo ‘Fontes do Direito’ evoca uma dimensão metajurídica, pois congrega uma constelação de fatos-suporte e atos capazes de gerar normas jurídicas”. A sua dimensão metajurídica se relaciona com o fato de que as fontes do direito vão além do direito positivado em 3

SOARES, 2002, p. 102.

Fabiana de Menezes Soares & Caroline Sthefani dos Santos Maciel • 11

uma sociedade4, alcançando essa série de fatos e atos sociais, a partir dos quais, subsequentemente, a produção do direito se dá. Nessa perspectiva, a teoria das fontes parte do pressuposto de que o direito não é um dado, mas uma construção5 e, assim, reporta-se a essa realidade anterior à manifestação concreta do direito6. No entanto, esse não é o único significado possível da expressão “fontes do direito”7. Hespanha8 enumera, a princípio, três sentidos utilizados: i) a origem do direito, que envolve o aspecto histórico do fenômeno jurídico; ii) o conjunto de fatores que geram ou condicionam uma norma jurídica, que seria o sentido sociológico ou material (e aqui adotado); iii) o conjunto de textos pelos quais as normas se expressam, que seria o aspecto textual do termo.9 As fontes do direito descrevem, no sentido aqui adotado, os diversos “modos de formação das normas jurídicas, ou seja, sua entrada no sistema do ordenamento”, nas palavras de Tércio Sampaio10. O sistema de fontes é diversificado, sobretudo em razão do dinamismo social e, consequentemente, do dinamismo normativo. Assim, o pluralismo normativo, isto é, a existência de normas em vários âmbitos e níveis, é um fato.11 No entanto, considerar o sistema de fontes diversificado e heterogêneo não é incompatível com a ideia de coerência interna do sistema jurídico.12 O reconhecimento de uma norma como jurídica levanta a questão sobre a sua fonte e, consequentemente, quando se consagra uma fonte do direito, reconhece-se que toda norma que advém dessa fonte “deve ser considerada como pertencente ao ordenamento.”13 Na concepção tradicional das fontes do direito, exigia-se a presença dos requisitos da generalidade e abstração para que uma manifestação fosse considerada fonte do direito, em nome da igualdade de tratamento e da segurança jurídica. Ao revés, Hespanha entende que práticas do cotidiano podem reconhecidas como fontes do direito, tais como aquelas pouco estruturadas, dotadas de sentimento difuso de obrigatoriedade (usos e costuIbid. FERRAZ JÚNIOR, 2013, p. 190. 6 HESPANHA, 2009, p. 531. 7 Tércio Sampaio também discute essa ambiguidade da expressão fontes do direito e dos múltiplos significados que possui (Ver: FERRAZ JÚNIOR, 2013, p. 192). 8 HESPANHA, 2009, p. 530. 9 ASCENSÃO, 2005, p. 52. 10 FERRAZ JÚNIOR, 2013, p. 194. 11 HESPANHA, 2009, p. 524. 12 SOARES, 2002, p. 117-118. 13 FERRAZ JÚNIOR, 2013, p. 193. 4 5

12 • Fontes do direito e circulação de modelos jurídicos

mes), aquelas decisões baseadas na equidade ou ainda aqueles atos jurídicos refletidos e intencionais (contrato)14. Essas micro-manifestações da experiência jurídica cotidiana compõem o chamado direito vivo15 e podem, portanto, serem reconhecidas como fonte, tal qual o direito formal do Estado. O reconhecimento de formas de manifestação do direito não estatais envolve interesses sociais e políticos e, com isso, gera confrontos sócio-políticos16. Por isso, é necessário haver um critério para se determinar se uma fonte é ou não reconhecida como jurídica17. Desse modo, tem-se essa aparente contradição que deve ser equilibrada: de um lado, o pluralismo normativo e, de outro, os limites ao reconhecimento de fontes do direito, estabelecidos pela vontade popular formalmente expressa18. Enquanto predominava a ideia de que todas as fontes do direito provinham de um núcleo comum, seja ele a vontade de Deus, a razão ou o espírito do povo19, a unidade e coerência do ordenamento jurídico eram garantidas, uma vez que, ainda que se admitisse o pluralismo de normas, o sistema de fontes se unificava em um desses pressupostos últimos. Ultrapassados esses paradigmas, o ordenamento jurídico se viu aparentemente formado por um conjunto díspar de fontes, sem unidade sistemática. Foi o Estado constitucional que reintroduziu alguma unidade ao sistema de fontes ao sujeitá-lo à hegemonia das normas e valores constitucionais20. Bem verdade, a Constituição incorpora o pluralismo normativo e não reduz o direito ao direito estatal, nem reduz as fontes às de origem constitucional21. Uma fonte do direito pode ter origem não estatal ou não derivar da Constituição e, ainda assim, ser reconhecida por ela como tal, desde que essa fonte se conforme aos ditames constitucionais. Desse modo, o critério último para se determinar se uma fonte é jurídica é a Constituição, entendida como “norma primária sobre a produção jurídica”22. Ela traz unidade ao estruturar “consensos dominantes sobre o reconhecimento ou não da norma como jurídica”23 que, para tanto, deve HESPANHA, 2009, p. 534. SANTOS, 2000, p. 299 apud HESPANHA, 2009 p. 531. 16 HESPANHA, 2009, p. 524. 17 Um desses critérios poderia ser a regra de reconhecimento de Hart. (Ibid., p. 526). 18 HESPANHA, 2009, p. 528. 19 Ibid., p. 536. 20 Ibid. 21 Ibid., p. 537. 22 CANOTILHO, 2003, p. 693. 23 HESPANHA, 2009, p. 539. 14 15

Fabiana de Menezes Soares & Caroline Sthefani dos Santos Maciel • 13

atender a dois requisitos: corresponder a um sistema de fontes do direito explícito ou implícito na Constituição e que tal sistema não ofenda os comandos constitucionais24. Desse modo, basta fazer um teste de validade, conforme os parâmetros constitucionais, de cada suposta fonte do direito para verificar se cumpre os requisitos acima elencados. Nesse artigo, a ênfase se dá em relação ao reconhecimento da jurisprudência como fonte do direito e dos limites trazidos pela Constituição de 1988 a esse reconhecimento.

2. O direito jurisprudencial como fonte do direito: o uso de precedentes para uniformização da jurisprudência e seus limites No final do séc. XVIII e início do séc. XIX, surgiu um novo modelo de organização e sistematização jurídica na Europa Continental, conhecido como codificação.25 Nesse contexto, a lei é considerada a fonte do direito por excelência e, na sua elaboração, deve se buscar o máximo de clareza, simplicidade e brevidade possíveis26. Com a centralidade dada à lei, o papel dos intérpretes, no caso aqui, dos juízes, é traduzir a vontade e os fins do legislador enquanto “ente abstrato dotado de razão”27. Nesse sentido, Montesquieu afirmou: “Os juízes são apenas a boca que pronuncia as palavras da lei”28. No século XXI, ainda que a importância da lei continue inegável, sobretudo em países de tradição de civil law, como o Brasil, vivencia-se a crise do legalismo29. Diante desse quadro, a posição da jurisprudência foi repensada, para deixar de ser considerada uma fonte subordinada à lei e sem autonomia.30 Assim Larenz afirma que “a aplicação da lei não se esgota num processo de subordinação, porém antes requer um amplo alcance de julgamentos de valor.”31 A interpretação e integração são tarefas jurisprudenciais (além de doutrinais) que fixam e consolidam o sentido que as leis serão aplicadas; o sentido da lei é, em outras palavras, antes jurisprudencial do que legislativo32. Assim, o conteúdo legal é, em certa medida, desenvolvido através da interpretação jurisprudencial e os juízes são chamados “a deIbid. TARELLO, 2008, p. 7-8 26 Ibid., p. 19. 27 Ibid., p. 16. 28 MONTESQUIEU, 1949, p. 159. 29 HESPANHA, 2009, p. 581. 30 Ibid., p. 552. 31 LARENZ, 1975, p. 150 (ver pt) apud ALEXY, 2001, p. 20. 32 HESPANHA, 2009, p. 553. 24 25

14 • Fontes do direito e circulação de modelos jurídicos

cidir e decretar de vez em quando de acordo com a lei.”33 Como Hart aponta, os conceitos linguísticos e jurídicos têm uma textura aberta e, por isso, os juízes devem exercer alguma discricionariedade nas áreas de penumbra34. A longa sobrevivência de codificações seculares nos ordenamentos jurídicos se dá justamente mediante a alteração de seus significados pela jurisprudência (e pela doutrina), que permitem adequá-los às modificações sociais contínuas e complexas35. Por isso, hoje, não se questiona mais a autonomia da jurisprudência como forma de manifestação e formação do direito. O direito jurisprudencial é, portanto, fonte do direito, mas, assim como as demais fontes, deve se submeter à ordem constitucional, no caso brasileiro, a Constituição de 1988. Um grande risco trazido pelo reconhecimento do direito jurisprudencial como fonte do direito envolve questões de segurança jurídica e de igualdade de tratamento na aplicação da lei. Isso porque os juízes das diversas varas do país decidem, muitas vezes, de forma antagônica os vários casos baseados nas mesmas premissas fáticas. A solução para esse problema é a adoção de mecanismos de uniformização jurisprudenciais, dentre os quais se incluem o reconhecimento de eficácia erga omnes a certas decisões36 (como uma decisão do STF em sede de controle concentrado direto), a adoção de súmulas, vinculantes ou não, e a construção de precedentes judiciais, sendo, este último, o foco desse artigo. Uma decisão construída de acordo com um precedente é aquela “se baseia no que foi decidido quando a mesma questão teve de ser solucionada no passado”.37 O precedente significa, assim, proferir a mesma solução jurídica na decisão presente que foi dada em uma decisão passada para as mesmas questões38; uma decisão passada, portanto, guia a construção de uma decisão presente. Seguir um precedente é, então, uma atividade de olhar para o passado,39 mas, além disso, envolve uma dimensão do futuro40, pois, assim como a atividade de criar um precedente, orientar-se conforme ele pode influenciar os próximos julgadores a também fazê-lo41. ENGISCH, 1971, p. 107 apud ALEXY, 2001, p. 20. HART, 1961, p. 124-8, 200. 35 HESPANHA, 2009, p. 552. 36 Ibid, p. 562. 37 DUXBURY, 2008, p. 1. 38 SCHAUER, 2009, p. 37. 39 Ibid., p. 36. 40 SCHAUER, 1987, p. 573 41 DUXBURY, 2008, p. 4. 33 34

Fabiana de Menezes Soares & Caroline Sthefani dos Santos Maciel • 15

No entanto, nem todo uso de decisões passadas envolve um raciocínio por um precedente e a distinção se faz com base na diferença entre aprendizagem ou persuasão e obediência ou observância da decisão passada42. Um argumento baseado em um precedente é aquele que fornece um peso independente ao fato de que aquele mesmo resultado foi alcançado no passado43. Decide-se conforme um precedente quando se segue decisões passadas pelo simples fato de elas existirem, isto é, pelo status que aquela decisão possui; é, portanto, uma decisão baseada na autoridade do precedente44. Ao revés, quando, por exemplo, um juiz federal toma conhecimento e se sente persuadido por um argumento utilizado em decisão de um Tribunal estadual, ele não está obedecendo ou seguindo um precedente, ainda que ele cite aquela decisão, mas tão somente utilizando experiências jurisprudenciais pretéritas para construir a sua própria decisão. É o que ilustra categoricamente Radin: Se uma Corte segue uma decisão passada, porque uma regra reverenciada foi nela proferida, porque é a decisão correta, porque é lógico, porque é justo, porque está de acordo com o peso da autoridade, porque foi generalizadamente aceita e seguida, porque assegura um resultado benéfico para a sociedade, nada disso é a aplicação da state decisis. Para se fazer com que seja uma aplicação da mesma, a decisão anterior deve ser seguida porque é uma decisão prévia e por nenhuma outra razão45.

Mas respeitar as decisões passadas pelo simples fato de serem pretéritas não significa que elas devam ser seguidas incondicionalmente e de forma acrítica, apenas parte-se do pressuposto de que o passado tem uma autoridade inerente, que cria a obrigação de respeitar as suas prescrições, o que foi asseverado por Kronman46. Conforme explica Schauer, o precedente evoca duas dimensões nas quais há a obrigação de segui-lo: a vertical e a horizontal. Na perspectiva vertical, diz-se que as Cortes inferiores têm a obrigação de seguir os precedentes das Cortes superiores, compatíveis com a sua jurisdição47. Nesse sentido, um juiz estadual deve seguir as decisões do Tribunal ao SCHAUER, 2009, p. 38. SCHAUER, 1991, p. 182-183. 44 SCHAUER, 2009, p. 40. 45 RADIN, 1933, 200. 46 KRONMAN, p. 1039, 1044. 47 SCHAUER, 2009, p. 36-37. 42 43

16 • Fontes do direito e circulação de modelos jurídicos

qual se vincula, bem como do STJ e do STF (ideia de hierarquia judicial). Já no aspecto horizontal, as Cortes também devem seguir as suas próprias decisões anteriores. Trata-se aqui de colocar as decisões pretéritas em um patamar superior às posteriores, pelo simples fato de serem anteriores, o que se denomina de doutrina do stare decisis, conforme Radin já trouxe acima. Nesse sentido, Atiyah afirma que “o conceito de um sistema de precedentes é que ele obriga os juízes, em certos casos, a seguirem decisões, ainda que não concordem com elas”,48 seja porque são precedentes verticais (de Cortes superiores) ou horizontais (pretéritas da própria Corte). A vantagem disso é garantir a segurança jurídica e a estabilidade decisional, na medida em que as partes interessadas podem confiar e prever que as questões jurídicas que já foram solucionadas e para as quais já foi construído um precedente serão decididas da mesma forma.49 Assim, um sistema de precedente pode fornecer um considerável grau de segurança jurídica, de tal forma que se possa antecipar como o Tribunal irá decidir naquele caso50 e esta seria a justificativa mais importante para se seguir um precedente.51 Nos casos nos quais o precedente é aplicável, afastar-se dele pode ter consequências graves para o sistema jurídico. “A originalidade judicial é, às vezes, criticada, na medida em que tende a desestabilizar o direito.”52 Um sistema de precedentes, desse modo, limita a possibilidade de arbitrariedades judiciais53 e funciona como um fator de restrição à discricionariedade dos juízes. Além disso, outra justificativa para a observância de precedentes envolveria um argumento de igualdade de tratamento ou de justiça,54 de tal forma que casos essencialmente similares devem receber a mesma solução jurídica, assim como aqueles de natureza diversa devem ser tratados diferentemente.55 Isso envolveria, também, uma questão de integridade, nas palavras de Dworkin: “a observância de um precedente [...] garante que o governo, através de suas Cortes, ‘fale com uma única voz’ na aplicação dos princípios para seus cidadãos – a essência da ‘inteATIYAH, 1986, p. 27. SCHAUER, 2009, p. 43. 50 DUXBURY, 2008, p. 160-161. 51 GOODHART, 1934, p. 58 52 POSNER, 2007, p. 22 53 DUXBURY, 2008, p. 166. 54 Alexy fala em princípio da universalidade, “a exigência de que tratemos casos iguais de modo semelhante, o que está por trás da justiça como qualidade formal”. (ALEXY, 2001, p. 259). 55 DUXBURY, 2008, p. 170. 48 49

Fabiana de Menezes Soares & Caroline Sthefani dos Santos Maciel • 17

gridade’.”56 Assim, seguir os precedentes seria uma forma de se garantir a integridade do direito57. Ainda, um sistema de precedentes aumenta a eficiência judicial, pois facilita o trabalho dos juízes e Tribunais, que seria consideravelmente maior “caso toda decisão anterior pudesse ser reaberta em todo caso presente”58. Em um sistema de precedentes eficiente, as chances de o caso transitar em julgado na primeira instância são maiores, uma vez que, existindo um precedente vertical sobre o tema e o juiz aplicando-o corretamente, as partes têm fortes motivos para não recorrer59. Isso é especialmente importante no contexto brasileiro de crise do Judiciário por abarrotamento de ações ajuizadas. Por outro lado, ainda que a estabilidade decisional seja desejável, alguns autores apontam o risco de engessamento do Judiciário com a adoção de um sistema de precedentes rigoroso. O precedente pode ter sido construído em um contexto completamente diferente ou estar equivocado e, em última instância, os juízes devem respeitar a Constituição e não aqueles intérpretes que vieram antes deles. É o que o Ministro William O. Douglas alerta: Um juiz analisando uma decisão em matéria constitucional pode ter necessidade de reverenciar a história pretérita e aceitar o que já foi escrito. Mas ele lembra que, acima de qualquer coisa, ele jurou proteger e seguir a própria Constituição, não a interpretação que seus predecessores fizeram. Então ele formula as suas próprias visões, rejeitando algumas das anteriores como falsas e adotando outras. Ele não pode fazer de outra forma, a não ser que ele deixe que homens mortos há muito tempo e que desconhecem os problemas da época em que ele vive pensem por ele.60

A preservação de um precedente pode não ser a melhor alternativa e as Cortes podem se ver obrigadas a seguirem precedentes que “persistem por nenhuma razão melhor que o fato de ter sido fixado na época de Henrique IV.”61 Por isso, não se pode entender que um sistema de precedentes retira a discricionariedade judicial, uma vez que os juízes tem o dever, antes de mais nada, de solucionar o caso sub judice DWORKIN, 1986), p. 165. PETERS, 1996, p. 2038–2039, 2073–2077. 58 CARDOZO, 1921, p. 149. 59 GERHARDT, 2008, p. 152. 60 DOUGLAS, 1949, p. 735-736 apud GERHARDT, 2008, p. 51. 61 HOLMES, 1897, p. 457, 459. 56 57

18 • Fontes do direito e circulação de modelos jurídicos

(art. 5º, XXXV da CF/88) em conformidade com a suas peculiariedades e, para tanto, precisa de flexibilidade na aplicação dos precedentes. Como Marmor afirma: [...] As Cortes devem ser autorizadas, ao menos em alguns casos, a chegar a preferências diferentes entre valores incomensuráveis. A uniformidade das decisões que é imposta pelo princípio de tratar casos similares de forma semelhante compromete gravemente a habilidade das Cortes de reagir às necessidades da diversidade e pluralismo.62

Além disso, argumentos de eficiência judicial não podem significar a aplicação mecânica de precedentes63, na busca por uma Justiça de números. Isso significaria o descumprimento do juiz de seu dever constitucional de “distribuição da justiça individual, caso a caso”64, bem como do dever de fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX da CF/88 e art. 11 do CPC/15). Dessa forma, a existência de um sistema de precedentes deve vir acompanhada de uma hermenêutica cuidadosa e de uma cultura argumentativa, para que não se torne um incentivo ao formalismo pernicioso.65 Nesse sentido, conclui-se que a normatização de um sistema de precedentes no Brasil pelo Novo Código de Processo Civil tem o potencial de trazer muitos benefícios para o ordenamento jurídico brasileiro, tais como: segurança jurídica, estabilidade decisional, igualdade de tratamento e garantia de justiça formal, integridade do direito jurisprudencial, limitação ao poder do juiz, eficiência judicial, dentre outros. No entanto, para que o precedente se configure como uma prática benéfica, deve vir acompanhado de uma teoria hermenêutica-argumentativa que o sustente e que garanta que ainda exista flexibilidade judicial, discricionariedade (limitada) dos juízes, prestação efetiva da tutela jurisdicional e fundamentação das decisões judiciais. Caso contrário, o uso do precedente se torna uma desculpa para “agir sem razão, para declarar a exclusão da razão e, portanto, em oposição à razão”66. Para tanto, cabe um resgate dos parâmetros de utilização dos precedentes em um contexto de common law, cuja longa tradição no uso desse instrumento pode contribuir para o amadurecimento e aperfeiçoamenMARMOR, 2005, p. 35. BUSTAMANTE; DERZI, 2013, p. 332 64 DERZI, 2012, p. 611. 65 BUSTAMANTE; DERZI, 2013, p. 335-336. 66 BENTHAM, 1983, p. 434. 62 63

Fabiana de Menezes Soares & Caroline Sthefani dos Santos Maciel • 19

to de um sistema de precedentes com embasamento racional e também adequado ao contexto brasileiro.

3. A aplicação dos precedentes em um sistema de common law: conceitos e mecanismos basilares Enquanto os países de tradição predominantemente de common law desenvolvem mecanismos e técnicas para a correta utilização dos precedentes, que não resulte em engessamento do Judiciário e possibilite a sua flexibilização conforme as peculariedades do caso sub judice, os países inseridos em contexto de inclinação para civil law67 sofrem do problema inverso: a ausência de estabilidade jurisprudencial, buscando formas que auxiliem na uniformização da jurisprudência68. Nesse sentido, a experiência de direito comparado esclarece a forma como esses países enfrentaram e resolveram os mesmos problemas pelos quais se passa hoje aqui e pode contribuir para que sejam realizadas reformas no ordenamento brasileiro. É o que afirma Taruffo: “o melhor modo de conhecer o próprio ordenamento é o de conhecer outros ordenamentos.”69 Assim, a circulação de modelos jurídicos é extremamente enriquecedora, na medida em que a análise do funcionamento do instituto do precedente em um contexto no qual houve a sua consolidação gradativa contribui para se entender como ele deve funcionar de forma efetiva no Brasil, mas se adequando às peculiaridades deste ordenamento e ao projeto cultural pressuposto neste artigo70. O primeiro passo para a aplicação de um precedente ao caso concreto é, obviamente, a identificação da existência de precedente(s) relevante(s) para a solução do caso71. Essa tarefa pode ser mais difícil do que parece, pois, bem verdade, geralmente o caso julgado e os casos passados não são idênticos72. Por isso, identificar o precedente passa por verificar se existe alguma decisão passada similar e, mais importante, “se Cabe aqui fazer um alerta quanto à crise de uma visão pura e contraposta desses modelos tradicionais (common law x civil law), uma vez que hoje os ordenamentos combinam aspectos das duas tradições, em maior ou menor medida, e há variações significativas entre ordenamentos classificados como o mesmo modelo processual, por exemplo, as heterogeneidades entre os sistemas de common law dos Estados Unidos e do Reino Unido. (TARUFFO, 2013, p. 18, 25). Por isso, falamos em predominância ou inclinação maior ao common law ou ao civil law, sem fazer classificações absolutas em categorias estanques. 68 THEODORO JÚNIOR, 2015, p. 243. 69 TARUFFO, 2013, p. 12. 70 TARUFFO, 2013, p. 12 e 15. 71 SCHAUER, 2009, p 44. 72 ALEXY, 2001, p. 259. 67

20 • Fontes do direito e circulação de modelos jurídicos

a similaridade entre o possível precedente e o caso presente é relevante”73. Para se determinar se um caso anterior é relevantemente similar ao caso sub judice, a ponto de ser identificado como um precedente, deve se buscar a ratio decidendi, isto é, “o fundamento ou a razão da decisão judicial”.74 Assim, uma decisão é um precedente para todos aqueles casos futuros que se inserem na ratio decidendi do precedente. Dessa forma, Alexy conclui que: “a aplicação de um precedente implica na aplicação da norma subjacente à decisão na lei causal”75, isto é, da ratio decidendi. Constatar qual a ratio decidendi do precedente pode ser uma atividade interpretativa complexa, mas nos sistemas com um sistema de precedentes consolidado, geralmente a própria Corte esclarece, preliminarmente, a ratio da decisão76. Quando não há essa menção expressa, o caminho seria distinguir a ratio decidendi das obiter dicta. A última se referiria às “questões que podem ser retiradas da decisão ou cujos significados podem ser invertidos, sem que, em ambos os casos, a decisão em si seja alterada”77, enquanto a ratio, ao revés, seria central para a construção da decisão. Nesse sentido, Rupert Cross afirma que a ratio “é qualquer regra do direito explicita ou implicitamente tratada pelo juiz como um passo necessário para alcançar a sua conclusão, levando-se em consideração a linha de raciocínio desenvolvida por ele”78. Assim, em R v. Howe & Bannister (1987), a ratio decidendi do caso foi que a defesa de coação não pode ser usada em caso de homicídio. A House of Lords também entendeu que o mesmo poderia se dizer quanto à tentativa de homicídio, mas, essa discussão, não afetava o resultado final da decisão do caso sub judice (que era de homicídio e não de tentativa de homicídio) e, portanto, era a obiter dictum do caso. A simplicidade da distinção teórica, contudo, oculta a dificuldade prática dessa diferenciação79. Apesar disso, é importante distinguir a ratio, pois essa é a única parte da decisão pretérita que vincula os juízes nos casos subsequentes80. Ademais, a distinção merece destaque porque explica como o precedente judicial limita a decisão do juiz, mas lhe mantém um certo grau de discricionariedade. Isso porque ainda que o SCHAUER, 2009, p. 45. SCHAUER, 2009, p. 50. 75 ALEXY, 2001, p. 261. 76 SCHAUER, 2009, p. 53. 77 DUXBURY, 2008, p. 67. 78 CROSS; HARRIS, 1991, p. 72. 79 CARDOZO, 1921, p. 30. Mas, como alerta Siltala, as Cortes do Reino Unido e dos EUA não têm tanta dificuldade nessa tarefa, em razão dos séculos de tradição em como ler precedentes. (SILTALA, 200, p. 122). 80 DUXBURY, 2008, p. 91. 73 74

Fabiana de Menezes Soares & Caroline Sthefani dos Santos Maciel • 21

juiz não siga a ratio de uma decisão passada em um caso que, aparentemente, neles se enquadra, ele deve fundamentar tal decisão e explicar o porquê de ter utilizado o distinguishing. Desse modo, o caráter vinculativo dos precedentes não é absoluto e há dois institutos que permitem o seu afastamento no caso presente, mediante o esclarecimento das razões para tanto, quais sejam: a distinção (distinguishing) e a superação (overruling)81. O distinguishing é um mecanismo que permite ao juiz ou à Corte inferior não aplicar um precedente vertical ou horizontal, em razão de o precedente ser materialmente diferente do caso a ser decidido. Assim, os precedentes (verticais ou horizontais) obrigam que os juízes ou Tribunais inferiores os apliquem ou os diferencie do caso sub judice.82 Distinguishing é “uma questão de demonstrar diferenças factuais entre o caso anterior e o atual, mostrando que a ratio do precedente não se aplica satisfatoriamente ao caso dado.”83 Na medida em que nenhum caso é idêntico a outro, usar a técnica da distinção é sempre possível, ainda que improvável, pois deve ser justificada, demonstrando-se que a diferença entre os dois casos é suficientemente relevante para se afastar o precedente no caso.84 No caso Merritt v Merrit (1970)85, o Tribunal de Apelação entendeu que um acordo assinado entre um casal já separado era vinculante e que havia intenção das partes de se obrigarem legalmente, distinguindo esse caso do precedente fixado em Balfour v Balfour (1919)86, no qual o acordo entre um marido e mulher, feito na vigência do casamento, foi considerado meramente doméstico e social, sem intenção das partes de se obrigarem legalmente após a separação. A razão de distinção entre os dois casos e de não aplicação do precedente foi o fato de que, no caso Merritt, o acordo foi assinado após a separação, não configurando mero entendimento conjugal. Ao contrário, em Balfour, o acordo foi feito antes da separação e, com ela, já não valia mais, pois era apenas um compromisso doméstico, não legal87. Este instituto não se confunde com o overruling; nesse caso, a Corte pode reconhecer que se trata da mesma questão trazida pelo preceDUXBURY, 2008, p. 110. SCHAUER, 2009, p. 58. 83 DUXBURY, 2008, p. 113. 84 SIMPSON, 1961, p. 174-175. 85 Merritt v Merritt [1970] 1 WLR 1211 Court of Appeal 86 Balfour v Balfour [1919] 2 KB 571. 87 Da mesma forma, no caso Youssoupoff v Columbia Broadcasting System (1965) foi diferenciado do precedente fixado em Riggs v Palmer (1889), através do distinguishing. Ver: SCHAUER, 2009, p. 58. 81 82

22 • Fontes do direito e circulação de modelos jurídicos

dente, mas, ainda assim, rejeitá-la88. Quando um precedente é superado, não se trata apenas de não aplicá-lo ao caso dado, mas de se modificar o entendimento jurisprudencial quanto àquela questão, fixando-se novo precedente89. No entanto, só é possível se valer da superação em caso de precedentes horizontais, pois não seria admissível uma Corte inferior overrule um precedente de uma superior, e em casos muito extremos (última ratio), nos quais se verifica que a decisão é manifestadamente equivocada e que gera em consequências nocivas90. Em Pepper v. Hart (1993)91, a House of Lords decidiu que, se uma legislação ordinária é ambígua ou obscura, o Judiciário pode, em certas circunstâncias, levar em consideração o que foi dito pelos parlamentares durante o processo legislativo, valendo-se dos relatórios oficiais dos debates parlamentares (chamado de Hansard). Essa decisão superou (overruled) o precedente que vigorava previamente, fixado em Davis v. Johnson (1978)92, que estabelecia que o Hansard não poderia ser consultado como fonte de interpretação da lei, por ser uma violação dos privilégios dos parlamentares. Da mesma forma, em British Railways Board v. Herrington (1972)93, determinou-se a responsabilidade civil da companhia ferroviária britânica pela sua negligência na manutenção de cercas nas ferrovias, que possibilitou que alguém que entrou sem permissão se ferisse. Ao julgar esse caso, a House of Lords superou (overruled) a decisão de Addie v. Dumbreck (1929)94, no qual se entendeu que o proprietário de uma mina de carvão não tinha o dever de cuidado em relação àqueles que entram sem permissão na sua propriedade, mas apenas o dever de não causar dano intencional. Overruling envolve, geralmente, a superação de um entendimento tido como ultrapassado e lamentado historicamente. Há, no entanto, variações entre os países de common law na frequência do uso das técnicas de distinguishing e overruling. Bem verdade, as Cortes dos Estados Unidos, geralmente, utilizam-nas com mais frequência do que os do Reino Unido95. O sistema de precedentes no Reino Unido é tradicionalmente conhecido por ter um enfoque mais formalista e por uma observância SCHAUER, 2009, p. 59. DUXBURY, 2008, p. 117. 90 SCHAUER, 2009, p. 60. 91 Pepper (Inspector of Taxes) v Hart [1993] AC 593 92 Davis v Johnson [1978] 2 WLR 553 House of Lords 93 British Railways Board v Herrington [1972] AC 877 House of Lords 94 Addie v Dumbreck [1929] AC 358 House of Lords 95 ATIYAH; SUMMERS, 1987, p. 118-127. 88 89

Fabiana de Menezes Soares & Caroline Sthefani dos Santos Maciel • 23

dos precedentes mais rigorosa do que nos EUA, no qual prevalece um sistema de precedentes mais flexível e pragmático96. No entanto, esse formalismo na doutrina stare decisis britânica tem sido atenuado nas últimas décadas, a partir de 1966, quando o Lorde Chancellor emitiu o Practice Statement autorizando a House of Lords a “afastar uma decisão anterior quando essa aparentar ser a coisa certa a se fazer.”97 A possibilidade de distinção ou de superação um precedente parece contradizer a ideia de obrigatoriedade da doutrina do state decisis, já que, se o juiz ou Tribunal tem o poder de escolher entre se vincular ou não ao precedente, ele, na verdade, não limita o poder judicial.98 No entanto, como assevera Duxbury, a capacidade judicial de não seguir um precedente não significa que ele seja um método fraco de autoridade99, uma vez que, para se afastar validamente de um precedente no caso dado, o juiz deve motivar a sua decisão. Se o precedente não tivesse autoridade, não haveria necessidade de justificar a sua não aplicação; ele cria, assim, um dever argumentativo para o juiz100. Nesse sentido, Alexy fala na condição geral para a não aplicação do precedente: a justificabilidade pelo argumento101. Assim, a exigência do respeito ao precedente é a questão de princípio, ainda que se admita eventuais exceções, sujeitas ao esclarecimento do argumento por aquele que se propõe a fazer a exceção, no caso, o juiz102. Desse modo, seja para determinar a ratio decidendi ou o obiter dictum de uma decisão, seja para definir se é caso de aplicação do precedente ou se é caso de distinguishing ou de overruling, em todas essas hipóteses, a construção do raciocínio judicial deve se dar de forma argumentativa e fundamentada em razões relevantes. Em outras palavras, “a decisão só pode ser alterada se boas razões suficientes puderem ser aduzidas para se fazer isso.”103 Por isso, o precedente pode ser visto “como uma das modalidades convencionais de argumentação constitucional”104, O precedente enquanto uma atividade argumentativa permite uma abordagem interpretativa dos comandos constitucionais e fornece uma justificativa racional para a decisão judicial105. SILTALA, 2000, p. 122 CROSS; HARRIS, 1991, p. 104-108. 98 DUXBURY, 2008, p. 111. 99 DUXBURY, 2008, p. 112. 100 SCHAUER, 1987, p. 580-581. 101 ALEXY, 2001, p. 259. 102 Ibid. 103 É o princípio da inércia de Perelman (PERELMAN, 1970, p. 42 apud ALEXY, 2001, p. 259). 104 BOBBITT, 1989, p.1233, 1303. 105 GERHARDT, 2008, p. 148. 96 97

24 • Fontes do direito e circulação de modelos jurídicos

Como ensina Alexy, a argumentação jurídica é uma atividade linguística que se preocupa com a exatidão das afirmações normativas106. Isso significa que a aplicação argumentativa e discursiva dos precedentes deve ser uma atividade racionalmente justificável. Nesse contexto, ele formula duas regras gerais para a utilização dos precedentes: i) sempre que cabível, o precedente deve ser citado, seja a favor ou contra a decisão; ii) aquele que deseja se afastar do precedente existente no caso dado fica com o encargo do argumento107. A “regra do encargo do argumento” se aplica, portanto, aos casos de utilização da técnica do distinguishing e do overruling.108 Tendo em vistas essas considerações teóricas indispensáveis para a adoção de um sistema de precedentes, passa-se, agora, à análise dos dispositivos do NCPC que regulam esse instituto no Brasil.

4. O sistema de precedentes no Novo Código de Processo Civil A previsão normativa de mecanismos de uniformização jurisprudencial não é uma novidade do CPC/2015. No ordenamento jurídico brasileiro já havia alguns desses instrumentos, tais como, o instituto da súmula dos Tribunais (arts. 476 a 479 CPC/73), a súmula vinculante (art. 103-A CF/88 – EC 45/04), o julgamento em controle concentrado de constitucionalidade e o julgamento de recursos repetitivos (art. 543-B e art. 543-C CPC/73). A grande novidade do NCPC foi a atribuição de efeito vinculante ao precedente judicial, bem como a sistematização do uso de um raciocínio por precedentes jurisprudenciais no ordenamento jurídico brasileiro, de tal forma que se estabeleçam premissas normativas mínimas para o uso do Direito jurisprudencial no Brasil109. A questão dos precedentes e de outros mecanismos de uniformização jurisprudencial é tratada no Livro III da Parte Especial, Título I, Capítulo I, nos artigos 926 a 928. O artigo 926110 traz uma preocupação com a integridade, coerência e estabilidade da jurisprudência dos Tribunais. Para lidar com tais questões, determina que os tribunais editem súmulas em conformidade com sua jurisprudência dominante (§1º),111 ALEXY, 2001, p. 25-26. Ibid., p. 261. 108 ALEXY, 2001, p. 262. 109 THEODORO JÚNIOR, 2015, p. 250. 110 Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. 111 Art. 926. § 1o Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante. 106 107

Fabiana de Menezes Soares & Caroline Sthefani dos Santos Maciel • 25

com o objetivo de sistematizar e, assim, facilitar o acesso e a previsibilidade da decisão judicial. A coerência é um valor profundamente conectado com a noção de ordenamento jurídico112 e o dever de coerência não deve ser compreendido como restrito ao conjunto de normas em sentido estrito, mas também deve ser aplicado às decisões judiciais, para que construam um direito jurisprudencial harmônico e não contraditório. Conforme sugere Humberto Theodoro113, a noção de integridade pode ser melhor compreendida com alusão ao pensamento de Dworkin, cuja teoria do direito se baseia justamente nesse conceito. Para Dworkin, integridade do direito significa que as proposições jurídicas se ajustam e sustentam umas às outras, de forma a construir uma rede integrada114. Assim, as interpretações da prática jurídica feitas pelos juízes devem ser construtivas, para que alcance uma integridade geral, de tal modo que cada uma delas apoie as outras, ao invés de se contradizerem115. Esse conceito aplicado ao instituto do precedente significa, justamente, a observância do direito anterior e a compatibilização da decisão atual, no que cabível, com aquilo que foi decidido previamente, para que as decisões judiciais não conflituem, mas, antes, formem um sistema integrado, coerente e coeso116. Ainda em uma abordagem de acesso e publicidade aos precedentes consolidados, o parágrafo 5º do art. 927117 traz a obrigação dos Tribunais de publicação dos precedentes, inclusive na internet, de tal forma que eles sejam sistematizados e organizados por questão decidida. Essa previsão está em consonância com a cultura de acesso à informação que tem sido desenvolvida no Brasil mais expressivamente a partir da Lei de Acesso à Informação, que também deve ser observada pelo Judiciário (art. 1º, I, art. 3º, art. 6º e art. 8º da Lei 12.527/11). Como se pretende construir um sistema de precedentes no ordenamento pátrio, nada mais natural que a busca pela publicidade e transparência, pois, não se pode exigir a observância do direito prévio sem que haja acesso a ele. Precavendo-se quanto ao uso mecânico e irracional das súmulas e precedentes, o NCPC cria o dever de se levar em consideração, no momento da edição e da aplicação, as circunstâncias fáticas motivaram BOBBIO, 1995, p. 71-72. THEODORO JÚNIOR, 2015, p. 249. 114 DWORKIN, 1986, p. 225-228. 115 Ibid, p. 228-232. 116 Ibid. 117 Art. 927. § 5o Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores. 112 113

26 • Fontes do direito e circulação de modelos jurídicos

sua a criação (§2º do art. 926)118. Trata-se de uma compreensão contextualizada do precedente, que é formado a partir de elementos, teses e questões levantadas em um caso concreto, e, portanto, não se trata de uma norma geral e abstrata, desvinculada da dimensão fática. A desconsideração dos termos e fatos sob os quais o precedente foi construído gera um desvirtuamento desse instituto. Por isso, na aplicação e interpretação do precedente, busca-se a sua ratio decidendi, para que se leve em conta apenas as considerações que representam um “nexo estrito de causalidade jurídica entre o fato e a decisão”119 (§3º do art. 489)120, qualquer observação sem essa causalidade é obiter dicta121. Em sequência, o artigo 927122 do NCPC traz o rol de precedentes jurisprudenciais de natureza vinculante, com o objetivo de inserir na cultura jurisprudencial a prática de observância obrigatória de precedentes. Traz, dentre eles, as decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade (inciso I) e os enunciados de súmulas vinculantes (inciso II), ambos institutos que já vinculavam no direito jurisprudencial antes da vigência do CPC/2015, mas que são trazidos aqui para fins de sistematização. Inova, nos incisos seguintes, trazendo o caráter vinculante de decisões em julgamentos de demandas repetitivas (incidente de resolução de demanda repetitiva, julgamento de recurso extraordinário e especial repetitivos) e em sede de incidente de assunção de competência (inciso III). Traz, ainda como novidade, a obrigatoriedade de observância de todas as súmulas do STF em matéria constitucional e do STJ em matéria infraconstitucional (inciso IV) e, por fim, das orientações do plenário ou do órgão especial aos quais os juízes e tribunais se encontram vinculados (inciso V). Nota-se que o dispositivo privilegiou a obrigatoriedade de observância precedentes verticais, em consonância com a hierarquia judicial. No entanto, nada prevê expressamente quanto à vinculatividaArt. 926. § 2o Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação. 119 THEODORO JÚNIOR, 2015, p. 251. 120 § 3o A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé. 121 THEODORO JÚNIOR, 2015, p. 251. 122 Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II - os enunciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. 118

Fabiana de Menezes Soares & Caroline Sthefani dos Santos Maciel • 27

de do julgador às suas próprias decisões pretéritas, ainda que tal dever possa ser extraído da interpretação sistemática dos dispositivos referentes à uniformização jurisprudencial. Enquanto um mecanismo de flexibilização e de evolução dos precedentes, o NCPC previu a utilização do overruling (superação) nos parágrafos 2º, 3º e 4º do artigo 927. Trouxe, a princípio, a possibilidade de realização de audiências públicas (mecanismo de participação popular) e outros meios de participação de órgãos ou entidades interessadas cujo conhecimento pode contribuir para a rediscussão da tese previamente estabelecida (figura do amicus curiae). Esse dispositivo é extremamente positivo, pois permite um debate mais qualificado e uma decisão mais democrática quanto à revisão de uma tese prévia e a construção de uma nova, incentivando a consolidação de uma cultura participativa no direito brasileiro. Em sequência, possibilitou a modulação dos efeitos da decisão que supera um precedente anterior, por motivos de interesse social ou segurança jurídica, garantindo-se que a sociedade tenha um período para se adaptar ao novo entendimento jurisprudencial123. Houve, ainda, previsão expressa da existência de um “encargo de argumentação” para essa superação jurisprudencial, nos termos já detalhados na seção anterior. A fundamentação deve ser adequada e específica, o que está em conformidade com o dever geral de fundamentação das decisões judiciais (art. 11 CPC/2015 e art. 93, IX da CF/88)124. Mas o NCPC buscou ser ainda mais preciso e taxativo quanto a essa questão ao estabelecer especificamente em quais hipóteses não se considera que uma decisão judicial foi fundamentada (art. 489, § 1º do NCPC)125. BusHUMBERTO THEODORO, 2015, p. 253. Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. Art. 93, IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. 125 Art. 489. § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; 123 124

28 • Fontes do direito e circulação de modelos jurídicos

ca-se evitar, com isso, um problema recorrente na vigência do Código anterior, que também previa o dever de fundamentação, mas, na prática, os juízes proferiam decisões com fundamentação inexistente ou inadequada e alegavam que o haviam feito. Essas “simulações de fundamentação” não podem mais ser toleradas.126 Como pontua Ramires: [...] é preciso diferenciar a fundamentação válida de suas simulações. Fundamentar validamente não é explicar a decisão. A explicação só confere à decisão uma falsa aparência de validade. O juiz explica, e não fundamenta, quando diz que assim decide por ter incidido ao caso “tal ou qual norma legal.127

Nesse sentido, uma decisão que simplesmente afirma que deferiu ou indeferiu o pedido com base em uma lei ou em uma súmula não foi bem fundamentada (inciso I do §1º do art. 489); é necessário que o julgador diga o porquê de ter acolhido aquela interpretação e não a contrária128. A fundamentação, diferentemente da motivação, tem uma dimensão dialógica,129 na qual a manifestação durante a construção da decisão e o convencimento das partes acerca da justiça do resultado final é necessária. Fundamentação abarca, assim, o contraditório efetivo, na medida em que o juiz deve responder a todos os argumentos trazidos no processo pelas partes (inciso IV do §1º do art. 489). Essa observância dos ditames do contraditório dinâmico também é necessária em sede de precedente judicial (parágrafo 1º do art. 927 c/c art. 10º)130. Especificamente sobre o instituto do overruling, o inciso VI do §1º do art. 489 estabelece, a contrario sensu, que, para deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente, o julgador deve demonstrar a justificativa para a superação desse entendimento, sob pena de sua decisão ser considerada não fundamentada e, portanto, nula (art. 11)131. Desse modo, esse dispositivo busca contribuir para a criação de VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. 126 THEODORO JÚNIOR, 2015, p. 219-220 127 RAMIRES, 2010, p. 41-42. 128 THEODORO JÚNIOR, 2015, p. 220. 129 Ibid. 130 Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício. Art. 927. § 1o Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1o, quando decidirem com fundamento neste artigo. 131 N.R. 122.

Fabiana de Menezes Soares & Caroline Sthefani dos Santos Maciel • 29

uma “cultura argumentativa” na aplicação de precedentes132, adotando o princípio da inércia de Perelman133, já explicado na seção anterior. Quanto ao distinguishing, o NCPC não trouxe uma previsão direta no capítulo de uniformização de precedentes, como no caso do overruling. No entanto, declara expressamente que uma decisão judicial que não aplica súmula, precedente ou jurisprudência a um caso, sem demonstrar a existência de distinção entre eles, é considerada não fundamentada e, assim, nula. A interpretação sistemática do artigo 11134, do inciso VI do §1º do artigo 489135 com o parágrafo 1º do art. 927136 permite concluir que existe, impreterivelmente, o dever de fundamentação argumentativa para se realizar a distinção entre o caso sub judice e o caso sob o qual o precedente foi construído. Em resumo, a regulamentação sobre precedentes judiciais trazida pelo NCPC parece estar, em grande medida, compatível com a doutrina tradicional de precedentes oriunda da common law e, nesse sentido, pode contribuir enormemente para a construção de uma prática argumentativa e racional no uso dos precedentes, bem como para o cumprimento do dever de fundamentação das decisões judiciais137. Contudo, o problema persistirá se os juízes e desembargadores ignorarem ou interpretarem equivocadamente esses dispositivos normativos138; de nada adianta, portanto, uma mudança normativa que não seja acompanhada de uma mudança na cultura judicial e na mentalidade dos julgadores.

5. Considerações finais Para uma melhor compreensão de todas as nuances do instituto do precedente, é necessário entender que ele é uma fonte do direito em diálogo com todas as outras fontes, uma vez que elas se influenciam reciprocamente e, muitas vezes, as normas de diferentes fontes são aplicadas de forma conjunta ou complementar. Assim, é crucial uma leitura sistemática e coerente do ordenamento jurídico, passando-se pelo reconhecimento do pluralismo normativo e por uma hermenêutica dialógica entre fontes de direito, amparada nos princípios e valores constitucionais e com o objetivo de concretizaTHEODORO JÚNIOR, 2015, p. 229. BUSTAMANTE; DERZI, 2013, p. 359. 134 N.R 122. 135 N.R 123. 136 N.R 128. 137 BUSTAMANTE; DERZI, 2013, p. 360. 138 Ibid. 132 133

30 • Fontes do direito e circulação de modelos jurídicos

ção dos direitos fundamentais. A adoção desse instituto no direito brasileiro pode trazer inúmeros benefícios e contribuir para o amadurecimento de uma cultura argumentativa no contexto judicial. Contudo, a aplicação de precedentes e criação de súmulas não pode se dar mecanicamente, de tal forma que haja uma padronização massificadora da atividade jurisdicional. O juiz deve promover a individualização do direito e um precedente ou súmula só podem ser aplicados se e na medida em que o caso sub judice demonstre preencher e enquadrar-se nos pressupostos dos casos paradigmas. Assim, deve-se interpretar uma súmula ou precedente levando-se em consideração as circunstâncias específicas do caso que lhe deram origem, sob pena de uma aplicação irreflexiva e mal fundamentada dessa espécie de fonte do direito. Justamente para se evitar esses equívocos na sua aplicação, uma circulação de modelos jurídicos é desejada; a experiência sólida da tradição de common law no manejo do precedente deve, assim, ser o nosso horizonte hermenêutico, para que seja consolidada uma doutrina de precedentes robusta e, ao mesmo tempo, adequada às peculiaridades do ordenamento brasileiro.

Referências Bibliográficas ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. São Paulo: Landy, 2001. ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. Coimbra: Almedina, 12a edição, 2005. ATIYAH, P. S.; SUMMERS, Robert. Form and Substance in Anglo-American Law: a Comparative Study of Legal Reasoning, Legal Theory and Legal Institutions. Oxford: Clarendon Press, 1987. ______. Form and Substance in Legal Reasoning: the Case of Contract In: MACCORMICK, Neil; BIRKS, Peter. In the Legal Mind: Essays for Tony Honoré. Oxford: Clarendon Press, 1986. BENTHAM, Jeremy. Constitutional Code. In: ROSEN, F.; BURNS, J. H. Collected Works of Jeremy Bentham, Oxford: Oxford University Press, v. 1, 1983. BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora

Fabiana de Menezes Soares & Caroline Sthefani dos Santos Maciel • 31

Universidade de Brasília, 6a edição, 1995. BOBBITT, Philip. Is Law Politics?. Stanford Law Review, v. 41, n. 5, p. 1233-1312, 1989. BUSTAMANTE, Thomas; DERZI. Misabel de Abreu Machado. Efeito vinculantes e o princípio da motivação das decisões judiciais: em que sentido pode haver precedentes vinculantes no direito brasileiro? In: FREIRE, Alexandre et. al. Novas tendências do processo civil: estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. Salvador: JusPodivm, 2013. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro 1988. Brasília, Diário Oficial da União, 1988. Disponível em: . Acesso em: 20 de setembro de 2016. BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Brasília, Diário Oficial da União, 1973. Revogada. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm>. Acesso em: 24 de setembro de 2016. BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Brasília, Diário Oficial da União, 2011. Disponível em: . Acesso em: 28 de setembro de 2016. BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, Diário Oficial da União, 2015. Disponível em: < http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 12 de setembro de 2016. CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 7a edição, 2003. CARDOZO, Benjamin. The nature of the judicial process. New Haven: Yale University Press, 1921. CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English Law. Oxford: Ox-

32 • Fontes do direito e circulação de modelos jurídicos

ford University Press, 1991. DERZI, Misabel de Abreu Machado. A praticidade e o papel institucional do Poder Judiciário: a separação de poderes em jogo. In: MANEIRA, Eduardo. TORRES, Heleno Taveira. Direito Tributário e a Constituição – Homenagem ao professor Sacha Calmon Navarro Coelho. São Paulo: Quartier Latin, 2012. DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. London: Fontana, 1986. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 6a edição, 2013. GERHARDT, Michael. The power of precedent. Oxford: Oxford University Press, 2008. GOODHART, Arthur Lehman. Precedent in English and Continental Law. Law Quarterly Review, v. 50, p. 40-65, 1934. GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re) pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. Belo Horizonte: Del Rey, 3a edição, 2010. HART, Herbert. The concept of law. Oxford: Clarendon Press, 1961. HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. Coimbra: Almedina, 2a edição, 2009. HOLMES, Oliver Wendell. The path of the Law. Harvard Law Review, v. 10, 1897. KRONMAN, Anthony. Precedent and tradition. Yale Law Journal, v. 99, p. 1029-1068, 1990. MARMOR, Andrei. Should like cases be treated alike?. Legal Theory, v. 11, p. 27-38, 2005. MONTESQUIEU, Charles Louis. The spirit of the Laws, New York: Hafner, 1949. PETERS, Christopher. Foolish Consistency: On Equality, Integrity, and

Fabiana de Menezes Soares & Caroline Sthefani dos Santos Maciel • 33

Justice in Stare Decisis. Yale Law Journal, v. 105, n. 8, p. 2031-2115, 1996. POSNER, Richard. The little book of plagiarism. New York: Pantheon, 2007. RADIN, Max. Case Law and Stare Decisis: Concerning Prajudizienrecht in Amerika. Columbia Law Review, v. 33, n. 2 p. 199–212, 1933. SANTOS, Boaventura dos. A crítica da razão indolente – contra o desperdício da experiência. Porto: Edições Afrontamento, v. 1, 2a edição, 2000. SCHAUER, Frederick. Playing by the rules. Clarendon Press: Oxford, 2002. ______. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning. London: Harvard University Press, 2009. ______. Precedent. Stanford Law Review, v. 39, p. 571-605, 1987. RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação dos precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. SILTALA, Raimo. A theory of precedent: from Analytical to a Post-Analytical Philosophy of Law. Oxford: Hart Publishing, 2000. SOARES, Fabiana de Menezes. Produção do direito e conhecimento da lei à luz da participação popular e sob o impacto da tecnologia da informação. Tese de doutorado, Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, Disponível em: . Acesso em: 15 de setembro de 2016. TARELLO, Giovanni. Ideologias Setecentistas da Codificação e Estrutura dos Códigos. Meritum – Revista de Direito da Universidade FUMEC, v. 3, n. 2, 2008. Disponível em . Acesso em: 10 de setembro de 2016. TARUFFO, Michele. Processo Civil Comparado: Ensaios. São Paulo: Marcial Pons, 2013. THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

A COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA COMO ESTRATÉGIA DE ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA: A PLURIVOCIDADE DO CONCEITO E SUA DIMENSÃO PROCESSUAL Antônio Gomes de Vasconcelos1 Gabriela de Campos Sena2 Resumo: A cooperação judiciária é um conceito plurívoco. A nova legislação processual brasileira (Lei 13.105/2015) hauriu a dimensão processual do conceito e seus reflexos na prática jurisdicional de regulação pré-existente que contempla um sentido mais abrangente e comprometido com uma compreensão sistêmica dos problemas da justiça. Nesse sentido é que a cooperação judiciária processual, contextualizada e articulada com os demais campos de operacionalização do instituto, constitui-se em estratégia de administração da justiça e em instrumento de concretização dos princípios da duração razoável do processo, da efetividade dos direitos e da justiça das decisões judiciais. Pretende-se, nesse espaço, explicitar, sob a forma de ensaio, os múltiplos campos de atuação da cooperação judiciária, além da sua dimensão processual. Espera-se, com isso, registrar a profunda transformação cultural e paradigmática nos códigos de conduta e no modus operandi da atividade jurisdicional e na administração da justiça no que diz respeito ao objeto desse estudo. Do ponto de vista pragmático, serão levantados campos de possibilidade de atuação da cooperação processual, além de uma breve análise de um hard case resolvido pela via da cooperação judiciária processual, ilustraProfessor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG nos cursos de graduação e pós-graduação. Mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Juiz Titular da 45ª. Vara do Trabalho de Belott Horizonte. Coordenador do Programa Universitário de Apoio às Relações de Trabalho e à Administração da Justiçada FDUFMG (PRUNART-UFMG). Membro do Comitê Estadual da Rede Nacional de Cooperação Judiciária do Conselho Nacional de Justiça. Co-fundador e idealizador do Sistema Núcleo Intersindical de Conciliação Trabalhista (art. 625-H, CLT). Idealizador do Sistema Integrado de Participação da Primeira Instância na Gestão Judiciária e na Administração da Justiça (SINGESPA). email: [email protected] 2 Doutoranda e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora e coordenadora discente do Programa Universitário de Apoio às Relações de Trabalho e à Administração da Justiça. Integrante dos grupos de estudo e pesquisa sobre cooperação Judiciária, sistema NINTER e administração da Justiça. email: [email protected]. 1

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 35

tivamente. Palavras chaves: Cooperação judiciária. Administração da Justiça. Novo Código de Processo Civil. Abstract: Judicial cooperation is a plurivocal concept. The new Brazilian procedural law (Law 13.105/2015) drew the procedural dimension of the concept and its consequences in the judicial practice of pre-existing regulation that contemplates in its broadest sense committed to a systemic understanding of legal problems. In this sense, it is that the procedural judicial cooperation, contextualized and articulated with other operational fields of the institute, is a justice administration strategy and an instrument of implementation of the principles of reasonable duration of the process, the effectiveness of rights and justice of judgments. It is intended, in this space, explicit, in the form of essay, multiple fields of judicial cooperation activities, as well as its procedural dimension. It is expected with this, to register the profound cultural and paradigmatic transformation in the codes of conduct and the modus operandi of judicial activity and the administration of justice in relation to the object of this study. From a pragmatic point of view, the possibility of cooperation procedural action fields will be raised, and a brief analysis of a hard case settled by procedural judicial cooperation, illustratively. Keywords: Judicial cooperation. Administration of justice. New code of civil procedure. Sumário: 1. Introdução. 2. O sentido da cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça no direito brasileiro. 2.1. A conformação do instituto. 3. A cooperação judiciária processual. 3.1. A cooperação entre os sujeitos do processo (art. 6º, CPC). 3.2. Cooperação internacional (artigos 26 a 41 do NCPC). 3.3. A cooperação judiciária entre órgãos judiciários (artigos 67 a 69 do NCPC). 4. Evocação exemplificativa e inspiradora de possibilidades incomensuráveis de cooperação judiciária processual. 4.1. Um Hard case processual e o “vazio institucional”: o uso da técnica da cooperação judiciária como única alternativa para a busca de uma solução possível. 4.2. Outras situações ilustrativas da incidência da cooperação judiciária processual na experiência forense. 5. Conclusão. 6. Referências.

1. Introdução As transformações que se verificam, atualmente, na administra-

36 • A COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA COMO ESTRATÉGIA DE ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA

ção da justiça brasileira, incluída a recente reforma processual, refletem uma transformação paradigmática nos pressupostos epistemológicos que presidem o paradigma da ciência moderna. Com efeito, a par de o novo código processual proclamar um comprometimento com o projeto constitucional da sociedade brasileira, com a garantia e a efetividade dos direitos do cidadão, subjaz no âmago da reforma processual uma conversão paradigmática de profundo significado na redefinição do sentido da jurisdição, com consequências pragmáticas de intensa potencialidade transformadora da administração da justiça em nosso país. A absolutização do princípio da livre convicção, segundo a qual, o órgão julgador julga de acordo com sua consciência solipsista baseada numa ética de pura intenção e alheia às consequências sociais da decisão (portanto, descomprometida com outro), o insulamento dos órgãos judiciais e o burocratismo processual, têm suas raízes epistemológicas na ciência positiva moderna. A razão individual é a fonte de todo conhecimento (subjetivismo individual-positivista), baseado em dois mitos decisivos: a crença no pleno acesso à realidade por parte da razão humana e a concepção mecanicista da natureza e, por tabela, dos fenômenos sociais. A tradução desta concepção no direito e no processo, se reflete na crença, na racionalização e no açambarcamento da realidade pela norma, e que a minudente regulação do procedimento, por mais burocratizado e detalhado que seja, é capaz de assegurar a efetividade dos direitos e a realização da justiça. O fetiche e a exacerbação das normas procedimentais assegurariam a “neutralidade” do órgão jurisdicional e esta por sua vez, a realização da justiça. Além disto, a rígida distribuição de competências decorrente do seccionamento dos conflitos, fruto de uma concepção atomicista da realidade e da concepção cartesiana do objeto do conhecimento (da realidade), segundo o qual a soma das partes é igual ao todo, ao mesmo tempo que despreza os efeitos deletérios e alienantes de sua fragmentação, assegura a realização da justiça, independentemente, de suas consequências no mundo dos fatos e na realidade social. A jurisdição, enquanto poder, resulta, simultaneamente, da conjugação de atos de conhecimento e de vontade, na medida em que o órgão decisor elege, entre múltiplas possibilidades (no âmbito dos fatos e da norma) o objeto sobre o qual recairá sua atividade cognitiva, e neste mister acresce à sua atividade cognitiva um inexorável elemento cognitivo. Sem embrenhar na questão filosófica, registra-se que se pode de-

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 37

cifrar que o novo código processual assenta alguns de seus institutos na razão dialógica e no princípio da complexidade - estas compreendidas como categorias epistemológicas, ainda que noutros institutos ainda persista o modelo de racionalidade que se pretendeu ultrapassar. Ao “radicalizar” a exigência da rigorosa observância do princípio do contraditório em todo o curso do processo e, em relação a quaisquer atos processuais e a quaisquer fundamentos de decisão, bem como, ao assegurar ampla participação das partes no curso do projeto tornando-o eminentemente discursivo, exsurge, a opção do legislador por premissas epistemológicas que têm por axioma a natureza dialógica (não solipsista) da razão humana e a complexidade da realidade. Esta, de hora em diante, inacessível à razão humana e, muito menos a uma mente individual pretensamente detentora de um acesso privilegiado à verdade e à realidade. O processo passa a ser uma instância dialógica e participativa que assegura aos destinatários da atuação jurisdicional, o direito e o poder de influenciar decisivamente a atividade cognitiva e decisória do julgador. Esta conversão paradigmática se verifica também nas relações funcionais entre os órgãos judiciais de quaisquer ramos da justiça e de quaisquer instâncias de decisões. Rompem-se as barreiras normativo-burocráticas que limitam a atuação dos órgãos à códigos de conduta e modus operandi rigorosamente e, procedimentalmente, regulados com pesado ônus à eficiência e à efetividade da prestação jurisdicional. Esta ruptura paradigmática se expressa enfaticamente no instituto da cooperação judiciária, que opera nas diversas formas de comunicação e interação entre os órgãos judiciais, nos instrumentos de administração da justiça (participação) e na jurisdição (tratamento conjunto – envolvendo mais de um órgão judicial - dos conflitos massivos ou hipercomplexos). No âmbito endoprocessual, a legitimação discursiva da cognição, realizada com a necessária participação e contribuição das partes na construção do conhecimento e na conformação volitiva do órgão jurisdicional, no sentido que a nova processualística atribui ao princípio do contraditório, se verifica a partir desta epistemologia neoparadigmática. O órgão decisor não é mais o único a desvendar a “verdade processual”, esta é construída dialética e dialogicamente no curso do processo, com a participação de todos os interessados em todos os atos processuais e na fundamentação das decisões. A concretização do princípio da duração razoável do processo requer a adoção de medidas de gestão processual e de racionalização de

38 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

procedimentos que extrapolam a concepção da jurisdição estrita ao processo. Pressupõe a interação e a concertação de atos processuais pelos órgãos jurisdicionais. O tratamento dos conflitos massivos e complexos requer o intercâmbio de dados e conhecimento entre os órgãos jurisdicionais e as demais instituições do sistema de justiça e o tratamento coletivo de conflitos cuja extensão - dos pontos de vista objetivo e subjetivo – situa-se em campos de interseção do poder jurisdicional de mais de um ou de inúmeros órgãos judiciais. Esta interseção de competências ou consequências jurisdicionais da atuação isolada e fragmentada de diversos órgãos pode, por vezes, gerar contradições ou teratologias cuja primeira consequência é a insuportável delonga do sistema de justiça em recompor respostas harmônicas e coerentes frente a tais problemas. Embora o escopo deste trabalho tenha se limitado à abordagem de aspectos relativos à cooperação judiciária processual, é indispensável que, para a contextualização da matéria, o leitor tenha uma visão panorâmica das múltiplas dimensões e o alcance do instituto. É que as melhorias qualitativa e quantitativa da jurisdição, além da concretização do princípio do princípio da duração razoável do processo, requerem uma concepção e medidas mais abrangentes no campo da administração da justiça. Nesse sentido, a alteração da legislação constitui apenas um degrau no rol das medidas indispensáveis a uma transformação efetiva e radical do “estado da arte” em que se encontra o Poder Judiciário, hoje. Desde medidas orientadas para uma maior racionalidade da gestão processual, para a harmonização de procedimentos e rotinas processuais até a elaboração de levantamentos e diagnósticos acerca da natureza dos conflitos e suas origens, mapeamento dos conflitos massivos e repetitivos, a formulação de políticas jurisdicionais para o tratamento adequado destes conflitos que incluam a interação do poder judiciário com as demais instituições do sistema de justiça e, demais atores institucionais que tenham responsabilidade pública, social ou coletiva para, com base nas técnicas do diálogo e da concertação interinstitucional, promover tais medidas, incluída a prevenção dos conflitos. Vale dizer, a cooperação judiciária é destinada a promover a indispensável transformação dos códigos de conduta e do modus operandi do Poder Judiciário e o tratamento sistêmico da gestão dos conflitos sociais, mediante a institucionalização de espaços de intercâmbio interinstitucional para o alcance desse desiderato. O presente ensaio traduz os resultados preliminares dos estudos e da pesquisa que vêm sendo desenvolvidos sobre o instituto da

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 39

cooperação judiciária no âmbito do Programa Universitário de Apoio às Relações de Trabalho e à Administração da Justiça3 da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais- PRUNART-UFMG e do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Nestes termos é que a Faculdade de Direito da UFMG,4 desde a edição da Recomendação 38 do Conselho Nacional de Justiça, vem contribuindo para a consolidação do Sistema Nacional de Cooperação Judiciária, com a proposição de trabalhos técnicos, a colaboração na construção das bases teóricas do instituto e a participação de professores e pesquisadores em eventos destinados à consolidação do instituto da cooperação judiciária.5

2. O sentido da cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça no direito brasileiro Há uma necessária correlação entre o conceito de jurisdição6 e o modelo de Estado em que ela é exercida. O mesmo se aplica às concepções acerca da função do poder judiciário que, nesta perspectiva, se define conforme o modelo de Estado que se toma como referência. A cultura jurídica é construída também sob influência de tais paradigmas. E, corolário de tudo isto, a performance, os códigos de conduta e o modus Os autores do artigo integram e coordenam os grupos de estudo e pesquisa sobre cooperação judiciária e administração da justiça do PRUNART/UFMG. 4 O estudo desenvolve-se nos grupos de estudos e pesquisa em cooperação judiciária do PRUNART-UFMG e da Área de Estudos “Governança pública, administração da justiça e participação: diálogo e concertação social, gestão e cooperação judiciária como instrumentos de efetivação dos direitos e de realização da justiça” em que se subdivide o Projeto Coletivo “Governança pública, administração da justiça e participação: diálogo e concertação social, gestão e cooperação judiciária como instrumentos de efetivação dos direitos e de realização da justiça”, pertencentes à Linha de Pesquisa II - DIREITOS HUMANOS E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: FUNDAMENTAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E EFETIVIDADE, do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. 5 Assim é que o coautor deste trabalho, Prof. Antônio Gomes de Vasconcelos, a partir da experiência da concepção e implantação do Sistema Integrado de Participação da Primeira Instância na Gestão Judiciária e na Administração da Justiça do Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região e na condição de membro da Comissão Responsável pela elaboração da minuta de Regulamento do Regulamento da Rede Nacional de Cooperação Judiciária, apresentou à referida comissão a proposta de minuta do PRUNART-UFMG que foi discutida, revisada e aprovada pelos demais membros. A minuta foi discutida e aprovada pelo plenário do II Encontro Nacional de Magistrado de Cooperação, realizado em 09/08/13, São Paulo, que reuniu os magistrados de cooperação de todos os tribunais brasileiros, de todos os ramos do poder judiciário. Na oportunidade o Regulamento foi aprovado e deliberou-se pelo seu encaminhamento ao Conselho Nacional de Justiça onde encontra-se em tramitação para oportuna apreciação e deliberação daquele órgão. 6 VASCONCELOS; FRANCO, 2016, pp. 37-52. 3

40 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

operandi do Poder Judiciário e dos órgãos judiciais e, de resto, na prática das instituições encarregadas da aplicação do direito, são conformados e delimitados no horizonte paradigmático de compressão que define a função política e social do Poder Judiciário e o escopo da jurisdição. Com o advento da Constituição do República Federativa do Brasil de 1988 reconhece-se, de modo uníssimo e unívoco, que, dede então, o Estado Democrático de Direito é o modelo de Estado adotado no país. Contudo, a teoria e a prática jurídicas, majoritariamente, ainda se ressentem da ausência de uma reconstrução conceitual e pragmática da jurisdição com base nas premissas deste modelo de Estado. Destaca-se aqui, dois dos diversos aspectos em que se verifica esta carência de um substrato paradigmático coerente com o atual modelo de estado: a) a dificuldade em se reconhecer e assimilar cultural e pragmaticamente, a dimensão política da atuação do poder judiciário que não é mais neutro, nem alheio a questões políticas, sociais e econômicas, uma vez que elas, estão diretamente relacionadas à efetivação dos direitos fundamentais (individuais e sociais) e o projeto de sociedade estabelecido na Constituição; b) a dificuldade em se substituir a supremacia da legalidade pela supremacia do direito (por princípios);7 c) a dificuldade em substituir a ética de intenções, em que a teoria e prática jurídicas se prendem, exclusivamente às convicções dos juristas em suas operações mentais de “subsunção” do fato à norma, por uma ética de responsabilidade social, segundo a qual a teoria e a prática jurídica, de frente para a realidade, indagam pelas consequências sociais dos atos de criação, interpretação e aplicação da norma jurídica e sua compatibilidade com o projeto de sociedade inscrito na Constituição. Essa constatação, leva ao reconhecimento de que a ideia de jurisdição concebida sob a égide do Estado liberal moderno, portanto, de matiz “liberal-tecnicista-formal-positivista” é ainda hegemônica na cultura jurídica nacional8. Por isso, a transição do modelo de jurisdição liberal para o modelo de jurisdição consequencialista do estado democrático de direito opera-se no âmago de uma tensão entre o velho e novo e o predomínio da cultura conservadora pode significar a neutralização de mudanças mais profunda, ainda que decorrentes da opção do legislador ou do poder constituinte. O instituto da cooperação judiciária, compreendido a partir de uma visão sistêmica do conjunto de normas que o materializa, em espe7 8

ZAGREBELSKY, 2005, passim. Idem, p. 38.

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 41

cial, da articulação entre as disposições do Código de Processo Civil de 2015 e da Recomendação 38/11 do Conselho Nacional de Justiça, constitui estratégia de administração da justiça em absoluta consonância com as bases constitucionais do Estado Democrático de Direito. Conecta-se com objetivo de realização da justiça – missão estratégica eleita pelo Poder Judiciário brasileiro, nos seus aspectos temporal e substantivo, à medida que se constitui como estratégia de administração da justiça voltada para a concretização do princípio da duração razoável do processo e da efetividade dos direitos. Nesse sentido, como se verá, a cooperação judiciária como técnica de administração da justiça, está restrita à prática de atos processuais, mas se estende a um conjunto de medidas concernentes à administração da justiça, atuando dentro e fora do processo judicial. Diz respeito a toda medida que é direcionada para a prevenção e gestão dos conflitos judiciais e realização dos direitos previstos na ordem jurídica, implicando desde medidas de gestão judiciária, de racionalização e harmonização de rotinas e procedimentos, ao intercâmbio e à concertação de políticas jurisdicionais internar e interinstitucionais, entre os órgãos jurisdicionais e entre estes e as instituições externas ao sistema de justiça cuja atuação seja correlata com a administração da justiça.

2.1. A conformação do instituto A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça é instituto que tem origem híbrida. A Recomendação 38, de 03 de novembro de 201, editada pelo Conselho Nacional de Justiça, que recomenda aos tribunais a instituição de mecanismos de cooperação judiciária entre os órgãos do Poder Judiciário, institucionaliza no âmbito do Poder Judiciário nacional a estratégia e a estrutura na qual se operacionaliza a cooperação judiciária. A dimensão estrutural se materializa nos seguintes entes: a) Rede Nacional de Cooperação Judiciária9, que se constitui no espaço institucional de comunicação informal direta ou mediada entre os órgãos judiciais de quaisquer instâncias de quaisquer tribunais dos diversos ramos do poder judiciário nacional; b) Núcleos de Cooperação Judiciária a serem instituídos pelos tribunais; c) instâncias mediadoras da comunicação entre juízes cooperantes instituídas em cada tribunal, destinada a facilitar e agilizar o contato os sujeitos CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação 38, de 3 de novembro de 2011. Anexo, art. 1º.

9

42 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

da cooperação judiciária; e, ainda, d) os Comitês Nacional e Estaduais de cooperação judiciária, incumbidos de promover a gestão da rede em âmbito nacional e regional, respectivamente (Anexo da Recomendação 38, art. 11). Se o item I da Recomendação se atém a limitar os atos de cooperação à objetivo de “dar maior fluidez e agilidade à comunicação entre os órgãos judiciários para o cumprimento de atos judiciais, para a harmonização e a agilização de rotinas e procedimentos forenses e à participação dos magistrados nas instâncias de gestão judiciária, o item II remete ao regulamento constante do seu Anexo a inclusão no conceito de cooperação judiciária uma transformação paradigmática que pressupõe uma concepção mais ampla de jurisdição e da função do poder judiciário. Com efeito, o Anexo, em seu artigo 9º, atribui aos núcleos de cooperação a atribuição de atuar na gestão coletiva de conflitos e na elaboração de diagnósticos de política judiciária, elaborar diretrizes de ação coletiva entre órgãos judiciários, bem como propor mecanismos suplementares de gestão administrativa e processual. A concepção originária e inspiradora da dimensão processual da cooperação judiciária provem do direito comparado e da experiência europeia, como anota José Eduardo Resende Chaves. A Alemanha, a França e a Inglaterra incorporam às respectivas legislações o princípio da cooperação judiciária. O autor alerta para as limitações do conceito presente na doutrina à medida que se restringe à relação juiz-partes no processo, conferindo ao magistrado o dever de colaborar com as partes, através da consulta, prevenção e auxílio, promover o diálogo no processo e considerar todas as provas e argumentos plausíveis. O autor registra que esta concepção desconsiderar o dever de cooperação das partes entre si, com o processo e com o juiz, e o dever de recíproca cooperação entre os órgãos judiciários. O autor ressalta, portanto, a existência de um dever de cooperar entre todos os atores do processo, norteado pela “ideia de uma participação dialógica e ética de todos os atores”, no que se destaca a legislação portuguesa.10 A experiência europeia decorre de resposta aos problemas práticos oriundos da interseção de competências jurisdicionais de órgãos judiciais dos países do bloco europeu em uma mesma situação fático-jurídica afeta à jurisdição desses órgãos, dos aspectos burocráticos relativos à prática e a comunicação de atos jurisdicionais de repercussão internacional. 10

CHAVES JR., 2016, p. 7.

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 43

A evolução da regulamentação da matéria no velho continente vem do Tratado de Maastricht (1992) até seu estágio atual tal como erigida no Tratado de Funcionamento de União Europeia-TFUE (2007). Chaves Jr. registra ainda que o conceito processual e restrito da cooperação judiciária tem raízes na legislação brasileira, no tratamento dado às cartas precatórias pelo Código Civil Brasileiro e no dever cooperação estabelecido na Lei de Organização Judiciária da Justiça Federal (Lei n. 5.010/66).11 A concepção que vem do direito internacional é, portanto, restrita à dimensão, endoprocessual da cooperação judiciária. Noutra vertente, a Recomendação 38 haure da experiência concreta do Sistema Integrado de Participação da Juízes de Primeira Instância na Gestão Judiciária e na Administração da Justiça do Tribunal Regional da Terceira Região-SINGESPA/TRT312 e das premissas político-constitucionais que a presidem, os elementos que ampliam o conceito de cooperação judiciária no sistema brasileiro para além da sua dimensão endoprocessual, e configuram o instituto como uma estratégia de administração da justiça. O SINGESPA/TRT3 resultou dos esforços do Tribunal no sentido de dar concretude às estratégias do poder judiciário, definidas no Plano Estratégico (Resolução 70/09, CNJ) relacionadas, dentre outros aspectos, à atuação institucional, à busca da eficiência operacional e à integração e alinhamento dos órgãos judiciários, por meio da promoção de uma gestão democrática e participativa, da continuidade administrativa, do fomento à interação e do compartilhamento de conhecimento e de experiências, do fortalecimento e harmonização das relações e da integração do Judiciário com os demais poderes, do desenvolvimento de parcerias com os órgãos do sistema de justiça, para o alcance de seus objetivos. Nesse sentido, o cumprimento da missão de realizar a justiça Idem, p. 7. Trata-se de órgão de participação dos magistrados de primeira instância do TRT3 na gestão judiciária e na administração da justiça, institucionalizado pelo Tribunal por meio da Portaria TRT/ SGP/1813/2010, de 07 de outubro de 2010 que institui o Sistema Integrado de Gestão Judiciária e de Participação da Primeira Instância na Administração da Justiça do Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região (SINGESPA/TRT3). Na mesma oportunidade, foi institucionalizado o Encontro Anual dos Magistrados das Unidades Regionais do SINGESPA/TRT3. Por fim, as atividades do órgão passaram a ser reguladas pelo Regulamento Geral do SINGESPA, editado pela Portaria TRT/SGP/1642/2011, de 24 de agosto de 2011. Para estudo mais aprofundado acerca do assunto cf.: VASCONCELOS, Antônio G. O novo sentido da jurisdição na Estratégia do Poder Judiciário Nacional e seu desdobramento na experiência do SINGESPA/TRT3-MG, IN ORSINI, Adriana Goulart de Sena; COSTA, Mila Batista L. Corrêa; ANDRADE, Oyama Karyna Barbosa. Justiça do século XXI. São Paulo: LTr, 2014, pp. 135-162. 11 12

44 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

passa a incorporar uma atuação mais dinâmica do Tribunal, o que torna imprescindível a formulação de políticas de administração da justiça nas quais se insere a formulação de políticas jurisdicionais baseadas em consensos possíveis entre os órgãos jurisdicionais. No direcionamento oriundo do Plano Estratégico do Poder Judiciário Nacional, o SINGESPA/TRT3 institucionalizou uma estrutura que abre espaço para: a) a ampliação do relacionado dos órgãos judiciais com outros órgãos e entidades públicas e privadas visando à prevenção de conflitos judiciais, especialmente, das demandas repetitivas e, coibir o uso abusivo da justiça; b) celebração de parcerias e convênios com entidades públicas e privadas; c) a intermediação de medidas para a solução coletiva de demandas repetitivas; d) o estabelecimento de parcerias com universidade, com a OAB, com o Ministério Público, outros poderes, setores e instituições. Um dos elementos mais significativos do SINGESPA/TRT3 é a abertura de canais de diálogo dos magistrados de primeira instância entre si e entre estes e o Tribunal, bem como a institucionalização do encontro anual dos magistrados, donde se concertam diretrizes de ação definidoras de políticas de gestão judiciária e de administração da justiça de âmbito regional ou local, além de proposições a serem encaminhadas à Administração do Tribunal, mediante consenso majoritário dos magistrados participantes, respeitado o livre convencimento no exercício da jurisdição. O Regulamento Geral do SINGESPA/TRT3 aprovado pelos magistrados de Primeira Instância e homologado pela Portaria TRT/ SGP/1642/2011 e publicado no Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho Nº. 804/2011, em 30/08/2011 estabelece que o Sistema tem como fundamento o Plano Estratégico do Poder Judiciário Nacional e o objetivo de “contribuir para a realização da justiça em conformidade com os princípios e objetivos do Estado Democrático de Direito inscritos na Constituição Federal”, tendo por premissas: I - reconhecimento da posição estratégica dos órgãos de primeira instância para o cumprimento da missão do Poder Judiciário nacional; II - cooperação judiciária; III - democratização da administração da justiça; IV - concertação e integração e de estratégias de gestão judiciária e administração da justiça entre os órgãos de primeira instância; V - eficácia e eficiência operacional;

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 45

VI - valorização dos órgãos jurisdicionais de primeira instância; VII - continuidade administrativa.13

As disposições regulamentares estabelecem minudente e propositadamente os objetivos institucionais gerais e específicos do SINGESPA/TRT3. Inserem-se com objetivos gerais: I- assegurar a participação dos juízes na gestão judiciária e na administração da justiça por intermédio de proposições individuais convertidas em diretrizes de ação segundo os procedimentos estabelecidos neste regulamento; II- promover a descentralização da gestão judiciária e da administração da justiça, respeitando-se as particularidades regionais e/ou locais, e a atuação coletiva dos juízes no âmbito das respectivas Unidades Regionais de Gestão Judiciária e de Participação da Primeira Instância na Administração da Justiça (URGE’s), orientada por diretrizes de ação estabelecidas em conformidade com os procedimentos ; III- instituir mecanismos de intercâmbio e interação entre os juízes; IV- formular políticas jurisdicionais e administrativas voltadas para o alcance dos propósitos mencionados no caput deste artigo, bem como interagir com as demais instituições do sistema de justiça; IV- formular políticas jurisdicionais e administrativas voltadas para o alcance dos propósitos mencionados no caput deste artigo, bem como interagir com as demais instituições do sistema de justiça.14

A visualização dos objetivos específicos do referido Órgão torna-se indispensável para a apreensão da contribuição das concepções ali inseridas para reconstrução da ideia de jurisdição e do redimensionamento da função do Poder Judiciário no paradigma do Estado Democrático de Direito. Prescreve o Regulamento que: Art. 4º São objetivos específicos do SINGESPA: I. promover o intercâmbio pessoal e profissional, o diálogo, a troca de experiências entre os juízes de primeira instância, inclusive para o compartilhamento de conhecimentos em práticas e soluções jurídicas e administrativas, qualificado como programa permanente de formação continuada nos termos da Resolução Administrativa n.1140 do Tribunal Pleno, de 1º de junho de 2006, e art. 93 da CF/88; SINGESPA/TRT3-MG- Regulamento Geral. Disponível em: < http://www.trt3.jus.br/singespa/bases/regulamento.htm>. Acesso em 10 de outubro de 2016. 14 Idem. 13

46 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

II. promover a cooperação judicial entre os juízes de primeira instância e entre estes e o Tribunal; III. buscar, permanentemente, o aprimoramento da atividade jurisdicional, com ênfase nos princípios da duração razoável do processo, da justiça das decisões e da efetividade dos direitos; IV - buscar a simplificação, a uniformização e a racionalização de procedimentos judiciais e gerenciais, orientadas pelos princípios de eficiência, eficácia e efetividade; V. contribuir para a ampliação do acesso dos cidadãos à justiça; VI. colaborar com o programa de formação continuada de magistrados e servidores (Resolução 126/11-CNJ), segundo uma concepção construtiva e autoformativa baseada na troca de experiências e vivências profissionais; VII. promover a integração entre as atividades administrativas e jurisdicionais de modo a estabelecer entre elas uma relação de intercomplementaridade e de cooperação orientadas para a melhoria da prestação jurisdicional; VIII. buscar substituir o isolacionismo no exercício da função jurisdicional pela atuação coletiva fundada em políticas jurisdicionais construídas com base no diálogo e em soluções de compromisso entre os juízes de primeira instância; IX. assegurar a participação efetiva e permanente dos juízes de primeira instância na Gestão Judiciária e na administração da justiça no âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região Minas Gerais, especialmente no que diz respeito à adequação do cumprimento do Planejamento Estratégico do Poder Judiciário e do Tribunal (Resolução 70/09-CNJ), de seus indicadores, metas e projetos aos contextos regionais e locais; X. assegurar a participação dos juízes de primeira instância na formulação dos diagnósticos, das premissas adotadas no planejamento estratégico do Tribunal e dos respectivos órgãos; XI. assegurar a participação dos juízes de primeira instância nas Reuniões de Análise da Estratégia; XII. promover a integração dos órgãos de primeira instância com os órgãos do sistema da justiça e afins (OAB, Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego, INSS, Advocacia-Geral da União, Procuradoria da Fazenda Nacional) para atingir os objetivos de eficiência, acessibilidade e responsabilidade social, por meio do diálogo, da troca de experiências e do desenvolvimento de parcerias, por intermédio das instâncias de representação regional ou geral do SINGESPA, visando à união de esforços para garantir a efetividade dos direitos fundamentais do trabalhador e da prestação jurisdicional; XIII. promover encontros anuais das Unidades Regionais de Gestão Judiciária e de Participação da Primeira Instância na Administração da Justiça (URGE’s), bem como o Encontro Bienal de Representantes das URGE’s para o estabelecimento de

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 47

diretrizes de ação, em âmbito regional e geral.15

Por fim, é também indispensável a transcrição, em sua literalidade, da norma regulamentar que confere ao SINGESPA/TRT3 a função institucional de celebrar pactos de diálogo e cooperação interinstitucional em gestão judiciária e administração da justiça: RELAÇÕES INSTITUCIONAIS Art. 23. A integração dos órgãos de primeira instância com os órgãos do sistema da justiça e afins (OAB, Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego, INSS, Advocacia-Geral da União, Procuradoria da Fazenda Nacional) se dará por intermédio do Programa de Relações Interinstitucionais do SINGESPA (PRIS), para o alcance de seus objetivos institucionais visando ao diálogo social, à troca de experiências e ao desenvolvimento de parcerias voltadas para a união de esforços em busca da efetividade dos direitos sociais, da agilidade da justiça e da efetividade da prestação jurisdicional. § 1º. A formalização do intercâmbio interinstitucional entre o SINGESPA, bem como entre as URGEs e as instituições do sistema de justiça e afins se dará por meio da celebração do Pacto de Diálogo e Cooperação Interinstitucional em Gestão Judiciária e Administração da Justiça SINGESPA – PADIS, que poderão ser celebrados pelas instâncias de representação regional ou geral do SINGESPA. § 2º. Poderão ser convidadas a participar da formulação de Programas de Relações Interinstitucionais do SINGESPA (PRIS) em âmbito regional ou geral, dentre outras, as seguintes instituições: I - o Ministério Público do Trabalho: PADIS – MPT; II - o Instituto Nacional de Seguridade Social: PADIS - INSS; III - o Ministério do Trabalho e Emprego: PADIS - MTE; IV - a Ordem dos Advogados do Brasil: PADIS - OAB; V - a Advocacia-Geral da União: PADIS - AGU; VI - a Procuradoria da Fazenda Nacional: PADIS - PFN. § 3º. Os órgãos e entidades que convergirem com os objetivos a que se refere o presente artigo passarão a integrar o Conselho de Administração de Justiça do SINGESPA ou da respectiva URGE, quando sua formação ocorrer no âmbito regional.16

O cotejo das citadas disposições regulamentares permite a constatação de que as atividades institucionais do SINGESPA/TRT3 somente podem ser compreendidas e viabilizadas a partir das premissas do di15 16

Idem. Idem.

48 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

álogo e da cooperação entre os órgãos judiciários entre si e entre estes e a Administração do Tribunal e, entre o poder judiciário, de qualquer modo, partícipes da administração da justiça. A experiência do SINGESPA/TRT3 no estágio em que se encontra é, portanto, ao mesmo tempo, fonte inspiradora da dimensão não processual da cooperação judiciária, isto é, como estratégia de administração da justiça, absorvida e potencializada pela Recomendação 38/11. Todos esses aspectos da atuação fora dos limites do processo judicial mas integrados a administração da justiça, concernem a um paradigma de jurisdição coerente com o Estado Democrático de Direito, uma vez que posiciona o Judiciário como esfera de poder que age muito além da clássica função de promover a pacificação social, mas na condição de corresponsável pela realização do projeto constitucional da sociedade brasileira, pela efetividade da ordem jurídica atuando em todas as frentes possíveis e harmônicas com a função jurisdicional (que inclui também o sentido da prevenção dos conflitos). Esta breve análise ilustrativa da contribuição da experiência do TRT3 para a conformação normativa da cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça nos moldes ínsitos à Recomendação 38/11, revela direções em que o judiciário pode evoluir na busca de um paradigma de jurisdição coerente com o estado democrático de direito contemporâneo. A cooperação judiciária, assim compreendida, tem como objetivo a busca da agilidade e da efetividade da prestação jurisdicional, assim como a melhoria dos serviços judiciários e da administração da justiça, e compreende, além da cooperação entre magistrados, partes e auxiliares da justiça, na realização de atos processuais para a prática de atos processuais, as seguintes dimensões: (a) o exercício consensual e compartilhado de atos jurisdicionais e de administração de justiça, mediante entendimento e mútua colaboração entre órgãos judiciais vinculados a quaisquer tribunais dos diversos ramos da justiça brasileira, em processos em que haja interseção das respectivas competências, observadas a independência e a liberdade de convicção do magistrado; (b) a formulação de políticas jurisdicionais e a adoção de diretrizes de ação coletiva entre órgãos judiciários de um mesmo foro, região ou tribunal, e (c) a contribuição de magistrados de primeira e de segunda instâncias na administração da justiça, no âmbito dos respectivos tribunais. A concepção de uma administração da justiça comprometida com o projeto constitucional da sociedade brasileira e dotada de estratégias que oriente a atuação do poder judiciário para o cumprimento de

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 49

sua missão estratégica de realizar a justiça, fortalecer o Estado Democrático e fomentar a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, por meio de uma efetiva prestação jurisdicional, destaca os seguintes aspectos: •No plano operacional: a) O intercâmbio, a troca de conhecimento e experiência, e a comunhão de esforços para a solução de problemas comuns entre os órgãos judiciais; b) A comunicação, o diálogo e o intercâmbio entre os órgãos judiciais e a sociedade; c) A formulação de políticas jurisdicionais coletivas e coerentes com a missão institucional definida no planejamento em consequência de alinhamento e do seu desdobramento diretivo das ações dos órgãos inferiores; d) Aparelhamento e participação efetiva da primeira instância na administração da justiça, porque é nesta instância onde se dá, de modo mais enfático, a interface entre o Poder Judiciário e a sociedade, bem como é onde se resolve a maioria esmagadora dos conflitos levados ao Poder Judiciário; • No plano jurisdicional (stricto sensu): a) A ampliação da jurisdição para além do processo, nela incluindo quaisquer ações institucionais direcionadas para a busca da efetividade da ordem jurídica, para a prevenção dos conflitos, para a gestão e a racionalização da resolução dos conflitos de massa e para a racionalização das rotinas e procedimentos processuais. • No plano das relações externas: a) A formulação de políticas interinstitucionais voltadas para a promoção dos meios não judiciais de resolução de conflitos aptos a assegurar a integridade dos direitos e a justa resolução de pendências que, para tanto, dispensam a estrutura e o aparato judiciário, com vistas ao seu descongestionamento e à consequente melhoria da prestação jurisdicional, também em termos qualitativos; b) Formulação de políticas interinstitucionais voltadas para a busca da efetividade dos direitos e para a prevenção dos conflitos sociais. 17

Para a conformação dos subconceitos e modalidades de cooperação judiciária no sistema brasileiro, no sentido de estratégia de administração da justiça, toma-se como referência os constructos doutrinários elaborados em ensaio anterior de um dos autores deste trabalho realiza17

VASCONCELOS; CHAVES JUNIOR, 2016, p. 286- 307.

50 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

do em coautoria18, já citado alhures, tal como assim delineados: (A) Cooperação em gestão judiciária: diz respeito à adoção consensual de medidas e de ações comuns entre magistrados que atuam no mesmo órgão, foro ou comarca, região, tribunal ou ramo do Poder Judiciário, a fim de promover: (a) formulação de estratégias comuns para a solução equânime, global, simultânea, harmoniosa, racional e coerente de questões comuns aos órgãos em que tramitam ações conexas ou repetitivas contra um mesmo demandado ou que tenham relevante interesse público, dada a sua repercussão social, a fim de garantir a justiça e a efetividade da prestação jurisdicional; (b) a eficiência operacional na gestão dos órgãos judiciais, com o propósito de agilizar e racionalizar procedimentos judiciais e/ou administrativos; e (c) a harmonização de mecanismos de gestão administrativa e processual tendentes à dinamização de rotinas e procedimentos forenses pelo estabelecimento de diretrizes de ação comuns. (B) Cooperação em administração da justiça: corresponde ao campo de cooperação mútua entre órgãos jurisdicionais (a) para o levantamento de dados e de subsídios contributivos para a elaboração de diagnósticos abrangentes e fidedignos da realidade, a serem considerados nos processos decisórios concernentes à gestão dos tribunais e à administração da justiça; (b) para a formulação coletiva de políticas jurisdicionais e administrativas gerais, regionais ou locais, orientadas para a melhoria dos serviços judiciários, da prestação jurisdicional e da administração da justiça, segundo diretrizes do Plano Estratégico do Poder Judiciário Nacional (Resolução 70/2009, do CNJ); (c) em que se promove a participação coletiva de magistrados nos processos decisórios concernentes à elaboração e à execução do planejamento estratégico, discussão e formulação de diretrizes em gestão judiciária e administração da justiça, observados os regimentos internos dos tribunais sobre a matéria; (d) em que se promove a interação com demais instituições do sistema de justiça tendentes à adoção de medidas voltadas à prevenção e à resolução consensual de conflitos, bem como gestão e tratamento conjunto e adequado de conflitos de massa, mediante instrumentos, procedimentos e ações, conjunta e cooperativamente, estabelecidos; e (e) para Refere-se a seguinte obra indicada para aprofundamento na temática: VASCONCELOS, Antônio Gomes de; JUNIOR, José Eduardo Chaves. Cooperação Judiciária na Administração da Justiça e no Processo do Trabalho, IN: COLNAGO, Lorena de Mello Rezende; NAHAS, Thereza Christina. Processo do Trabalho Atual – Aplicação dos Enunciados do Fórum Nacional do Trabalho e da Instrução Normativa do TST. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. 18

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 51

a identificação de ações repetitivas e de massa, bem como elaboração de estratégias para solução coletiva de tais demandas. (C) Cooperação em infraestrutura: diz respeito à cooperação entre tribunais no sentido de promoverem, entre si, ações com vistas à integração e ao compartilhamento de estruturas, recursos humanos e materiais, equipamentos e ferramentas tecnológicas para, em auxílio mútuo, otimizar as despesas e melhorar a prestação dos serviços judiciais. (D) Cooperação judiciária internacional: é aquela destinada à prática de atos processuais nos termos estabelecidos no NCPC,19 decorrente de tratados ou convênios internacionais entre Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores e intermediada por magistrado de cooperação judiciária internacional da Rede Nacional de Cooperação Judiciária. (E) Cooperação judiciária por extensão: é a que institui a cooperação entre o poder judiciário e atores sociais. Em suma, é aquela realizada entre órgãos do Poder Judiciário e os demais órgãos do sistema de justiça ou quaisquer outros órgãos do Poder Público, que, em parceria com órgãos judiciários, colaboram na administração da justiça visando à celeridade, à efetividade do processo e à gestão da solução conflitos. Insere-se nesse campo a atuação dos juízes e tribunais no sentido de promover os meios autocompositivos e extrajudiciais de resolução de conflitos, obrigação decorrente das políticas de Estado instituídas pela lei da mediação (Lei 13.140/2015) e pelo NCPC (Lei 13.105/2015), que recepcionam e ampliam as políticas públicas estabelecidas na Resolução 125, do CNJ. (F) Cooperação judiciária processual: é ato de cooperação entre órgãos judiciais concernente à prática atos processuais cujo andamento dependa da colaboração ou da prática de ato de competência de outro órgão jurisdicional, com o objetivo de conferir-lhes coerência, racionalidade, harmonia, agilidade e, e de resto, assegurar a efetividade e a justiça das decisões. Dado o escopo desta obra dedicar-se-ão à cooperação judiciária processual tópicos subsequentes.

3. A cooperação judiciária processual A cooperação judiciária processual pode ser compreendida como 19

Cf. Liv. II, Tít. II, Cap. II, arts. 26 a 41, NCPC.

52 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

a colaboração entre os órgãos do Poder judiciário quanto à prática de atos processuais. Comporta uma dimensão ética, uma dimensão institucional (concertação) e uma dimensão operacional. A dimensão ética se traduz no dever de colaboração em envolve todos os sujeitos do processo (as partes, o juízo, os auxiliares da justiça). A dimensão institucional refere-se à cooperação entre os órgãos jurisdicionais na prática de atos processuais, na formulação de critérios de gestão processual e na concertação de políticas jurisdicionais em situações sujeitas à interseção de atos jurisdicionais oriundos de um ou mais órgãos judiciários, visando à racionalidade, coerência, a agilidade, a justiça e a efetividade da prestação jurisdição. O novo código de processo civil institui a cooperação judiciária numa tríplice dimensão: a) Cooperação entre os sujeitos do processo (artigo 6º, NCPC), b) a cooperação internacional (artigos 26 a 41, NCPC) e, c) a cooperação judiciária entre órgãos judiciários (artigos 67 a 69). Assim, passar-se-á para uma análise teórico-objetiva das modalidades retromencionadas. Verifica-se, portanto, que os atos de cooperação processual tal como delineados na nova legislação processual, destinam-se à cooperação jurisdicional e não se resumem à dimensão endoprocessual, nem a uma concepção individualizada dos processos. A concertação de atos processuais entre os órgãos judiciais envolve políticas jurisdicionais de tratamento racional e coerente (prevenção, resolução e execução) de conflitos complexos e/ou de massa mediante atuação conjunta daqueles órgãos. Nesse sentido, é que a cooperação judiciária processual se constitui em instrumento de concretização dos princípios da duração razoável do processo, da efetividade dos direitos e a justiça das decisões judiciais, impondo, para tanto, uma transformação cultural e paradigmática da jurisdição. A formulação concertada de políticas jurisdicionais entre órgãos jurisdicionais cuja atuação se dá num mesmo contexto em que o alcance dos atos jurisdicionais extrapola o campo restrito do processo, comporta estreita conexão com as demais modalidades de cooperação, já que elas, no mais das vezes, são pressuposto para o alcance da cooperação processual.

3.1. A cooperação entre os sujeitos do processo (art. 6º, CPC) Segundo o artigo 6º do Novo Código de Processo Civil, todos os

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 53

sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, uma decisão de mérito justa e efetiva. O código impõe um dever de colaboração das partes com o andamento do processo com fundamento nas exigências constitucionais do princípio da boa-fé e da razoabilidade. O dever de cooperação aduz o dever de esclarecimento e colaboração com a busca da verdade real nos autos e pressupõe também o dever de diálogo (ou de consulta), o dever de prevenção, dever de auxílio (adequação)20. O dever de cooperação entre as partes e o juiz no processo caracteriza-se por uma ênfase aos princípios e garantias fundamentais do processo. Apesar da posição de antagonismo existente entre as partes e, em que pese a distinção entre a posição do juiz (autoridade estatal) e das partes (jurisdicionados, sujeitos àquela autoridade), todos os sujeitos do processo inserem-se dentro de uma mesma relação jurídica e possuem o dever de colaborar entre si para que a relação processual se desenvolva razoavelmente até a meta para o qual ela é preordenada (a resposta jurisdicional final)21. Quer seja, nas entabulações direcionadas à busca de uma solução consensual e autocompositiva, quer seja no curso dos atos processuais conducentes a uma solução adjudicatória. A norma do artigo 6º do NCPC não exclui o magistrado que orientar sua atuação também como um agente colaborador na realização dos objetivos do processo. Esta perspectiva situa o processo como um “processo colaborativo” em profunda sintonia com a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, que confere ao poder judiciário a função de realizar a justiça da qual o processo é um instrumento, pelo que a conduta das partes deve ser conformada a esse objetivo.

3.2 Cooperação internacional (artigos 26 a 41 do NCPC) O Novo código de Processo Civil destinou um título específico ao tratamento da cooperação judiciária internacional. A crescente circulação de pessoas, bens e serviços num mundo globalizado implica o aperfeiçoamento dos institutos processuais relativos à cooperação internacional com vistas à prática de atos processuais que envolvam a atuTALAMINI, Eduardo. Cooperação no novo CPC (primeira PARTE): OS DEVERES DO JUIZ. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI226236,41046-Cooperacao+no+novo+CPC+primeira+parte+os+deveres+do+juiz. Acesso em 01 de outubro de 2016. 21 Idem. 20

54 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

ação e a cooperação entre entes internacionais e o poder judiciário com vistas à superação de obstáculos oriundos das diferenças entre os sistemas jurídicos e de justiça de cada país, os aspectos burocráticos relativos à comunicação e prática de atos processuais de âmbito internacional. A cooperação jurídica internacional é técnica que preserva soberania dos países envolvidos destinada a efetivar o princípio da máxima satisfação da prestação da tutela jurisdicional na ordem jurídica interna através do diálogo e da cooperação entre jurisdições de Estados diversos. Segundo o novo código de processo civil, as demandas submetidas à apreciação da justiça brasileira que precisem ser aperfeiçoadas ou integralizadas pela prática de atos que devam acontecer em território estrangeiro, podem ser objeto da cooperação jurídica internacional. A cooperação jurídica internacional mediada por Autoridades Centrais, institucionaliza a soma de esforços entre os países com a finalidade de proporcionar aos seus nacionais a prática de atos processuais de âmbito internacional pode ser requerida com fundamento em acordos internacionais, bilaterais ou multilaterais, firmados em âmbito regional ou global. Na ausência de normativo internacional específico ou aplicável à matéria em questão, a cooperação poderá ser requerida com fundamento na reciprocidade, caso em que a tramitação se fará pela via diplomática, por intermédio do Ministério das Relações Exteriores (MRE).22 O novo Código de Processo Civil também exige a observância de aspectos imprescindíveis para o respeito com a ordem jurídica externa, são eles: a) o respeito às garantias do devido processo legal no Estado requerente; b) a igualdade de tratamento entre nacionais e estrangeiros, residentes ou não no Brasil, em relação ao acesso à justiça e à tramitação dos processos, assegurando-se assistência judiciária aos necessitados; c) a publicidade processual, exceto nas hipóteses de sigilo previstas na legislação brasileira ou na do Estado requerente; d) a existência de autoridade central para recepção e transmissão dos pedidos de cooperação; e) a espontaneidade na transmissão de informações a autoridades estrangeiras. A cooperação jurídica internacional pode ser passiva ativa e passiva. A cooperação ativa é aquela solicitada por autoridades brasileiras para a realização de diligências no estrangeiro. Já a cooperação passiva é aquela requerida por autoridades estrangeiras para cumprimento de OAS- Organization of American States. Cooperação jurídica internacional. Disponível em: http:// webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:AJl6-yEfN-kJ:www.oas.org/juridico/mla/pt/col/ pt_col-mla-gen-cji.doc+&cd=8&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em 17/10/13. 22

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 55

diligências no Brasil. Os pedidos de cooperação ativa mais comuns têm por finalidade a prática de atos processuais de simples tramitação, por exemplo a citação, intimação, notificação e entrega de documentos ou ainda, a instrução probatória (oitiva e interrogatório). A extradição, a transferência de presos e a cobrança de alimentos para indivíduos fora do território nacional também são exemplos de aplicabilidade da cooperação internacional na justiça comum.23 A nova legislação processual ampliou as possiblidades de cooperação internacional na medida que admite a sua ocorrência relativamente a qualquer medida judicial ou extrajudicial que não seja proibida pelo ordenamento jurídico brasileiro. Nestes termos, cogita, exemplarmente, da possibilidade de sua utilização para a prática da citação, intimação e notificação judicial e extrajudicial, da colheita de provas e obtenção de informações, da homologação e cumprimento de decisão, da concessão de medida judicial de urgência e da assistência jurídica internacional. Os instrumentos de cooperação jurídica internacional são a carta rogatória e o pedido de auxílio jurídico direto (auxílio direto). A utilização dos mencionados instrumentos depende da existência de acordos ou tratados internacionais que deem suporte ao pedido. Assim, o primeiro passo antes da formulação de um pedido de cooperação jurídica internacional deve consistir na averiguação da existência de tratados internacionais, bilaterais ou multilaterais, aplicáveis. Caso não exista tratado ou acordo, a tramitação se fará necessariamente pela via diplomática e o instrumento de cooperação adequado será a carta rogatória.24 Ante a ausência de tratados internacionais que amparem a cooperação internacional foi registrado pelo Itamaraty, um aumento acelerado do número de cooperações internacionais por via diplomática requeridos pelo estado brasileiro.25 Apesar da importante atuação diplomática nos pedidos de cooperação judiciária internacional, a experiência demostrou que diante da ausência de regulamentação internacional (tratados e acordos), a utilização da via diplomática torna-se insuficiente o cumprimento de solicitações de cooperação judiciária. Por outro lado, a existência de instrumentos internacionais tende a fortalecer a posição de requerente do Brasil em situações em que não haja interesses específicos na cooperação bilateral por parte do país solicitado.26 OAS- Organization of American States. Cooperação jurídica internacional. Disponível em: http:// webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:AJl6-yEfN-kJ:www.oas.org/juridico/mla/pt/col/ pt_col-mla-gen-cji.doc+&cd=8&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em 17/10/13. 24 Idem. 25 KLEEBANK, 2004, p.16. 26 Idem, p.19. 23

56 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

Os problemas e conflitos advindos das relações intersubjetivas de amplitude internacional necessitam cada vez mais a cooperação jurídica entre os Estados para viabilizar a própria prestação da tutela jurisdicional. Observa-se que as formalidades exigidas para o envio de pedidos de cooperação jurídica internacional não são uniformes, podem variar de acordo com o caso concreto e com a legislação interna do país em que se requer a cooperação. Contudo, a cooperação jurídica internacional possibilita a minimização dos entraves burocráticos oriundos das relações internacionais e de sua repercussão nos atos processuais.

3.3 Cooperação judiciária entre órgãos judiciários (artigos 67 a 69 do NCPC) Os artigos 67 a 69 do novo Código de Processo Civil tratam da cooperação nacional entre todos os órgãos do Poder Judiciário, por iniciativa dos próprios órgãos judiciários envolvidos, nas esferas estadual e federal, tanto na justiça especializada quanto na justiça comum, em todas as instâncias ou graus de jurisdição, incluindo-se também os próprios tribunais superiores. É importante ressaltar que o NCPC abriu margem para a cooperação entre diferentes ramos do Poder Judiciário, conforme se depreende do § 3º do artigo 69. A cooperação processual atribui, assim, um tratamento inovador ao instituto, inspirada em mecanismos de cooperação judiciária importados da União Europeia, que privilegiam a celeridade, a informalidade, o diálogo e a aplicabilidade de novas tecnologias de comunicação e informação. Adota-se como fundamento do instituto, uma principiologia constitucional embasada na celeridade e na instrumentalidade dos atos processuais, com o objetivo de atingir o escopo de realização e ampliação do acesso à justiça, bem como a realização da missão atribuída ao Poder Judiciário na Resolução 198 de 2014,27 através do pronunciamento jurisdicional. Opera-se uma transmudação da teoria clássica processualista formal pela aderência a um “direito processual constitucional dialógico e interativo” como proposto por Roberto Gargarella para todo o direito processual latino-americano. No que se refere ao conteúdo dos artigos 67 a 69 do novo CódiDispõe sobre o Planejamento e a Gestão Estratégica no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. O anexo I da referida resolução estabelece como missão do Poder Judiciário, a realização da justiça.

27

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 57

go de Processo Civil, percebe-se uma aproximação com os princípios gerais da cooperação judiciária (interatividade dialógica, desordenamento e complexidade, transversalidade, mobilidade, instantaneidade e resiliência, conectividade e inovabilidade). Em suma, o princípio da transversalidade está presente no artigo 67, que prevê a abrangência de todos os ramos do Poder Judiciário. O princípio da mobilidade está presente de forma implícita em todos os artigos mencionados, justamente, pela não vedação de matérias específicas a serem objeto de cooperação. Os princípios do desordenamento e complexidade também estão presentes implicitamente nos artigos 67 a 69, que reconhecem a complexidade do sistema judicial ao traçar apenas de forma exemplificativa o rol de possibilidades de aplicação e utilização do instituto da cooperação judiciária. A instantaneidade e resiliência são princípios implícitos ao comando do artigo 69, que preconiza a celeridade e sincronicidade dos atos processuais. O princípio da conectividade impõe a emancipação do processo através da comunicação e da utilização de estrutura ágil informatizada (e-mail, telefone, entre outras tecnologias de comunicação para a prática do ato de cooperação). O princípio da inovabilidade preconiza a existência de inovação processual a partir da criatividade do juiz para a utilização da cooperação judiciária em cada caso específico, ao se valer de um rol normativo que é meramente exemplificativo. Por fim, o princípio da interatividade dialógica elenca a cooperação forense imediata, ágil, comunicativa e em tempo real.28 A cooperação entre os órgãos do Poder judiciário prescinde de forma específica e pauta-se pela simplicidade e desburocratização que pode ser utilizada para promover: a) auxílio direto, b) reunião ou apensamento de processos, c) prestação de informações, d) atos concertados entre os juízes cooperantes. Na perspectiva do novo Código de Processo Civil, a cooperação entre órgãos judiciários, também denominada de cooperação nacional, prevê atos concertados entre os juízes cooperantes para a realização de procedimentos taxativos, tais como: a) prática de citação, intimação ou notificação de ato, b) a obtenção e apresentação de provas e a coleta de depoimentos, c) a efetivação de tutela provisória, d) a efetivação de medidas e providências para recuperação e preservação de empresas, e) a facilitação de habilitação de créditos na falência e na recuperação judicial, f) a centralização de processos repetitivos, g) a execução de decisão jurisdicional. 28

CHAVES JÚNIOR, Prelo. Passim.

58 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

Naturalmente que a lista é meramente exemplificativa uma vez que o artigo 68, NCPC, se refere à prática de qualquer ato processual. O item abaixo amplia ainda mais o leque de possibilidades concebidas hipoteticamente. O dever de recíproca cooperação alcança a todos os órgãos judiciais de quaisquer instâncias – magistrados e servidores, indiscriminadamente (art. 67, NCPC). A formulação do pedido de cooperação pode se dar pela via do auxílio direto, em que o pedido e a comunicação entre os órgãos cooperantes se dá diretamente entre os órgãos envolvidos (art. 68 c/c art. 69, I, NCPC. No entanto, a Recomendação 38/11 do CNJ, estabelece que integram a Rede Nacional de Cooperação Judiciária os magistrados de cooperação de cada um dos Tribunais do país, de todos os ramos do poder judiciário. A função destes magistrados de cooperação é, além das demais previstas no art. 7º da referida Recomendação, a de intermediar o concerto de atos entre juízes cooperantes e prestar-lhes toda a assistência para os contatos ulteriores. Dessarte, o pedido de cooperação pode ser encaminhado diretamente ao órgão destinatário ou ao magistrado de cooperação que, por sua vez, se encarregará de constituir a ponte de comunicação entre os órgãos cooperantes (arts. 7º, I e 8º, da Recomendação 38/CNJ). Há outros deveres específicos, de suporte aos procedimentos de cooperação judiciária, atribuídos ao magistrado de cooperação como estabelecem os demais incisos insertos no citado art. 7º da Recomendação. Como já assentado alhures, a cooperação judiciária processual conecta-se, indissociavelmente das demais modalidades de cooperação objetivos dos desenvolvimentos expostos no item 2.1, deste artigo.

4. Evocação exemplificativa e inspiradora de possibilidades incomensuráveis de cooperação judiciária processual. Neste tópico demonstrar-se-á as possibilidades de cooperação judiciária processual mediante, primeiramente, uma breve análise de um hard case em que o uso da técnica da cooperação judiciária foi decisivo para conferir-lhe racionalidade e harmonia entre atos jurisdicionais provenientes de órgãos judiciários de distintos ramos da justiça brasileira; em segundo lugar, mediante a descrição hipotética de situações exemplificativas em que a o instituto da cooperação judiciária pode atuar.

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 59

4.1. Um Hard case processual e o “vazio institucional”: o uso da técnica da cooperação judiciária como única alternativa para a busca de uma solução possível O caso aqui estudado retrata uma situação jurídico-processual enfrentada pelos juízos da 45ª. Vara do Trabalho e o juízo da 6ª. Vara Cível, de Belo Horizonte. Retrata uma situação teratológica sem solução dentro do sistema de distribuição de competências da justiça brasileira. Caso viesse a ser adotada a técnica da instauração de um conflito de competência, o Tribunal decisor se veria na contingência de subtrair de um dos juízos sua competência originária, entregando-a ao outro para se evitar o confronto teratológico de provimentos jurisdicionais antagônicos. Como se verá não se trata de mero conflito de competência corrigível pela correção hermenêutica da decisão de um dos juízos envolvidos, porquanto, o dilema decorre de um “vazio institucional” (inexistência de norma processual capaz de dar uma solução plausível ao caso). Em breve relato, em que se preserva, de um lado, a identidade pessoal (pessoa física e pessoa jurídica) no processo trabalhista e no processo cível e, de outro, se fará referência tão somente ao Ministério Público, parte no processo cível, serão retratados os elementos necessários à visualização da importância do uso da técnica da cooperação judiciária. No caso, todos os membros da diretoria de determinada Fundação investigada pelo Ministério Público foram destituídos e afastados de todas as suas funções naquela instituição, em consequência de decisão do juízo da 6ª. Vara Cível de Belo Horizonte prolatada na ação civil pública (Processo: 1691581-96.2015.8.13.0024), que visava assegurar o progresso e a efetividade do inquérito destinado à apuração de responsabilidades dos diretores pelo desvio e apropriação indevida de verbas fundacionais. Um dos membros da diretoria afastada com vínculo empregatício com a Fundação a despeito de alçado ao cargo de diretor ajuizou, subsequentemente à referida ação civil pública, reclamação trabalhista (Processo: 0010146-71.2018.5.03.0183) em que pleiteou a sua reintegração no emprego, baseado no descumprimento de duas obrigações oriundas do contrato trabalho: a) o dever de dar trabalho e o dever de b) pagar salários, por parte da Fundação, já que o autor da ação não fora dispensado do trabalho. Assim, a autora alegou que foi afastada temporariamente de seu cargo de diretora da Fundação por 180 dias (desde agosto de 2015) e des-

60 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

de então, não mais recebeu salário, assim, havia uma postulação do pagamento de salários deste a data de afastamento, entre outros direitos. Ante o silêncio das partes, na ação civil pública, sobre a natureza do vínculo jurídico existente entre a diretora e a fundação, a decisão do juízo cível apreciou o pedido do Ministério Público à luz das normas estatutárias juntadas aos autos daquela ação, fundamentando-se também na legislação constitutiva das instituições fundacionais, para preservar o interesse público e social presentes no caso em análise. O Juízo Cível determinou, liminarmente, o afastamento da autora do cargo de direção da Fundação e vedou a possibilidade de recebimento de remuneração prevista no Estatuto. Mas, compete ao Juízo Trabalhista apreciar a questão sob a ótica do direito laboral, considerando existência de contrato de trabalho entre as partes, ainda em vigor, cujos normas se sobrepõe à regra estatutária no que concerne a direitos trabalhistas, especialmente, o direito aos salários e à aplicação de sanções disciplinares. Ao constatar a existência da ação civil pública tramitando na 6ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte com pedido de responsabilização de conselheiros e diretores da fundação, entre eles o autor da ação da referida ação trabalhista, pela prática de ato de improbidade e que na ação civil pública havia sido proferida decisão interlocutória na qual foi deferida, a título de antecipação de tutela, a destituição do autor da ação trabalhista, de seu cargo de diretor da Fundação e a sua substituição por um interventor judicial. Na mesma ação civil pública fora indeferido o pedido de restabelecimento da remuneração do autor da ação trabalhista afastado do cargo de diretor, desde o afastamento do cargo de diretor, dada a sua condição de empregado da Fundação e o fato de estar à disposição do empregador. O indeferimento do pedido fundamentou-se em disposição estatutária da Fundação, que prevê remuneração dos diretores apenas enquanto efetivo exercício do cargo. Verifica-se no caso em análise, a existência de conexão entre as duas ações e, consequentemente, a possibilidade de decisões conflitantes sobre a mesma questão provenientes do juízo da 45 ª Vara do Trabalho e do Juízo da 6ª vara cível da comarca de Belo Horizonte. Ambas as ações visavam à proteção de bens jurídicos distintos: a) o interesse público inerente às atividades fundacionais, uma vez que, no presente caso, a Fundação reclamada gerencie e aplica recursos públicos, e b) por outro lado, direitos sociais fundamentais dos trabalhadores (matéria afeta ao direito laboral).

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 61

A matéria comportava um antagonismo entre a norma estatutária e a legislação trabalhista, tendo em vista que o diretor autor da ação detinha a condição de empregado da Fundação. Nesse caso o empregador tinha a obrigação de dar-lhe trabalho e pagar-lhe os salários, uma vez que não estava dispensado ou demissionário, nem se lhe tinha aplicado a pena de suspensão, a qual, por sinal não poderia ultrapassar o lapso de 30 dias. No caso, por óbvio, a legislação trabalhista prevalece sobre a norma estatutária quanto às obrigações trabalhistas do empregador. Noutro enfoque, a apuração da suspeita de improbidade requeria o afastamento de todos os membros da diretoria considerados cúmplices na prática dos atos a serem investigados não poderia mantidos em atividade na Fundação, sob pena de inviabilizar as investigações ou seus resultados úteis. Outrossim, o afastamento da diretoria já estava juridicamente amparado na decisão do juízo cível. A instauração de um conflito de competência não resolveria o dilema uma vez que não se trata de mero conflito entre os juízos envolvidos, mas da incidência simultânea da competência de ambos os juízos em situação fática que, embora ensejasse questões de dupla natureza jurisdicional afetas a juízos distintos e oriundas de um mesmo fato jurígenos, em que as decisões dos juízos envolvidos e encontravam em rota de colisão insuperável. Nesse contexto, o juízo da 45ª. Vara do Trabalho formulou pedido de cooperação judiciária com o seguinte desfecho: [...] II- Pedido: Dessarte, respeitosamente, venho consultar ao juízo da 6ª Vara Cível de Belo Horizonte sobre a possibilidade e aceitação do presente pedido de cooperação. Em caso de aceitação do pedido e considerando os elementos acima, levo à consideração do douto Juízo da 6a. Vara Cível de Belo Horizonte a proposição de instauração de procedimento de cooperação judiciária entre o Juízo proponente e o Juízo destinatário, com a seguinte finalidade: 1) obtenção de informações e proposições do Juízo da 6ª Vara Cível de Belo Horizonte, acerca de elementos constantes da ação civil pública que devam ser levados em conta por este juízo no julgamento da ação trabalhista; 2) concertação, se necessário e possível, de atos processuais que possam garantir a harmonização, a coerência, a razoabilidade e a efetividade das decisões a serem proferidas por esta 45ª. Vara do Trabalho de Belo Horizonte e a 6ª Vara Cível de Belo Horizonte, no caso vertente.

62 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

III - Proposição do juízo solicitante: bases para uma 1) Remessa “ex officio” de elementos de prova que possam servir de suporte à decisão do litígio trabalhista instaurado; 2) Prosseguimento do diálogo interinstitucional para apreciação e possível concertação de atos processuais que afetem a ambos os processos, em especial, quanto ao afastamento da autora de suas funções e o pedido de pagamento de salários com base na legislação trabalhista. 3) Avaliação acerca da possibilidade de prolação de decisão interlocutória conjunta e norteadora dos posicionamentos dos Juízos signatários frente a questões comuns a ambos os processos e que neles repercutam, com possibilidade de decisões conflitantes, caso a medida seja considerada conveniente e oportuna. Conforme despacho proferido nesta data (ID 20e5b64), o julgamento da presente ação foi convertido em diligência em razão da formulação do presente pedido de cooperação judiciária. Deverá a Secretaria da Vara autuar e, ato contínuo, encaminhar o presente pedido de cooperação judiciária ao Juízo da 6ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte (ação civil pública nº 1691581-96.2015.8.13.0024), do mesmo modo, fazendo juntar a estes autos a resposta daquele Juízo, com subsequente conclusão dos autos. Reitero votos de elevada estima e distinta consideração. Deverá a Secretaria da Vara encaminhar o pedido de cooperação judiciária para a 6ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte (ação civil pública nº 1691581-96.2015.8.13.0024) e, após a resposta daquele Juízo, retornem os autos conclusos para apreciação. 29

A circunstância narrada justificava e requeria uma solução processual pela via da cooperação judiciária sob a modalidade concertação de atos processuais entre os juízes envolvidos, com fundamento na Recomendação número 38 do CNJ e a partir de 15/03/16, nas disposições previstas nos artigos 67 a 69 do novo Código de Processo Civil. O pedido de cooperação foi aceito e instaurado para o concerto de atos processuais com fundamento na complexidade das questões envolvidas. Todos os atos foram formalizados e registrados em um termo específico de cooperação, nos seguintes termos: II - CONCERTAÇÃO DE ATOS PROCESSUAIS ENTRE O JUÍZO DA 6A. VARA CÍVEL E O JUÍZO DA 45A. VARA DO TRABALHO, DE BELO HORIZONTE. Pedido de cooperação Judiciária da 45ª vara do Trabalho de Belo Horizonte. Termo de concertação de atos processuais. 29

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 63

Estabelecido o cotejo entre provas e elementos constantes dos autos de número 0024.15.169.158-1 (ação civil pública) e 0010146-71.2016.5.03.0183 (ação trabalhista), concernentes a fatos e questões comuns a ambos os processos juízos cooperantes procedem à concertação acerca de questões comuns e de atos processuais que servirão de base para decisões e deliberação quanto ao andamento dos processos de sua respectiva competência: I - Reconhecida e comprovada a existência de vínculo empregatício entre o autor ... e a FUNDACAO [...] o pedido de restabelecimento de salários formulado na ação trabalhista será apreciado e decidido à luz da legislação trabalhista; II – A suspensão do autor [...] do exercício do cargo de diretora da Fundação por 180 dias para apuração de irregularidade administrativa no exercício de gestão de recursos fundacionais decorrente da ação civil pública ajuizada, é ato potestativo do empregador, por se tratar de cargo de alta confiança e de máxima responsabilidade na referida instituição; III - Não tendo sido o autor dispensado do emprego, nem sofrido suspensão de até 30 dias a título de punição disciplinar, o contrato de trabalho permanece em vigor com todos os direito e obrigações atinentes ao contrato de trabalho, em especial, o direito à percepção dos salários enquanto durar o período de suspensão do contrato de trabalho para fins apuração de falta que eventualmente tenha sido cometida pelo autor [...]; IV- O afastamento temporário do autor [...] do exercício de cargo de administração/gestão ou de qualquer outro cargo enquanto durar o procedimento investigatório justificado pela gravidade dos fatos elencados nas razões de pedir da ação civil pública, é medida indispensável ao exercício do direito/poder/ dever da Fundação de, por mãos do interventor judicial e sem qualquer obstáculo ou obstrução por parte de quem conhece profundamente os meandros e procedimentos internos da entidade, proceder à apuração dos fatos; V – O restabelecimento da remuneração do autor... à luz da legislação trabalhista deverá ser compatível com aquela praticada pela Fundação em relação a cargos burocráticos desprovidos de função confiança ou de gestão, a ser objeto de ponderação por parte do juízo da 45ª. Vara do Trabalho de Belo Horizonte quanto à eleição do cargo a ser tomado como referência. Considera-se, outrossim, que ao empregado não cabe o direito de permanecer indefinidamente e, contra a vontade do empregador, em cargo de confiança específica, podendo, em caso de reversão a função de hierarquia inferior, haver redução remuneratória, pelo que, pela mesma razão, em caso de suspensão para os fins elencados, poderá o empregador transmudar o empregado do exercício de cargo de gestão para cargo de hierarquia inferior e pagamento de salário correspondente

64 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

ao mesmo. VI- O juízo da 45ª. Vara do Trabalho de Belo Horizonte intentará mediar solução autocompositiva entre as partes no âmbito das diligências que determinaram a suspensão do julgamento da ação trabalhista, a partir dos parâmetros estabelecidos na presente concertação de atos processuais. VII- Uma vez resolvida a controvérsia, quer seja por acordo ou por decisão, tudo em conformidade com os parâmetros e atos acima concertados, o respectivo termo será encaminhado ao juízo da 6ª. Vara Cível para que se procedam aos ajustes e alinhamento dos atos processuais que aquele juízo reputar necessários nos autos da ação civil pública (processo 001014671.2016.5.03.0183), consumados ou por realizar, à presente concertação. VIII – O presente termo de concertação de atos processuais será anexo aos autos do processo 0024.15.169.158-1 – 6ª. Vara Civil de Belo Horizonte e do processo 0010146-71.2016.5.03.0183 – 45ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, a cargo das respectivas secretarias de foro.30

Nos fundamentos constantes no termo de concertação, os juízos cooperantes reconheceram a existência em dois vínculos jurídicos de distinta natureza entre o diretor afastado e a fundação - a) relação estatutária, na qualidade de diretora da Fundação e, b) a relação empregatícia decorrente do contrato de trabalho, que envolvem a jurisdição trabalhista e jurisdição cível. Entenderam que o restabelecimento da remuneração da autora à luz da legislação trabalhista deve ser compatível com aquela praticada pela fundação em relação a cargos burocráticos desprovidos de função confiança ou de gestão, a ser objeto de ponderação por parte da 45ª vara do trabalho quanto à eleição do cargo a ser tomado como referência. Consideraram, outrossim, que ao empregado não cabe o direito de permanecer indefinidamente e, contra a vontade do empregador, em cargo de confiança específica, podendo, em caso de reversão a função de hierarquia inferior, haver redução remuneratória e, pela mesma razão, em caso de suspensão para os fins elencados, poderá O termo de concertação foi firmado entre o Juiz Titular da 45ª. Vara do Trabalho de Belo Horizonte e a Juiz de Direito Titular da 6ª. Vara Cível de Belo Horizonte. Subsequentemente foi realizada audiência na qual, intimado, compareceu o representante do Ministério Público e foi celebrado acordo na ação trabalhista estabelecendo: a) a continuidade do afastamento do autor de suas funções na Fundação; b) restabelecimento do direito à percepção de salário mensal e sua redução ao valor correspondente ao cargo efetivo ocupado pelo autor na Fundação; c) acordo quanto pagamento dos salários atrasados devidos à autora fixados em R$6.000,00. O termo de acordo foi encaminhado ao Juízo da 6ª. Vara Cível e toda a documentação relativa à concertação processual foi anexada em ambos os processos, o da ação civil pública e da ação trabalhista, findando-se a cooperação judiciária celebrada entre os juízos envolvidos. 30

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 65

o empregador transmudar o empregado do exercício de cargo de gestão para cargo de hierarquia inferior com o consequente pagamento de salário correspondente.

4.2. Outras situações ilustrativas da incidência da cooperação judiciária processual na experiência forense. São também por demais ilustrativas as situações concretas levantadas pelo Comitê Executivo Nacional da Rede Nacional de Cooperação Judiciária, a partir de pesquisa realizada por magistrados de cooperação partícipes do I Encontro de Magistrados de Cooperação realizado no Rio de Janeiro, em 2012, reunidos para divulgação e com incentivo ao uso da cooperação judiciária, além de demonstrar a versatilidade do instituto como valioso instrumento de suporte à prestação jurisdicional.31 Constam da compilação de casos o uso da cooperação judiciária: 1) Entre juiz estadual e juiz federal: no Estado de São Paulo, pessoa que comprou um imóvel em leilão da Caixa Econômica Federal, não conseguia tomar posse do imóvel, porque o antigo proprietário estava discutindo o contrato com a Caixa Econômica Federal, através de ação proposta na Justiça Federal, então, ingressou com ação de imissão de posse na Justiça Estadual. O juiz estadual conversando com o juiz federal, conseguiu que a decisão sobre o contrato fosse mais rápida (em três dias) e, assim, pôde dar andamento à ação de imissão de posse; 2) Entre Juízos da Infância e da Juventude de Comarcas de divisa, pertencentes a Estados diversos: menor, cuja família tinha domicílio no Estado de São Paulo, foi encontrado em situação de risco pelo Conselho Tutelar da Comarca do Estado do Rio de Janeiro. O juiz do Rio de Janeiro, ao invés de expedir carta precatória para a oitiva dos pais e realização de estudo social, entrou em contato diretamente com o juiz de São Paulo, que já determinou a realização de estudo social, e a criança foi devolvida para a família, de forma rápida e segura; O levantamento, encaminhando ao CNJ, incluiu pesquisa realizada por diversos magistrados de cooperação e foi destinado a fomentar o uso da cooperação judiciário na prática jurisdicional dos tribunais brasileiros. A descrição aqui apresentada é oriunda da sistematização de relatos de diversos magistrados. Os relatos foram extraídos de documento existente nos arquivos do Professor co-autor deste trabalho, recebido na condição de membro do Comitê Executivo Nacional da Rede Nacional de Cooperação Judiciária. Na impossibilidade de individualizar os autores de cada um dos relatos indicados deixa-se de mencioná-los nominalmente, registrando-se, apenas, que a compilação foi realizada pelo referido Comitê com base na contribuição de diversos magistrados de cooperação brasileiros. Alguns relatos foram adaptados para que a descrição se tornasse impessoal. 31

66 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

3) Entre Juízos da Infância e Juventude de Comarcas diversas: no dia 23 de dezembro chegou no abrigo da cidade de Porto Velho, uma senhora acompanhada de seu advogado, que residia em Comarca diversa e que já havia estado no local e conhecido uma menina altista de dois anos, querendo adotá-la e passar as festas de final de ano com ela. O juiz conversou com o promotor e já permitiu que a criança passasse as festas com ela e, concomitantemente, entrou em contato com o juiz da outra Comarca, que determinou a realização de estudo social na residência da senhora, independentemente de carta precatória, sendo que, assim que realizado o laudo, após a manifestação do Ministério Público, que também havia participado de todo o procedimento, a adoção foi deferida; 4) Entre Justiça Estadual e Justiça Federal: em algumas Comarcas do Estado de São Paulo, que possuem Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs), tem sido organizados mutirões de conciliação em processos que tem no polo passivo um Banco privado e a Caixa Econômica Federal, comprometendo-se esta última a encaminhar, na data designada, prepostos com poderes para transigir. Então, realizado o acordo com os dois Bancos, uma parte já é homologada pelo juiz coordenador do CEJUSC, e a outra é remetida para a Justiça Federal, para homologação pelo juiz competente; 5) Entre Justiça Estadual e Justiça Federal: em Comarcas onde há competência delegada, ou mesmo naquelas na qual existe Justiça Federal, os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs), pertencentes à Justiça Estadual, tem sido utilizados para a realização de mutirões de conciliação de processos do INSS. O INSS se compromete a comparecer, na data designada, através de procuradores com poderes para transigir, bem como a enviar médicos peritos aptos a realizar as avaliações; então, nos casos em que essa avaliação é suficiente, feita ela, as partes são encaminhadas para uma reunião com o conciliador, e obtido o acordo (o que ocorre na maioria dos casos), já é homologado por sentença; 6) Entre juiz estadual e juiz do trabalho: no Estado do Paraná, havia um processo de execução em cada ramo da Justiça e os dois magistrados determinaram a penhora de 50% (cinquenta por cento) dos rendimentos da empresa. Porém, em determinado momento, como não havia valor suficiente para a folha de pagamento, o juiz do trabalho determinou que primeiro se pagassem os empregados, oficiando ao juiz estadual e sendo tal ofício encaminhado através de oficial de justiça, que

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 67

intimou o juiz cível, o que certamente causaria um desconforto, caso não tivesse havido uma ligação do juiz de cooperação do TRT para o juiz da Vara Cível, que resolveu o problema; 7) Entre juiz estadual e juiz do trabalho: no Estado do Paraná, em dois processos que corriam em ramos diversos da Justiça, o juiz do trabalho determinou a hipoteca judicial e o juiz estadual cassou a decisão do juiz do trabalho, sendo que, em ambos os processos, o pensamento era de suscitar conflito de competência. O colega que teve a ordem cassada não tinha tranquilidade para ligar para o outro, motivo pelo qual atuou o juiz de cooperação e o problema foi solucionado, evitando que os dois processos ficassem paralisados, aguardando os julgamentos dos conflitos de competência; 8) Entre Poderes do Estado e instituições públicas: em Roraima, através de parcerias voluntárias entre Poder Executivo estadual e municipal, Poder Judiciário, Defensoria Pública, Ministério Público, Cartórios de Registro Civil, FUNAI, INSS, Delegacia do Trabalho e Universidades, são realizados mutirões de cidadania, coordenados pelos magistrados de cada região, para a obtenção de documentos como carteira de identidade, registro de nascimento, carteira de trabalho etc, bem como realização de conciliação e disponibilização de serviços; 9) Entre juiz federal e juiz estadual de Comarcas de divisa: na Comarca de Altamira, que é enorme, com locais de difícil acesso, onde apenas se chega de barco, havia processo, no qual era necessária a expedição de diversas precatórias para citação, intimação e oitiva de testemunhas no Estado do Mato Grosso. O juiz federal entrou em contato com o juiz estadual da Comarca do Estado do Mato Grosso, que ficava na divisa, e ele se disponibilizou a realizar os atos, independentemente da expedição de cartas precatórias, chegando até mesmo a ir a Altamira para o cumprimento de tais atos, apesar de provenientes da Justiça Federal; 10) Entre juízes estaduais dos Estados de Pernambuco e de São Paulo: em ações de investigação de paternidade, onde há necessidade de realização de exame de DNA, o juiz do Estado de Pernambuco, no qual há convênio com instituto especializado na coleta de material genético, entra em contato telefônico com o juiz do Estado de São Paulo (Comarca de Jundiaí) e combina de enviar pelo correio “kit coleta”. Chegando o referido “kit coleta” com as instruções de uso, o juiz de São Paulo designa audiência com o suposto pai que, concordando, realiza a coleta do

68 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

material da saliva, sendo o “kit coleta” enviado de volta para o Estado de Pernambuco, sem necessidade de expedição e carta precatória e designação de exame pericial pelo IMESC, o que demandaria muito mais tempo; 11) Entre juízes estaduais do Distrito Federal e do Rio de Janeiro: o juiz do Rio de Janeiro recebeu carta precatória, com gratuidade, para a coleta de material genético para a realização de exame de DNA. O Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro tem um convênio com a UERJ para a realização desses exames e, então, o exame podia ser realizado; entretanto, era necessário pagar R$ 100,00 (cem reais) para remeter o material para Brasília, valor este que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro acabou pagando, graças à intervenção do juiz de cooperação junto à Presidência do Tribunal; 12) Entre juízes estaduais (Varas Cível e de Família) ou entre juiz estadual (Vara de Família) e juiz federal (Vara do Trabalho): é comum haver dúvida no estabelecimento do concurso de credores, sendo comum serem descobertos créditos trabalhistas, por exemplo, apenas após a partilha, o que prejudica os credores, sendo que, neste caso, um simples diálogo entre os juízes responsáveis pelos processos, pode resolver a questão sobre a preferência dos créditos; 13) Entre Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública: com o diálogo entre os responsáveis por estas instituições, em diversas Comarcas do Estado de São Paulo, tem sido realizados mutirões de prisão de devedores de alimentos, o que acaba incentivando o cumprimento da obrigação alimentar, agilizando o andamento dos processos de execução de alimentos; 14) Entre juízes do mesmo ramo da Justiça: nos processos das metas, em que há várias precatórias para ouvir testemunhas de outra Comarca ou até de outro Estado, o juiz de cooperação entra em contato telefônico com o colega do juízo deprecado para agilizar o cumprimento da precatória, ou combinar forma de ouvir a testemunha por vídeo conferência, podendo, assim, dar andamento célere ao processo; 15) Entre tribunais de diferentes ramos da Justiça: no Rio Grande do Sul, cada tribunal tem um projeto de processo eletrônico, mas através do diálogo entre os dirigentes dos tribunais, acordou-se a realização de reuniões periódicas entre as equipes de informática de cada tribunal, para a troca de informações e aprimoramento dos sistemas, com a cria-

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 69

ção de um Portal Único para o Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. 16) Entre juízo de execução penal e o sistema penitenciário. Em ação penal movida em face de dois acusados presos, de alta periculosidade, por crimes de homicídio contra três vítimas, ocorridos em 31/05/2011. Os réus foram pronunciados em 28/05/2013 e foram designadas três datas para a realização da Sessão do Júri (30/01/2014, 12/03/2014 e 10/04/2014), sendo que as duas primeiras não ocorreram por problemas da defesa e a última porque os réus não foram recambiados, apesar da autorização do Juízo de Execuções Penais do DF e das inúmeras tentativas de contato telefônico com os órgãos do Sistema Prisional. A alegação da Subsecretaria do Sistema Penitenciário, é de que o CDP – Centro de Detenção Provisória, o CIR – Centro de Internamento e Reeducação, o PDF I – penitenciária do Distrito Federal I e o PDF II – Penitenciária do Distrito Federal II, estão todos sem acesso a telefone e à internet e que não dispõe de autonomia financeira para reparar os problemas. O novo julgamento foi designado para 02/07/2014 e os réus somente não foram colocados em liberdade, depois de três anos da ocorrência do crime, sem julgamento, porque estão reclusos no Complexo Penitenciário da Papuda, em razão de diversos outros crimes e condenações. Certamente, a Cooperação Judiciária e o melhor diálogo com os membros do Sistema de Justiça, são ferramentas imprescindíveis para impedir que situações como esta ocorram, com desfechos indesejáveis para a Sociedade, que fica à mercê de tais falhas, e para o Poder Judiciário, se pretende cumprir o princípio constitucional da razoável duração do processo. 17) Entre juízos criminais e órgãos do poder executivo acerca da transferência de presos. Nos casos em que ocorre o que se considera um dos maiores “gargalos” no processo criminal que é a realização de atos jurisdicionais em outras Comarcas e a transferência de acusados que são presos em outros Estados da federação. Neste aspecto, a cooperação judiciária tem se revelado um instrumento bastante eficaz, reduzindo consideravelmente o tempo de transferência de presos para outros Estados. Tivemos casos em que um preso foi transferido do Estado de Santa Catarina em 01 (um) mês, quando já enfrentamos a espera de 01 ano e meio para a mesma diligência. O Juiz de cooperação nessa situação age como um diplomata de seu Tribunal, mantendo contatos e interlocução com o Juiz de Cooperação do Estado onde o preso se encontra e também com os órgãos do Poder Executivo de ambos os Estados envolvidos. Os magistrados s que militam em Vara Criminal já sentiram “na pele” a péssima sensação de ter que relaxar a prisão de um acusado que deveria

70 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

responder ao processo preso, diante da presença dos requisitos do art. 312, do CPP, em razão de excesso de prazo. Viram-se obrigados a colocar em liberdade um cidadão acusado de praticar mais de 10 homicídios com motivação ligada ao tráfico de drogas, em razão da excessiva demora em transferi-lo de outro Estado onde estava foragido e foi capturado para o Espírito Santo. A simples expedição de ofícios, medida rotineira no dia-a-dia das Varas Criminais, tem se revelado ineficaz e burocrática, de modo que a rede de cooperação judiciária passa a ser um novo paradigma de comunicação e contatos entre os juízes de todo o Brasil. Tais circunstâncias demonstram que a cooperação judiciária é uma verdadeira revolução na forma de prática de atos processuais em outros juízos, revelando-se como um instrumento simples, sem impacto financeiro e desburocratizante e que, por certo, tem aptidão para melhorar consideravelmente a qualidade da prestação judiciária em nosso País, como aconteceu na Comunidade Europeia. A cooperação judiciária também pode ser utilizada como instrumento de concertação de atos entre as instituições públicas da seara trabalhista-previdenciária na tentativa de minimizar ou dirimir os problemas relacionados a três subtemas: a) consequências do reconhecimento do vínculo empregatício, pela Justiça do Trabalho, para fins previdenciários, especificamente para fins de contagem do tempo de serviço; b) competência da Justiça do Trabalho para recolhimento das contribuições previdenciárias incidentes sobre os salários pagos ao longo do contrato de trabalho, em caso de reconhecimento do vínculo empregatício em juízo; e c) incompatibilidade entre as perícias médicas realizadas pelo INSS, em caso de afastamento do empregado por motivo de doença (comum ou ocupacional), e as perícias realizadas por médico particular da empresa.

5. Conclusão Não seria exagerado reconhecer que parte dos principais problemas da administração da justiça no Brasil, advém do insulamento dos órgãos jurisdicionais, da visão atomicista dos conflitos e do processo, da burocracia, da multiplicidade de ramos do Poder Judiciário, quase uma centena de tribunais, incomunicabilidade entre os órgãos jurisdicionais, da má gestão, da hierarquia e do formalismo exagerados na comunicação entre órgãos jurisdicionais, de que são exemplos eloquentes os

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 71

conflitos de competência. O contexto organizacional do Poder Judiciário desestimula a reflexão e a criatividade,32 ocasionando o que Zaffaroni intitula de “paradoxo entre as funções manifestas e as latentes”.33 Quando o Estado não fornece estrutura institucional para realizar aquilo que fora “dito”, gera um disparate entre o que se “diz e o que se faz”, desvirtuando a razão de ser de uma instituição. Humberto Antônio Sierra alerta que o Judiciário teve sua práxis contraditada por um discurso oficial (a Constituição de 1988) como poder estatal com função de concretizar direitos (poder político), sendo que na prática o seu modus operandi se resumia à subsunção formal da lei. A situação agravou-se pela ausência do Estado na elaboração de políticas sociais para implementar direitos fundamentais (sociais) que foram garantidos pela Constituição da República de 1988. Os problemas que poderiam ser resolvidos pela Administração Pública são remetidos para o Poder Judiciário. O isolamento entre os tribunais, repercute na tratativa dos casos levados a juízo e revela decisões judiciais morosas e insensíveis às questões sociais em virtude da complexidade dos problemas a serem dirimidos por intermédio de pronunciamento jurisdicional.34 Não por outra razão, Boaventura de Sousa Santos preconiza que o isolamento para decidir questões de grande complexidade (conflitos classistas, ações de classes ou grupos) provoca a morosidade ativa ou funcional, decorrente da decisão deliberada de não decidir, protelar, dado o plexo da situação e os interesses envolvidos. A superação dos problemas funcionais da Justiça não depende apenas de reformas limitadas a fatores econômicos e ligados à promoção de gestão no interior do Poder Judiciário, aumento de orçamento, aumento da contratação de magistrados e servidores. O enfrentamento dessas debilidades de infraestrutura e de gestão, somente produzirá os efeitos esperados se acompanhado de mudanças estruturais no modus operandi dos magistrados e no relacionamento destes com a sociedade e com os jurisdicionados.35 Reformas que alterem a cultura institucional do poder judiciário são inFARIA, 2003, p. 7. ZAFFARONI, 1995. p. 22. 34 “Es decir, al final todos los conflictos, (y son muchos), que se originan por ausencia del Estado en la prestación de servicios y que antes eran resueltos por la administración, ahora son enviados a la rama judicial.” (PORTO, Humberto Antonio Sierra. La administración de justicia en el Estado Social de Derecho colombiano. In: IV ENCUENTRO NACIONAL DEL CONSEJO SUPERIOR DE LA JUDICATURA, 4., Bogotá, 01/01/1998, p. 8.) 35 Idem, ibidem, p. 49. 32 33

72 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

dispensáveis, seja a partir do ponto de vista sociológico, seja partir do ponto de vista a administrativista. A visão sociológica busca a transposição da cultura jurídica dominante, considerada de viés liberal (dogmática-formal-legalista-individualista-burocrática), para uma cultura democrática na qual se altera a práxis e seu modus operandi para atender a realidade social e efetivar os direitos fundamentais.36 A cooperação interinstitucional, enquanto instrumento de colaboração interna e externa entre os órgãos do Poder Judiciário, entre todos os órgãos que compõe o sistema de justiça e os sistemas paralelos de prevenção e resolução extrajudicial de conflitos, é importante estratégia a serviço desta indispensável transição cultural. A cooperação judiciaria é um instrumento indispensável para que o Judiciário possa contribuir para a realização do projeto constitucional da sociedade brasileira, cumprindo sua missão de realizar justiça. Ela favorece a integração e a união de esforços de órgãos e de instituições do sistema de justiça para assimilação das novas atribuições conferidas, pela Constituição à Justiça brasileira e à realização de direitos fundamentais através do pronunciamento da tutela jurisdicional. Nestes termos, a cooperação judiciária processual se insere num conceito mais amplo e plurívoco do gênero cooperação judiciária. Nesta perspectiva constitui-se como estratégia de administração da justiça coerentemente harmônica com as políticas judiciárias adotadas na reforma do sistema judiciário brasileiro, que vêm sendo implementadas nos planos normativo, institucional e doutrinário. A compreensão dos reflexos jurisdicionais de sua recente absorção pela legislação processual imprescinde de sua contextualização em uma acepção mais ampla. Mesmo que se tenha em consideração apenas os atos de cooperação processual, tal como delineados na nova legislação processual a cooperação judiciária processual se constitui, principalmente, como um em instrumento de concretização dos princípios da duração razoável do processo, da efetividade dos direitos e a justiça das decisões judiciais. Ainda assim, os atos de cooperação processual não se circunscrevem a uma dimensão endoprocessual nem a uma concepção individualizada dos processos. A concertação de atos processuais entre os órgãos judiciais se insere e envolve políticas jurisdicionais de tratamento racional e coerente (prevenção, resolução e execução) de conflitos complexos e/ou de massa mediante atuação conjunta daqueles órgãos. O novo código de processo civil cria uma nova racionalidade para o sistema processual, em conformidade com premissas fundamen36

SANTOS, 2011. p. 39.

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 73

tais adotadas no Estado democrático de Direito, assim, a interpretação do Novo código deve ser sistemática e não restritiva, ou seja, deve ser uma interpretação que ultrapasse a o campo da processualística para abarcar os princípios, as diretrizes e os fundamentos da Constituição da República na busca da efetivação dos princípios de acesso à justiça (no sentido de acesso a uma ordem jurídica justa), o princípio da duração razoável do processo e da efetividades da prestação da tutela jurisdicional. A característica primordial do instituto é a substituição do confronto pela colaboração, com prestação de informações e facilitação de atos interjurisdicionais (entre jurisdições) que necessitem ser cumpridos fora da competência territorial, material ou funcional do julgador originário. No mesmo diapasão, a cooperação judiciária enseja a possibilidade de interação dos órgãos judiciários em espaços institucionalizados e cooperativos de diálogo para a solução de impasses jurisdicionais mediante a concertação atos concertados entre dois ou mais juízos. Registre-se, enfim, que por meio da cooperação judiciária interinstitucional é possível promover a integração e a comunicação entre o Poder Judiciário e os entes responsável pela oferta de métodos extrajudiciais de resolução de conflitos, na perspectiva da coexistencialidade entre os meios judiciais e não judiciais de resolução dos conflitos, numa de intercomplementaridade entre os diversos sistemas de resolução de conflitos sociais. Por tudo isso, reitere-se que o novo instituto requer uma transformação cultural e paradigmática acerca do papel do poder judiciário e do significado da função jurisdicional na sociedade contemporânea.

Referências bibliográficas ÁLVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Poderes do Juiz e Visão Cooperativa do Processo. In: Revista da AJURIS. v. 30, n. 90, Porto Alegre: Ajuris, 2003. ALVES DA SILVA, Paulo Eduardo. Gerenciamento de Processos Judiciais. São Paulo: Saraiva, 2010. ARENHART, Sérgio Cruz & OSNA, Gustavo. Os Acordos Processuais no Novo CPC: aproximações preliminares in Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região V. 4 - n. 39 Curitiba, abril 2015 pp. 103117.

74 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

BIOLCATTI, Paulo Henrique Teófilo. O Novo CPC aplicado na Justiça do Trabalho. São Paulo: Braúna, 2016. BORRÁS, Alegría et ali. La Cooperación internacional de autoridades: âmbitos de família y del proceso civil. Madrid: Iprolex, 2009. BRASIL. Constituição de (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. CANDEAS, Ana Paula Lucena Silva. Valores e os Judiciários: Os Valores Recomendados pelo Banco Mundial para os Judiciários Nacionais. Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros “Justiça e Cidadania”. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2013. CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende. CNJ deve difundir a cultura da cooperação no judiciário. Revista eletrônica Consultor Jurídico (Conjur): São Paulo,16 de novembro de 2011. Disponível em: . Acesso em 20 de setembro de 2013. CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende. O novo paradigma da cooperação judiciária. Revista eletrônica Jus Navigandi: Teresina, ano 17, nº. 3116, 12 de janeiro de 2012. Disponível em: . Acesso em: 20 de setembro de 2013. CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende. Conceito de cooperação judicial precisa de upgrade. Disponível em: http://www.conjur.com. br/2009-nov-09/conceitos-cooperacao-judicial-interna-externa-upgrade. Acesso: 19/10/13. CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende. Cooperação Judiciária na Justiça do Trabalho. Revista do Tribunal regional do Trabalho da Terceira Região, 2016, v.01. Prelo. Passim. CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação 38 de 2011 do Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/322-recomendacoes-do-conselho/ 16817-recomendacao-n-38-de-novembro-de-2011. Acesso em dezembro

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 75

de 2012. CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidária. Salamanca: Ediciones Sígueme S.A., 1985. “Bosquejo de uma ética dialógica de La responsabilidad solidaria” p. 155-177. DIDIER Jr., Fredie. O princípio da cooperação: uma apresentação in Revista de Processo, São Paulo, v. 127, p. 75-80, 2005. FARIA, José Eduardo. Direito e justiça no século XXI: a crise da justiça no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 27 ago. 2007. FARIA, José Eduardo. Judiciário e desenvolvimento socioeconômico. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros, 2010. GARGARELLA, Roberto. El nuevo constitucionalismo dialógico frente al sistema de los frenos y contrapesos. Roberto Gargarella (comp.). Por uma justicia dialógica. Buenos Aires: Siglo XXI, 2014. GARRIGA, Georgina. O espaço judicial europeu: a cooperação judiciária penal e civil In Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, V. 49, Edição nº 79 (Jan. / Jun. – 2009), pp. 163-200. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. IGLESIAS BUHIGUES, J.L. La cooperación judicial internacional en matéria civil Cooperación jurídica internacional, Edição a cargo de S. ÁLVAREZ GONZÁLEZ, J.R. REMACHA y TEJADA. Coleção Escuela Diplomática, 2001,n. 5, p. 47-58. KLEEBANK, Susan. Cooperação Judiciária por via diplomática. Avaliação e propostas de alteração do quadro normativo. Brasília: Instituto Rio Branco, 2004.

76 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

LACERDA, Maria Francisca dos Santos. Ativismo-Cooperativo na produção de Provas. São Paulo: LTr, 2012. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2003. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2005. MURILLO, M. y GARCÍA-ATANCE. La cooperación jurídica internacional – Cuestiones prácticas de Derecho internacional público y cooperación jurídica internacional, Cuadernos de Derecho Judicial, 1994, p. 359-449. NUNES, Dierle J. Coelho. Processo Jurisdiccional Democrático – uma análise das reformas processuais (1ª ed 2008), 4ª reimpr/ Curitiba: Juruá, 2012. NUNES, Dierle. O princípio do contraditório, Rev. Síntese de Dir. Civ. e Proc. Civil. v. 5. n. 29. p. 73-85, Mai-Jun/2004. Acessível para download em: http://goo.gl/xhaBF0. OAS- Organization of American States. Cooperação jurídica internacional. Disponível em: . Acesso em 17/10/13. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2011. SARDETO, Patrícia Eliane da Rosa; ROVER, Aires Joé. A cooperação Judiciária no Brasil em face do E-Judiciário. Disponível em: http://www. egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/a_cooperacao_judiciario_no_brasil.pdf. Acesso em 18/10/13. SOUSA, Miguel Teixeira. Aspectos do novo processo civil português. Revista de Processo, n. 86, p. 174-184.

Antônio Gomes de Vasconcelos & Gabriela de Campos Sena • 77

PORTO, Humberto Antonio Sierra. La administración de justicia en el Estado Social de Derecho colombiano. In: IV Encuentro Nacional del Consejo Superior de La Judicatura, 4., Bogotá, 01/01/1998. Projeto de Regulamento do Sistema Nacional de Cooperação Judiciária do Poder Judiciário Nacional. Disponível em: http://prunart.wix. com/prunartufmg. Acesso em 24 de dezembro de 2015. SINGESPA/TRT3-MG- Regulamento Geral. Disponível em: < http:// www.trt3.jus.br/singespa/bases/regulamento.htm>. Acesso em 10 de outubro de 2016. TALAMINI Eduardo. Cooperação no novo CPC (primeira parte): os deveres do juiz. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI226236,41046-Cooperacao+no+novo+CPC+primeira+parte+os+deveres+do+juiz. Acesso em 01 de outubro de 2016. THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio. Novo Código de Processo Civil: Fundamentos e sistematização. 2a Edição. Rio de Janeiro: GEN Forense, 2015. VASCONCELOS, Antônio G.; FRANCO, Marcelo V. Contribuição para construção de uma teoria da jurisdição compatível com o Estado Democrático de Direito. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, V. 8., n. 1 (2016): Janeiro/Abril, pp. 37-52. VASCONCELOS, Antônio G. Las premisas político-ideológicas del movimiento global de reforma del Poder Judicial: convergencias y paradojas. Palestra Proferida no VIII Congreso Iberoamericano de Cooperación Judicial (Palestra ministrada pelo professor Antônio Gomes de Vasconcelos). VASCONCELOS, Antônio Gomes de; JUNIOR, José Eduardo Chaves. Cooperação Judiciária na Administração da Justiça e no Processo do Trabalho, IN: COLNAGO, Lorena de Mello Rezende; NAHAS, Thereza Christina.Processo do Trabalho Atual – Aplicação dos Enunciados do Fórum Nacional do Trabalho e da Instrução Normativa do TST. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 286- 307.

78 • A cooperação judiciária como estratégia de administração da justiça

VALES, Edgar. Prática processual civil com o novo CPC. Coimbra: grupo Almedina, 2016. VASCONCELOS, Antônio Gomes de; JUNIOR, José Eduardo Chaves. Cooperação Judiciária na Administração da Justiça e no Processo do Trabalho, IN: COLNAGO, Lorena de Mello Rezende; NAHAS, Thereza Christina. Processo do Trabalho Atual – Aplicação dos Enunciados do Fórum Nacional do Trabalho e da Instrução Normativa do TST. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. VASCONCELOS, A. G. “O novo sentido da jurisdição na estratégia do Poder judiciário Nacional e seu desdobramento na experiência do SINGESPA/TRT3-MG” IN ORSINI, Adriana Goulart de Sena; CSTA, Mila B. L. Corrêa da; ANDRADE, Oyama Karyna B. (coords.). Justiça do século XXI. São Paulo: LTr, 2014. VASCONCELOS, Antônio Gomes de. Programa Universitário de Apoio às Relações de Trabalho e à Administração da Justiça. B. Hte.: RTM, 2012. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil – Ley, derecho, justicia. Madrid: Trotta, 2005. ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil: Ley, derechos, justicia. Torino: Trotta, 2011. ZARAGOZA AGUADO. Nuevos instrumentos de cooperación judicial: la orden europea de detención - Mecanismos de Cooperación Judicial Internacional, 2006, p. 87-92.

A COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL POR AUXÍLIO DIRETO E A COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Gláucio Maciel Gonçalves1 Alex Lamy de Gouvea2 Resumo: O presente artigo aborda a cooperação jurídica internacional por auxílio direto e a cooperação jurídica entre órgãos do Judiciário brasileiro, instrumentos previstos no novo Código de Processo Civil. O ponto de partida é a constatação prática do importante papel que ainda exercem as fronteiras internacionais na efetividade do direito, da amplitude do continental território brasileiro e da diversidade de órgãos judiciários (juízos) atuantes no Brasil. O texto pretende estabelecer um paralelo entre as duas formas de cooperação (internacional e nacional), indicar as suas vantagens e apontar para as suas potencialidades. Trata de pontuar, ainda, as dificuldades práticas que o direito processual civil tem pela frente, mormente a de construir uma procedimentalização constitucionalmente adequada – atenta à isonomia, à imparcialidade a à competência jurisdicional – para a utilização dos instrumentos de cooperação. Palavras-chave: Justiça. Efetividade. Cooperação jurídica internacional. Cooperação entre juízos. Auxílio direto. Abstract: This article examines international legal cooperation through direct contact, as well as legal cooperation among Brazilian Judicial agencies – instruments provided by the new Civil Procedure Code. The starting point is the confirmation of the important role still played by Gláucio Maciel Gonçalves é professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), membro do corpo permanente da pós-graduação e juiz federal em Belo Horizonte. Mestre e Doutor em Direito pela UFMG, fez estudos de pós-doutoramento na Albert-Ludwigs-Universität, em Freiburg, Alemanha (2015/2016); e-mail: [email protected]. 2 Alex Lamy de Gouvêa é Bacharel e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente é juiz federal substituto no Rio de Janeiro/RJ; e-mail: lamy.gouvea@yahoo. com.br. 1

80 • A cooperação jurídica internacional por auxílio direito e a cooperação jurídica interna...

international borders upon the effectiveness of law, the continental extend of Brazilian territory and the diversity of active judicial bodies in the country. The text aims at establishing a parallel between both ways of cooperation (national and international), indicating their advantages and tackling their potentialities. It also points at the practical difficulties that civil procedure law is about to face, especially the construction of a suitable constitutional procedural policy – attentive to equality, impartiality and jurisdiction – for the use of means of cooperation. Keywords: Justice. Effectiveness. International legal cooperation. Cooperation among courts. Direct assistance Sumário: Introdução; 1. A cooperação jurídica internacional por auxílio direto: considerações gerais. 2. A cooperação jurídica entre órgãos do Judiciário brasileiro no novo CPC: potencialidades e desafios do novo instrumento. 3. A cooperação jurídica internacional por auxílio direto e cooperação jurídica entre órgãos do Judiciário brasileiro são instrumentos de acesso à justiça civil no séc. XXI. 4. Conclusões. Referências Bibliográficas.

Introdução As fronteiras nacionais, embora cada vez menos com as características que as conformaram até o final do séc. XX – basta lembrar que o muro de Berlim veio abaixo apenas em 1989 –, ainda são importantes quando se fala de acesso à Justiça na ordem global. No plano interno, ao mesmo tempo, a República Federativa do Brasil está espraiada em um território de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, 26 Estados e um Distrito Federal, contando com 91 tribunais3 e 14.985 cartórios judiciais/ varas (juízos)4. As fronteiras – no aspecto externo – e a diversidade de estruturas judiciárias (comum estadual, comum federal e especializadas do trabalho, eleitoral e militar) em 27 unidades distintas da federação, com milhares de varas – no aspecto interno – implicam a necessidade de se pensar em instrumentos que assegurem a efetividade da função judicial. A título de exemplos, pensem-se nas seguintes situações: São eles: o Supremo Tribunal Federal, 04 Tribunais Superiores (STJ, TST, STM e TSE), 05 Tribunais Regionais Federais, 24 Tribunais Regionais do Trabalho, 27 Tribunais Regionais Eleitorais, 03 Tribunais de Justiça Militar e 27 Tribunais de Justiça. BRASIL. Justiça em números 2015: ano base 2014, p. 13. Disponível em: . Acesso em 14.07.2016. 4 BRASIL. Justiça em números 2015. p. 27. 3

Gláucio Maciel Gonçalves & Alex Lamy de Gouvea • 81

1) Uma criança, filho de holandês e brasileira, acompanha a mãe em uma viagem ao Brasil. Ao cabo do período previamente ajustado, a genitora decide se separar do cônjuge (pai do menor). A criança não regressa ao país de origem e este evento desencadeia um processo de corrosão de laços familiares com a família do genitor (por vezes com alienação parental), debates sobre o futuro escolar do menor e questionamentos sobre a legalidade da conduta materna dificultando, sobremaneira, qualquer diálogo... Resposta rápida se exige da Justiça; e, por vezes, a primeira resposta deve ser à pergunta: “–qual a Justiça nacional competente para decidir a guarda do menor? A holandesa ou a brasileira?”. 2) Um grande acidente ambiental ocorre em um dos Estados da Federação, atingindo populações de inúmeras cidades daquele e de outros Estados... Várias são as ações ajuizadas. Em muitas delas a perícia indispensável é a mesma. Por que repeti-la à exaustão, com dispêndio de tempo e energia?5 Os dois casos hipotéticos representam situações típicas da jurisdição exercida no séc. XXI: um século de massas, de comunicação instantânea e de migrações internas e externas em números impressionantes. Todos os dias se contrata, pela rede mundial de computadores, com pessoas físicas e jurídicas residentes em diversas partes do mundo. O afrouxamento das balizas heterônomas dos relacionamentos afetivos favorece novos e mutáveis arranjos familiares. A realidade se altera o tempo todo, fruto do inegável constante fluxo de pessoas, mercadorias e serviços no globo, com casamentos, filhos, separações, óbitos, inventários, partilhas e contratos sendo celebrados (e inadimplidos, total ou parcialmente). A situação não é diferente no âmbito interno do continental território brasileiro. É neste contexto de frequentes e conflitantes relações ao largo dos vastos territórios global e nacional que a cooperação jurídica se avulta no novo CPC, cabendo à dogmática processual civil se voltar para o tema da cooperação jurídica – em especial a judicial – entre países e organizações e, igualmente, entre os órgãos judiciais nacionais para, com lastro nos instrumentos previstos no recentemente promulgado Código de Processo Civil – CPC (Lei nº 13.105, de 16.03.2015), problematizar as suas operações concretas no mundo dos fatos, de modo constitucionalmente adequado, respeitando a soberania nacional, a independência Para a alusão ao aproveitamento de perícia, cf.: MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2016, p. 73.

5

82 • A cooperação jurídica internacional por auxílio direito e a cooperação jurídica interna...

judicial, o devido processo legal e a competência de cada órgão; porém, e ao mesmo tempo, tendo o homem presente e o tempo presente como nortes, pois a Justiça, como o versificar de Drummond, em Mãos Dadas, não pode ser exercida em casos caducos6.

1. A cooperação jurídica internacional por auxílio direto: considerações gerais Escrevendo sobre a cooperação jurídica internacional, afirma Fabrício Pasquot Polido tratar-se de valioso instrumento de “gerenciamento do acesso à justiça em escala global [...] especialmente no tocante ao compartilhamento da atividade jurisdicional dotada de efetividade e assegurada transnacionalmente7”. Cuida-se de instituto com o objetivo de assegurar o acesso à função judicial em escala transnacional8 significando, a sua previsão legal e utilização, solução mais eficiente e rápida, ao mesmo tempo em que menos custosa, de litígios envolvendo o direito internacional privado9. Destaca ainda Fabrício Polido a importância da modernização dos instrumentos de cooperação jurídica internacional, a inserir o Brasil em ambiente de maior integração jurisdicional no âmbito multilateral regional e bilateral, sendo os juízes, tribunais, advogados e partes atores fundamentais na abertura das instâncias e redes de justiça em escala global. A cooperação jurídica, para o professor de direito internacional na UFMG, “é uma das mais significativas manifestações do direito internacional privado e do contencioso internacional na atualidade”, com a aproximação de estados, organizações internacionais, redes de tribunais, governos e autoridades administrativas “em objetivos comuns de acesso à justiça pelos cidadãos, indivíduos, famílias e empresas.”10 Em verdade, embora com porosidades cada vez mais frequentes (livre trânsito de pessoas, de mercadorias e de serviços, por exemplo), as fronteiras territoriais ainda marcam os limites jurisdicionais de cada soberania, dada a impossibilidade de um Estado exercer atividade de governo em outro Estado sem o consentimento deste, consoante regra de direito internacional. Daí a necessidade de cooperação judicial inter6

ANDRADE, 1999, p. 118. POLIDO, 2013, p. 59 8 THEODORO JÚNIOR et alli., 2016, p. 137. 9 THEODORO JÚNIOR et alli., 2016, p. 137-138. 10 POLIDO, 2013, p. 59. 7

Gláucio Maciel Gonçalves & Alex Lamy de Gouvea • 83

nacional11. O novo CPC, tendo presentes estas questões, disciplina o instituto da cooperação jurídica internacional (gênero) com previsão, ao lado das tradicionais figuras da homologação de sentença estrangeira e da carta rogatória (art. 105, I, i, da Constituição e arts. 36, 40, 377, 515, IX, 960 a 965 do CPC), do auxílio direto (arts. 28 a 34, 69, I e 377 do CPC), sendo este último um instrumento que permite maior celeridade nos pedidos de cooperação, dada a horizontalidade das relações orgânicas estabelecidas, uma vez que prescinde da via diplomática (embaixadas e consulados) e de juízo de delibação pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ (art. 105, I, i, da Constituição e art. 28, do CPC). Com efeito, de acordo com o CPC, cabe auxílio direto quando a medida não decorrer diretamente de decisão de autoridade jurisdicional estrangeira a ser submetida a juízo de delibação no Brasil (art. 28). Como anota José Maria Tesheiner, o nome o auxílio direto não significa, todavia, a ocorrência de comunicação direta entre o juiz brasileiro e a autoridade estrangeira, sendo exigida a intermediação de autoridades centrais12. A figura da autoridade central é prevista no art. 29 do CPC, a dispor que a solicitação de auxílio direto será encaminhada pelo órgão estrangeiro interessado à autoridade central, cabendo ao Estado requerente assegurar a autenticidade e a clareza do pedido. Esta “autoridade central” varia de acordo com o tratado (gênero)13 no qual se fundamenta o pedido de auxílio direto. Em regra, o papel cabe ao Ministério da Justiça e Cidadania, o qual, a teor do art. 26, § 4o, do CPC, exercerá as funções de autoridade central na ausência de designação específica. Daí por que, na estrutura do referido Ministério se encontra o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional da Secretaria Nacional de Justiça e Cidadania (DRCI/SNJ). Do sítio do DRCI/SNJ na rede mundial de computadores, extraem-se as seguintes relevantes informações: 11

BORN; RUTLEDGE, apud TESHEINER, 2014, p. 331.

TESHEINER, 2014, p. 331. 13 Como leciona Francisco Rezek, “A realidade do direito convencional contemporâneo rende algum tributo às velhas tentativas doutrinárias de vincular, a cada termo variante de tratado, certa modalidade bem caracterizada de compromisso internacional? A esta última questão a resposta é firmemente negativa. O que a realidade mostra é o uso livre, indiscriminado, e muitas vezes ilógico, dos termos variantes daquele que a comunidade universitária, em toda parte – não houvesse boas razões históricas para isso – vem utilizando como termo padrão. [...] a análise da experiência convencional brasileira ilustra, quase que à exaustão, as variantes terminológicas de tratado concebíveis em português: acordo, ajuste, arranjo, ata, ato, carta, código, compromisso, constituição, contrato, convenção, convênio, declaração, estatuto, memorando, pacto, protocolo e regulamento. REZEK, 2014, p. 31-32. 12

84 • A cooperação jurídica internacional por auxílio direito e a cooperação jurídica interna...

A maior parte dos pedidos em matéria civil, tramitados pelo Brasil, trata de questões de caráter humanitário, como pensões alimentícias (40%) e demais questões de família, como determinação de paternidade, divórcio e outros (20% adicionais). Nestes casos, trata-se de pessoas que necessitam da cooperação internacional para garantir o acesso a direitos básicos e fundamentais, como a prestação de alimentos a crianças. Daí a relevância da atividade e a necessidade de estrutura capaz de atender a tempo e a contento as demandas desses cidadãos pelos seus direitos. Como a medida necessária ao exercício do direito em questão foge da jurisdição nacional, é necessário o seu encaminhamento à autoridade estrangeira para a realização da medida solicitada pela autoridade nacional. O mesmo vale para as autoridades estrangeiras que necessitem da realização de medidas equivalentes em território nacional. Salvo algumas exceções, o Ministério da Justiça e Cidadania atua, por intermédio do Departamento de Cooperação Jurídica Internacional da Secretaria Nacional de Justiça e Cidadania (DRCI/SNJ), como Autoridade Central brasileira tanto para os pedidos de cooperação jurídica internacional em matéria civil feitos pelo Brasil, quanto para aqueles recebidos do exterior. São cerca de 800 pedidos analisados e tramitados mensalmente. Ressalta-se que o Brasil é um país eminentemente demandante de cooperação jurídica internacional, sendo que, ao longo dos anos, 80% a 90% de todos os pedidos tramitados pelo DRCI/SNJ referem-se a demandas de brasileiros para o exterior14. (sem grifos no original)

Como já pontuado, em certos casos, a atividade de autoridade central não é desempenhada pelo DRCI, cabendo, por exemplo, ao Ministério Público Federal no tocante à Convenção da ONU sobre prestação de alimentos no estrangeiro (celebrada em 20 de julho de 1956, em Nova Iorque, EUA – a Convenção de Nova Iorque sobre Prestação de Alimentos no Estrangeiro –, e ratificada pelo Decreto Legislativo nº 10, do Congresso Nacional, de 13 de novembro de 1958)15. Já no tocante à Convenção sobre Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças (art. 6º), concluída na cidade de Haia, em 1980, e em vigor no Brasil por força do Decreto nº 3.413, de 14.04.2000, “principal instrumento de combate à subtração internacional de crianças e MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E CIDADANIA. Cooperação Jurídica Internacional em Matéria Civil Disponível em: . Acesso em 17.07.2016. 15 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Alimentos Internacionais Convenção de Nova Iorque. Disponível em: . Acesso em 17.07.2016. 14

Gláucio Maciel Gonçalves & Alex Lamy de Gouvea • 85

[que] visou resolver principalmente os conflitos entre genitores de nacionalidades/domicílios diferentes sobre questões relacionadas aos filhos comuns do casal16”, o papel de autoridade central é exercido pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH). Embora em cada tratado haja – em regra – indicação de uma autoridade central brasileira responsável pela postulação perante o juízo federal competente para processar o auxílio direto, a observação de Teori Zavascki quanto à escassez de disposições legislativas específicas sobre as relações internacionais na matéria17 persiste atual, mesmo em face do novo CPC. Isso por que, conquanto consagrando o instituto, não se estendeu o legislador em sua disciplina, deixando para a literatura especializada e para a pesquisa acadêmica a frutificação das potencialidades que lhe são ínsitas, mediante investigação de seus fundamentos, impactos no acesso à justiça e procedimentalização adequada. O auxílio direto, portanto, ainda precisa ser investigado pela dogmática processual civil, especialmente para que os magistrados consigam captar a importância dos novos mecanismos processuais, com destaque, no caso, para o papel dos magistrados com competência comum federal, tendo em vista competir ao juízo federal do lugar em que deva ser executada a medida apreciar pedido de auxílio direto passivo que demande prestação de atividade jurisdicional (art. 34, do CPC). Ademais, o instituto do auxílio direto na cooperação judicial internacional deve receber atenção permanente por projetar sobre o Judiciário brasileiro, em especial sobre a justiça comum federal, parcela do exercício da soberania até então restrita à função executiva, mormente aos componentes do serviço diplomático, na medida em que as decisões da magistratura de 1º grau passem a impactar diretamente nas relações internacionais do Estado Brasileiro com os demais países e organizações internacionais. Cuida-se, o lançado logo acima, da ideia do “juiz como diplomata”, abordada, por exemplo, por Stephen Breyer, na obra “The Court and The World – American Law and the new global realities”, trabalho no qual, além de descrever como determinados casos exigem dos juízes (no caso, norte-americanos) levar em consideração leis e práticas jurídicas estrangeiras, esclarece que, mesmo fora do campo de litígios específicos, juízes federais norte-americanos estão cada vez mais pensando e discutindo direito estrangeiro e internacional. O autor assevera, ainda, que julga16 17

TIBÚRCIO; CALMON, 2014, p. 1.

ZAVASCKI, 2010, p. 9 e ss.

86 • A cooperação jurídica internacional por auxílio direito e a cooperação jurídica interna...

mentos e debates sobre o tema são profícuos ao judiciário, pois também juízes em outros países precisam decidir casos similares em suas jurisdições respectivas. A importância do tema se avolumou a ponto de, em 1993, a Judicial Conference of the United States criar o Committee on Internacional Judicial Relations que, com o apoio do Departamento de Estado Americano, coordena palestras, conferências e encontros nos Estados Unidos e no mundo18. No mesmo sentido, Anne-Marie Slaughter afirma que juízes ao redor do mundo estão conversando entre si, trocando opiniões e se encontrando em seminários e em organizações judiciais, bem como tratando uns com os outros sobre o resultado de casos específicos19. De acordo com Slaughter, o resultado do intercâmbio permanente entre os magistrados é o reconhecimento, por estes, uns nos outros, de serem participantes de um empreendimento judicial em comum. Estes juízes se vêem e vêem aos outros juízes não somente como servidores ou representantes de um governo em particular, mas como colegas de uma profissão que transcende fronteiras nacionais, encarando os mesmos problemas substanciais e institucionais e aprendendo com o raciocínio e experiência dos colegas20. Neste contexto, assume relevância, igualmente, a ainda pouco conhecida figura do juiz de ligação, cargo já existente na União Europeia 18

BREYER, 2015, p. 249: “I have thus far described how particular cases have required American judges to take account of the world abroad – foreign legal regimes and practices – in order to resolve disputes over activities and between parties not confined too one nation’s border. But even outside the context of specific litigation, federal judges are increasingly thinking about and discussing foreign and international law. This is happening through encounters with members of foreign judiciaries, which are occurring ever more frequently out of a common wish to share professional experiences. [...] But is also the case that American and foreign jurists have more in common than they used to. They confront similar problems. They perform the same kinds of judicial tasks following similar charters offering similar protection to democratic government and to individual human rights. American and foreign judges furthermore have the same desire – as well as the require experience – to advance the rule of law even as the world threatens to become more turbulent. To some degree, the meeting process has become formalized. In 1993 the Judicial Conference of the United States, the central administrative group of federal trial court and appellate court judges, established a Committee on International Judicial Relations. With the active help of State Department, the committee has coordinated talks, conferences, and meetings both in the United States and abroad”. 19 SLAUGHTER, 2005, p. 65:“Yet judges around the worlds are talking to one another: exchanging opinions, meetings face to face in seminars and judicial organizations, and even negotiating with one another over the outcome of specific cases”. A autora faz referência, igualmente, ao Committee on International Judicial Relations, destinado a “conduct a wide variety of exchanges and training programs with foreign courts” (idem, p. 65). 20 SLAUGHTER, 2005, p. 68: “What these judges share above all is the recognition of one another as participants in a common judicial enterprise. They see each other not only as servants and representatives of a particular government or polity, but also as fellow members of a profession that transcends national borders. They face common substantive and institutional problems; they learn from one another’s experience and reasoning”.

Gláucio Maciel Gonçalves & Alex Lamy de Gouvea • 87

com a finalidade de auxiliar os contatos entre os países de origem e de recebimento do magistrado, cuidando-se, de acordo com Guilherme Calmon Nogueira da Gama, de “figura fundamental para o contato mais rápido com as autoridades de outros países e a obtenção de dados relacionados à legislação estrangeira [...]”21. A previsão, agora também no CPC, do instituto do auxílio direto está, portanto, sincronizada com a realidade internacional, apontando para concretização do acesso globalizado à justiça, de modo mais célere, horizontalizado e menos custoso, reforçando o compromisso brasileiro com a aplicação das leis internacionais dentro de suas fronteiras e favorecendo o intercâmbio de experiências, a se intensificar na medida em que o instituto for sendo utilizado.

2. A cooperação jurídica entre órgãos do Judiciário brasileiro no novo CPC: potencialidades e desafios do novo instrumento No âmbito interno, no mesmo sentido, e paralelamente à cooperação jurídica internacional por auxílio direto, está o instituto da cooperação jurídica entre órgãos do Judiciário. De acordo com o novo CPC, aos órgãos do Judiciário, estadual ou federal, especializado ou comum, em todas as instâncias e graus de jurisdição, inclusive aos tribunais superiores, incumbe o dever de recíproca cooperação, por meio de seus magistrados e servidores (art. 67, do CPC), sendo que os juízos poderão formular entre si pedido de coope21

GAMA, 2013. Entrevista concedida à Agência CNJ de Notícias Disponível em: . Acesso em 14.07.2016. Também nesta esteira, do sítio do STF na rede mundial de computadores, extrai-se o seguinte excerto de notícias sobre a figura do juiz de ligação: “[...] Na sequência da programação oficial, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Cezar Peluso, reuniu-se na quarta-feira (13) com o secretário de Estado para a Justiça, Jean-Marie Bockel, com a ministra da Justiça, Michele Alliot-Marie, e com o diretor da Escola Nacional de Administração (ENA), Bernard Boucault. No encontro com o presidente do STF, o secretário Jean-Marie Bockel anunciou a intenção do governo francês de aprofundar o intercâmbio com o Brasil no campo judiciário. Segundo ele, a França criará, a partir de dezembro, o posto de magistrado de ligação com o judiciário brasileiro. O juiz de ligação ficará permanentemente em Brasília, com escritório na Embaixada da França e no Ministério da Justiça brasileiro, para facilitar os contatos entre os sistemas judiciários dos dois países. Bockel explicou que a França já possui 15 magistrados de ligação sediados na Europa, na América do Norte, na África e na Ásia, ressaltando ser o Brasil o primeiro país latino-americano a receber um representante oficial do sistema judicial francês. O magistrado de ligação de Brasília, atualmente em processo de seleção, ficará responsável por toda a América do Sul. Na avaliação de Bockel, a criação do cargo de magistrado de ligação impulsionará a cooperação judiciária entre Brasília e Paris. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Brasil e França intensificam cooperação judiciária. Notícia. s/d. Brasília. Disponível em . Acesso em 14.07.2016.

88 • A cooperação jurídica internacional por auxílio direito e a cooperação jurídica interna...

ração para prática de qualquer ato processual (art. 68, do CPC), o qual deve ser prontamente atendido, prescinde de forma específica e pode ser executado como auxílio direto, reunião ou apensamento de processos, prestação de informações e atos concertados entre os juízes cooperantes (art. 69, caput, I a IV, do CPC). O legislador elencou, no art. 69, § 2º, do CPC que os atos concertados entre os juízes cooperantes poderão consistir, além de outros, no estabelecimento de procedimento para: I - a prática de citação, intimação ou notificação de ato; II - a obtenção e apresentação de provas e a coleta de depoimentos; III - a efetivação de tutela provisória; IV - a efetivação de medidas e providências para recuperação e preservação de empresas; V - a facilitação de habilitação de créditos na falência e na recuperação judicial; VI - a centralização de processos repetitivos; e, VII - a execução de decisão jurisdicional. Especial relevo merece a previsão do art. 69, § 3º, do CPC, a dispor que o pedido de cooperação judiciária pode ser realizado entre órgãos jurisdicionais de diferentes ramos do Poder Judiciário. A aparente singeleza do dispositivo esconde a profundidade da revolução que o Código permite vir a se concretizar em termos de cooperação entre os órgãos da função judicial, mesmo de ramos distintos e, portanto, com competências absolutas diversas. O dispositivo merece as loas de, na esteira da Recomendação nº 38, do CNJ22, compreender o perfil unitário da função judicial exercida no Estado Brasileiro. Desse modo, os feixes de competência de cada ramo da “justiça” da União e da “justiça” dos Estados se somam em formação unitária na atividade de prestação jurisdicional mais efetiva. Como anotou André Ramos Tavares: A estrutura judiciária brasileira é unitária, nacional. A presença de um espaço próprio para a atuação (competência jurisdicional) de cada uma das chamadas vulgarmente “Justiças” não pode conduzir à conclusão, que seria de todo equivocada e indesejável, de que o Poder Judiciário no Brasil é fragmentado. Conforme se pode recolher no voto proferido na ADI 3.367-1/ DF, do Min. Cezar Peluso, “a Jurisdição, enquanto manifestação da unidade do poder soberano do Estado, tampouco pode deixar de ser una e indivisível, é doutrina assente que o Poder Judiciário tem caráter nacional, não existindo, senão por metáforas e metonímias, “Judiciários estaduais” ao lado de um “Judiciário federal”. A divisão da estrutura judiciária brasileira, sob tradicional, mas equívoca denominação Justiças, é só o reBRASIL. Recomendação nº 38. Disponível em: . Acesso em 16.07.2016. 22

Gláucio Maciel Gonçalves & Alex Lamy de Gouvea • 89

sultado da repartição racional do trabalho da mesma natureza entre distintos órgãos jurisdicionais (ADI 3.854-1/DF, rel. Min. Cezar Peluso, decisão de 28-2-2007; original não grifado)23.

Assim compreendido o Judiciário brasileiro – unitário e nacional – e sendo explorado todo o alcance normativo do art. 69, § 3º, do CPC, pode-se alcançar a utilização ótima – porque racionalizada – do corpo de profissionais e estrutura disponíveis para o exercício da função judicial, a partir do momento em que, por exemplo, um juízo federal comum poderá formular pedido de cooperação a um juízo federal militar que, eventualmente, esteja com um menor acervo processual em determinada localidade cooperante, evitando a sobrecarga dos demais ramos do judiciário. No tocante, por seu turno, à previsão do art. 69, § 2º, do CPC, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero esclarecem que os atos concertados entre juízes cooperantes “encontra paralelo no multidistrict litigation norte-americano e constitui uma técnica de racionalizar os recursos judiciários, oferecendo soluções que tendem à isonomia. Constitui uma técnica de coletivização, ainda que não se identifique as ações coletivas24”. A partir dos atos concertados – e tendo por pedra angular o princípio da isonomia – pode-se alcançar que apenas um juiz fique responsável por processar e julgar causas de massas25, a teor do art. 69, II, do CPC, a permitir “a reunião ou apensamento de processos”, pois, “enfim, para a prática de qualquer ato processual que possa repercutir em vários processos, autoriza-se o emprego da técnica em exame, desde que o seu emprego favoreça a isonomia ou eficiência da prestação jurisdicional26”. O Código, entrementes, não estabelece balizas mais minudentes para a cooperação entre órgãos judiciais. Na ausência de critérios, Marinoni, Arenhart e Mitidiero expressam expectativa de que os tribunais os definam. Isto por que a cooperação nacional não pode ficar submetida à vontade dos juízos27 (são 14.985 juízos!). Como ponderam Theodoro Júnior, Nunes, Bahia e Quinaud, em trecho voltado à crítica dos julgamentos puramente principiológicos, contudo, perfeitamente aplicável à espécie, “o processo justo (ou democrático), garantido pelo ordem constitucional, é aquele que se volta para as garantias processuais constituTAVARES, 2012, p. 122-123. MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2016, p. 73. 25 MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2016, p. 73. 26 MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2016, p. 74. 27 MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2016, p. 74. 23 24

90 • A cooperação jurídica internacional por auxílio direito e a cooperação jurídica interna...

cionais, dentro dos padrões do devido processo legal28”, daí rechaçarem os autores as decisões decorrentes da “escolha solitária do julgador”, em face do “risco do decisionismo, em que as razões de decidir se localizem em critérios ideológicos do juiz, e não do Direito positivo29”. No mesmo sentido advertem Marinoni, Arenhart e Mitidiero: De fato, embora o texto legal aluda a atos “concertados”, é evidente que essa prática não depende da “boa vontade” dos juízes envolvidos. Não se trata de simples faculdade outorgada aos magistrados. Porque os juízos estão investidos de verdadeiros poderes-deveres, presentes situações de preservação da isonomia ou da eficiência da prestação jurisdicional, a concentração de atos deve ocorrer. Por isso, é necessário que se tenha um mínimo parâmetro para a aplicação dessa medida30.

No atual estado da arte, disciplinando o instituto, além das novas disposições do CPC, há a Recomendação nº 38 do CNJ, a qual porta importantes veredas para interpretação e aplicação teleológica da cooperação jurídica entre órgãos do Judiciário, ao fazer constar, dentre as suas consideranda, que o novo instrumento constitui mecanismo contemporâneo, desburocratizado e ágil para o cumprimento de atos judiciais fora da esfera de competência do juízo requerente ou em intersecção com ele, além de salientar que os mecanismos de cooperação judiciária vêm sendo utilizados com bom sucesso no intercâmbio jurisdicional na União Europeia. A recomendação se dirige a todos os tribunais, estimulando-os a adotarem mecanismos de cooperação, tais como Núcleos de Cooperação Judiciária e a figura do Juiz de Cooperação, com a finalidade de institucionalizar meios para dar maior fluidez e agilidade à comunicação entre os órgãos judiciários, não só para cumprimento de atos judiciais, mas também para harmonização e agilização de rotinas e procedimentos forenses, fomentando a participação dos magistrados de todas as instâncias na gestão judiciária. Ainda de acordo com a mencionada recomendação, os pedidos de cooperação jurisdicional deverão ser prontamente atendidos, sendo que o processamento dos pedidos será informado pelos princípios da agilidade, concisão, instrumentalidade das formas e unidade da jurisdição nacional, dando-se prioridade ao uso dos meios eletrônicos (art. 2º, do anexo da Recomendação nº 38). 28

THEODORO JÚNIOR et alli., 2016, p. 74. THEODORO JÚNIOR et alli., 2016, p. 74. 30 MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2016, p. 74. 29

Gláucio Maciel Gonçalves & Alex Lamy de Gouvea • 91

Como visto, em analogia aos Juízes de Ligação, a recomendação prevê a designação de Juízes de Cooperação, com a função de facilitar a prática de atos de cooperação judiciária. Estes magistrados integrarão a Rede Nacional de Cooperação Judiciária, com os seguintes deveres específicos (art. 7º, do anexo da Recomendação): I – fornecer todas as informações necessárias a permitir a elaboração eficaz de pedido de cooperação judiciária, bem como estabelecer os contatos diretos mais adequados; II – identificar soluções para os problemas que possam surgir no processamento de pedido de cooperação judiciária; III – facilitar a coordenação do tratamento dos pedidos de cooperação judiciária no âmbito do respectivo Tribunal; IV – participar das reuniões convocadas pela Corregedoria de Justiça, pelo Conselho Nacional de Justiça ou, de comum acordo, pelos juízes cooperantes; V – participar das comissões de planejamento estratégico dos tribunais; VI – promover a integração de outros sujeitos do processo à rede de cooperação; e, VI – intermediar o concerto de atos entre juízes cooperantes. O normativo do CNJ, por fim, faculta aos tribunais constituírem Núcleos de Cooperação Judiciária, com a função de sugerir diretrizes de ação coletiva, harmonizar rotinas e procedimentos, bem como atuar na gestão coletiva de conflitos e na elaboração de diagnósticos de política judiciária, propondo mecanismos suplementares de gestão administrativa e processual, fundados nos princípios da descentralização, colaboração e eficácia (art. 9º, do anexo da Recomendação nº 38), núcleos estes que deverão interagir de forma coordenada com os comitês nacional e estadual de cooperação judiciária, constituídos pelo Conselho Nacional de Justiça (art. 11, do anexo da Recomendação nº 38).

3. A cooperação jurídica internacional por auxílio direto e cooperação jurídica entre órgãos do Judiciário brasileiro são instrumentos de acesso à justiça civil no séc. XXI O acesso à justiça, na visão de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, dá-se por meio de soluções sequenciadas, ou “ondas”: na primeira “onda”, o foco foi a assistência judiciária para os pobres, afastando do acesso ao judiciário a barreira econômica; a segunda “onda” buscou proporcionar a adequada representação jurídica para os interesses difusos. Por fim, a terceira “onda” é a chamada “enfoque de acesso à justiça”, inclusiva das anteriores, mas avançando na processualística, centrando sua atenção “no conjunto geral das instituições e mecanismos, pessoas e

92 • A cooperação jurídica internacional por auxílio direito e a cooperação jurídica interna...

procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas31”. Um dos enfoques de acesso à justiça é exatamente o delineamento de instituições e procedimentos especiais para determinadas ações judiciais de particular importância social. Trata-se de esforço para criar “sociedades mais justas e igualitárias”, com atenções centradas “sobre pessoas comuns – aqueles que se encontravam tradicionalmente isolados e impotentes ao enfrentar organizações fortes e burocracias governamentais”, buscando “prover mais direitos substantivos aos relativamente fracos32”. Tem a mesma visão Norberto Bobbio33, ao asseverar que a ordem jurídica precisa de mais atuação e concretização do que novas declarações de direitos – representados por toda ordem de Estatutos e Códigos que a cada dia são promulgados. Por seu turno, Humberto Theodoro Júnior, Dierle Nunes, Alexandre Melo Franco Bahia e Flávio Quinaud, no sentido indicado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, destacam que “o judiciário, a partir do processo constitucional, passa a ocupar papel de destaque na efetivação desses direitos. Sua função é não é apenas de aplicação da norma jurídica, mas de materialização desta34” e prosseguem: Assim, vêm de Cappelletti inegáveis contribuições sobre o tema, não apenas para a realidade italiana, como para o mundo jurídico internacional [...]. No que tange, então, à primeira onda, Cappelletti e Garth observam que a resolução jurisdicional de litígios é atividade altamente dispendiosa para a sociedade moderna. Por isso mesmo, falar em uma busca por mecanismos que viabilizem uma cooperação judiciária é algo de extrema importância, já que tais instrumentais serão vitais para diminuir gastos com procedimentos e atos jurisdicionais, bem como acelerar os mesmos, o que acaba por repercutir em ganhos de celeridade, economicidade e eficiência. Além do mais, a preocupação que ganha força na atualidade denota um sinal de que a autocompreensão do Judiciário também – e não apenas a sociedade – tem que assumir uma postura dialógica. A construção de canais internos de comunicação só

31

CAPPELLETTI; GARTH, 1999, p. 68. CAPPELLETTI; GARTH, 1999, p. 91, passim 33 BOBBIO, 2004, p. 25. 34 THEODORO JÚNIOR et alli., 2016, p. 132. 32

Gláucio Maciel Gonçalves & Alex Lamy de Gouvea • 93

tem a representar um ganho para toda a sociedade brasileira35.

Em verdade, como se busca demonstrar, a cooperação jurídica internacional por auxílio direto e a cooperação jurídica entre órgãos do judiciário também estão compreendidas na concepção de uma moderna processualística, centrada em procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades atuais36 e, portanto, compõem, igualmente, a terceira onda de acesso à Justiça. Além disso, a par da economicidade (pela diminuição de gastos), da horizontalidade (canais diretos) e maior informalidade da cooperação (eficiência), é necessário se destacar, na realidade da justiça brasileira, onde atualmente tramitam 70,8 milhões processos37, a necessidade da justa gestão do tempo, a apontar para a imprescindibilidade da busca de soluções pragmáticas, como observou Gláucio Maciel Gonçalves: [em razão da] constatação de que o tempo usual era insuficiente para o propósito de existência da função jurisdicional estatal em alguns casos, a doutrina sustentou a necessidade de se criarem procedimentos especiais ou, ao menos, técnicas processuais específicas para atender a necessidades únicas do direito material tutelado, o que foi reconhecido pelo legislador38.

Neste contexto, a cooperação jurídica internacional por auxílio direto e a cooperação jurídica entre órgãos do Judiciário brasileiro são instrumentos cujos manejos constitucionalmente adequados e com as atenções voltadas para a complexa realidade do país apontam para o acesso à justiça civil no séc. XXI de modo mais democrático, efetivo, célere, econômico, horizontalizado e informal.

4. Conclusões A cooperação jurídica internacional por auxílio direto e a cooperação jurídica entre órgãos do Judiciário brasileiro ainda carecem de maior procedimentalização em alguns casos, em especial, como mencionado no corpo deste artigo, para os denominados “atos concertados entre juízes cooperantes”. A definição de parâmetros prévios e claros, 35

THEODORO JÚNIOR et alli., 2016, p. 132. CAPPELLETTI; GARTH, 1999, p. 68. 37 BRASIL. Justiça em números 2015, p. 34. 38 GONÇALVES, 2011, p. 286. 36

94 • A cooperação jurídica internacional por auxílio direito e a cooperação jurídica interna...

identificados partir da interpretação da Constituição e das leis, ainda desafiará a dogmática processual civil e, certamente, renderá bons estudos sobre o tema. De qualquer modo, constituem-se em instrumentos que inegavelmente colocam o Brasil em um novo patamar de compreensão da função judicial, ampliando a efetividade do acesso à justiça, considerando as concepções de Mauro Cappelletti e Bryant Garth39 e de Humberto Theodoro Júnior et alli40 sobre o tema, porquanto são aptos a fazer face aos desafios colocados à Justiça em escala global e em âmbito nacional, considerando-se a realidade de um país de dimensões continentais como o Brasil. Ademais, são instrumentos modernos, de comunicação horizontalizada entre juízos (quer estrangeiros-brasileiros, quer brasileiros-brasileiros), prescindindo da atividade do atualmente sobrecarregado Superior Tribunal de Justiça, de agentes diplomáticos ou consulares ou das cartas rogatórias, de ordem e precatórias. Favorecem, portanto, a celeridade e a democratização do acesso à Justiça (em especial por serem mais econômicos que os meios clássicos para cooperação e comunicação entre juízos). Enfim, detêm os instrumentos toda a potencialidade para a promoção de significativa modificação no modelo de prestação da função judicial no Brasil.

Referências bibliográficas ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. 42. ed. São Paulo: Record, 1999. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BRASIL. Justiça em números 2015: ano base 2014. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015. Disponível em . Acesso em 14.07.2016. BRASIL. Recomendação nº 38. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2011. Disponível em . Acesso em 16.07.2016. 39 40

CAPPELLETTI; GARTH, 1999, passim. THEODORO JÚNIOR et alli., 2016, p. 132.

Gláucio Maciel Gonçalves & Alex Lamy de Gouvea • 95

CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Portal de Publicações do CEJ. Brasília, 2016. Disponível em . Acesso em 21.07.2016. BREYER, Stephen. The Court and The World – American law and the new global realities. New York: Alfred A. Knopf, 2015. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. 2. ed. Porto Alegre: Fabris, 1999. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. CNJ investe na cooperação internacional: Entrevista. 21.10.2013. Brasília. Entrevista concedida à Agência CNJ de Notícias Disponível em: . Acesso em 14.07.2016. GONÇALVES, Gláucio Ferreira Maciel. Tempo e direito. In: JAYME, Fernando Gonzaga; FARIA, Juliana Cordeiro de; LAUAR, Maira Terra (Coord.). Processo Civil Novas Tendências – em homenagem ao Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. p. 281-293. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil – Tutela dos direitos mediante procedimento comum. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E CIDADANIA. Cooperação Jurídica Internacional em Matéria Civil. s/d. Brasília. Disponível em . Acesso em 04.10.2016 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Alimentos Internacionais Convenção de Nova Iorque. s/d. Disponível em . Acesso em 17.07.2016. POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot. Direito Processual Internacional e o Contencioso Internacional Privado. Curitiba: Juruá, 2013.

96 • A cooperação jurídica internacional por auxílio direito e a cooperação jurídica interna...

REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. SLAUGHTER, Anne-Marie. A new world order. Princeton: Princeton University Press, 2005. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Brasil e França intensificam cooperação judiciária. Notícia. s/d. Brasília. Disponível em . Acesso em 14.07.2016 TAVARES, André Ramos. Manual do Poder Judiciário. São Paulo: Saraiva, 2012. TESHEINER, José Maria. Cooperação Judicial Internacional no Novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, São Paulo, v. 234/2014, p. 331-344. THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e sistematização. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016. TIBÚRCIO, Carmen; CALMON, Guilherme. Sequestro Internacional de Crianças – Comentários à Convenção da Haia de 1980. São Paulo: Atlas, 2014. ZAVASCKI, Teori Albino. Cooperação Judicial Internacional e a Concessão de Exequatur. Revista de Processo, São Paulo, v. 183/2010, p. 9-24.

PROVA DO TEOR E VIGÊNCIA DE DIREITO ESTADUAL E MUNICIPAL Fabiana de Menezes Soares1 Paula Carolina de Oliveira Azevedo da Mata2 Resumo: O presente trabalho apresenta a crise da proliferação legislativa e a necessidade de criar leis com base nos procedimentos metodológicos da Legística. Retrata a relatividade no real conhecimento da lei, considerando a LC 95/98, a Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro e o Novo Código de Processo Civil, já que o ordenamento brasileiro impõe que ninguém poderá deixar de cumprir a lei alegando que não a conhece e que o Magistrado poderá exigir que a parte comprove a vigência do direito invocado em ações judiciais. Apresenta dados sobre a produção legislativa de Minas Gerais e modelo de publicidade oficial, indicando de que modo a inexistência de lei que considere autêntica a legislação publicada em sites oficiais pode influenciar na comprovação da prova de teor e vigência de direito estadual e municipal. Palavras-chave: Legística; lei; vigência; proliferação legislativa; modelo de publicação. Abstract: This paper presents the crisis on the legislative process proliferation and the need to create laws based on methodological procedures Professora Associada II da Faculdade de Direito Universidade Federal de Minas Gerais, em regime de Dedicação Exclusiva, onde ministra aulas na Graduação e Pós-Graduação (Legística). Tem experiência na área do Direito, com ênfase em Direito Administrativo. Atua na intersecção entre a reflexão sobre a produção do direito e os instrumentos e técnicas para a otimização da sua eficácia. Na UFMG coordena desde 2006 o Observatório para qualidade da lei, projeto de pesquisa vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito, bem como a rede social legistica.ning.com. Coordena o Núcleo de Inclusão Digital da Clínica de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da UFMG (2015). E-mail: [email protected] 2 Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Produção Normativa (2016). Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2010), especialização em Direito Civil e Processual Civil (2012) e especialização em Direito Constitucional (2015). Experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Processual Civil, Civil e Administrativo, atuando principalmente nos seguintes temas: judicialização das políticas públicas, efetividades dos direitos fundamentais e direito à saúde. É pesquisadora bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG em projeto vinculado ao grupo de estudos Observatório para a Qualidade da Lei da UFMG. E-mail: paulacarolina.azevedo@ gmail.com 1

98 • Prova do teor e vigência do direito estadual e municipal

Legistics. Portrays, the relativity in the real knowledge of the law, due to the Complementary Law 95/98, the Introductory Law of the Brazilian Law Rules and the New Code of Civil Procedure, as the Brazilian legal system requires that no one can fail to comply with the law on the grounds that the person did not know it and that the Judge may require the party to prove the validity of the right invoked in lawsuits. It presents data on the legislative production of Minas Gerais and official advertising model, indicating how the lack of law that it deems authentic legislation published on official websites can influence the evidence of the content of evidence and effectiveness of state and local law. Key-words: Legistics; law; effective; legislative proliferation; publishing model. Sumário: Introdução. 1 A crise da proliferação legislativa. 1.1 O objeto de estudo da Legística. 2. A relatividade do conhecimento real da lei. 2.1 A Lei de Acesso à Informação. 2.2 A Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro - LINDB e o Novo Código de Processo Civil – CPC/15. 2.3 A validade e a ignorância da lei. 3. A produção legislativa no Estado de Minas Gerais. 4. O modelo de publicidade oficial. 5 Considerações finais. Referências bibliográficas

Introdução O presente trabalho pretende, sem exaurir o assunto, analisar o artigo 376 do Novo Código de Processo Civil3, o qual determina que “a parte que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o juiz determinar”. No primeiro momento apresenta-se a crise da proliferação legislativa identificada por um grande número de leis promulgadas, as quais são frutos de votações despreparadas e de absoluta ausência de técnicas legislativas. Diante desse cenário, restou demonstrado que os estudos relativos aos procedimentos metódicos que visam melhorar a eficácia da legislação se aprofundaram e instituiu-se o objetivo da Legística. Em seguida, demonstra-se a importante função da Lei Complementar nº 95/98 que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o artigo 59 da Constituição Federal; bem como a Lei de Acesso a informação, que impõe a obrigatoriedade de maior transparência na publicidade dos atos públicos. 3 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm, acesso em 10.10.2016.

Fabiana de 99 Menezes • PROVA DO Soares TEOR& EPaula VIGÊNCIA Carolina DE de DIREITO Oliveira ESTADUAL AzevedoEda MUNICIPAL Mata • 99

Nesse sentido, avalia-se o conteúdo do artigo 3º da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro – LINDB que dispõe que “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”, assim como a necessidade do Estado otimizar a imperatividade das normas, com ampla divulgação dos atos normativos e, mais do que isso, facilitando a sua compreensão pelos interessados. Por fim, apresenta-se o caso dos dados de produção legislativa no Estado de Minas Gerais, os quais demonstram a grande quantidade de tipologia dos atos normativos que regulam as Secretarias de Governo e os oriundos destas. Ato contínuo, é exposto o modelo de publicação dos atos normativos no Brasil, evidenciando a necessidade de uma legislação que considere oficial e autentica a publicação em sites oficiais.

1. A crise da proliferação legislativa A mudança do paradigma do Estado moderno para o chamado Estado pós-moderno são conceitos que, inevitavelmente, refletem na produção de normas. Isso porque o culto ao desenvolvimento técnico-científico, a concentração dos meios de produção, dentre outras, demonstram a racionalização da própria organização social. Nesse contexto, o Direito moderno, que é alicerçado no processo de racionalização, demonstrou um rigor formal, fazendo com que a generalidade e a estabilidade da lei ganhassem destaque. De acordo com Jacques Chevallier4, na modernidade o Direito é então investido de um capital de autoridade, ligado à sua origem: ele é reputado como proveniente de um sujeito exterior e superior à sociedade: com efeito, a laicização não fez desaparecer essa dimensão transcendental, desembaraçando o direito do invólucro mágico ou religioso que o recobre nas sociedades tradicionais; a autoridade que a ele se vincula deriva de um mecanismo de imputação a um sujeito anônimo, inatingível e misterioso, do qual provém a Lei, e que é doravante o Estado. O direito permanece, desse modo, percebido como uma ordem sagrada, projeção de uma razão transcendente ao corpo social, depositário do saber e fonte de todo o poder.

No entanto, essa tendência reguladora passa a sofrer críticas, sobretudo em razão desse avanço na esfera legislativa. De acordo com 4

CHEVALLIER, 2009.

100 • Prova do teor e vigência do direito estadual e municipal

Alexandre Flückiger e Jean-Daniel Delley5, o grande número de leis promulgadas nesse período pós-moderno é fruto de votações realizadas “sem um preparo suficiente” e “são tão imperfeitas que retiram a beleza desse monumento legislativo”. Para os autores, “escritos em uma linguagem simples, precisa, com pontuação cuidadosa, divididas em alíneas curtas e pouco numerosas, seus artigos são fáceis de ler e compreender, mesmo por pessoas não versadas na ciência do Direito6” e, quando isso não acontece, estamos diante de uma ““patologia da lei”, uma “crise da lei” , uma “lei doente””7. Por tais razões, a preocupação dos agentes públicos envolvidos com a atividade legislativa vem aumentando cada dia mais, tendo em vista a necessidade precípua de reforçar, ou reconquistar, a confiança da população nos legisladores. Essa inquietação exprime que houve um deslizamento sensível na concepção de democracia, que deixou de se satisfazer apenas com o cumprimento dos requisitos tradicionais da democracia representativa clássica. A sociedade agora exige mais coisas e coisas mais decisivas8. Almeja-se, assim, que a legitimação democrática do direito possa se relacionar com a segurança que ele garante a vida social, prevendo, desse modo, os acontecimentos sociais futuros. No entanto, para isso, faz-se necessário uma democracia que depende, certamente, da vontade do povo, mas, sobretudo, de um consenso estável e comunitariamente partilhado acerca dos resultados proporcionados pelo direito9.

1.1 O objeto de estudo da Legística Agora, antes de criar a lei, é necessário pensá-la. Propõe-se, assim, o procedimento metódico em etapas que visem a melhorar a eficácia da legislação: institui-se, portanto, o objeto de estudo da Legística10. A Legística Material atua no processo de construção e escolha da decisão sobre o conteúdo da nova legislação, analisa como o processo de regulação pode ser projetado, por meio de utilização de técnicas que permitem realizar prognósticos, diagnósticos e também verificar o nível 5

FLÜCKIGER, DELLEY, 2007, p. 35-58. ibid 7 ibid 8 HESPANHA, 2009, p. 31-47. 9 HESPANHA, 2009a. 10 DELLEY, 2004, p. 101-143. 6

Fabiana de Menezes Soares & Paula Carolina de Oliveira Azevedo da Mata • 101

de concretude dos objetivos que justificaram o impulso para legislar e dos resultados obtidos a partir da sua entrada em vigor11. Sendo assim, seu escopo é direcionado não só ao momento pós vigor, mas, sobretudo, na fase prévia, na qual o ato normativo ainda não foi positivado, mas está sendo elaborado e avaliado, nas seguintes dimensões12: a) Exame das razões que informam a opção por uma intervenção estatal de natureza legislativa, na elaboração de ato normativo. b) Definição de estratégias de aproximação da informação jurídica veiculada via ato normativo e os seus destinatários (inclusive os garantidores da sua executoriedade), interessados ou afetados pelo ato normativo. c) Elaboração do modelo de avaliação legislativa (ex ante/ ex post) a ser adotado para a gestão do projeto de ato normativo. d) Definição das ações de coordenação entre os entes governamentais a serem afetados pelo futuro ato normativo. e) Densificação, otimização e publicização tanto da motivação da escolha (dentre uma das alternativas possíveis) da direção do texto inicial do projeto de ato normativo, quanto da criação das condições necessárias, materiais e instrumentais para a justificação da decisão de legislar. f) Planejamento das estratégias em prol do vigor, da clareza e da certeza acerca do direito vigente, inclusive no que se refere à melhoria dos diários oficiais e da publicidade de informações jurídicas que favoreçam uma decodificação da linguagem

Já, a Legística Formal aponta que sua atuação é sobre a otimização do círculo de comunicação legislativa, bem como no intuito de fornecer princípios que visem à melhoria da compreensão e acesso aos textos legislativos.13 Desse modo, cabe destacar que o conhecimento necessário para legislar, quando almeja soluções estabilizadoras e sustentáveis, deve envolver todos os níveis do saber, sob pena de produzir um conhecimento enviesado, o qual deixa de fora algumas partes socialmente significativas e satisfaz apenas algumas das partes envolvidas. Tal situação gera um elemento de irritação que impede a sustentabilidade do ato normativo14. SOARES, 2007, p. 124-142. Dimensões citadas por Fabiana de Menezes Soares em SOARES, 2013. 13 SOARES, 2012, p. 219-254. 14 HESPANHA, 2009, p. 31-47. 11 12

102 • Prova do teor e vigência do direito estadual e municipal

Todavia, mesmo diante desse cenário, a doutrina brasileira e a prática legislativa nas Casas Legislativas e no Executivo se ressentem da adoção de medidas que assegurem estratégias a favor da simplificação legislativa, contra a proliferação legislativa, pela avaliação de impacto, e melhoria na publicidade dos atos normativos15.

2. A relatividade do conhecimento real da lei O artigo 59 da Constituição da República Federativa do Brasil, ao tratar do processo legislativo, evidenciou que esse método compreende a elaboração de emendas à Constituição; leis complementares; leis ordinárias; leis delegadas; medidas provisórias; decretos legislativos; resoluções. Já, no parágrafo único desse mesmo artigo, o legislador aponta que lei complementar “disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis”. Especificou, portanto, uma chave hermenêutica, qual seja “elaboração”, que, em sede de produção de direito, nos remete a uma dimensão de desenvolvimento, planejamento, desenho, presentes nos sentidos que distinguem redigir de elaborar16. Criou-se, então, a Lei Complementar nº 95 de 1998, a qual “dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona”, momento em que foram positivadas regras sobre a articulação lógico-formal (cláusulas de barreira contra pluralidade de temas em um mesmo diploma normativo). Sob outro enfoque, foram definidas condições que visam maximizar a definição do impacto normativo da nova norma jurídica sobre o sistema normativo, exigindo o elenco expresso das revogações, para que, assim, incrementasse a executoriedade da lei e evitasse um ativismo judicial, pernicioso, nesta seara17. Os atos normativos vinculados às políticas publicas recebem, assim, a positivação de um importante critério de avaliação de eficiência, o qual, vale registrar, deve ser levado em conta na consecução da sua eficácia técnica e social.

SOARES, 2013. SOARES, 2013. 17 ibid 15 16

Fabiana de Menezes Soares & Paula Carolina de Oliveira Azevedo da Mata • 103

2.1 A Lei de Acesso à Informação A Lei 12.527/2011, denominada “Lei de Acesso à Informação” propicia um novo elemento à obrigatoriedade de maior transparência no que se refere aos motivos que informam o impulso para legislar e que se constituem o cerne da Legística: a justificação das escolhas do legislador em face da ampla discricionariedade da qual se reveste o exercício da sua função18. Essa lei19, em seus artigos 1º, 3º e 7º, realiza uma classificação das informações sigilosas, de modo que a regra passa a ser o acesso da informação legislativa: Art. 1º Esta Lei dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal. Parágrafo único. Subordinam-se ao regime desta Lei: I - os órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público; [...] Art. 3º Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção; II - divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações; III - utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação; IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública; V - desenvolvimento do controle social da administração pública. [...] Art.7º [...] § 3o O direito de acesso aos documentos ou às informações neles contidas utilizados como fundamento da tomada de decisão e do ato administrativo será assegurado com a edição do ato decisório respectivo. [...] § 4º A negativa de acesso às informações objeto de pedido formulado aos órgãos e entidades referidas no art. 1o, 18

ibid Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm. Acesso em 10.10.2016. 19

104 • Prova do teor e vigência do direito estadual e municipal

quando não fundamentada, sujeitará o responsável a medidas disciplinares, nos termos do art. 32 desta Lei.

Desse modo, caberá ao legislador densificar o modelo de transparência que veio à lume pela Lei de Acesso à Informação nas normas sobre produção de normas em sede parlamentar, pois são estas normas que informam o processo sobre a decisão de legislar. E mais, nos termos do artigo 5º da Lei de Acesso à Informação é dever do Estado “garantir o direito de acesso à informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão”. Isso significa que, além de oportunizar a publicação dos atos normativos, o Estado deve propiciar meios de comunicação que facilitam a compreensão do texto, sob pena de não cumprir sua função legislativa primordial e criar destinatários hipossuficientes20, sendo esse conceito utilizado para descrever o indivíduo que, apesar de empenhar grandes esforços, não possui conhecimento do direito vigente diante da utilização de termos técnicos e formais nos processos legislativos. No entanto, esse cenário de plena publicidade dos atos normativos e de envidamento de esforços para perseguir a fácil compreensão da lei, infelizmente, não faz parte do panorama político brasileiro de um modo geral, uma vez que raras são as iniciativas que pretendem “traduzir” as leis para uma linguagem clara e concisa. Aliás, a preocupação em despertar o interesse dos políticos e da sociedade para a qualidade da legislação pode ser identificada em outros países, como por exemplo, Áustria. Heinz Schaeffer21 aponta que é necessário admitir que “apesar de conseguirmos despertar o interesse dos legistas, os políticos ainda se interessam pouco pelo assunto”22, o que demonstra o árduo percurso a ser perseguido para criar a lei com qualidade.

2.2 A Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro - LINDB e o Novo Código de Processo Civil Por outro lado, diante do cenário de proliferação legislativa, o Conceito fornecido por Fabiana de Menezes Soares (SOARES, 2012) ao denominar o contribuinte do sistema financeiro-tributário que empenha esforços extraordinários para obter conhecimento do direito vigente. 21 SCHAEFFER, 2007, p. 153-163. 22 ibid 20

Fabiana de Menezes Soares & Paula Carolina de Oliveira Azevedo da Mata • 105

artigo 3º da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro – LINDB (Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, e suas alterações23) dispõe que “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”. E, do mesmo modo, o artigo 4º deste mesmo diploma reafirma que, ainda que a lei seja omissa, “o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito” e o artigo 140 do Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16 de março de 201524) dispõe que “o juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico”. Nesse sentido, Fredie Didier Jr.25 indica que “as fontes de direito independem de prova (iura novit curia)”, ou seja, “o fato da existência do Direito objetivo não pode ser ignorado, notadamente pelo juiz. Não há necessidade de provar o texto de uma lei ou da Constituição”. No entanto, afirma que Excepciona-se essa regra quando a parte invocar Direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário (art. 376, CPC), e o juiz, desconhecendo a existência desses enunciados normativos, determinara produção da prova. A prova recairá sobre o teor e a vigência da Direito invocado. O ônus da prova é de quem o alega26.

Surge, assim, necessidade de avaliarmos essa exceção, qual seja: o artigo 376 do Novo Código de Processo Civil. Esse comando normativo indica que “a parte que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o juiz determinar”. O entendimento de Luiz Rodrigues Wambier27 coaduna com do autor Fredie Didier Jr., uma vez que considera necessária a prova dos fatos, e não do direito. Inclusive, indica expressões jurídicas em latim para demonstra que “também se diz da mihi factum, dabo tibi jus (dê-me o fato, que lhe dou o direito), para significar que basta à parte demonstrar que os fatos ocorreram para que o juiz aplique o direito correspondente”. Complementa que “a exceção ocorre quando se trata de direito Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm . Acesso em 10.10.2016. 24 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm . Acesso em 10.10.2016. 25 DIDIER JR, BRAGA, OLIVEIRA, 2015. v.2. p. 62-63. 26 Ibid 27 WAMBIER, 2007, v. 1, p. 410-411. 23

106 • Prova do teor e vigência do direito estadual e municipal

municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário (art. 337). É que, nesse caso, não apenas o conteúdo da norma, mas também a vigência deve ser provada”28. Do mesmo modo, Luis Guilherme Marinoni29: De outro lado, também o direito não depende de prova, já que é dever do magistrado conhecê-lo. Excetua-se dessa regra, ao menos aparentemente, a possibilidade de o juiz exigir a prova do direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário. Tal é o que prevê o art. 376, autorizando o magistrado a, em havendo necessidade de recorrer a essa espécie de direito, poder determinar a prova de seu teor e sua vigência à parte que o alega. A exceção, porém, é mais aparente do que real. Na verdade, muito embora o preceito fale em prova da alegação do direito, a verdade é que direito não se alega; direito invoca-se, supondo-se, em virtude do brocardo Jura novit curia, que o juiz o conheça. O que se alega são fatos. E, a prova admitida no dispositivo, a rigor, não é a prova “do direito”, mas apenas a prova do teor e da vigência de determinada norma, o que obviamente é questão que não pode ser rigorosamente qualificada como prova do direito.

Nesse sentido, o Ministro Hamilton Carvalhido do Superior Tribunal de Justiça – STJ, em julgamento do AgRg no Recurso Especial nº 1.174.310 - DF (2010/0004703-730), decidiu que a necessidade de comprovação do comando legal se torna um ônus para a parte apenas quando o juiz determina nos autos: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. APLICAÇÃO DE LEI ESTADUAL DE OFÍCIO. PRINCÍPIO IURA NOVIT CURIA. COMPROVAÇÃO DO TEOR. DESNECESSIDADE, SALVO DETERMINAÇÃO PELO MAGISTRADO. INCIDÊNCIA DO ARTIGO 337 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. AGRAVO IMPROVIDO. 1. Não se arguindo a própria aplicação de legislação estadual no âmbito deste Tribunal Superior, mas, sim, a violação do artigo 337 do Código de Processo Civil, que determina que “A parte, que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz”, não há falar na incidência do enunciado nº 280 da Súmula do Pretório Excelso. Ibid MARINONI, 2015, v. 2, p. 252 30 Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=9297420&num_registro=201000047037&data=20100525&tipo=51&formato=PDF . Acesso em 10.10.2016. 28 29

Fabiana de Menezes Soares & Paula Carolina de Oliveira Azevedo da Mata • 107

2. “O princípio jura novit curia aplica-se inclusive às normas do direito estadual e municipal. A parte não está obrigada a provar o conteúdo ou a vigência de tal legislação salvo quando o juiz o determinar (CPC, art. 337)” (AgRgAgRgAg nº 698.172/SP, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, in DJ 19/12/2005). 3. Agravo regimental improvido (AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.174.310 - DF (2010/0004703-7) - RELATOR: MINISTRO HAMILTON CARVALHIDO)

Desse modo, tem-se que, apesar da LINDB impor que ninguém poderá alegar o desconhecimento da lei para não cumpri-la, o magistrado poderá determinar que a parte comprove a existência de legislação estadual ou municipal pelo simples fato de não conhecê-la, no entanto, a prova nesse caso será do teor e da vigência.

2.3 A validade e a ignorância da lei Tendo em vista a norma geral que determina que todos devem obter ciência dos comandos normativos, sem poder desconhecê-los, bem como ciente da prerrogativa concedida aos Magistrados de determinar que a parte comprove o teor e a vigência do direito, já que o desconhece, faz-se necessário refletirmos acerca da validade e ignorância da lei. A propósito do tema, Fabiana de Menezes Soares31 retrata que Os defeitos na publicidade da lei e no seu próprio relato concorrem para a ignorância do sujeito (a quem é endereçado o comando, ou atribuído imposição jurídica, subjetiva, ou poder, ou dever) em relação a autoridade necessária ao cometimento. O sujeito desconhece não só a força ilocutiva daquela autoridade mas também o relato de outros enunciados que predicam a justiça: vale dizer o endereçado não entende, não conhece o discurso mas esta situação não é levada em consideração, porque a validade do discurso normativo se assenta na presunção de conhecimento de relatos/cometimentos.

Cita Tércio Sampaio Ferrar Jr.32 ao relatar que “a comunicação normativa é um problema de perversão ou abuso das condições de uso do poder” e que, neste caso, o emissor aniquila o sujeito. E a consequência de tal ato é que deixa de existir ação e reação para obter co-ação, em 31 32

SOARES, 2002, p. 290-297. Ibid

108 • Prova do teor e vigência do direito estadual e municipal

que o emissor age pelo receptor que deixa de ter espaço próprio. E evidencia que “não se trata aqui de justificar o descumprimento da lei com fundamento da sua ignorância, mas ao contrário de apontar o problema evidenciando estratégias para sua maior efetividade e legitimação”33. A validade jurídica da norma inclui, inevitavelmente, elementos de validade social, isso quer dizer que não basta a norma entrar em vigência, é preciso observar se o comando normativo vale socialmente, ou seja, se a sua inobservância é sancionada no âmbito de aplicação. Ao citar Ferrajoli, Fabiana de Menezes Soares34 aponta que A indissociabilidade entre os níveis normativo e factual da ciência jurídica é o ponto de partida para as indagações de FERRAJOLI acerca da dicotomia central da teoria do direito efetividade/inefetividade, não interessa somente a um enfoque sociológico, mas traduz-se na base de outras oposições como validade/invalidade, legitimidade/ilegitimidade, exercício/falta de exercício viciado dos poderes, licitude/ilicitude dos comportamentos.

Tais questionamentos são levantados, basicamente, para buscar uma explicação das diferenças existentes entre a representação normativa e o real funcionamento do sistema, evitando a cultura hodierna que se baseia na dissociação entre a dimensão normativa e factual.35 Essas situações, como afirma Ferrajoli36, “favorecem concepções do direito e modelos de ciência jurídica perigosamente ideológicos: um baseado sobre uma sorte de contemplações acríticas e edificante do sistema normativo, o outro sobre uma aceitação acrítica e mais ou menos resignada dos seus mecanismos de funcionamento real”. Nessa linha de raciocínio, conclui-se que “se o cidadão não pode eximir de conhecer a lei, cabe ao Estado o dever de informar sobre a existência de normas jurídicas vinculantes”, sendo, exatamente, esse o conteúdo do principio da publicidade, que “integra, de um lado os requisitos de validade da produção do direito e de outro as condições de aplicação da lei”37: [...] o cidadão não pode exigir do Estado conduta justificada 33

Ibid Ibid 35 Ibid 36 Ibid , apud SOARES, 2002, p. 295. 37 Ibid 34

Fabiana de Menezes Soares & Paula Carolina de Oliveira Azevedo da Mata • 109

por norma que não seja vigente, também o Estado não pode pretender exigir do cidadão o conhecimento da norma vigente, sobretudo aquelas cujas disposições se situem fora dos valores reconhecidos socialmente, frutos da sua profícua atividade legiferante numa sociedade a cada dia mais complexa no quadro de mudanças econômicas e sob o impacto da tecnologia. (grifo nosso)

Desse modo, a partir do momento em que o Estado, na figura do juiz, impõe que a parte que invocou o exercício da jurisdição comprove a validade do direito invocado com base em legislação municipal ou estadual, admite-se que, em razão da profícua atividade legislativa, o Magistrado desconheça o direito tratado, ou seja, considera que realmente existe uma dimensão normativa e outra dimensão factual. Assim sendo, utilizando os preceitos de Paulo Bonavides38, segundo o qual o princípio da proporcionalidade pretende instituir “a relação entre fim e meio, confrontando o fim e o fundamento de uma intervenção com os efeitos desta para que se torne possível um controle do excesso”, faz-se necessário a invocação principiológica na presente questão. Torna-se desarrazoado e desproporcional impor ao indivíduo a obrigação de conhecer todo e qualquer comando normativo quando, ao Estado, existe a prerrogativa de exigir do interessado a comprovação de validade do seu direito. Cabe esclarecer que os indivíduos não podem, de forma alguma, se beneficiar por desconhecer toda e qualquer lei, no entanto, caberá ao Estado otimizar a imperatividade das normas, com ampla divulgação dos atos normativos e, mais do que isso, facilitando a sua compreensão.

3. Dados sobre a produção legislativa no Estado de Minas Gerais A título exemplificativo, haja vista que o presente trabalho trata da comprovação de vigência de direito estadual e municipal, os dados fornecidos pelo site39 do Governo do Estado de Minas Gerais podem ser utilizados para demonstrar a proliferação de atos advindos das secretarias de governo. Atualmente, o Estado de Minas Gerais conta com 20 (vinte) Secretarias, as quais buscam tratar dos mais diversos assuntos relativos as 38 39

BONAVIDES, 2005. p. 560-573. https://www.mg.gov.br/governomg/ecp/comunidade.do?app=governomg . Acesso em 10.10.2016.

110 • Prova do teor e vigência do direito estadual e municipal

questões públicas, conforme se vê no quadro abaixo. MINAS GERAIS SECRETARIA

TIPOLOGIA DOS ATOS NORMATIVOS

FONTE

Secretaria de Estado de - Legislação Estadual Administração Prisional - Resoluções e Portarias - SEAP - Política de Privacidade - Legislação Federal

http://www.seds.mg. gov.br/

Secretaria de Estado de - Legislação Estadual Agricultura, Pecuária e - Decreto Abastecimento - SEAPA - Lei Delegada

http://www.agricultura.mg.gov.br/

Secretaria de Estado de - Leis Casa Civil e de Relações -Decretos Institucionais - SECCRI - Resoluções

http://www.casacivil.mg.gov.br/

Secretaria de Estado de - Leis Cidades e de Integração -Decretos Regional - SECIR - Resoluções

http://www.cidades. mg.gov.br/

http://www.cultura. Secretaria de Estado de - Lei Estadual Cultura - SEC - Programas e ações do go- mg.gov.br/ verno Secretaria de Estado de - Legislação Estadual Desenvolvimento Agrá- - Decreto rio - SEDA - Lei Delegada

http://www.agrario. mg.gov.br/

http://www.sedinor. Secretaria de Estado de - Leis Desenvolvimento e Inte- - Programas e ações do go- mg.gov.br/ gração do Norte e Nor- verno deste de Minas Gerais SEDINOR Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania - SEDPAC

(não existe site cadastrado no Portal do Governo de Minas Gerais nesta data)

Fabiana de Menezes Soares & Paula Carolina de Oliveira Azevedo da Mata • 111

Secretaria de Estado de - Retificações Educação - SEE - Resoluções - Portarias - Pareceres - Decretos - Leis Estaduais - Leis

https://www.educacao.mg.gov.br/

Secretaria de Estado de - Leis Esportes - SEESP - Decretos - Instruções Normativas

http://www.esportes. mg.gov.br/

Secretaria de Estado de - Portarias Fazenda - SEF - Códigos - Constituições - Comunicado -Resoluções - Instruções Normativas - Leis

http://www.fazenda. mg.gov.br/

Secretaria de Estado de - Leis Governo - SEGOV -Decretos -Resoluções

http://www.governo. mg.gov.br/

Secretaria de Estado de - Legislação Estadual e Fe- http://www.meioambiente.mg.gov.br/ Meio Ambiente e Desen- deral volvimento Sustentável - Decreto - SEMAD - Lei Delegada Secretaria de Estado de - Leis e decretos estaduais http://www.planejamento.mg.gov.br/ Planejamento e Gestão - Leis e decretos federais de Minas Gerais - Resoluções SEPLAG - Resoluções intendência - Resoluções conjuntas - Deliberações - Instruções normativas - Portarias Secretaria de Estado de - Deliberações Saúde - SES - Leis - Resoluções

http://www.saude. mg.gov.br/#

112 • Prova do teor e vigência do direito estadual e municipal

Secretaria de Estado de - Legislação Estadual Segurança Pública - SESP - Resoluções e Portarias - Política de Privacidade - Legislação Federal

http://www.seds.mg. gov.br/

Secretaria de Estado de - Legislação Estadual e Fe- http://www.social. Trabalho e Desenvolvi- deral mg.gov.br/ mento Social - SEDESE - Decreto - Lei Delegada - Resoluções Secretaria de Estado de - Atos Regulamentares Transportes e Obras Pú- - Atos Administrativos blicas - SETOP - Decretos - Leis - Leis Delegadas - Resoluções - Resoluções conjuntas

http://www.transportes.mg.gov.br/

Secretaria de Estado de - Legislação Estadual e Fe- http://www.turismo. mg.gov.br/ Turismo - SETUR deral - Decreto - Lei Delegada - Resoluções Secretaria de Estado De- - Leis http://www.tecnolosenvolvimento Econômi- - Programas e ações do go- gia.mg.gov.br/ co, Ciência, Tecnologia verno e Ensino Superior - SEDECTES

Em uma análise superficial, considerada assim pelo fato de que apenas os sites das Secretarias foram visitados, é possível observar a tipologia dos atos normativos que são promulgados em cada Secretaria do Governo do Estado de Minas Gerais. A Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais, por exemplo, conta mais de 10 (dez) atos normativos diferentes para reger seus administrados, quais sejam: - Leis e decretos estaduais; Leis e decretos federais; - Resoluções SEPLAG; - Resoluções intendência; - Resoluções conjuntas; - Deliberações; - Instruções normativas; - Portarias.

Fabiana de Menezes Soares & Paula Carolina de Oliveira Azevedo da Mata • 113

Atos normativos esses que os sujeitos não podem, em nenhuma hipótese, alegar que desconhecem, já que o Estado assim lhe impôs. A situação se agrava quando, em consulta ao site da Assembleia Legislativa de Minas Gerais40, a ferramenta de pesquisa encontra 1.040 (um mil e quarenta) atos normativos, de diferentes tipos, apenas no ano de 2016.

Fonte: http://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/index.html?aba=js_tabLegislacaoMineira&subaba=js_tabLegislacaoMineiraSimples&tipoPesquisa=simples&pageNum=1&sltNorma=&txtNum=&txtAno=2016&txtAss=&txtPerIni=&txtPerFim=&tipoOrdem=2&sltResultPagina=10

E, ao utilizar o filtro do “tipo de norma” escolhendo a “lei” é possível encontrar 339 (trezentos e trinta e nove) resultados apenas em 2016.

40

http://www.almg.gov.br/home/index.html. Acesso em 10.10.2016.

114 • Prova do teor e vigência do direito estadual e municipal

Fonte: http://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/index.html?aba=js_tabLegislacaoMineira&subaba=js_tabLegislacaoMineiraSimples&tipoPesquisa=simples&pageNum=1&sltNorma=Lei&txtNum=&txtAno=2016&txtAss=&txtPerIni=&txtPerFim=&tipoOrdem=2&sltResultPagina=10

Desse modo, em se tratando de necessidade de comprovação de vigência de direito estadual em Minas Gerais, essa simples demonstração de pesquisa nos sites interligados à Assembleia Legislativa de Minas Gerais já consegue demonstrar as dificuldades que podem ser enfrentadas pelo cidadão comum, o qual não pode alegar o desconhecimento dos atos normativos, tampouco da sua vigência.

4. O modelo de publicidade oficial O art. 1º da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro – LINDB (Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, e suas alterações41) indica que, salvo disposição em contrário, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada. As publicações oficiais adotadas em Minas Gerais, por exemplo, são Jornal Minas Gerais, Diário do Legislativo e Boletim da Secretaria da Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm . Acesso em 10.10.2016. 41

Fabiana de Menezes Soares & Paula Carolina de Oliveira Azevedo da Mata • 115

ALMG, no caso de normas estaduais; e Diário Oficial da União, no caso da Constituição Federal42. A predominância é, portanto, de publicações impressas em veículos de comunicação oficiais. Apesar de existirem atos normativos disponíveis para consulta via internet, ao analisar leis disponíveis nesses canais, há informação expressa de que a publicação se deu através de diário oficial impresso. Exemplo disso é a informação nos atos normativos publicados pelo Palácio do Planalto de que “Este texto não substitui o publicado no DOU” ou a indicação de fonte nas consultadas realizadas no site da Assembleia Legislativa de Minas Gerais que apresentam o dia, a página e a coluna da publicação no Diário de Minas Gerais43. Fabiana de Menezes Soares44 cita estudo de caso realizado por João Alberto Lima, o qual desenvolveu um instrumento de rastreamento/apuração do texto original de leis, a partir de um pedido de informações realizado pelo Ministério Público Federal que culminou por demonstrar uma série de erros no texto da Lei Geral de Orçamento: [...] pedido de informação realizado pelo Ministério Público Federal (MPF) que questionou o Senado Federal “sobre quais mecanismos e providências podem ser adotadas para minimizar a incidência de erros na divulgação de textos legislativos, por meios eletrônicos”. Essa consulta foi motivada pela questão de ordem da decisão judicial proferida pelo Exmo. Juiz Federal Leandro Paulsen na qual constatou que as partes (Empresa Privada e União) trabalhavam com uma redação equivocada do §4o do art. 1o do Decreto no 64.833/1969 que estava disponível na internet, inclusive em sítios de órgãos oficiais. Segundo a decisão, exarada na Ação Ordinária no 87.00.013536/ RS em 18 de dezembro de 2009, o entendimento equivocado poderia ter “implicado prejuízos vultosos à União”.

Tais implicações são decorrentes da inexistência de legislação que impõe a publicação dos atos normativos em sites oficiais. A destinação das legislações para simples consulta em veículos de comunicação públicos e tecnológicos desobriga a Administração Pública no que diz respeito a idoneidade do texto, impondo, novamente o ônus ao cidadão comum, que é obrigado a consultar os diários oficiais. Informação extraída do site da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Disponível em https:// www.almg.gov.br/consulte/legislacao/ 43 Exemplo: “Decreto 47052, de 28/09/2016. Indicação de fonte: - Publicação - Minas Gerais Diário do Executivo - 29/09/2016 Pág. 1 Col. 1”. Disponível em http://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/ completa/completa.html?tipo=DEC&num=47052&comp=&ano=2016. Acesso em 10.10.2016. 44 SOARES, 2013. 42

116 • Prova do teor e vigência do direito estadual e municipal

No entanto, essa conduta omissiva do Estado, além de gerar prejuízos para o cidadão comum, pode prejudicar o erário, como visto no exemplo acima, o que justifica uma mudança de paradigma de publicação de atos oficiais no ordenamento brasileiro, de um modo geral. A publicação de atos normativos em sites oficiais com certificação digital e comprovação de idoneidade do texto legal justificaria uma Política de Boa Legislação, a qual tornaria a Lei Complementar nº 95/98 mais eficaz no que se refere a clara vinculação de seus preceitos ao modelo de validade (o que tornaria mais fácil seu controle judicial) cujo. Além disso, garantiria o direito de acesso à informação franqueado mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente e clara, exatamente nos termos da Lei de Acesso à Informação. Heinz Schaeffer45 ao apontar os pontos positivos trazidos por estudos feitos pela Associação Austríaca de Ciência da Legislação relata que Desde 1º de janeiro de 2004, a publicação do diário oficial eletrônico – BGBl (como consequência da lei sobre reforma da publicidade) – substitui o diário em papel e passou a ser considerada a versão autêntica, conforme o sistema de informações das leis federais – Rechtsinformationssystem - RIS

O cenário legislativo brasileiro, além da proliferação apresentada no tópico supra, ainda demonstra condutas não recomendáveis pela legística quando, por exemplo, um só ato normativo provoca diversas e extensas modificações em vários atos normativos ou, até mesmo, quando a mesma lei ou a Constituição é alterada diversas vezes; sem contar as recorrentes revogações implícitas. A título exemplificativo, vale citar o Marco Regulatório de Ciência, Tecnologia e Inovação que, através da Lei Federal nº 13.24346, altera 9 (nove) leis vigentes no ordenamento brasileiro, vejamos a ementa: Dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e à inovação e altera a Lei no 10.973, de 2 de dezembro de 2004, a Lei no 6.815, de 19 de agosto de 1980, a Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei no 12.462, de 4 de agosto de 2011, a Lei no 8.745, de 9 de dezembro de 1993, a Lei no 8.958, de 20 de dezembro de 1994, a Lei no 8.010, de 29 de março de 1990, a Lei no 8.032, de 12 de abril de SCHAEFFER, 2007, p. 153-163. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13243.htm. Acesso em 10.10.2016. 45 46

Fabiana de Menezes Soares & Paula Carolina de Oliveira Azevedo da Mata • 117

1990, e a Lei no 12.772, de 28 de dezembro de 2012, nos termos da Emenda Constitucional no 85, de 26 de fevereiro de 2015.

Restou demonstrado que a indisponibilidade de um site oficial de publicação de atos normativos prejudica a todos – Estado e cidadãos - uma vez que limita o acompanhamento das revogações, sejam elas explícitas ou implícitas. Sendo assim, a partir do momento em que a modificação de tais atos ocorrer, basicamente, em tempo real e, além disso, a versão eletrônica do órgãos públicos for considerada oficial e autêntica, o acesso à informação será pleno.

5. Considerações Finais Diante deste contexto, verifica-se que, a partir do momento em que o Estado, na figura do juiz, impõe que a parte que invocou o exercício da jurisdição comprove a validade do direito invocado com base em legislação municipal ou estadual, admite-se que, em razão da profícua atividade legislativa e da ineficiência da publicação dos atos normativos, o Magistrado desconheça o direito tratado, ou seja, considera que realmente existe uma dimensão normativa e outra dimensão factual. Desse modo, torna desproporcional impor ao indivíduo a obrigação de conhecer todo e qualquer comando normativo quando, ao Estado, existe a prerrogativa de exigir do interessado a comprovação de validade do seu direito. Cabe esclarecer que o presente trabalho não pretende, de forma alguma, autorizar que o indivíduo se beneficie por desconhecer toda e qualquer lei, no entanto, caberá ao Estado otimizar a imperatividade das normas, com ampla divulgação dos atos normativos e, mais do que isso, facilitando a sua compreensão, isto significa uma substancial alteração semântica no DEVER do estado em publicizar os seus atos, à luz da tecnologia da informação e do novo paradigma de relacionamento entre Estado e Sociedade prescrito pela Lei de Acesso à Informação. Ademais, a indisponibilidade de um site oficial de publicação de atos normativos prejudica a todos, com idoneidade garantida por ferramentas similares as usadas, por exemplo, pela Receita Federal quando valida as declarações de IR, já que não possibilita um acompanhamento eficaz e transparente das legislações. E, consequentemente, não atinge o interesse público de se ter um acesso à informação íntegro, de uma informação vinculante para os operadores do direito e para toda a socie-

118 • Prova do teor e vigência do direito estadual e municipal

dade, não especialmente formada, para compreender o signo linguístico do direito.

Referências bibliográficas BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 560-573. CHEVALLIER, Jacques O Estado pós-moderno. Trad. Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009 DELLEY, Jean-Daniel. Pensar a lei, introdução a um procedimento metódico. Cadernos da Escola do Legislativo. Belo Horizonte. v. 7, n. 12, p. 101-143, jan/jun. 2004. DIDIER JR, Fredie, BRAGA, Paula Sarno, OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela I.10. ed.- Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015. v.2. FLÜCKIGER, Alexandre, DELLEY, Jean-Daniel. A elaboração racional do direito privado: da codificação a legística. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, v. 9, n. 14, p. 35-58, jan./dez. 2007. HESPANHA, Antonio Manuel. Leis bem feitas e leis boas. Legislação. Cadernos de Ciência da Legislação. 50, 2009, p. 31-47. ____________. O caleidoscópio do direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. 2ª Edição. Coimbra: Almedina, 2009a. MARINONI, Luiz Guilherme. Novo Curso de Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. São Paulo: Editora RT, 2015. SOARES, Fabiana de Menezes. Legística e Desenvolvimento: a qualidade da lei no quadro da otimização de uma melhor legislação. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, nº 50, p. 124-142, jan. – jul., 2007. Disponível em http://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/ revista/article/view/31, acesso em 10.10.2016.

Fabiana de Menezes Soares & Paula Carolina de Oliveira Azevedo da Mata • 119

SOARES, Fabiana de Menezes. Produção do direito e conhecimento da lei a luz da participação popular e sob o impacto da tecnologia da informação. Belo Horizonte: UFMG, 2002. Tese (doutorado), p. 290-297. _____________. Simplificação e elaboração da legislação tributária infralegal: notas sobre o acesso ao direito vigente e a gestão da elaboração legislativa pelo Executivo. Cadernos de. Finanças Públicas, Brasília, n. 12, p. 219-254, dez. 2012 ______________. Acesso ao direito vigente: problemas, riscos e propostas para uma elaboração legislativa à luz dos valores republicanos e da Lei de Acesso à Informação.. In: SILVEIRA, Vladmir Oliveira da, MEZZAROBA Orides et allii. (Org.). Volume -Justiça e [o Paradigma da] Eficiência - Coletânea: Justiça, Empresa e Sustentabilidade. Curitiba: Editora Clássica, 2013, v. 2, p. 07-350. SCHAEFFER, Heinz. Atualidades e perspectivas da ciência da legislação na Áustria. Cadernos da Escola do Legislativo. Belo Horizonte. v. 9, n. 14, p. 153-163, jan/dez. 2007. WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso Avançado de Processo Civil. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

A TRIDIMENSIONALIDADE DO CONTRADITÓRIO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO Fernando Gonzaga Jayme1 Marcelo Veiga Franco2 Resumo: O presente estudo objetiva examinar como o Código de Processo Civil regulamenta o direito fundamental do contraditório e verificar sua adequação ao Estado Democrático de Direito. Para tanto, o artigo utiliza-se de um conceito de contraditório condizente com os princípios democráticos. Ao final, os resultados obtidos conduzem à conclusão de que, em relação ao contraditório, o Código de Processo Civil evolui significativamente em relação à codificação revogada. Palavras-chave: Direito Processual Civil. Contraditório. Motivação decisória. Código de Processo Civil. Abstract: This study aims to discuss how the Code of Civil Procedure regulates the fundamental right of adversarial adequately for a democratic state. For this, the article uses a concept of adversarial consistent with the democratic principles. At the end, the results lead to the conclusion that, in relation to the adversarial, the Code of Civil Procedure evolves significantly from the repealed codification. Keywords: Civil Procedure Law. Adversarial. Grounding of the judgments. Code of Civil Procedure. Sumário: 1 Introdução. 2 O princípio do contraditório no Estado Democrático de Direito. 2.1 A contribuição da teoria do processo como procedimento realizado em simétrico contraditório entre as partes. 2.2 O desenvolvimento do conceito de contraditório: dimensões estática e 1

Doutor e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Professor Associadoo da Faculdade de Direito da UFMG. Diretor da Faculdade de Direito da UFMG. Membro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Membro do Conselho Técnico-Científico do Parque Tecnológico BHTEC. Conselheiro Seccional da OAB/MG. Advogado. E-mail: [email protected]. 2 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialista em Direito Tributário pela PUC/Minas. Procurador do Município de Belo Horizonte/MG. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Advogado. E-mail: [email protected]

Fernando Gonzaga Jayme & Marcelo Veiga Franco • 121

dinâmica . 2.2.1 A dimensão estática (ou formal) do contraditório. 2.2.2 A dimensão dinâmica (ou material) do contraditório. 2.3 O processo comparticipativo e a motivação decisória como elemento do contraditório: passo final para a construção de um conceito adequado ao Estado Democrático de Direito. 3 A regulamentação do contraditório no Código de Processo Civil . 4 Considerações finais. Referências bibliográficas.

1. Introdução Em março de 2016 entrou em vigor a Lei nº 13.105/2015, que regulamenta o Código de Processo Civil. Na Exposição de Motivos esclarece-se que a técnica processual a ser implementada visa a assegurar e efetivar os direitos e valores constitucionais, isto é, o processo destinar-se-á a conferir efetividade às normas de direito material e às garantias constitucionais do Estado Democrático de Direito. A Exposição de Motivos assevera, também, que o Codigo harmoniza-se com a garantia constitucional do devido processo legal, principalmente por codificar o princípio constitucional do contraditório. Neste aspecto, destaca-se o princípio da não surpresa, que veda que o juiz, mesmo diante de matéria de ordem pública, cognoscível de ofício, decida sem ouvir previamente as partes. Quanto à motivação decisória, o princípio do livre convencimento motivado, enquanto garantia de julgamentos independentes e justos, é prestigiado em correlação com o princípio da segurança jurídica. A legislação projetada, resguardando a independência funcional dos magistrados, assegura-lhes a prerrogativa de alterarem entendimentos jurisprudenciais pretéritos, mediante fundamentação adequada e específica. Trata-se de preservar o imperativo de estabilidade das relações jurídicas. Estas breves considerações foram feitas apenas com o propósito de demonstrar a amplitude das mudanças preconizadas pela legislação processual, esclarecendo-se, porém, que a pretensão deste trabalho é bem menos abrangente. O objeto de análise circunscreve-se ao estudo da garantia do contraditório (e, consequentemente, da motivação decisória) no Código de Processo Civil e sua harmonização com as exigências do Estado Democrático de Direito. O conceito de contraditório adotado é o que o contempla em sua dimensão tridimensional por ser a que melhor atende aos anseios de consolidação e fortalecimento do Estado Democrático de Direito. A tridimensionalidade do contraditório consiste nos direitos de manifesta-

122 • A TRIDIMENSIONALIDADE DO CONTRADITÓRIO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

ção, de informação e de ver as questões e argumentos respondidos pelo julgador. Ao final, objetiva-se avaliar se o princípio do contraditório disciplinado no Código de Processo Civil está em sintonia com o conceito que lhe foi atribuído pelo Supremo Tribunal Federal ao interpretar o inc. LV do art. 5º do texto constitucional.

2- O princípio do contraditório no Estado Democrático de Direito 2.1 A contribuição da teoria do processo como procedimento realizado em simétrico contraditório entre as partes O conceito de contraditório adequado ao Estado Democrático de Direito pressupõe a análise das bases lançadas pela teoria do processo como procedimento realizado em simétrico contraditório entre as partes. Iguais oportunidades de participação entre os interessados é elemento essencial do processo e imprescindível para assegurar o acesso à ordem jurídica justa e a legitimidade do processo de produção dos atos decisórios. O jurista italiano Elio Fazzalari foi o primeiro a conceituar o processo como procedimento realizado em contraditório entre as partes. No Brasil, esta teoria foi desenvolvida por Aroldo Plínio Gonçalves.3 De forma sintética, com fundamento na obra dos referidos autores, pode-se afirmar que o processo é concebido como “um procedimento do qual participam (são habilitados a participar) aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos: em contraditório, e de modo que o autor do ato não possa obliterar as suas atividades”.4 Para essa teoria, processo e procedimento, apesar da origem etimológica comum, valores convencionais da linguagem científica passaram a distingui-los5, contudo, inevitavelmente interrelacionados. O proceGONÇALVES, 1992. FAZZALARI, 2006, p. 118-119. 5 CARNELUTTI, 1971, p. 21. A distinção entre processo e procedimento poderia adquirir um caráter de artificialidade, uma vez que, do ponto de vista do uso comum, retratavam “dois sinônimos”. Porém, para a ciência do direito, processo e procedimento “têm significados profundamente diferentes”. Para o autor, o “procedimento (de proceder) denota não tanto uma sucessão (de suceder) de atos como uma vinculação entre atos sucessivos; em outras palavras, enquanto sucessão implica uma vinculação puramente temporal (um ato vem após o outro), procedimento sugere um vínculo mais íntimo entre vários atos sucessivos”. Já o processo retrata “o conjunto de todos os atos necessários em cada caso para a composição da lide ou para o desenvolvimento do negócio”. Nessa perspectiva, a fim de “distinguir melhor entre processo e procedimento, pode-se pensar no sistema decimal: o procedimento é a dezena; o processo é o número concreto, o qual pode não alcançar a dezena ou 3 4

Fernando Gonzaga Jayme & Marcelo Veiga Franco • 123

dimento, enquanto estrutura normativa de descrição de condutas e de qualificação de direitos e obrigações, é o gênero do qual o processo é a espécie mais elaborada e complexa, por se qualificar pela exigência do simétrico contraditório entre os interessados ao provimento jurisdicional final.6 A importância do novo conceito de processo, qualificado pelo contraditório é explicada por Picardi, ao mencionar que até meados do século passado, o princípio do contraditório era um meio e não o fim do processo, o que possibilitava afirmar que a ausência de um contraditório efetivo não contrariava o fim do processo, porquanto a atuação da lei através de uma decisão justa poderia ser obtida sem a cooperação das partes.7 Em consequência, as partes estavam sob a autoridade do magistrado que autoritativamente impunha sua decisão, sem observar o direito de as partes participarem da construção do provimento jurisdicional. Com efeito, a partir da teoria de Fazzalari, pode-se afirmar que o procedimento é uma sequência de normas e de posições subjetivas,8 preparatória do provimento, que é o ato estatal imperativo destinado a produzir efeitos na esfera jurídica de seus destinatários. A estrutura do procedimento é constituída a partir de uma série de normas, em que cada uma delas regula uma específica “conduta (qualificando-a como direito ou como obrigação), mas que enuncia como pressuposto da sua própria aplicação, o cumprimento de uma atividade regulada por uma outra norma da série”9. Desta maneira, os atos processuais, enquanto espécies de ato jurídico, realizam-se no curso do procedimento mediante a sujeição às regras que determinam sua aparição e seus efeitos. Cada ato processual deve ajustar-se às normas que presidem sua criação e lhe conferem valor mesmo compreender mais de uma” (p. 471-473, destaques no original). 6 FAZZALARI, op. cit., p. 93-94. No ponto, ressalte-se que o jurista italiano Enrico Redenti – antes mesmo de Elio Fazzalari, porém de modo incipiente – já trabalhava na renovação do conceito de procedimento, entendendo “o processo como a atividade destinada à formação do provimento jurisdicional”. Para o referido autor, a atividade preparatória do provimento é disciplinada por vários esquemas normativos, propostos para as diversas possibilidades de processos, e que devem tomar o nome de procedimento, entendido como o “módulo legal do fenômeno em abstrato” (GONÇALVES, op. cit., p. 103-104). 7 PICARDI, 1998, p. 673-681. 8 A expressão posição subjetiva (ou posição jurídica subjetiva) contém um significado peculiar e se refere “à posição de sujeitos perante a norma, que valora suas condutas como lícitas, facultadas ou devidas”, e com isso não se relaciona “à posição de sujeitos em uma relação com outro sujeito ou à posição de sujeitos em um quadro qualquer de liames”. A posição subjetiva, como posição do sujeito em relação à norma, permite “qualificar a conduta como faculdade ou poder, se é valorada como lícita, e como dever, se é valorada como devida” (GONÇALVES, op. cit., p. 106-109). 9 FAZZALARI, Elio, op. cit., p. 113-114.

124 • A TRIDIMENSIONALIDADE DO CONTRADITÓRIO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

jurídico, pressuposto para que produza efeitos juridicamente válidos. Se isso não ocorre, o ato carecerá de validez e o procedimento estará maculado, pois cada um dos atos jurídicos do iter procedimental influi sobre a validez do conjunto, ou seja, cada um se encontra sustentado pelo ato precedente e é, a seu turno, sustentáculo dos demais. A culminância desta sequência de atos é o provimento, que dirime a controvérsia e estabelece a verdade legal, com autoridade de coisa julgada. Se os atos que dão sustentação ao provimento estão afetados por vícios graves, que os priva da eficácia que deveriam ter em condições normais, o provimento não subsistirá. Carecerá do necessário suporte: um processo válido. Com efeito, todo processo está integrado por atos jurídicos que guardam entre si relação cronológica, lógica e teleológica. Uns são suporte ou pressuposto dos outros e todos se ordenam a um fim supremo e comum: a solução da controvérsia por meio de um provimento (sentença).10 A validade e a eficácia de um ato inserido na estrutura normativa do procedimento dependem, portanto, da regularidade do ato precedente e influem sobre a validade e a eficácia dos atos subsequentes. O processo, por sua vez, é espécie de procedimento que se distingue e se qualifica pela presença do contraditório realizado em simétrica paridade. O contraditório é essencial à definição do processo,11 que é, na verdade, o procedimento que se realiza em paritário contraditório. Nessa ordem de ideias, o contraditório é conceituado como “a igualdade de oportunidade no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei”.12 A interrelação entre os princípios do contraditório e da igualdade é a grande contribuição de Elio Fazzalari e Aroldo Plínio Gonçalves para a ciência jurídica. De acordo com esta teoria, o contraditório é “estrutura dialética do procedimento”, do qual se destacam os elementos seguintes: a) participação dos destinatários dos efeitos do ato final, em simétrica paridade de posições, na fase procedimental preparatória do provimento; b) mútua implicação das atividades dos destinatários – partes – destinadas GONÇALVES, op. cit., p. 108-109. No mesmo sentido: OLIVEIRA, 2003, p. 107-111. A ideia do contraditório como elemento essencial do processo não surgiu apenas com a divulgação da teoria de Elio Fazzalari, nos idos de 1975. Adolf Wach, por exemplo, já em 1865, “realçava a importância do contraditório, ao destacar o caráter dialético do processo, observando que sua finalidade atendia a dois interesses em colisão, o interesse da tutela jurídica afirmada pelo autor e o interesse contraposto sustentado pelo réu”. Também Piero Calamandrei, em 1965, entendia o contraditório “como diálogo permanente entre os envolvidos, [...] força motriz do processo, seu princípio fundamental”. (DIAS, 2010, p. 94-95). 12 GONÇALVES, op. cit., p. 109. 10 11

Fernando Gonzaga Jayme & Marcelo Veiga Franco • 125

a obter um provimento conforme seus interesses; c) efetiva capacidade de as atividades realizadas pelas partes influenciarem o autor do provimento final (juiz ou árbitro); d) possibilidade de exercício, por cada interessado ou destinatário dos efeitos do ato final (denominados de contraditores), de um conjunto de escolhas, de reações e de controles; e) existência de controle não só das atividades de cada um dos contraditores, mas também na possibilidade de fiscalização dos resultados da função exercida pelo autor do provimento final.13 O contraditório é, então, a ratio distinguendi do processo. Trata-se da “garantia de participação em simétrica paridade”, isto é, “direito de participação” das partes na elaboração do provimento em igualdade de oportunidades.14 O contraditório, para realizar-se conta, necessariamente, com a participação de, pelo menos, dois sujeitos, as partes do processo, as quais, em relação ao conflito de interesses, estão em posições processuais contrapostas, porém, simetricamente iguais no que diz respeito ao direito de participação no procedimento. Às partes, destinatárias dos efeitos do provimento, assegura-se o direito de participação na construção do provimento em simétrica paridade de armas. O juiz ou árbitro, autor do provimento, por sua vez, é um terceiro desinteressado no provimento, na medida em que é “estranho aos interesses em contenda, não sendo parte daquela situação”.15 Reconhece-se assim que o autor do provimento é sujeito do processo, mas não é parte, porque “ele não participa ‘em contraditório com as partes’, entre ele e as partes não há interesse em disputa”.16 Entretanto, conforme ressalta Ada Pellegrini Grinover: “a necessidade de a equidistância do juiz ser adequadamente temperada, mercê da atribuição ao magistrado de poderes mais amplos, a fim de estimular a efetiva participação das partes no contraditório e sua colaboração e cooperação no justo processo.”17 Adota-se a teoria do processo que o conceitua como o procedimento realizado em contraditório por ser apta a evidenciar o fundamento de legitimidade do exercício do poder jurisdicional. Nos termos do parágrafo único do art. 1º da Constituição da República (CR/88), o exercício do poder estatal somente se legitima quando exercido por representantes eleitos, ou diretamente, nas hipóteses 13

FAZZALARI, op. cit., p. 119-120. GONÇALVES, op. cit., p. 132. 15 FAZZALARI, op. cit., p. 121-124. 16 GONÇALVES, 2012, p. 103. 17 GRINOVER, 1985, p. 14. 14

126 • A TRIDIMENSIONALIDADE DO CONTRADITÓRIO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

constitucionalmente previstas. Considerando que os membros do Poder Judiciário não são eleitos, a legitimidade dos provimentos jurisdicionais decorre da participação direta dos destinatários dos efeitos produzidos pela decisão. Esta participação ocorre mediante a garantia do contraditório, em que os interessados atuarão em simétrica paridade na construção do provimento a que se sujeitarão. Trata-se de exercício da soberania popular na medida em que as partes, sujeitos do contraditório, de forma comparticipativa, interferem decisivamente na construção do provimento, ato de poder estatal, que produzirá efeitos nos patrimônios jurídicos dos partícipes. A soberania popular, assevera Bonavides, é na democracia “seu tecido mais nobre, sua energia mais expansiva, seu elemento mais dinâmico, sua categoria mais elevada em termos de juridicidade.”18 Nessa linha de raciocínio, o contraditório é uma garantia constitucional, conforme inciso LV do art. 5º da CR/88, constituindo-se um elemento essencial do processo. Ao compreender o processo como o procedimento que se realiza em contraditório, constata-se a presença dos dois valores essenciais à democracia: igualdade e liberdade. “O contraditório é a garantia de participação em simétrica paridade, das partes, daqueles a que se destinam os efeitos da sentença”;19 nesta definição, liberdade e igualdade se fazem explicitamente presentes. O indivíduo tem a liberdade de participar, em igualdade de condições, na construção do provimento que repercutirá no seu patrimônio jurídico. Todavia, se por qualquer razão, optar por não participar do procedimento, sujeitar-se-á aos ônus da sua inércia, por se reconhecer que os seres humanos, livres e iguais, são dotados de razão e consciência, capazes, portanto, de suportar as consequências de seus atos. A garantia de uma paritária participação das partes na elaboração do provimento faz com que o processo se estruture a partir da igualdade de oportunidades entre os destinatários da decisão judicial, o que torna indissociável o contraditório da ordem jurídica democrática.20 BONAVIDES, Paulo. O Poder Judiciário e o parágrafo úncio do art. 1º da Constituição do Brasil. In, GRAU, CUNHA, 2003, p. 67-88, p. 85. 19 GONÇALVES, 2012, p. 103. 20 Segundo Ada Pellegrini Grinover, é “comum a observação de que o princípio da igualdade é parte essencial do processo” ou de que “defesa e contraditório são corolários do princípio da igualdade”. Todavia, a igualdade, como essência do contraditório, não pode ser vista apenas como uma isonomia formal que exprime a “simples exigência de que os sujeitos possam agir em plano de paridade”; diferentemente, a igualdade deve ser compreendida sob a ótica material, isto é, “como contraposição dialética paritária e forma organizada de cooperação no processo”, da qual emerge o princípio de par condicio (princípio de equilíbrio de situações ou igualdade de armas). Sendo assim, a “plenitude e a efetividade do contraditório indicam a necessidade de se utilizarem todos os meios necessários para evitar que a disparidade de posições no processo possa incidir sobre seu êxito, condicionan18

Fernando Gonzaga Jayme & Marcelo Veiga Franco • 127

Secundando Elio Fazzalari e Aroldo Plínio Gonçalves, reafirma-se que o processo como procedimento realizado em contraditório confere a necessária legitimidade democrática ao exercício do poder jurisdicional.

2.2 O desenvolvimento do conceito de contraditório: dimensões estática e dinâmica Inobstante a contribuição da teoria do processo como procedimento realizado em simétrico contraditório entre as partes, o conceito de contraditório, ao longo da vivência democrática, desenvolveu-se e agregou novos conteúdos a partir dos avanços advindos da própria compreensão do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CR/88). A interpretação constitucional das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais visa, sempre, a conferir-lhes a máxima efetividade. Assim, o princípio do contraditório pode ter o seu conteúdo ampliado de modo a abranger todas as possibilidades que esta garantia representa. O ordenamento constitucional ao reconhecer o contraditório como garantia fundamental, propicia às partes participarem dialeticamente no processo, com iguais oportunidades e com efetiva possibilidade de influenciar no resultado advindo do ato emanado do exercício da atividade jurisdicional. Nesse sentido, a partir das dimensões estática e dinâmica, passa-se ao desenvolvimento de um conceito mais abrangente de contraditório.

2.2.1 A dimensão estática (ou formal) do contraditório A dimensão estática (ou formal) retrata a clássica concepção de contraditório como ciência, informação, comunicação e/ou participação das partes no processo, originária do instituto processual austríaco Parteiengehör – o qual é entendido como princípio da audição (ou audiência) do cidadão interessado.21 O contraditório estático limita-se a reconhecer uma igualdade meramente formal das partes no processo, que não passa de uma ficção jurídica na medida em que não se exige do magistrado uma postura adequada do magistrado no sentido de assegurar às partes o justo processo, mediante a mitigação das desigualdades econômicas, do-o a uma distribuição desigual de forças” (GRINOVER, 1985, p. 11-18, destaques no original). 21 FAZZALARI, op. cit., p. 111-113.

128 • A TRIDIMENSIONALIDADE DO CONTRADITÓRIO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

sociais, políticas ou de qualquer outra natureza a desigualar substancialmente os sujeitos do processo. O contraditório, na sua dimensão estática, expressa o direito das partes ao conhecimento da demanda, mediante a mera citação, intimação e/ou notificação, com a garantia de participação no curso do processo. Com base no brocardo audiatur et altera pars, o aspecto formal do contraditório resguarda ao interessado, tão somente, o direito de ouvir e de ser ouvido (hearings).22 A garantia de participação na construção da decisão judicial visa a assegurar às partes, colocadas em posição de interessado (autor) e contrainteressado (réu), o “direito ao conhecimento e à participação, participar conhecendo, participar agindo”.23 Obviamente, não se nega a possibilidade de se instituir o contraditório diferido, quando houver necessidade de se evitar o perecimento do direito. Trata-se de garantir efetiva proteção judicial conforme dispõe a norma constitucional da inafastabilidade da jurisdição, ao não admitir que lesão ou ameaça a direito sejam excluídas da apreciação do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, da CR/88). A ideia do contraditório estático resume-se a possibilitar aos destinatários do provimento a oportunidade de manifestarem-se nos autos e de deduzirem as alegações e as provas que julgarem pertinentes, com a respectiva possibilidade de reação.24 O contraditório, assim entendido, relaciona-se ao direito de defesa, por assegurar “às partes a possibilidade bilateral, efetiva e concreta, de produzirem suas provas, de aduzirem suas razões, de recorrerem das decisões, de agirem, enfim, em juízo, para a tutela de seus direitos e interesses”.25 Com isso, as partes expõem ao juiz os fatos e os fundamentos jurídicos da demanda, de modo que tenham aumentadas as suas chances de êxito no processo, ao mesmo tempo em que colaboram para a melhoria da prestação jurisdicional.26 Todavia, com base na teoria do processo como procedimento realizado em simétrico contraditório entre as partes, sua dimensão estática não contempla o princípio em toda a sua amplitude, que não se limita à sua definição como mero direito das partes ao conhecimento da demanda e à participação no processo. Diante da necessidade de tutela do princípio da isonomia, a participação das partes no processo deve ser qualificada com a nota da igualdade substancial de oportunidades. 22

CAPPELLETTI, 1993, p. 77. CAPPELLETTI, 1982. v. 1, p. 221, tradução livre. 24 MARINONI, 2000, p. 336; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Os elementos objetivos da demanda examinados à luz do contraditório. In: TUCCI; BEDAQUE, 2002, p. 20. 25 GRINOVER, op. cit., p. 11. 26 DINAMARCO, 1987, p. 94. 23

Fernando Gonzaga Jayme & Marcelo Veiga Franco • 129

Como expressão do princípio constitucional da isonomia, a participação das partes no processo há de ser concretizada em paridade de posições. O contraditório faz com que os litigantes, “em posição de igualdade, disponham das mesmas oportunidades de alegar e provar o quanto estimarem conveniente com vistas ao reconhecimento judicial de suas teses”.27 Trata-se, assim, da função do contraditório como garantia de uma “simetria de posições subjetivas, além de assegurar aos participantes do processo a possibilidade de dialogar e de exercitar um conjunto de controles, de reações e de escolhas dentro desta estrutura”.28 A essência do contraditório estático é, pois, a igualdade de oportunidades entre os destinatários dos efeitos do provimento final; não é o simples argumento e contra-argumento, mas, sim, o dizer e o contradizer deduzidos em paritária posição de chances entre os interessados.29 Aliás, além da igualdade, também a liberdade, outro sustentáculo da democracia, é resguardada quando conferidas às partes iguais oportunidades de participação no processo. A liberdade, manifestada por meio do direito de participação, significa conferir às partes a valoração a respeito da conveniência e da oportunidade do exercício do contraditório. Sendo o contraditório o direito à ciência, ao conhecimento e à informação da demanda, aparece como corolário necessário o direito à liberdade de reação, formando o que se denomina de bilateralidade da audiência. Desta feita, cumpre à parte, de acordo com o seu livre alvedrio e dentro dos parâmetros legais, optar por manifestar-se ou não na contenda jurídica, agindo ou omitindo-se em conformidade com a sua ampla defesa. A liberdade, logo, consiste na possibilidade de autodeterminação do modo e da intensidade de que se valerão as partes na atividade preparatória do provimento final.

2.2.2 A dimensão dinâmica (ou material) do contraditório Combinada com a perspectiva estática, a dimensão dinâmica (ou material) do contraditório revela a prerrogativa de influência (ou possibilidade de influência ou direito de influir)30 e a prerrogativa de controle LLORENTE, 1995, p. 266, tradução livre. FAZZALARI, 1958, p. 869, tradução livre. 29 OLIVEIRA, op. cit., p. 113-114. 30 MARINONI, op. cit., p. 336; NUNES, 2011, p. 226. 27 28

130 • A TRIDIMENSIONALIDADE DO CONTRADITÓRIO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

das partes na construção do conteúdo da decisão judicial. Trata-se da conjugação dos direitos das partes ao conhecimento e à participação no processo em simétrica paridade (dimensão estática), com a possibilidade de interferência e de fiscalização dos resultados advindos do exercício da função jurisdicional (dimensão dinâmica). Destarte, às partes é conferida a prerrogativa de interferir no conteúdo da decisão judicial por meio da apresentação de provas e argumentos no bojo da instrução probatória. Ao julgador não é permitido desconsiderar a atividade dos destinatários do provimento, ao contrário, tem ele o dever de “assegurar às partes o debate sobre os elementos capazes de influir no convencimento que sustentará a decisão”.31 A decisão judicial é, portanto, o resultado do convencimento racional fundamentadamente construído por um juízo natural, com base em argumentos e provas aventados pelos interessados em simétrico contraditório. A dimensão dinâmica do contraditório reflete, assim, a prerrogativa de simétrica influência dos interessados na construção do conteúdo da decisão judicial, em sintonia com o dever imposto ao juiz, como terceiro imparcial, de assegurar às partes iguais oportunidades de interferência nos resultados da atividade jurisdicional – inclusive quanto às questões apreciáveis de ofício. O contraditório material atribui, aos interessados, “possibilidades de participação preventiva” em relação aos aspectos fáticos e jurídicos discutidos no processo, o que leva à seguinte equação: “defesa = contraditório = participação = audição preventiva”.32 De mais a mais, a perspectiva material do contraditório é realizada por meio do controle da fundamentação das decisões judiciais por parte dos destinatários do provimento, de forma a impor “uma efetiva comparticipação dos sujeitos processuais em todo o iter formativo das decisões” e, ao juiz, o dever de atuar como “incentivador do aspecto dialógico do procedimento”.33 Visto desta forma, o contraditório dinâmico representa limite à função jurisdicional, na medida em que possibilita a fiscalização da atividade jurisdicional ao vedar que sejam proferidas decisões-surpresa, isto é, provimentos jurisdicionais baseados em alegações e provas que não foram dialeticamente discutidas nos autos. Essa é a ideia de um “contraditório efetivo e equilibrado”,34 o qual, a partir da necessidade de debate de todas GONÇALVES, 2012, p. 106. ANDOLINA, VIGNERA, 1990, p. 157, tradução livre. 33 THEODORO JUNIOR, 2010, p. 70-71. Disponível em: . Acesso em: 17.05.2013. 34 O contraditório efetivo e equilibrado, idealizado por Antônio Celso Camargo Ferraz e citado por Cândido Rangel Dinamarco, busca conjugar a necessidade da garantia formal do contraditório com uma ga31 32

Fernando Gonzaga Jayme & Marcelo Veiga Franco • 131

as questões suscitadas nos autos, impede que o juiz, “em ‘solitária onipotência’, aplique normas ou embase a decisão sobre fatos completamente estranhos à dialética defensiva de uma ou de ambas as partes”.35 Assim sendo, o conceito de contraditório transcende a sua função apenas como ciência ou conhecimento da demanda (informação), para alcançar a sua definição também como prerrogativa de influência no conteúdo do provimento jurisdicional. O contraditório conjuga os direitos à informação e à participação das partes, as quais, em igualdade de oportunidades, possuem a prerrogativa de interferência e de controle na construção do conteúdo da decisão judicial.

2.3 O processo comparticipativo e a motivação decisória como elemento do contraditório: passo final para a construção de um conceito adequado ao Estado Democrático de Direito O contraditório, como ressaltado, garante o paritário diálogo entre as partes, não apenas como um simples dizer ou contradizer sob uma “ótica mecânica de contraposição de teses”,36 mas, também, retrata a garantia de debate em simétricas posições e em igualdade de oportunidades, com a efetiva prerrogativa de influência no conteúdo do provimento dialeticamente construído.37 Contudo, além das dimensões estática e dinâmica, a compreensão do contraditório, para que seja completamente adequada ao Estado Democrático de Direito, requer, além de sua consideração em uma perspectiva comparticipativa do processo, a inserção da motivação decisória como um de seus elementos conceituais. Com efeito, o processo, no Estado Democrático de Direito, deve ser gerido por todos os sujeitos processuais, uma vez que a decisão judicial é o resultado da participação isonômica, dialética e influente das partes na construção do provimento. Nessa perspectiva, a direção do processo é compartilhada igualitariamente entre as partes e o juiz, os quais cooperam com a gestão da atividade processual (“policentrismo processual”). Ao agregar a cooperação processual, objetiva-se “transforrantia efetiva, substancial, de participação. Nessa perspectiva, o equilíbrio traduz a ideia da “igualdade das partes na participação”, enquanto a efetividade significa a “real participação das pessoas no processo” (DINAMARCO, op. cit., p. 95-99). 35 THEODORO JUNIOR, NUNES, 2009. 36 THEODORO JUNIOR, Humberto; NUNES, Dierle. Princípio do contraditório no Direito brasileiro. In: THEODORO JUNIOR, CALMON, NUNES, 2012, p. 284. 37 THEODORO JUNIOR, 2013, p. 64-71.

132 • A TRIDIMENSIONALIDADE DO CONTRADITÓRIO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

mar o processo em uma ‘comunidade de trabalho’”,38 na qual o magistrado assume a posição de interlocutor que dialoga com as partes.39 Assim, o juiz não elabora solitariamente o provimento jurisdicional. A decisão judicial pressupõe a prévia participação dos seus destinatários, mediante uma comunicação dialógica, isonômica e permanente entre o juiz e as partes.40 Nessa trilha, cabe ao juiz desenvolver um “diálogo humano construtivo, em que o julgador não se limite a ouvir e as partes não se limitem a falar sem saber se estão sendo ouvidas”.41 A participação isonômica, coordenada, direta e influente das partes, em cooperação com o magistrado, possibilita que a motivação decisória seja construída por meio de uma comunidade de trabalho entre os sujeitos processuais, o que é denominado pela doutrina anglo-americana de fair hearing. Reconhece-se, assim, o modelo comparticipativo de processo, baseado na cooperação e no policentrismo processual como instrumento essencial para a concretização e realização dos direitos no Estado Democrático de Direito. Nessa senda, o exercício da função jurisdicional legitima-se pela participação cooperativa entre as partes. O trabalho conjunto entre as partes e o magistrado é imprescindível para que as garantias constitucionais da jurisdição sejam concretizadas. Ada Pellegrini Grinover aduz que: “Desse modo, as garantias constitucionais do devido processo legal convertem-se, de garantias exclusivas das partes, em garantias da jurisdição e transformam o procedimento em um processo jurisdicional de estrutura cooperatória, em que a garantia de imparcialidade da jurisdição brota da colaboração entre partes e juiz. A participação dos sujeitos no processo não possibilita apenas a cada qual aumentar as possibilidades de obter uma decisão favorável, mas significa cooperação no exercício da jurisdição. Para cima e para além das intenções egoísticas das partes, a estrutura dialética do processo existe para reverter em benefício da boa qualidade da prestação jurisdicional e da perfeita aderência da sentença à situação de direito material subjacente.”42

38

NUNES, op. cit., p. 212-215. DIDIER JR., 2005. 40 OLIVEIRA, op. cit., p. 113-115. 41 GRECO, 2005, p. 544-546. 42 GRINOVER, 1985, p. 08, destaques no original. 39

Fernando Gonzaga Jayme & Marcelo Veiga Franco • 133

Esse entendimento permite concluir que a motivação decisória é elemento do contraditório. Mais do que informação e participação no processo (dimensão formal), o contraditório, a partir de sua dimensão material, retrata o direito de a parte ter todos os seus argumentos considerados e respondidos pelo julgador, por ocasião da prolação do provimento elaborado a partir de um iter procedimental que possibilitou a participação das partes. Por seu turno, aos magistrados incumbe garantir o contraditório, de modo a assegurar que as alegações e as provas produzidas pelos interessados serão efetivamente examinadas pelo órgão jurisdicional. Em suporte à tese aqui sustentada, menciona-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal, ao acolher o voto do Ministro Gilmar Mendes, proferido no julgamento do Mandado de Segurança n.º 24.268/ MG: “Há muito vem a doutrina constitucional enfatizando que o direito de defesa não se resume a um simples direito de manifestação no processo. Efetivamente, o que o constituinte pretende assegurar – como bem anota Pontes de Miranda – é uma pretensão à tutela jurídica (Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1, 1969. T. V, p. 234). [...]. Não é outra a avaliação do tema no direito constitucional comparado. Apreciando o chamado Anspruch auf rechtliches Gehör (pretensão à tutela jurídica) no direito alemão, assinala o Bundesverfassungsgericht que essa pretensão envolve não só o direito de manifestação e o direito de informação sobre o objeto do processo, mas também o direito do indivíduo de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar (Cf. Decisão da Corte Constitucional alemã – BverfGE 70, 288-293; sobre o assunto, ver, também, PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Grundrechte – Staatsrecht II. Heidelberg, 1988, p. 281; BATTIS, Ulrich; GUSY, Cristoph. Einführung in das Staatsrecht. 3. ed. Heidelberg, 1991, p. 363-364). Daí afirmar-se, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia consagrada no art. 5º, LV, da Constituição, contém os seguintes direitos: 1-direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes; 2- direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; 3- direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para

134 • A TRIDIMENSIONALIDADE DO CONTRADITÓRIO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

contemplar as razões apresentadas (cf. PIEROTH; SCHLINK. Grundrechte – Staatsrecht II. Heidelberg, 1988, p. 281; BATTIS; GUSY. Einführung in das Staatsrecht. Heidelberg, 1991, p. 363364; Ver, também, DÜRIG/ASSMANN. In: MAUNZ-DÜRIG. Grundgesetz-Kommentar. Art. 103, vol. IV, nº 85-99). Sobre o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão julgador (Recht auf Berücksichtigung), que corresponde, obviamente, ao dever do juiz ou da Administração de a eles conferir atenção (Beachtenspflicht), pode-se afirmar que ele envolve não só o dever de tomar conhecimento (Kenntnisnahmepflicht), como também o de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas (Erwägungspflicht) (Cf. DÜRIG/ASSMANN. In: MAUNZ-DÜRIGi. Grundgesetz-Kommentar. Art. 103, vol. IV, nº 97). É da obrigação de considerar as razões apresentadas que deriva o dever de fundamentar as decisões (Decisão da Corte Constitucional – BverfGE 11, 218 (218); Cf. DÜRIG/ASSMANN. In: MAUNZ-DÜRIG. Grundgesetz-Kommentar. Art. 103, vol. IV, nº 97).”43

Nessa ordem de ideias, à noção de contraditório agrega-se o direito de as partes terem analisados e considerados os seus argumentos e provas, licitamente produzidos como meio de influenciar o convencimento do órgão jurisdicional. Por sua vez, o magistrado deve responder às alegações relevantes para o julgamento da causa e provas deduzidas pelas partes, resolvendo o caso concreto unicamente com base nos resultados decorrentes da atividade dos interessados ao provimento. Por esse motivo, não há como concordar com o entendimento jurisprudencial consolidado segundo o qual “não está o juiz obrigado a examinar, um a um, os pretensos fundamentos das partes, nem todas as alegações que produzem; o importante é que indique o fundamento de sua conclusão, que lhe apoiou a convicção no decidir”.44 Ora, se o contraditório outorga às partes o direito de ver as suas alegações e provas analisadas pelo órgão julgador, inexistem razões que possam permitir que a decisão jurisdicional seja (supostamente) proferida com explícito desprezo à colaboração dos seus próprios destinatários. A rigor, o contraditório e a motivação decisória estabelecem um nexo entre o direito de ação e o dever de o Estado prestar a jurisdição. Isso porque o direito de ação, como “direito subjetivo público dirigiBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n.º 24.268. Tribunal Pleno. Relator Ministro Ellen Gracie. Relator p/ acórdão Ministro Gilmar Mendes. Julgamento em 05/02/2004. DJe 17/09/2004. Trechos do voto do Ministro Gilmar Mendes, destaques no original. 44 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp n.º 59.339/PE. Segunda Turma. Relator Ministro Mauro Campbell. Julgamento em 06/03/2012. DJe 09/03/2012. 43

Fernando Gonzaga Jayme & Marcelo Veiga Franco • 135

do frente ao Estado a fim de que este preste a tutela jurisdicional sobre os direitos e interesses em conflito”,45 outorga às partes a prerrogativa de que sejam devidamente respondidas as suas questões levantadas no processo. Paralelamente, a necessidade de fundamentação racional das decisões judiciais (art. 93, IX, da CR/88) impõe que o órgão julgador decida exclusivamente com base nos elementos trazidos aos autos, como expressão do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CR/88). E assim é que, finalmente, constrói-se o conceito de contraditório adequado ao Estado Democrático de Direito, considerando a sua tridimensionalidade. O contraditório é, assim, integrado pelos seguintes elementos: a) direito das partes à ciência, informação e participação no processo em simétrica paridade (dimensão estática ou formal); b) prerrogativa de influência e de controle das partes na construção do conteúdo da decisão judicial (dimensão dinâmica ou material); c) direito de as partes terem analisados e considerados os seus argumentos e provas, em correlação com o dever do órgão jurisdicional de efetivamente apreciar todas as questões deduzidas pelas partes, resolvendo o caso concreto unicamente com base nos resultados decorrentes da atividade dos interessados ao provimento (dimensão comparticipativa, na qual a motivação decisória é elemento do contraditório). Na mesma linha é o ensinamento de Luigi Paolo Comoglio, ao dizer que o contraditório garante uma “tríplice ordem de situações subjetivas processuais”, quais sejam: a) “o direito de receber adequadas e tempestivas informações, sobre o desencadear do juízo e as atividades realizadas, as iniciativas empreendidas e os atos de impulso realizados pela contraparte e pelo juiz, durante o inteiro curso de processo”; b) “o direito de defender-se ativamente, posicionando-se sobre cada questão, de fato ou de direito, que seja relevante para a decisão da controvérsia”; c) “o direito de pretender que o juiz, a sua vez, leve em consideração as suas defesas, as suas alegações e as suas provas, no momento da prolação da decisão”.46 Portanto, deve-se entender o contraditório a partir de sua estru45 46

LLOBREGAT, 2008, p. 18, tradução livre. COMOGLIO, 1988, vol. 8, p. 06.

136 • A TRIDIMENSIONALIDADE DO CONTRADITÓRIO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

tura tridimensional reconhecendo-o como o núcleo do devido processo legal. Enquanto direito fundamental legitimador do provimento jurisdicional, o contraditório representa garantia democrática e cívica do jurisdicionado, exteriorizadora do princípio constitucional da soberania popular.47 O contraditório, como “projeção processual do princípio político da participação democrática”,48 consiste em garantia fundamental que permite o exercício direto, pelas partes, do soberano poder popular,49 dentro de um enfoque amplamente democrático de tutela da igualdade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana. Nessa toada, o contraditório constitui o fundamento de legitimidade da função jurisdicional. Neste aspecto, o contraditório reflete a dignidade das partes na atuação processual,50 bem como é instrumento para a realização da democracia, da cidadania e da soberania popular no processo. O devido processo legal, que tem no princípio do contraditório seu elemento fulcral, assegura a ordem jurídica justa.51 A jurisdição, assim, legitima-se pela garantia de efetiva concreção do contraditório,52 em correlação com a realização dos demais princípios e direitos processuais fundamentais e dos ideais democráticos do Estado de Direito.53

3. A regulamentação do contraditório no código de processo civil No Código de Processo Civil vigente não há dispositivo legal destinado a regulamentar o contraditório. O caráter dialético do processo é extraído, basicamente, das normas acerca da petição inicial (arts. 282 a 296) e da resposta do réu em primeiro grau (contestação, exceções e reconvenção – arts. 297 a 318), bem como das disposições que regem a fase recursal (arts. 496 a 565). Já em relação à motivação decisória, o atual Código de Processo Civil adota, nos artigos 131 e 436, o princípio do livre convencimento motivado do juiz (ou princípio da persuasão racional). O princípio do livre convencimento motivado contrapõe-se aos criBONAVIDES, Paulo. O Poder Judiciário e o parágrafo único do art. 1º da Constituição do Brasil. In: CUNHA, GRAU, 2003, p. 69 e 85-86. 48 GRECO, Leonardo, op. cit., p. 212; CALMON DE PASSOS, J. J. Democracia, participação e processo. In: GRINOVER, DINAMARCO, WATANABE, 1988, p. 95. 49 MARINONI, 1996, p. 18. 50 OLIVEIRA, op. cit., p. 234. 51 WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, WATANABE, 1988, p. 128-135. 52 GRINOVER, op. cit., p. 09-10. 53 MARINONI, 2006. 47

Fernando Gonzaga Jayme & Marcelo Veiga Franco • 137

térios legal e da livre convicção. Pelo critério legal, o juiz seguiria uma hierarquia formal de provas previamente estipulada. Já a teoria da livre convicção possibilitaria ao magistrado decidir o caso de acordo com a sua íntima valoração, por considerá-lo soberano para apreciar as provas, sem vínculo com as alegações das partes. A persuasão racional, a seu turno, significa que “o julgamento deve ser fruto de uma operação lógica armada com base nos elementos de convicção existentes no processo”, isto é, “embora seja livre o exame das provas, não há arbitrariedade, porque a conclusão deve ligar-se logicamente à apreciação jurídica daquilo que restou demonstrado nos autos”.54 O julgamento, porque é motivado, está vinculado aos fatos, alegações das partes, fundamentos jurídicos e provas constantes do processo. O convencimento judicial, portanto, não é arbitrário, pois, diferentemente, é racionalmente construído com fundamento nos elementos argumentativos e probatórios presentes nos autos. Esta é, em apertada síntese, a atual disciplina legal do contraditório e da motivação decisória no Código de Processo Civil em vigor. Pois bem, em relação ao Código de Processo Civil, há mudanças substanciais em relação à legislação revogada. Em primeiro lugar, ressalte-se que Código de Processo Civil acertadamente ressalta, em seu art. 1º, a influência direta da Constituição nas normas processuais. Neste sentido, consagra-se o entendimento de que “a Constituição contém princípios e normas atinentes ao exercício da jurisdição e, portanto, ao desenvolvimento do processo judicial”:55 O mérito do Código, neste caso, é o de explicitar que a compreensão do Processo Civil se faz a partir dos princípios e das regras constitucionais. Por via de consequência, os direitos fundamentais constitutivos da garantia de efetiva proteção judicial, tais como os do juiz natural, do contraditório e da ampla defesa, da produção probatória lícita, da fundamentação decisória e do duplo grau de jurisdição, dentre outros, conformam a base estrutural da processualística e do devido processo legal. No que se refere ao objeto deste trabalho, acentua-se que, felizmente, o Código de Processo Civil evolui significativamente se comparado à legislação codificada revogada. O Código reconhece no contraditório o fundamento de legitimidade da atividade jurisdicional e um dos elementos constitutivos do devido processo legal, disciplinando-o em sua tridimensionalidade. Desta maneira, pode-se afirmar que, em relação 54 55

THEODORO JUNIOR, 2005. v. I, p. 459-460. ANDOLINA, VIGNERA, 1997, p. 04, tradução livre.

138 • A TRIDIMENSIONALIDADE DO CONTRADITÓRIO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

ao princípio do contraditório, os ideais do Estado Democrático de Direito estão satisfeitos. Nessa ordem de ideias, o Código de Processo Civil, em seu capítulo I (“Das normas fundamentais do processo civil”), assegura expressamente a paridade de tratamento dispensada às partes em relação ao exercício dos direitos, das faculdades e dos deveres processuais, bem como dos meios de defesa. Com isso, preservam-se as bases da teoria do processo como procedimento realizado em simétrico contraditório, conforme concebida por Fazzalari e Aroldo Plínio Gonçalves. Ao impor que seja dispensado tratamento isonômico às partes o processo civil compromete-se como a realização democrática do direito. A garantia às partes de simetria de chances e de iguais oportunidades de participação no processo condiz com os princípios constitucionais da igualdade e da liberdade. A estruturação do processo com base na paridade de tratamento é essencial para que se assegure o efetivo contraditório mencionado no art. 7º do Código de Processo Civil. Nessa perspectiva, a paridade de tratamento assegurada às partes, ao longo de todo o processo, confirma a dimensão formal do contraditório. Os direitos ao conhecimento e à participação no processo, necessariamente, são concretizados de forma isonômica entre as partes, cabendo ao juiz, na condição de terceiro imparcial e estranho à lide, garantir o equilíbrio na utilização dos meios de defesa, conforme reitera o art. 139, inc. I. Destarte, a paridade de tratamento consiste em um direito fundamental das partes, cuja realização está a cargo do juiz. Em última instância, a simétrica participação das partes garante que o provimento decorrerá de uma atuação efetiva das partes não apenas ampla, mas, primordialmente, livre e igual. Ademais, o Código de Processo Civil é merecedor de aplausos ao determinar a aplicação do contraditório inclusive quanto às questões apreciáveis ex officio. Isso quer dizer que o juiz não pode surpreender as partes, mesmo em face de matéria de ordem pública cognoscível de ofício. Assim, cumpre-lhe ouvir previamente as partes antes de decidir. Nesse caso, a oitiva prévia das partes tem o condão de influir materialmente no convencimento motivado do julgador. Não se trata de mera garantia formal de participação dos destinatários do provimento; diferentemente, ao consagrar o princípio da não surpresa, impede-se sejam proferidas decisões judiciais com base em fatos e fundamentos que não foram submetidos ao crivo do contraditório. Confira-se, a propósito, a redação dos arts. 9º e 10 do Código de Processo Civil.

Fernando Gonzaga Jayme & Marcelo Veiga Franco • 139

Todavia, talvez o maior avanço consagrado pelo Código de Processo Civil diz respeito à garantia expressa das dimensões material e comparticipativa do contraditório. Nesse ponto, a legislação processual civil evolui de forma substancial rumo à previsão de um processo civil que seja realmente eficaz na realização do Estado Democrático de Direito. A rigor, o novo Código de Processo Civil não poderia correr o risco de já nascer ultrapassado no que se refere ao desenvolvimento do conceito de contraditório. Nessa linha, as recentes alterações implementadas no Código representam a concretização de conquistas históricas da sociedade, que vão além de uma visão anacrônica da democracia, da cidadania e da soberania popular. As normas codificadas, neste passo, são verdadeiramente consentâneas à garantia de real influência das partes na construção do conteúdo das decisões judiciais. O convencimento judicial é circunstanciado pela eficaz atuação das partes na dedução de argumentos e provas. Com isso, a dimensão dinâmica do contraditório é concebida como garantia de efetiva influência e de controle das partes na elaboração do conteúdo da decisão judicial. Paralelamente, a motivação decisória é inserida como elemento estrutural do contraditório, a partir de uma perspectiva comparticipativa de processo que considere as partes como reais partícipes da construção do provimento. O juiz, a seu turno, tem o dever de prestar a jurisdição de forma a responder inteiramente às provocações suscitadas pelas partes através dos argumentos e provas constantes nos autos. Nesse sentido, o §1º do art. 499 do Código de Processo Civil não deixa dúvidas acerca do reconhecimento do dever de fundamentação do juiz, de forma adequada e congruente, como inerente ao contraditório. Assim, além do direito de participar e de ser informado, o Código de Processo Civil, ao disciplinar a motivação decisória, concebe o contraditório na sua mais moderna concepção, consagrando sua dimensão tridimensional Portanto, o Código de Processo Civil instrumentaliza a cidadania para coibir a arbitrariedade judicial ao estabelecer a estrita vinculação do juiz às alegações e provas deduzidas no processo, por meio de uma atividade dialética com as partes. A atuação do magistrado encontra limites na própria impossibilidade de exercer solitariamente a função jurisdicional, uma vez que o provimento é o resultado do convencimento racional e fundamentadamente construído unicamente com base nos argumentos e provas aventados pelas partes em simétrico contraditório. O §1º do art. 499 do Código de Processo Civil, logo, ratifica a

140 • A TRIDIMENSIONALIDADE DO CONTRADITÓRIO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

necessidade de se inserir a motivação decisória no conceito de contraditório. Ora, não pode o juiz, para fundamentar o provimento, indicar ou reproduzir atos normativos (inciso I), empregar genericamente conceitos jurídicos indeterminados ou precedentes jurisprudenciais (incisos II e V), invocar motivos decisórios alheios à causa (inciso III), deixar de enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo (inciso IV) ou impossibilitar a alegação do distinguishing ou do overruling (inciso VI). Ao revés, a fundamentação das decisões judiciais requer o enfrentamento específico das alegações e provas suscitadas nos autos, com a respectiva identificação dos motivos que levam ao convencimento judicial de acordo com as nuances daquele caso concreto. A abstração e a generalidade não podem mais fazer parte de uma atuação jurisdicional desatrelada do decisionismo judicial. Para tanto, cabe às partes agir em respeito à lealdade e à boa-fé processuais, em regime de cooperação com o órgão julgador. As ideais do policentrismo processual e do processo comparticipativo demandam que os destinatários do provimento atuem de forma a contribuir positivamente para a construção da decisão judicial. Neste sentido encontram-se assim redigidos os artigos 5º e 8º: Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé. Art. 8º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, com efetividade e em tempo razoável, a justa solução do mérito.

Nessa trilha, os §§ 2º e 3º do art. 364 do Código caminham na direção da cooperação processual, ao permitir que as partes e o juiz, em conjunto, delimitem as questões de fato e de direito no momento do saneamento processual, o que tudo indica, o art. 364 do Projeto adota uma visão moderna que prima pela integração consensual das partes e do juiz. Abre-se a possibilidade de transportar, para o Brasil, avanços da legislação processual de outros países, como no caso da França, onde a ideia da contratualização do processo permite a celebração de ajustes, entre as partes e o juiz, a respeito da forma de condução do processo e do momento da prática de determinados atos processuais. Com isso, fica abandonado um esquema vertical e impositivo no relacionamento entre partes e juiz, em prol de uma postura horizontal e consensual entre os sujeitos processuais.56 56

ANDRADE, Érico. As novas perspectivas do gerenciamento e da ‘contratualização’ do processo.

Fernando Gonzaga Jayme & Marcelo Veiga Franco • 141

4. Considerações finais Evidente que o Código de Processo Civil adotou uma concepção do princípio contraditório harmônica com os fundamentos de legitimidade do Estado Democrático de Direito. Ultrapassando o caráter meramente formal – como direito ao conhecimento da demanda e à participação isonômica no processo –, o contraditório, em uma democracia, adquire um viés dinâmico e comparticipativo, o qual permite que as partes cooperem com o juiz na gestão processual. Afinal, o contraditório consubstancia, no Estado Democrático de Direito, um direito fundamental de índole constitucional, que assegura a legitimidade do exercício da função jurisdicional. Como forma de expressão da democracia, da cidadania e da soberania popular, o contraditório assegura a participação direta, isonômica e influente das partes na construção da decisão judicial, além de fixar que a fundamentação decisória deve ser racionalmente construída com base, unicamente, nos argumentos e provas constantes do processo. Nesse contexto, parece bem-vindo o aperfeiçoamento do atual Código de Processo Civil no que se refere à disciplina legal do contraditório e da motivação decisória. A ausência de qualquer regulamentação na codificação revogada e sua longevidade requereram que o Código de Processo Civil absorvesse os progressos obtidos pela evolução contemporânea dos estudos acerca do Direito Processual Civil em um gigantesco salto qualitativo. Neste passo, o Código de Processo Civil, no que diz respeito ao contraditório, satisfaz os ideais democráticos. A previsão da paridade de tratamento entre as partes, da necessidade de observância do contraditório prévio quanto às questões apreciáveis de ofício, mediante a consagração do princípio da não surpresa, a garantia de real influência das partes na construção do conteúdo da decisão judicial, e a imprescindibilidade de fundamentação decisória específica e adequada para o caso concreto, além do princípio da cooperação e da lealdade processuais, da atuação consensual entre as partes e o juiz, do dever do magistrado de responder a todas as alegações e provas suscitadas nos autos, dentre outros fatores, constituem substanciais e inegáveis avanços. Enfim, a regulamentação do princípio do contraditório representa uma expressiva conquista do Estado Democrático de Direito. Para tanto, a notável evolução na regulamentação do contraditório e da motiIn: JAYME, FARIA, LAUAR, 2011, p. 158-162.

142 • A TRIDIMENSIONALIDADE DO CONTRADITÓRIO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

vação decisória é alentadora quanto aos futuros rumos do processo civil brasileiro.

Referências bibliográficas ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modelo costituzionale del processo civile italiano. Torino: Giappichelli Editore, 1990. __________. I fondamenti constituzionali della giustizia civile: il modello constituzionale del processo civile italiano. 2. ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 1997. ANDRADE, Érico. As novas perspectivas do gerenciamento e da ‘contratualização’ do processo. In: JAYME, Fernando Gonzaga; FARIA, Juliana Cordeiro de; LAUAR, Maira Terra (Coord.). Processo civil – novas tendências: homenagem ao Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Os elementos objetivos da demanda examinados à luz do contraditório. In: TUCCI, José Rogério Cruz; BEDAQUE, José Roberto dos Santos (Coord.). Causa de pedir e pedido no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. BONAVIDES, Paulo. O Poder Judiciário e o parágrafo único do art. 1º da Constituição do Brasil. In: CUNHA, Sérgio Sérvulo da; GRAU, Eros Roberto (Org.). Estudos de Direito Constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2003. CALMON DE PASSOS, J. J. Democracia, participação e processo. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coord.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. CAPPELLETTI, Mauro. Appunti in tema di contraddittorio. Studi in memoria di Salvatore Satta, Padova: Cedam, 1982. v. 1. __________. Juízes legisladores?. Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993.

Fernando Gonzaga Jayme & Marcelo Veiga Franco • 143

CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil. Tradução de Adrián Sotero de Witt Batista. São Paulo: Classic Book, 2000. v. 1. COMOGLIO, Luigi Paolo. Voce: contraddittorio (principio del). In: Enciclopedia giuridica. Roma, Istituto della Enciclopedia Italiana, 1988, v. 8. DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. DIDIER JR., Fredie. O princípio da cooperação: uma apresentação. Revista de processo, São Paulo, ano 30, n. 127, set. 2005. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. FAZZALARI, Elio. Diffusione del processo e compiti della dottrina. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1958. __________. Instituições de Direito Processual. Tradução de Elaine Nassif. Bookseller: Campinas, 2006. GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992. GRECO, Leonardo. Estudos de Direito Processual. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2005. GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo constitucional em marcha: contraditório e ampla defesa em cem Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. São Paulo: Max Limonad, 1985. LLOBREGAT, José Garberí. El derecho a la tutela judicial efectiva en la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Barcelona: Bosch, 2008. LLORENTE, Francisco Rubio. Derechos fundamentales y principios constitucionales: doctrina jurisprudencial. Barcelona: Ariel, 1995. MARINONI, Luiz Guilherme. Da teoria da relação jurídica processual ao processo civil do Estado constitucional. Revista dos Tribunais, São

144 • A TRIDIMENSIONALIDADE DO CONTRADITÓRIO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

Paulo, vol. 852, ano 95, out. 2006. __________. Questões do novo Direito Processual Civil brasileiro. Curitiba: Juruá, 2000. __________. Novas linhas do processo civil. 2. ed., São Paulo: Malheiros, 1996. NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático: uma análise crítica das reformas processuais. 1. ed., Curitiba: Juruá, 2011. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2003. PICARDI, Nicola. Il principio del contraddittorio. Rivista di Diritto Processuale. Ano 53, Segunda Série nº 3, jul-set. de 1998, p. 673-681. THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 43. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2005. v. I. __________. Processo justo e contraditório dinâmico. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, jan./jun. 2.010. Disponível em: . Acesso em: 17 mai. 2013. THEODORO JUNIOR, Humberto; NUNES, Dierle. Princípio do contraditório no Direito brasileiro. In: THEODORO JUNIOR, Humberto; CALMON, Petrônio; NUNES, Dierle (Coord.). Processo e Constituição: os dilemas do processo constitucional e dos princípios processuais constitucionais. Rio de Janeiro: GZ, 2012. __________. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de aproveitamento da atividade processual. Revista de Processo, n. 168, ano 34, fev. 2009. WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE,

Fernando Gonzaga Jayme & Marcelo Veiga Franco • 145

Kazuo (Coord.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.

O (PSEUDO) ENQUADRAMENTO DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS COMO ESPÉCIE DE PROCESSO COLETIVO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau1 Thaís Costa Teixeira Viana2 Resumo: Nesta reflexão pretende-se verificar se haveria argumentos consistentes e comparativos, suficientes à consideração da técnica processual do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas como instrumento de tutela coletiva de direitos ao lado das tradicionais ações coletivas. Havendo distinção quanto aos legitimados ativos (ainda que a natureza da legitimação seja definida por lei em ambas as situações), além dos consequentes efeitos que cada um dos instrumentos poderá produzir, pareceria precipitado considerar um instituto como sucedâneo do outro. Palavras-chave: Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Ações Coletivas. Ações-Teste. Microssistema. Processo Coletivo. Abstract: This reflection aims to verify whether there would be consistent and comparative arguments, which could be sufficient to consider the technique of “Repetitive Claims Resolution Incident” as an instrument to the collective protection of rights, alongside the traditional class actions. Since there are differences between the legitimated to take these measures (even though the legitimacy’s nature is defined by law in both cases), as well as different effects for each one of such instruments, it could be precipitated to consider one institute as a substitute for the other. Bacharel em Pedagogia, com habilitação em supervisão escolar e orientação educacional (Pontifícia Universidade Católica de MG (1983). Bacharel em Direito (Faculdades Integradas de Direito Cândido Mendes Ipanema/RJ- 1990). Mestre em Direito Constitucional pela UFMG (1994) e Doutora em Direito Constitucional pela UFMG (2003). Professora Associada de Direito Processual Civil na Graduação (a partir de 1996) e Direito Processual Coletivo na Pós-Graduação (mestrado e doutorado) na Faculdade de Direito da UFMG (desde 2006). Tem pesquisado sobre Processo Coletivo desde 1997. 2 Mestranda e Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Advogada. 1

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau & Thaís Costa Teixeira Viana • 147

Keywords: Repetitive Claims Resolution Incident. Class Actions. Test Claims. Microsystem. Collective Process. Sumário: Introdução. 1. IRDR: A Nova Técnica do CPC/15 à Litigância de Massa. 1.1. As Origens do Instituto no Direito estrangeiro e sua Interconexão com a Processualística Coletiva Brasileira. 2. A Tutela às Coletividades pela via de Ações Coletivas. 3. A Tutela Coletivizada de Conflitos de Massa no CPC/15: Nova Técnica ou Sistema Paralelo? 4. As Ações Coletivas vs. A Técnica de Julgamento Coletivizado do IRDR. 4.1. Os Contrastes entre a Legitimação Ativa às Ações Coletivas e ao IRDR no Direito Brasileiro. 4.2. A Extensão da Irradiação dos Efeitos da Tese Jurídica firmada no IRDR frente às Ações Coletivas. 5. Conclusão. Bibliografia.

Introdução A edição do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15) foi fruto de prolongado trâmite legislativo, o qual se deu sob a luz de observações e estudos minuciosos de um conjunto de consagrados juristas, que, a partir dos resultados das pesquisas por si desenvolvidas, dedicaram-se ao mister de contribuir à redação das novas normas processuais destinadas, sobretudo, a revigorar a processualística civil brasileira, suprindo lacunas que já passavam a ser encontradas na práxis forense durante os últimos anos de vigência do Código de Processo Civil de 1973 (CPC/73). Neste contexto, foram inseridos no ordenamento processual novos institutos e técnicas, os quais não encontram correspondência na sistemática do Código revogado. Dentre estes, podem-se encontrar alguns destinados ao tratamento coletivizado de demandas por ocasião de seu julgamento, o que reflete a nítida preocupação do legislador em conter a chamada “litigiosidade de massa” e garantir decisões uniformes às questões que afetam coletividades. Entretanto, faz-se mister reconhecer que ambos estes escopos há muito já se viam garantidos pelo ordenamento, integrando a essência da sistemática das normas do microssistema de tutela jurisdicional coletiva, composto pela comunhão entre o Código de Defesa do Consumidor (CDC/90), a Lei de Ação Civil Pública (LACP/85), dentre outros. Ocorre que o estudo dos instrumentos que visam à tutela dos direitos coletivos em sentido lato precisa ser tratado com atenção dentro de qualquer ordenamento jurídico. No caso brasileiro, que, neste campo, vem sofrendo a influência tanto do Direito Europeu, alicerçado no Civil Law, quanto do Norte-Americano, marcado pela tradição do Common

148 • O (pseudo) enquadramento do incidente de resolução de demandas repetitivas...

Law, esse estudo torna-se por vezes espinhoso. Especialmente após a mencionada inserção, no CPC/15, de novas técnicas processuais aparentemente destinadas a alcançarem finalidade semelhante à das ações coletivas. Em essência, com fulcro nas premissas expostas, a reflexão que se pretende desenvolver, por meio deste ensaio, consiste na análise do questionamento acerca de ter o CPC/15 culminado por criar, ou não, sistema paralelo de tutela coletiva de direitos, para além do microssistema já existente no ordenamento jurídico brasileiro. Sem o intuito de se esgotarem todos os pontos passíveis de análise sistemática e comparativa entre os institutos regulados pelo CPC/15 e aqueles já regulamentados pelo microssistema de tutela dos direitos coletivos em sentido lato, que vigora no Brasil, elegeu-se para a análise proposta neste trabalho, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) como foco, perpassando-se, para tanto, a análise comparativa da legitimação ativa prevista para este incidente e para as ações coletivas, bem como a avaliação da extensão dos efeitos das decisões proferidas em cada um dos institutos apontados. Importante ressaltar que não se propõe a discutir, no bojo deste singelo artigo, o fato de se poder ou não nomear genericamente como “instrumento de tutela da coletividade” – ao lado das ações coletivas, que compõem o microssistema já regulamentado em leis e cuja fundamentação repousa nos princípios processuais constitucionais específicos ao tema – também a técnica processual do IRDR, impressa no CPC/15. Pelo contrário, o que se busca compreender é se estaríamos frente a dois sistemas que, apesar de diferenciados, se voltariam à mesma finalidade. Pretende-se, enfim, verificar se o IRDR constituiria propriamente espécie do gênero dos “processos coletivos”, ao lado das ações coletivas (dentre as quais figuram a ação civil pública, a ação popular e a ação civil coletiva). Ora, tal ponderação reveste-se de singular relevância, na medida em que poderia culminar por afastar o princípio processual constitucional do devido processo legal e, por consequência, o da segurança jurídica em nome da tutela da coletividade, caso se compreenda haver liberalidade da lei para que os interessados discricionariamente escolham como ‘estratégia processual’ ou ‘técnica mais adequada’, dentre os dois sistemas, aquele que mais lhe aprouver.

1. IRDR: a nova técnica do CPC/15 à litigância de massa

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau & Thaís Costa Teixeira Viana • 149

Com o claro intuito de promover solução adequada à intensa litigiosidade de massa que congestiona a celeridade da prestação jurisdicional no Brasil, marcada por múltiplas demandas individuais repetitivas, versando sobre idênticas questões jurídicas, o grupo de juristas responsável pela edição das normas do CPC/15 procedeu à regulamentação de mecanismos de homogeneização de decisões, voltados a conferir maior eficiência e celeridade aos trâmites processuais, além de proporcionar maior segurança jurídica aos litigantes. Neste sentido, ao lado dos já existentes instrumentos de uniformização jurisprudencial, como a repercussão geral e o método de julgamento dos recursos repetitivos perante Tribunais Superiores, foi delineado o IRDR, como técnica voltada ao julgamento coletivizado de demandas. Foi, assim, o IRDR criado como solução aos casos de evidente repetição de demandas acerca de idêntica questão de direito, as quais, submetidas a diferentes juízos, sofreriam o risco de se verem decididas de forma dissonante, podendo gerar, assim, conflitos teóricos de julgados – estes evidentemente indesejados pelo ordenamento. Com fulcro nessa premissa, apontou Victor Barbosa Dutra (2016, p.212) como sendo três os requisitos ao cabimento da nova técnica processual de julgamento, em interpretação ao art.976 do CPC/15: O seu cabimento, portanto, é jungido ao preenchimento de alguns pressupostos, a saber: (i) a efetiva repetição de processos; (ii) que contenham controvérsia sobre a mesma questão de direito e que (iii) representem risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. A doutrina esclarece, a teor do Enunciado 87 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, que a instauração do incidente não pressupõe a existência de grande quantidade de processos, mas preponderantemente o risco de quebra da isonomia e de ofensa à segurança jurídica.

Preenchidos estes requisitos, a tramitação do IRDR voltar-se-á à prolação, pelo Tribunal, de decisão acerca da questão apenas de direito, formando-se tese jurídica, a ser aplicada aos processos individuais ou coletivos, em trâmite perante a área de jurisdição do Tribunal e que versem sobre idêntica questão, bem como aos casos futuros que se enquadrem nestas mesmas condições (art.985, CPC/15). Quanto a este ponto, cumpre destacar que não constitui o IRDR técnica destinada à uniformização de julgamentos quanto à apreciação de matéria fática, ao contrário do que se observa em ordenamentos ju-

150 • O (pseudo) enquadramento do incidente de resolução de demandas repetitivas...

rídicos estrangeiros, como se verá adiante. Pelo contrário, a técnica volta-se à exclusiva apreciação de fundamentos de direito à fixação de tese jurídica – esta sim devendo ser uniformizada, nos limites territoriais da jurisdição do Tribunal apreciador do IRDR. Neste ponto, vale destacar, inclusive, as palavras de José Miguel Garcia MEDINA e Janaina Marchi Medina (2016, p.247), no sentido de que é possível “estar-se diante de demandas diferentes (não repetitivas), mas nelas se repetir a mesma questão de direito (esta sim, repetitiva)”. Seja essa questão repetitiva de direito material ou processual, e preenchidos os requisitos mencionados, poderá o Incidente ser suscitado perante o órgão de uniformização jurisprudencial do Tribunal competente, por um dos legitimados do art.977 do CPC/15, de ofício ou por petição, conforme o caso. Uma vez admitido, será determinada a suspensão dos processos em trâmite e que versem sobre a questão de direito repetitiva (art.982, I, CPC/15), pelo prazo máximo de um ano, cessando a medida após esse período, em regra, ainda que não tenha sido julgado o IRDR. Por sua vez, na medida em que se destina à fixação de tese jurídica acerca de questão repetitiva de direito, o julgamento do IRDR deverá contemplar todos os fundamentos favoráveis e desfavoráveis que conduziram à sua formação, sendo a ele oponíveis os recursos especial e extraordinário (desde que preenchidos os pressupostos legais para tanto) com efeito suspensivo (art.987, CPC/15). Nesses casos, contudo, a tese a ser decidida em grau recursal pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou Supremo Tribunal Federal (STF) será aplicável a todo o território nacional, sob pena de cabimento de Reclamação. O propósito do IRDR, portanto, se alcança com a fixação, por Tribunal, de tese jurídica sobre questão de direito material ou processual repetitiva, a qual terá abrangência em todo o Estado ou região, ou ainda, em todo o território nacional, conforme o caso.

1.1. As origens do instituto no Direito estrangeiro e sua interconexão com a processualística coletiva brasileira As origens do IRDR remontam a uma tendência verificada de forma relativamente recente em ordenamentos jurídicos estrangeiros – sobretudo, europeus –, no sentido de se desenvolverem instrumentos “que fossem capazes de conferir tratamento adequado a processos repetitivos, mas sem a formação de uma classe, sem a representação por

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau & Thaís Costa Teixeira Viana • 151

substitutos processuais [...]” (RODRIGUES, 2011, p.907). Trata-se, portanto, de instrumentos individuais de tutela, cujos efeitos estariam aptos a repercutir em uma pluralidade de pessoas: As ações-teste consistem, em suma, em instrumento de direito processual individual, mas que têm por escopo justamente a pacificação de questões controvertidas que possuam a potencialidade de produzir, ou mesmo já estejam produzindo grave insegurança jurídica, por afetarem a situação jurídica de um expressivo número de pessoas. [...] os membros do grupo são tratados como verdadeiras partes, e não como “não-partes substituídas”, tal como ocorre nas ações representativas. (RODRIGUES, 2011, p.907)

Com efeito, em determinados ordenamentos, encontrou-se certa resistência à incorporação do modelo de ações coletivas inspirado nas class actions, pelo que, diante da propagação de demandas individuais fundadas em matérias repetitivas, foi necessário o desenvolvimento de mecanismos ou técnicas processuais que, apesar de essencialmente individuais, fossem aptos a conferir homogeneidade e celeridade às decisões no âmbito dessas ações repetitivas. O procedimento do Musterverfharen, introduzido na Alemanha em meados de 2005, consiste em uma das principais manifestações dessa tendência, sendo que a análise de suas características permite identificar que guarda inúmeros elementos de similitude com a técnica do IRDR. Infere-se, portanto, que o Incidente recém-introduzido no ordenamento jurídico brasileiro busca suas inspirações na experiência alemã. Com efeito, a introdução do modelo das ações-teste na Alemanha, por intermédio do Musterverfharen, se apresentou como um esforço legislativo direcionado a solucionar contexto fático específico e pontual que teria culminado com o aumento rápido e expressivo do volume de demandas similares, em face de um determinado grupo de litigantes, naquele país. Nos anos que precederam 2005, começaram a proliferar, seja perante as cortes norte-americanas, seja perante as alemãs, ações propostas em face de um mesmo grupo de empresas alemãs, discutindo-se a responsabilização por suposta veiculação de informações pouco fidedignas no mercado de capitais. Milhares de ações foram propostas, por exemplo, perante a corte de Frankfurt, causando um rápido e imediato sobrepeso no volume de demandas a serem julgadas e, consequentemente, a

152 • O (pseudo) enquadramento do incidente de resolução de demandas repetitivas...

imediata perda de celeridade e eficiência no julgamento das ações3. O desafio posto, tão logo, compreenderia a regulamentação de mecanismo processual que permitisse a célere prestação jurisdicional, com homogeneidade aos litigantes de demandas repetitivas, tanto no que concerne a questões de fato, quanto a questões de direito. Em resposta, desenvolveu o legislador o instituto do Musterverfharen, o qual poderia ser suscitado por qualquer parte, sendo noticiado, em seguida, a todos os outros potenciais demandantes, para que estes pudessem ao procedimento aderir. Sobre o procedimento das ações-teste alemãs, já se lecionou: The master proceedings can be initiated upon the application of any party. This application must seek a decision regarding questions of necessary facts or law […]. If the court of first instance admits the application for initiation of a master proceeding, the application and the lawsuit are published in a specific public register which is accessible on the internet. The public registration gives notice of the pending proceeding to all other potential plaintiffs who may want to joy in the master proceeding. If the application for the initiation of master proceedings is joint by at least nine additional plaintiffs within four months, the court of first instance must give a decision which designates the common questions of fact or law which are subject of the following master proceedings. While the master proceeding is pending, all other disputes depending on the questions in the master proceedings are stayed. (GRINOVER et al, 2011, p.143)4

Após todos os aludidos trâmites, a decisão, acerca da matéria fática ou de direito, proferida pela “Corte de Apelação” (instância de segundo grau, no ordenamento jurídico alemão), torna-se vinculante aos demandantes de todas as ações que tenham sido sobrestadas. No entanto, cada uma dessas ações será decidida separadamente, pelos juízos de primeiro grau, com base nas premissas fixadas no bojo da açãoCf. RODRIGUES, 2011. pp.908-909; GRINOVER et al, 2011, pp.142-143. “O processo mestre pode ser iniciado a partir do requerimento de qualquer das partes. Esse requerimento deve buscar uma decisão acerca de questões necessárias de fato ou de direito [...]. Se a corte de primeira instância admitir o requerimento para a abertura de um processo mestre, o requerimento e a ação serão publicados em um específico registro público acessível na internet. O registro público noticia a pendência do procedimento a todos os outros potenciais demandantes que possam desejar aderir ao processo mestre. Se o requerimento para abertura do processo mestre receber a adesão de, no mínimo, nove demandantes adicionais, dentro de quatro meses, a corte de primeira instância precisará decidir designando as questões de fato ou de direito comuns que serão objeto do subsequente processo mestre. Enquanto tal processo mestre estiver pendente, todas as outras disputas dependentes das questões discutidas neste serão sobrestadas.” (GRINOVER et al, 2011, p.143 – tradução livre)

3 4

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau & Thaís Costa Teixeira Viana • 153

teste, cabendo ainda proferir julgamento sobre as questões não comuns entre as ações. Em suma, como bem ponderado por Ada Pellegrini Grinover, em seu Relatório Geral sobre “Os Processos Coletivos nos Países de Civil Law”, distanciar-se-iam as ações-teste alemãs da sistemática das ações coletivas (mais especificamente, das Class Actions norte-americanas), pelo fato de não trabalharem com a definição abstrata de um “grupo” a ser tutelado, nem com o método de incumbir a um sujeito isoladamente a resolução da reinvindicação para todos os demais interessados (GRINOVER et al, 2011, p.144). Observa-se, assim, a partir do procedimento narrado, que a sistemática das ações-teste, na Alemanha, foi criada com o escopo de solucionar contexto de litigiosidade de massa exacerbada que vinha sendo constatado no âmbito de ações versando sobre mercado de capitais. Em outras palavras, seu espectro de atuação se revelou, desde a sua origem, muito restrito. Ademais, percebe-se que o legislador impôs também restrição temporal à vigência do instituto que, regulamentado em 2005, teria inicialmente vigência até 2010, tendo sido, subsequentemente, objeto de sucessivas prorrogações: inicialmente, até 2012, e, por fim, até novembro de 20205. De toda forma, apesar da estreita aplicabilidade da Musterverfharen no ordenamento jurídico alemão, verifica-se a irradiação da utilização do modelo das ações-teste, inclusive como via alternativa à adoção de ações coletivas para fins de obtenção de julgamentos dotados de homogeneidade, em outros sistemas jurídicos estrangeiros. Exemplos disso são as Group Litigation Orders do direito inglês, que muito se assemelham à Musterverfharen alemã, apesar de a ela precederem cronologicamente, sendo “forma específica de reunião das partes (sem a utilização da ficção jurídica da representação processual), por meio de listagem de ações com registro em grupo, a fim de racionalizar o julgamento de processos que versem sobre as mesmas questões de fato ou de direito” (RODRIGUES, 2011, p.928). Vale ressaltar, neste ponto, que ambos os modelos estrangeiros ora mencionados trabalham com o método da cisão da cognição judicial, criando-se uma esfera de julgamento coletivizado, na qual são decididas questões fáticas e jurídicas comuns às demandas repetitivas, e uma esfera de julgamento individual, na qual serão decididas também as questões particulares a cada um dos processos individuais (RODRIGUES, 5

Cf. MENDES; TEMER, 2016, p.584.

154 • O (pseudo) enquadramento do incidente de resolução de demandas repetitivas...

2011, p.932).

2. A tutela às coletividades pela via de ações coletivas A partir de 11 de setembro de 1990, com a promulgação do CDC/90, em cujo bojo se encontram normas inovadoras e específicas para regulamentação do processo coletivo (com destaque aos arts.81 a 104), e por intermédio do qual se interligaram indissociavelmente as normas processuais de tutela de direitos coletivos consumeristas às regulações da LACP/85 e da Lei da Ação Popular (LAP/65), sob a luz da Constituição da República (CRFB/88), concretizou-se, no direito brasileiro, o denominado microssistema processual de tutela aos direitos coletivos por natureza (difusos e coletivos em sentido estrito) e aos direitos individuais coletivizados (individuais homogêneos). Assim sendo, consolidou-se a interpretação de que, na tutela de direitos coletivos em sentido amplo, “independente do procedimento (ação civil pública, ação popular, mandado de segurança coletivo, entre outros), aplicam-se os art. 81 a 104 do CDC, no que for cabível. Não é por outra razão que o CDC pode ser visto, atualmente, como agente unificador e harmonizador do microssistema descrito” (CERQUEIRA, 2010, p.174-175). Este entrelace dos diplomas legais supramencionados se torna ainda mais evidente e inafastável pelo fato de que as próprias espécies de direitos coletivos em sentido lato encontram-se delineadas apenas pelo CDC, em seu art.81, parágrafo único, incisos I, II, e III, aplicando-se a toda a sistemática processual coletiva. Entre tais espécies encontram-se, primeiramente, os direitos difusos e os coletivos em sentido estrito. Os direitos difusos caracterizam-se pelo fato de serem incindíveis ou indivisíveis quanto ao seu objeto, possuindo titulares que não são passíveis de serem determinados ou determináveis, os quais se encontram ligados entre si por meras circunstâncias de fato, ainda que não muito precisas. Similarmente, os direitos coletivos em sentido estrito são marcados pela indivisibilidade, sendo, portanto, incindíveis quanto ao seu objeto. Por outro lado, seus titulares compreendem uma categoria determinada, ou pelo menos determinável de pessoas, dizendo respeito a um grupo, classe ou categoria de indivíduos ligados por uma mesma relação jurídica básica (relação jurídica idêntica) e não apenas por meras circunstâncias fáticas. Observa-se que o caráter da indivisibilidade dos

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau & Thaís Costa Teixeira Viana • 155

direitos acima identificados é o que confere a ambos a natureza coletiva, ainda que a união dos interessados se dê por motivos diversos. Ainda dentre o rol de interesses elencados pelo parágrafo único do art.81 do CDC/90, encontram-se também os direitos individuais homogêneos, passíveis de serem tutelados coletivamente, por escolha do legislador, apesar de guardarem natureza individual. Estes últimos diferem dos dois anteriores, que são marcados pela indivisibilidade, por se caracterizarem pela divisibilidade do seu objeto. Seus titulares, individualmente identificáveis, encontram-se unidos por circunstâncias fáticas, o que torna possível a defesa de tais direitos por demanda coletiva. Entretanto, tal possibilidade não exclui ou retira de cada indivíduo afetado, seu direito de promover individualmente a defesa de seu direito subjetivo lesado ou ameaçado de lesão. Tratados como se coletivos fossem, haja vista a origem comum que caracteriza a homogeneidade que vincula os indivíduos do grupo, os direitos individuais homogêneos poderão, assim, se submeter ao microssistema processual de tutela aos direitos coletivos lato sensu. Em alusão à linguagem de Kazuo Watanabe (1992, p.60 e 62), ao contrário de se atomizarem as demandas (situação instalada caso cada interessado ajuíze a sua ação individual), a tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos, por meio de ação coletiva, proporciona a molecularização na resolução dos litígios. Neste sentido, alguns autores identificam os direitos individuais homogêneos enquanto ‘direitos de massa’, falando-se, assim, em ‘tutela coletiva de direitos’ (ZAVASCKI, 2013), em distinção à tutela de direitos coletivos. Na sistemática da tutela coletiva a direitos individuais homogêneos, em especial, não apenas se aplica o microssistema à fase de conhecimento, como também à fase de execução, a qual disciplina às minúcias. Com efeito, no âmbito do microssistema de tutela aos direitos coletivos, encontram-se as normas próprias da execução coletiva insertas especialmente no CDC/90 (arts.97 a 100), em capítulo destinado à regulamentação da proteção processual aos direitos individuais homogêneos. Sua localização na Lei Consumerista, contudo, não implica na exclusividade de sua aplicação às demandas relativas ao direito do consumidor ou que versem sobre direitos individuais homogêneos. Pelo contrário, aplicam-se integralmente a todos os demais direitos coletivos e, de forma direta, aos direitos coletivizados (os denominados individuais homogêneos), o que se torna claro pela própria denominação dada

156 • O (pseudo) enquadramento do incidente de resolução de demandas repetitivas...

ao Título III, do Capítulo II do CDC: “Das ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos”. Neste contexto de mudança paradigmática de um processo civil atomizado para um novo processo civil molecularizado, também a execução coletivizada busca o atendimento aos princípios do processo coletivo, os quais são de matriz constitucional, visando especialmente dar efetividade aos diretos coletivamente tutelados. Face a essa conjuntura, tem-se que foi a sistemática processual das ações coletivas desenvolvida pelo legislador com o intuito de conferir máxima efetividade aos direitos coletivos em sentido lato. Em termos práticos, isso se dá pela concepção dessas espécies de ações autônomas às quais se aplicam normas próprias e peculiares acerca de legitimidade ativa, extensão de limites à coisa julgada, definição de competência territorial, dentre outros.

3. A tutela coletivizada de conflitos de massa no CPC/15: nova técnica ou sistema paralelo? A sociedade contemporânea marcada pelo mégalo-urbanismo, crescimento populacional, globalização econômica e industrial, desenvolvimento das ciências, compartilhamento de informações, e ainda, pela comunicação entre longas distâncias em tempo real, deixou que a vida social equilibrada e harmônica de décadas anteriores, escapasse ao controle do Estado, enquanto administrador das relações interpessoais, e do próprio indivíduo. Tudo isso fez com que se proliferassem os conflitos de massa, para a solução dos quais a interferência do sistema político-administrativo do Estado mostrou-se insuficiente, especialmente no que concerne à defesa dos direitos coletivos, que, muitas vezes pelo próprio Estado, se viam violados, havendo com isto, necessidade de intervenção do Poder Judiciário a favor das coletividades. A divisão das funções estatais está constitucionalmente definida. Entretanto, o Estado exerce seus poderes públicos por meio do Direito, significando que tal exercício só pode se efetivar por intermédio de instrumentos jurídicos institucionalizados pela própria ordem jurídica. No atual contexto do sistema jurídico brasileiro, não se sustenta mais a dicotomia entre Direito Público e Direito Privado, que parte de uma concepção clássica do Direito que por muitos anos norteou as legislações constitucionais e infraconstitucionais no país. Atualmente, a divisão entre os interesses do Estado e os do indivíduo, ou entre o

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau & Thaís Costa Teixeira Viana • 157

Público e o Privado, só é coerente se analisada sob o ponto de vista da Administração Pública propriamente dita. No âmbito da Administração da Justiça, os interesses da coletividade devem sobrepor-se aos interesses individuais, bem como aos interesses da própria Administração Pública. Fala-se em subdivisão dos interesses públicos em: primário e secundário. O interesse público primário, ou primeiro, caracteriza os direitos da coletividade, e o interesse público secundário refere-se àquele da Administração Pública enquanto tal. Apenas diante desta concepção, se poderá cogitar pacificação e bem-estar social, escopos essenciais do Poder Judiciário. A CRFB/88, distanciando-se das orientações até então vigentes, não recepcionou a Summa Divisio Direito Público e Direito Privado, traduzindo, por outro lado, a necessidade de efetivação da Summa Divisio Constitucionalizada Direito Coletivo e Direito Individual6. Traz tal opção constitucional, visão transformadora, crítica e pluralista sobre o sistema jurídico que deve nortear as relações sociais num Estado que se pretende intitular Democrático de Direito. De forma expressa, dispõe a CRFB/88, em seu Capítulo I do Título II (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”) sobre os “Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”. Assim, atribui ao Estado o dever de tutelar o indivíduo e a coletividade a um só tempo. Instalados os direitos coletivos entre as garantias fundamentais constitucionais, indispensável se faz buscar a criação de instrumentos processuais específicos, os quais só podem ser viabilizados, se tratados em perfeita consonância com as demais garantias constitucionais processuais fundamentais do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da efetividade, da celeridade e do acesso à justiça. É de se considerar que os direitos coletivos em sentido lato se caracterizam enquanto Direitos Constitucionais Sociais, razão pela qual merecem tratamento legal específico. Na realidade, os conflitos coletivos e as legislações de tutela a bens jurídicos coletivos sempre existiram. Apenas seu tratamento processual coletivo é que guarda novas origens e evolução recentes, em razão, justamente, do aumento da complexidade de tais conflitos. Assim, torna-se necessária a criação de meios próprios para se promover tutela coletiva eficaz, preventiva e corretiva na solução e inibição de tais conflitos. Neste contexto, gerou-se o fenômeno da Jurisdicionalização dos Direitos Coletivos e a consequente ampliação 6

Sobre o tema, cf. ALMEIDA, 2008.

158 • O (pseudo) enquadramento do incidente de resolução de demandas repetitivas...

normativa substancial quanto à matéria e aos instrumentos processuais capazes de tutelarem a coletividade. É com fulcro nessas premissas que se discute, no presente trabalho, se a inclusão de novos institutos ou técnicas de tutela coletivizada, regulamentados pelo CPC/15 (em especial, o IRDR), pode ser mesclada com o já conhecido microssistema de tutela aos direitos coletivos vigente no ordenamento jurídico brasileiro, sem que isso importe na existência de técnicas diferenciadas, cujos efeitos também seriam diferenciados. A questão merece reflexão minuciosa, ante o risco de, via legislação infraconstitucional, deixar-se que se criem, pela prática da técnica do IRDR, demandas coletivas artificiais ou maquiadas, com o fim único de se aplicar esta técnica, esperando-se obter o resultado ‘politicamente correto’ para o específico momento e, quem sabe, evitando-se a consequente formação da coisa julgada coletiva. A preocupação em questão já foi objeto de alerta por Marcelo Abelha Rodrigues, o qual ponderou ser possível que, caso utilizadas como sucedâneo de ações coletivas, técnicas como o IRDR seriam de maior interesse dos litigantes habituais, em detrimento das coletividades (2016, p.635). Na principiologia própria dos processos coletivos, são imitigáveis os princípios constitucionais do acesso à justiça, da segurança jurídica, da isonomia, da efetividade do processo, da economia processual e da duração razoável do processo, os quais precisam, inclusive, conviver em harmonia. Estas normas principiológicas específicas, por sua vez, merecem a interpretação condizente com sua finalidade constitucional e, no caso dos processos coletivos (ou outras técnicas afins), também com o microssistema integrado de tutela a tais direitos vigente no direito brasileiro. É pertinente – como, de resto, em verdade, é sempre pertinente – trazer à lembrança a balizada lição de José Joaquim Gomes Canotilho (1999, p. 9, 12 e 49): O princípio básico do Estado de direito é o da eliminação do arbítrio no exercício dos poderes públicos com a consequente garantia de direitos dos indivíduos perante esses poderes [...] Tomar a sério o Estado de direito implica, desde logo, recordar com rigor razoável o seu contrário – o Estado de não direito. [...] Um Estado pode considerar-se Estado de direito quando: (1) está sujeito ao direito; (2) actua através do direito; (3) positiva as normas jurídicas informadas pela ideia de direito [...] Merece a qualificação de Estado de direito o Estado – e só esse – que em todos os seus actos jurídicos, em todos os seus

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau & Thaís Costa Teixeira Viana • 159

esquemas organizatórios, em todos os seus procedimentos, incorpore os princípios jurídicos que, de forma indivisível por qualquer poder, dão validade ou legitimidade a uma ordem jurídica.

E é com base na ordem jurídica, que se pode afirmar sem receio que qualquer interpretação limitada ou distorcida afasta a própria efetividade da norma já positivada e, de consequência, nega efetividade a um dos dois ramos da nova Summa Divisio Constitucionalizada: exatamente que trata da tutela do direito material coletivo pelo processo. Ou seja, corre-se o risco de cair no Estado de arbítrio.

4. As ações coletivas vs. A técnica de julgamento coletivizado do IRDR Consoante já exposto, muito se tem discutido acerca do enquadramento do Instituto de Resolução de Demandas Repetitivas na categoria dos processos coletivos. Dúvidas não restam de que o IRDR é uma técnica processual coletivizada de julgamento de demandas, que visa uniformizar a jurisprudência e conferir certa celeridade à prestação jurisdicional. No entanto, isso importaria sua classificação como espécie de processo coletivo? É o questionamento que se busca solucionar. O IRDR, conforme expõe a seção n.2 deste trabalho, é técnica que, no ordenamento jurídico brasileiro, se volta exclusivamente à fixação de tese jurídica acerca de questão de direito, não sendo destinado, ao contrário do que se verifica nas ações-teste dos direitos alemão e inglês, à apreciação de matéria fática. Em certa medida, isso já lhe confere distanciamento em relação à lógica das ações coletivas, que pretendem, no bojo de um único procedimento processual, obter decisão definitiva de mérito sobre questões de fato e de direito que afetem determinada coletividade. Para que fosse o IRDR enquadrado como processo coletivo e, portanto, como ação autônoma, deveria necessariamente estar apto a promover a discussão também de matérias de fato, pelo que, uma vez inexistente essa prerrogativa, não se vislumbram possibilidades de que o IRDR extrapole a natureza de técnica processual incidental. Outrossim, apesar de tanto as ações coletivas, quanto o IRDR, voltarem-se à busca por soluções homogêneas do Poder Judiciário a questões que, de certa forma, afetem pluralidades de pessoas, é possível perceber diferença fundamental entre seus escopos de atuação: ao passo que as ações coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos

160 • O (pseudo) enquadramento do incidente de resolução de demandas repetitivas...

se apresentam como via destinada a evitar o ajuizamento de múltiplas demandas individuais sobre o mesmo fato de origem comum, o IRDR já trabalha com a existência de múltiplas demandas individuais enquanto premissa. Nas palavras de Gustavo Milaré Almeida (2016, p.577): Ora, sendo assim, verifica-se que, enquanto a tutela jurisdicional dos direitos ou interesses individuais homogêneos trabalha com uma questão de fato, a fim de prevenir que o trato da sua respectiva questão de direito não gere múltiplos processos individuais, o IRDR trabalha apenas com a questão de direito (leia-se: com o fato já subsumido à norma), pressupondo que o pior já aconteceu, ou seja, que já foram gerados tais múltiplos processos individuais.

Portanto, observa-se que o IRDR é instituto aplicado sobre ações já existentes, não consistindo, assim, por si só, ação autônoma. Na medida em que pressupõe a existência de questão de direito sendo discutida repetidamente no bojo de inúmeras ações já propostas, assume a condição de técnica processual, aplicável incidentalmente, com o fito de promover julgamento que fixe posicionamento sobre a questão controvertida. Revestindo-se da natureza de técnica, e não de ação autônoma, distancia-se da essência dos processos coletivos que, consoante já exposto, traduzem-se em ações idôneas a anteceder e, mesmo, substituir o ajuizamento de múltiplas ações individuais. Não se está a dizer, quanto a este ponto, contudo, que a técnica do IRDR não poderia ser aplicada no bojo de ações coletivas. Em se tratando de instituto destinado a cimentar o entendimento jurisprudencial acerca de questão de direito recorrente em múltiplas ações, óbices não são vistos ao fato de se cingirem a direitos individuais ou coletivos lato sensu a pretensão dessas ações. Logicamente, na medida em que houver ação coletiva em meio às ações individuais (cujo objeto seja uma mesma questão jurídica de direito material) que ensejarão o IRDR, o mais provável é que aquela lide coletiva verse sobre interesse individual homogêneo (passível de tutela tanto pela via das ações individuais, no que tange à lesão sofrida por cada titular, quanto pela via da ação coletiva). Contudo, faz-se mister ressaltar que, caso a questão repetitiva apta a suscitar o IRDR seja de direito processual, facilmente se poderá verificar, dentre as ações repetitivas, lides coletivas que versem também sobre direitos difusos ou coletivos stricto sensu, ambos indivisíveis. A doutrina de Marcelo Abelha Rodrigues traz contraponto in-

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau & Thaís Costa Teixeira Viana • 161

teressante entre as ações coletivas e o IRDR, enquadrando as primeiras em categoria denominada “técnicas coletivas de repercussão individual”7 e o último no grupo das “técnicas individuais de repercussão coletiva”8, no que concerne à defesa de interesses individuais homogêneos. Pondera o doutrinador que, apesar de ambas as técnicas poderem ser empregadas à defesa dessa espécie de interesses (individuais homogêneos), sua natureza (enquanto instrumentos processuais) não se equipara. Conclui ainda que, em razão dessa disparidade, não proporcionam igual proteção aos interesses da coletividade. Nas palavras do autor: [...] muito embora se possa enxergar, nas técnicas individuais de repercussão coletiva um propósito – de certa forma nobre – de buscar uma maior racionalização da atividade jurisdicional e uma maior uniformidade na resolução das questões de direito, o fato é que, se bem analisadas, acabam por “estrangular” a verdadeira tutela coletiva de direitos, pela qual tanto militou a doutrina processual brasileira nos anos 70 e 80. (RODRIGUES, 2016, p.629)

A fim de fundamentar seu posicionamento, demonstra Marcelo Abelha Rodrigues que as normas aplicáveis às técnicas individuais de repercussão coletiva não estariam aptas a conferir às coletividades a mesma proteção dispensada pelas ações coletivas, no que diz respeito à representatividade processual dos grupos, aos efeitos potenciais das decisões, à obrigatoriedade de suspensão das demandas individuais (2016, pp.629-634). Pontua, ainda, os eventuais efeitos positivos que a substituição das técnicas coletivas de repercussão individual pelas técnicas individuais de repercussão coletiva poderia trazer apenas aos litigantes habituais “que têm a possibilidade de, de uma só vez, fazer prevalecer as teses que lhes são favoráveis, em discussões travadas com quem não tem a mínima condição de enfrenta-los” (RODRIGUES, 2016, p.635). Tem-se, portanto, que, apesar de proporcionar positiva uniformização de julgamentos no que concerne à tutela individual de direitos, não estaria a técnica do IRDR apta a se equiparar às espécies de processo “[...] as técnicas coletivas de repercussão individual (TCRI) são aquelas que tratam desses mesmos direitos singulares, repetitivos, sob a forma coletiva. Por meio delas, utiliza-se não o instrumental técnico individual previsto no Código de Processo Civil, mas sim aquele instituído pelo chamado microssistema processual coletivo [...].” (RODRIGUES, 2016, p.625) 8 “Por técnicas individuais de repercussão coletiva (TIRC) nos referimos a certos instrumentos processuais que, conquanto sejam aplicáveis a ações individuais, possibilitam que uma mesma questão de direito, que se repita em um grande número de processos, seja apreciada de uma única vez, por amostragem.” (RODRIGUES, 2016, p.624) 7

162 • O (pseudo) enquadramento do incidente de resolução de demandas repetitivas...

coletivo, para fins de tutela processual coletiva de direitos de grupo.

4.1. Os Contrastes entre a Legitimação Ativa às Ações Coletivas e ao IRDR no Direito Brasileiro Reforça-se o distanciamento entre o instrumento das ações coletivas e a técnica de julgamento pela via de ações-teste (no Direito Brasileiro, representada pelo recém-introduzido IRDR), a partir da análise da também dessemelhança entre o próprio rol de legitimados ativos para propor ou suscitar cada um destes institutos. No que concerne às ações coletivas, tem-se uma única demanda que será ajuizada por um ente legitimado extraordinário, comumente chamado ‘representante ou substituto processual’ desta coletividade, o qual será identificado entre aqueles legalmente indicados pelo art.82 do CDC/90, seguindo o procedimento especial deste mesmo Diploma, de forma integrada aos princípios e fundamentos do processo coletivo. Pelo microssistema integrado de tutela aos direitos coletivos e coletivizados é ampla a legitimação ativa. Ela decorre da conjugação dos arts.5º e 21 da LACP/85 e do já citado art.82 do CDC/90. São, portanto, habilitados (legitimados ativos) à defesa de tais direitos os seguintes entes intermediários: Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: I - o Ministério Público; II - a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; III- as entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código; IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código, dispensada a autorização assemblear. § 1º. O requisito da pré-constituição pode ser dispensado pelo juiz, nas ações previstas no art. 91 e seguintes, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido. (BRASIL, 1990)

Acrescentam-se, ainda, entre os legitimados ativos à propositura de ações coletivas os sindicatos (art. 5º, inciso LXX, alínea b, e ainda, art.

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau & Thaís Costa Teixeira Viana • 163

8º, inciso III, da CRFB/88), os quais, em última análise poderiam se compreender na própria categoria das associações, indicadas no inciso IV do art.82 colacionado. Da mesma forma, inserem-se complementarmente ao rol de entes intermediários legitimados à propositura de ações coletivas, os partidos políticos com representação no Congresso Nacional, em relação aos quais há previsão expressa quanto à legitimidade para impetrar mandado de segurança coletivo (art.5º, inciso LXX, alínea a, da CRFB/88 c/c art.21 da Lei nº 12.016/09). Por fim, vale mencionar a legitimação, também, da Defensoria Pública para propositura de ação civil pública, legitimação esta conferida pela Lei nº 11.448/07, que alterou a redação do art.5º, da LACP/85. Quanto à natureza jurídica da legitimação ativa em demandas coletivas para a defesa dos direitos difusos e coletivos stricto sensu, trata-se de legitimação autônoma para condução do processo, na qual o ente intermediário atua postulando, ao mesmo tempo, tanto aquilo que é próprio de suas atribuições, como aquilo que é alheio e indivisível. Tal legitimação foi conferida por lei e de forma específica9. A legitimação autônoma não se confundiria, contudo, com a ordinária (atuação em nome próprio, na defesa de direito próprio) ou com a extraordinária (atuação em nome próprio, para defesa de direito alheio, enquanto substituto processual), partindo de premissas distintas e da peculiaridade de defesa em juízo de direitos que seriam, por natureza, indivisíveis e inerentes conjuntamente a toda coletividade – seja esta composta por membros indeterminados (na hipótese dos direitos difusos) ou eventualmente determináveis (na hipótese dos direitos coletivos em sentido estrito). Esta questão comportaria equação diversa, contudo, no que concerne à tutela a direitos individuais homogêneos, os quais, sendo acidentalmente coletivos (por manterem sua essência individual), seriam tutelados processualmente como coletivos apenas por razões de política legislativa e economia processual. Como consequência, não poderia a estes interesses ser aplicada indistintamente a mesma lógica de legitimação autônoma incindível sobre os demais direitos coletivos em sentido lato, de natureza indivisível. Neste sentido, inclusive, leciona Ricardo de Barros Leonel, ao ponderar que “[...] na tutela dos interesses individuais homogêneos, o que fica patente é a substituição processual – legitimação extraordinária – em que os legitimados postulam em juízo interesse 9 Cf. THIBAU, 2003 (Tese - Doutorado em Direito). No mesmo sentido, cf.: LEONEL, 2013, p. 157158; ALVIM, 1997, p. 156; MAZZILLI, 1999, p. 46; NERY JÚNIOR, 1992, p. 246-247 e GRINOVER, 1993, p.541.

164 • O (pseudo) enquadramento do incidente de resolução de demandas repetitivas...

alheio, fazendo-o em nome próprio” (2013, p. 158)10. Para além da própria natureza peculiar da legitimidade ativa conferida aos entes intermediários para a tutela de interesses coletivos em sentido lato, outra característica marcante reside no fato de ser esta legitimação concorrente, na medida em que confere a lei legitimidade ativa a vários entes de forma simultânea. Não obstante exista a possibilidade de atuação entre eles em litisconsórcio (ativo facultativo), este não se configuraria como pressuposto imprescindível ao exercício da demanda coletiva. Como consequência, cada qual se encontra habilitado a atuar isoladamente, não sendo tal legitimação exclusiva de nenhum dos entes intermediários, mas, pelo contrário, se referindo a todos eles de forma singular, nos termos da lei. Por derradeiro, caracteriza ainda, a legitimação para as ações coletivas, o fato de ser esta disjuntiva, já que a atuação isolada de qualquer dos entes legitimados prescinde da anuência ou concurso dos demais, não obstante a possibilidade de atuação conjunta destes. Feitas essas ponderações, o que se percebe é um descompasso entre o rol dos legitimados ativos à propositura de ações coletivas e suas características, em relação àqueles habilitados a suscitar o IRDR pela técnica de ações-teste recentemente introduzida na sistemática processual do ordenamento jurídico brasileiro. De fato, dispõe o art.977 do CPC/15 que a formulação do pedido de abertura do Incidente caberia ao juiz ou relator do processo (de ofício), às partes deste, por petição, ou ao Ministério Público ou Defensoria Pública (independentemente de sua atuação no processo como partes)11, por petição. Considerando que as ações-teste se tratam de instrumentos individuais de tutela de direitos, não se vislumbra a prerrogativa conferida a estes legitimados como sendo análoga à natureza da legitimação que caracteriza a atuação dos legitimados ativos às ações coletivas, ainda que ambas resultem de dispositivo legal. Com efeito, no que diz respeito à prerrogativa das partes (art.977, II, CPC/15) de suscitar o IRDR, tem-se que se manteria sua condição jurídica já existente na fase pretérita da ação de conhecimento. Portanto, em se tratando de ação individual a lide que deu origem ao IRDR, guardarão as partes, na maioria dos casos, a condição de legitimados ordinários, que se encontram em juízo em nome próprio, tutelando direito próprio. Por outro lado, sendo o Incidente porventura suscitado 10 11

Cf. também ALMEIDA, 2012, p.167. Neste sentido, cf. MENDES; SILVA, 2016, p.554.

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau & Thaís Costa Teixeira Viana • 165

em ação coletiva, manterá a parte ocupante do polo ativo sua condição de ente intermediário, com legitimação extraordinária autônoma. Em outras palavras, em se tratando o IRDR, consoante já tratado, de técnica de julgamento de demandas repetitivas, e não propriamente de ação autônoma a ser instaurada, sobressairia o entendimento de que, sendo ele suscitado por uma das partes do processo que lhe der origem, não estará apto a alterar a natureza da condição jurídica que esta parte ocuparia no processo. Ou seja, ao suscitar o IRDR, não passaria a parte a estar em juízo atuando em defesa de interesses de coletividades, mas sim se valendo de instrumento próprio da processualística individual, com o fito de obter julgamento paradigmático a partir de técnica de uniformização. Mesmo porque, consoante alerta a própria doutrina de Aluísio Gonçalves de Castro Mendes e Larissa Clare Pochmann da Silva (2016, p.551): [...] o incidente de resolução de demandas repetitivas é um incidente que será suscitado no curso de um processo individual ou coletivo, restrito à fixação de uma tese jurídica para a questão comum de direito, que será aplicada pelo juiz natural, às demandas, individuais ou coletivas, na área de jurisdição do tribunal em que a tese foi fixada.

Reforça-se, portanto, o entendimento de que não se equipararia o IRDR às ações coletivas, pelo simples fato de que, limitando-se o escopo daquele à análise e fixação, em sede de Tribunal, de teses jurídicas (e, tão logo, matérias exclusivamente de direito), não se poderia equiparar a natureza da atuação dos legitimados à sua instauração, àquela dos entes intermediários incumbidos da tutela em juízo dos interesses de coletividades (englobando-se matérias de fato e de direito), no âmbito de ações coletivas. Importa esclarecer que o IRDR seria, indubitavelmente, técnica processual coletivizada de julgamento isonômico de teses jurídicas, o que não o tornaria, contudo, espécie de processo coletivo.12 Referido distanciamento poderia ser ainda mais acentuado pela própria previsão, no bojo do art.977, I, CPC/15, de legitimidade ao juiz ou relator para provocar a instauração do Incidente de ofício. Tal dispoA doutrina de Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. (2016b, p.209-218), por sua vez, aponta em sentido oposto, ao ponderarem: “O CPC/2015 [...] estruturou um complexo sistema de casos repetitivos. A relação entre esse sistema e o sistema das ações coletivas é um dos desafios que o Novo Código impõe à doutrina e aos Tribunais brasileiros. Partimos da premissa de que ambos são instrumentos de tutela coletiva de direitos, são, portanto, processo coletivo.” 12

166 • O (pseudo) enquadramento do incidente de resolução de demandas repetitivas...

sição, na realidade, endossaria a tese de que não poderia ser conferido ao IRDR, na sistemática jurídico-processual brasileira, o status de ação coletiva autônoma, mas somente de técnica processual coletivizada de julgamento13. Desde a ordem processual civil de 1973, a Lei consagrava o chamado ‘princípio dispositivo’, ao dispor que a abertura do processo dependeria de iniciativa da parte, podendo-se aplicar o impulso oficial apenas em fase subsequente a esta instauração (art.262, CPC/73). À redação do CPC/15 coube manter essa norma e prestigiar, portanto, o princípio dispositivo, excepcionando-o, contudo, em casos de expressa previsão legal em sentido contrário (art.2º, CPC/15). No que concerne ao microssistema de tutela processual coletiva, cujas normas gerais se encontram preconizadas pela LACP/85 e pelo CDC/90, não se vislumbra qualquer regra que excepcione o princípio dispositivo, elencando o texto legislativo, pelo contrário, rol numerus clausus de entes com legitimidade ativa para o ingresso com ações coletivas. Não há espaço interpretativo, portanto, à tentativa de enquadramento do processo coletivo à parte final do art.2º do CPC/15, sendo claro o descabimento da propositura de ações coletivas pela via do impulso oficial. Assim sendo, considerando-se que, conforme expressamente estabelecido por lei (art.90, CDC/90 e art.19, LACP/85), a aplicação das normas do processo civil comum à sistemática processual coletiva seria apenas subsidiária, ou seja, limitada àquilo que não contrariasse as disposições desta última, não se haveria que cogitar a importação ao âmbito do processo coletivo, de normas de impulso oficial no ajuizamento de ações. Em outras palavras, não se haveria que falar em “processo coletivo de ofício”. Desta forma, ao conceder ao juiz e ao relator a prerrogativa de suscitar o IRDR de ofício, corroborou o texto legislativo a tese de que não se poderia estar diante de ação coletiva, e reforçou o entendimento de que se trataria de mera técnica processual aplicada no âmbito de incidente, não se tratando de ação autônoma. Por fim, no que concerne à prerrogativa concedida ao Ministério Público e à Defensoria Pública (art.977, III, CPC/15), apesar de se tratarem de entes que, coincidentemente, figurariam dentre o rol de legitimados ativos à propositura de ação coletiva, não guardaria a natureza Aparentemente, a expressão “técnicas individuais de repercussão coletiva” usada por Marcelo Abelha Rodrigues (2016, p.624) se aproxima da interpretação aqui defendida. 13

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau & Thaís Costa Teixeira Viana • 167

de sua atuação no âmbito de ações coletivas e do IRDR, as mesmas características. Em primeiro lugar, por não se tratarem estes entes, no caso do IRDR, como regra, de partes do processo originário, possuindo, por força do inciso III do art.977, CPC/15, legitimidade apenas para suscitar e conduzir o Incidente. Em segundo lugar, pelo fato de que a prerrogativa para suscitar e acompanhar IRDR lhes confere poder tão somente para pugnar em juízo a fixação de entendimento sobre tese jurídica, não lhes sendo facultado adentrar nas questões fáticas que permeiam o direito porventura violado.

4.2. A extensão da irradiação dos efeitos da tese jurídica firmada no IRDR frente às ações coletivas Intensifica-se a discrepância entre o Instituto de Resolução de Demandas Repetitivas e as ações coletivas, quando são analisados os efeitos das decisões proferidas por cada um deles. Nos termos da literalidade do art.103, do CDC/90, a coisa julgada formada em ações coletivas fará efeito erga omnes ou ultra partes, exceto em casos de improcedência por insuficiência de provas, conforme estejam sendo tutelados direitos difusos ou coletivos stricto sensu, respectivamente. Por sua vez, nas ações em tutela de direitos individuais homogêneos, a coisa julgada produzirá efeitos erga omnes nos casos de procedência dos pedidos. Em outras palavras, o que se percebe é a previsão de irradiação dos efeitos da coisa julgada, para além dos limites subjetivos da lide, apenas em benefício da coletividade, como confirma o próprio parágrafo primeiro do mesmo dispositivo legal. A sistemática encontra-se harmonicamente concatenada com os propósitos de economia processual e máxima proteção dos direitos coletivos em sentido lato, que norteiam a essência das ações coletivas. Por sua vez, no que concerne às decisões proferidas em sede de IRDR, não se observam semelhantes efeitos. A decisão proferida pelo Tribunal produzirá efeito vinculante que incidirá, conforme a literal disposição do art.985, CPC/15, sobre “todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo Tribunal [...]” e sobre os “casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal [...]”. Dessa forma, a decisão proferida no âmbito do IRDR não produziria direta e imediatamente

168 • O (pseudo) enquadramento do incidente de resolução de demandas repetitivas...

efeitos de coisa julgada sobre as demandas repetitivas, mas vincularia a decisão dos magistrados perante os quais tramitem ou venham a tramitar ações individuais ou coletivas sobre idêntica questão de direito material ou processual. Ademais, na medida em que seu efeito vinculante se irradiaria tão somente a órgãos jurisdicionais, tem-se que, em se tratando de direitos individuais homogêneos, por exemplo, ainda que exista decisão proferida em IRDR de forma favorável aos membros da coletividade, ver-se-iam estes compelidos a ingressar, cada um, com sua respectiva demanda individual, para se verem beneficiados pela decisão. Isso se verifica porque, uma vez fixada a tese jurídica pelo Tribunal, caberá a cada juiz aplica-la, formando-se a coisa julgada somente por ocasião da aplicação desta tese, no julgamento feito em cada processo individual ou coletivo de origem. Assim sendo, apesar de se tratar de técnica apta a trazer celeridade ao procedimento de julgamento das demandas, que se tornará, também, mais homogêneo, culmina o IRDR por estimular, de certa forma, em contrapartida, a litigiosidade, ao exigir que se ingresse com a pretensão em juízo, a fim de se ver beneficiado pela decisão nele proferida. Neste ponto, é clara a discrepância em relação às ações coletivas, que se revestem de escopo distinto, ao produzir sentenças aptas a formarem coisa julgada material, aplicáveis a toda a coletividade, sem a necessidade de ajuizamento, por cada um, de sua ação individual. Por fim, distanciam-se as ações coletivas do modelo do IRDR, na medida em que, tratando-se estes últimos de técnica de julgamento voltada à fixação de tese jurídica sobre questão de direito, sem se adentrarem às peculiaridades de cada caso concreto, podem ser objeto de revisão pelo mesmo Tribunal, de ofício ou mediante requerimento dos legitimados por lei (art.986, CPC/15). A autorização legislativa se revela adequada a viabilizar a renovação da jurisprudência, que deve sempre acompanhar a evolução social, econômica e política da sociedade. Em contrapartida, endossa a constatação de que não poderia o IRDR enquadrar-se como processo coletivo, na medida em que não estaria apto a conferir, por si só, decisões definitivas e imutáveis aos conflitos coletivos. Sua atuação processual isolada, apartada das ações coletivas, portanto, não seria suficiente à tutela das coletividades.

5. Conclusão

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau & Thaís Costa Teixeira Viana • 169

Percebe-se, portanto, que, apesar de integrar o IRDR um grupo de técnicas processuais de julgamento uniformizado que vem se fortalecendo e consolidando na sistemática processual (tanto no Brasil, quanto em ordenamentos estrangeiros) ao longo dos últimos anos, sua utilização como sucedâneo das ações coletivas deve ser analisada com cautela, na medida em que se trata de institutos distintos, os quais não se equiparam – seja quanto à sua natureza (consistindo o IRDR em mera técnica processual de julgamento, ao contrário das ações coletivas, que possuem natureza de ações autônomas), seja quanto à extensão de seus efeitos. Com fulcro nas premissas expostas neste trabalho, tem-se que o enquadramento do IRDR como espécie de processo coletivo, ao lado das ações civis públicas, ações populares ou ações civis coletivas, por exemplo, poderia culminar por comprometer irremediavelmente a eficiência e a amplitude da proteção conferida pelo microssistema de tutela jurisdicional coletiva aos interesses coletivos em sentido lato (com destaque para os individuais homogêneos). Tratando-se de técnica para a qual a lei elencou legitimados com características e natureza essencialmente distintas daqueles das ações coletivas, bem como conferiu efeitos às decisões insuficientes à plena proteção das coletividades em seus direitos materiais, não se revela adequada a classificação do IRDR como processo coletivo, apesar de, inquestionavelmente, a introdução do instituto no ordenamento jurídico brasileiro ter representado avanço no que concerne à tutela individual de direitos.

Bibliografia ALMEIDA, Gustavo Milaré. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e o Trato da Litigiosidade coletiva. In: ZANETI JR., Hermes [coord.]. Processo Coletivo. Salvador: Jus Podivm, 2016. ALMEIDA, Wânia Guimarães Rabêllo de. A Relação entre Ações Coletivas e Ações Individuais no Processo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2012. ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Material Coletivo: Superação da Summa Divisio Direito Público e Direito Privado por uma nova Summa Divisio Constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

170 • O (pseudo) enquadramento do incidente de resolução de demandas repetitivas...

ALVIM, Arruda. Ação Civil Pública. In: RePro, nº 87, p.149-165, ano22, jul.-set./1997. BRASIL. Lei n.º 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7347orig .htm - Acesso em: 26/06/2016. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 04/09/2016. BRASIL. Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078 .htm - Acesso em 26/06/2016. BRASIL, Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20152018/2015/lei/l13105.htm – Acesso em 27/09/2016. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva Publicações, Cadernos democráticos: Coleção Fundação Mário Soares, fev/1999. CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. A aplicabilidade do microssistema processual coletivo às ações regressivas acidentárias. In: RBDPro, nº 69, p.167-188, ano 18, jan/mar.2010, p. 174-175. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil – Processo Coletivo. 10.ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora Jus Podivm, 2016a. (v.4) DIDIER JR., Fredie; ZANETI Jr., Hermes. Ações Coletivas e o Incidente de Julgamento de Casos Repetitivos – Espécies de Processo Coletivo no Direito Brasileiro: Aproximações e Distinções. In: Revista de Processo. Vol.256/2016. Jun/2016b, p.209-218.

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau & Thaís Costa Teixeira Viana • 171

DONIZETTI, Elpídio; CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. Curso de Processo Coletivo. São Paulo: Atlas, 2010. DURÇO, Karol Araújo. As Soluções para Demandas Repetitivas no Novo Código de Processo Civil e suas Implicações para o Processo Coletivo. In: ZANETI JR., Hermes [coord.]. Processo Coletivo. Salvador: Jus Podivm, 2016, pp.515-534. DUTRA, Victor Barbosa. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e o Incidente de Assunção de Competência. In: THEODORO JUNIOR, Humberto [coord.]. Processo Civil Brasileiro – Novos Rumos a partir do CPC/15. Belo Horizonte: Del Rey, 2016. GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os Processos Coletivos nos Países de Civil Law e Common Law: uma análise de direito comparado. 2.ed.rev.e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. GRINOVER, Ada Pellegrini. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos Autores do Anteprojeto. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. 3.ed.rev. atual.e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 1999. MEDINA, José Miguel Garcia; MEDINA, Janaina Marchi. Guia Prático do Novo Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro; TEMER, Sofia. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas do Novo Código de Processo Civil. In: ZANETI JR., Hermes [coord.]. Processo Coletivo. Salvador: Jus Podivm, 2016, pp.581-622. MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro; SILVA, Larissa Clare Pochmann da. Ações Coletivas e Incidente de Resolução de Demandas Repetiti-

172 • O (pseudo) enquadramento do incidente de resolução de demandas repetitivas...

vas: Algumas Considerações sobre a solução coletiva de conflitos. In: ZANETI JR., Hermes [coord.]. Processo Coletivo. Salvador: Jus Podivm, 2016. NERY JÚNIOR, Nelson. O Ministério Público e a sua Legitimação para a Defesa do Consumidor. In: Justitia, nº 160; p. 244-250, out-dez/1992. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Técnicas Individuais de Repercussão Coletiva X Técnicas Coletivas de Repercussão Individual. Por que estão extinguindo a ação civil pública para a defesa de direitos individuais homogêneos?. In: ZANETI JR., Hermes [coord.]. Processo Coletivo. Salvador: Jus Podivm, 2016. RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. As Ações-Teste na Alemanha, Inglaterra e Legislação Brasileira Projetada. In: Revista Eletrônica de Direito Processual (REDP). Vol.VIII. Rio de Janeiro: UERJ, 2011. p.905-939. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/ redp/article/viewFile/20849/15124 - Acesso em 28/09/2016. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 53.ed.rev.e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2012 (v.1). THIBAU, Tereza Cristina Sorice Baracho. A legitimação ativa nas ações coletivas: um contributo para o estudo da substituição processual. Orientador: Aroldo Plínio Gonçalves. 2003. 295p. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003. WATANABE, Kazuo. Demandas Coletivas e os Problemas Emergentes da Práxis Forense. In: Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. V.2. 1992, pp. 60-71. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2013.

PARTICIPAÇÃO E MOBILIZAÇÃO DO DIREITO NO NOVO CPC: O AMICUS CURIAE E A DEFESA DAS MINORIAS Camila Silva Nicácio1 Júlia Silva Vidal2 Maria Flávia Diniz Viana3 “[...] o direito é potencialmente uma gramática poderosa para pensar as injustiças, construir denúncias e exprimir reivindicações”. (AGRIKOLIANSKY, 2010)

Resumo: O novo Código de Processo Civil de 2015 trouxe em seu bojo inovações importantes no que concerne à possibilidade de intervenção na realidade social e à contribuição para uma sociedade mais democrática, inclusiva e, sobretudo, participativa. Por meio de uma abordagem qualitativa, baseada em levantamento bibliográfico, objetivou-se demonstrar que o instituto do amicus curiae se insere na dogmática do novo código como instrumento importante de mobilização do direito. Apontou-se, igualmente, a potencialidade de referido instituto no que concerne à reivindicação de direitos para populações minoritárias, historicamente alijadas socialmente e expostas aos mais diversos tipos de violência. Abordou-se, por fim, o conteúdo de dois recursos extraordinários em tramitação no Supremo Tribunal Federal, relativos a direitos da população de transexuais, como exemplo de intervenção e participação social pela via de amicus curiae. A hipótese inicial, confirmada ao final, foi a de que referido instituto, assim como regulamentado e previsto no novo Código de Processo Civil, constitui ferramenta importante de 1 Camila Silva Nicácio – Professora Adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora da Clínica de Direitos Humanos (CdH) da UFMG. Doutora em Antropologia do Direito pela Université Paris I, Panthéon-Sorbonne. Email: [email protected] 2 Júlia Silva Vidal – Graduanda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais; estagiária da Clínica de Direitos Humanos (CdH) da UFMG. Email: [email protected] 3 Maria Flávia Diniz Viana – Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; assessora ad hoc da Clínica de Direitos Humanos (CdH) da UFMG. Email: [email protected]

174 • Participação e mobilização do direito do novo CPC

mobilização do direito, sobretudo no que diz respeito àqueles de setores marginalizados ou precarizados da sociedade. Palavras-chave: amicus curiae; Novo Código de Processo Civil; transexualidade; mobilização do direito. Abstract: The new Brazilian Code of Civil Procedure (2015) brought in its core important innovations on the possibility of intervention in social reality and the contribution to a more democratic, inclusive and, above all, participative society. Through a qualitative approach, based on a bibliographic survey, it has been the point to demonstrate that the amicus curiae institute inserts itself in the dogmatic of the new Code as an important instrument of mobilization of the Law. It has been also pointed out the mentioned institute’s potentiality regarding the vindication of rights to minorities that are historically marginalized and exposed to various kinds of violence. Lastly, the content of two extraordinary appeals that are on appreciation by the Brazilian Federal Court (Supremo Tribunal Federal) regarding the rights of transsexuals is addressed as an example of intervention and social participation by using the amicus curiae institute. The initial hypotheses that this institute, as regulated by the new Code of Civil Procedure, constitutes an important tool of legal mobilization, especially in relation to those marginalized or less developed sectors, is confirmed. Keywords: amicus curiae; new Brazilian Code of Civil Procedure; transsexuality; legal mobilization. Sumário: Introdução. 1. Inovação legislativa democrática: O Novo Código de Processo Civil. 2. O amicus curiae e o desafio da mobilização do direito. a) O amicus curiae no NCPC. b) Quando o político e o jurídico se entrelaçam. 3. Na prática: a repercussão geral, o amicus curiae e a inclusão de minorias. 4. Considerações finais. Referências bibliográficas.

Introdução Muito já se disse sobre o déficit democrático do sistema de justiça no Brasil (CAMPILONGO, 1994; SADEK; ARAÚJO, 2001; SADEK; ARANTES, 2007; KANT DE LIMA; LUPETTI BATISTA, 2014; AVRITZER; MARONA, 2014, para mencionar alguns). As pesquisas abundam

Camila Nicácio, Júlia Vidal & Maria Flávia Diniz Viana • 175

e convergem para temas que perpassam as dificuldades materiais, estruturais, logísticas, humanas quanto ao acesso aos tribunais; o fechamento operacional de um sistema feito por experts que preservam largamente o monopólio sobre a linguagem e os códigos jurídicos; a produção e reprodução de mitos em torno de alguns institutos jurídicos que mais contribuem para obnubilar os entraves em torno dos mesmos do que para aperfeiçoá-los em sua dinâmica quotidiana. Mais hodiernamente, e em razão de um cenário sócio-político de grande tensão, os estudos têm-se concentrado primordialmente na judicialização da vida política e econômica, e no consequente e crescente protagonismo por parte de juízes e promotores que a mesma engendra. De ordens e naturezas diversas, os impasses mencionados se fazem acompanhar de uma série de reações, seja por parte dos poderes constituídos, seja por parte da sociedade em geral, organizada em torno de associações e movimentos. Nesse sentido, e por parte dos primeiros, os esforços de discussão e elaboração de um Novo Código de Processo Civil podem ser considerados como uma tentativa de dar maior inteligibilidade e atualidade a um marco processual caduco, carente de aggiornamento. A seu turno, associações e organizações da sociedade civil se apropriam do instrumental jurídico para questionar o direito propriamente dito, ao reclamar efetividade, ao denunciar situações de violação ou ao propor, como co-autora, novos direitos para a ampliação da cidadania. Nesse artigo, cuidaremos de abordar uma das inovações tendentes a ampliar o espaço de participação da sociedade para o aperfeiçoamento da justiça, vide intervenção processual a título de amicus curiae. Com esse intuito, apresentaremos um panorama das principais inovações trazidas pelo novo diploma no sentido de, ao otimizar o processo, conferir maior efetividade à justiça (I); passaremos a seguir a uma discussão mais detalhada sobre a regulamentação do amicus curiae, inscrevendo-a em um duplo marco, qual seja, aquele da possibilidade de contribuir para a legitimação das decisões judiciais e o de prestar-se à mobilização do direito, por meio da participação de grupos que, embora não sendo parte no processo, agem de maneira interessada (II); finalmente, introduziremos o estudo de dois recursos extraordinários em tramitação no Supremo Tribunal Federal para demonstrar, na prática, o potencial do amicus curiae de, a partir de uma intervenção cidadã, cooperar para a defesa e promoção de direitos de algumas minorias marginalizadas, no caso em tela, o público de transexuais (III).

176 • Participação e mobilização do direito do novo CPC

1. Inovação legislativa democrática: O Novo Código de Processo Civil O Novo Código de Processo Civil (NCPC), Lei 13.105/2015, vem sendo objeto de acalorados debates doutrinários desde os trabalhos da comissão de juristas4 responsável pela elaboração de seu anteprojeto. O conteúdo dessas discussões vai de críticas lancinantes5 − que incluíam a conveniência ou não de adotar no país uma nova codificação − a loas efusivas, passando por análises pontuais de determinados dispositivos e institutos, especialmente aqueles inéditos, se confrontados com o diploma processual anterior. Interessa-nos analisar disposições da Lei 13.105/2015 sob a perspectiva dos ganhos democráticos ou, em outras palavras, em que medida o modelo implantado a partir do citado diploma tem o condão de interferir na realidade, contribuindo na construção de uma sociedade mais democrática e inclusiva, especialmente no que diz respeito à implementação de direitos. Em primeiro lugar, no que diz respeito ao aspecto formal, há de se registrar que se trata do primeiro código brasileiro cuja tramitação e aprovação deu-se integralmente em ambiente democrático (THEODORO JÚNIOR et al., 2015). Essa contingência implica, per se, maior legitimidade do novo diploma, à medida em que sua elaboração foi capitaneada por comissão de juristas oriundos de diversas partes do país, suscetíveis de influências dos mais diversos setores da sociedade, inclusive através da realização de audiências públicas, e apresentada ao legislativo para ampla análise e discussão, de acordo com os trâmites próprios do processo legislativo. No que diz respeito ao aspecto material, o NCPC veio dar efetividade à constitucionalização do processo, uma vez que seu sistema jurídico foi concebido a partir dos valores, diretrizes e fundamentos da Constituição, pretendendo-se uma unidade sistemática, expressamente afirmada em seu primeiro artigo, que diz que “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”. Esse fenômeno foi iniciado com a Constituição de 1988, que explicitamente consagrou O Ato 379 do ano de 2009, da Presidência do Senado Federal, constituiu a comissão de juristas encarregados da elaboração de um anteprojeto de um novo Código de Processo Civil. 5 Com destaque para o fenômeno denunciado por Lênio Streck como “onda anti-novo CPC”. Disponível em https://estudosnovocpc.com.br/2015/09/14/lenio-streck-fala-sobre-a-onda-anti-novo-cpc/, acessado no dia 25 de setembro de 2016. 4

Camila Nicácio, Júlia Vidal & Maria Flávia Diniz Viana • 177

em seu texto as principais garantias estruturantes do processo (especialmente mencionamos o art. 5º, incisos XXXV, XXXVI, XXXVII, LIII, LIV, LV, LVI, LX, LXVII, LXIX, LXX, LXXI, LXXII, LXXIII, LXXIV, LXXVII, LXXVIII da CF/88). A partir dessa perspectiva constitucional de processo é nota marcante no novo diploma a preocupação com a dimensão da legitimidade dos provimentos jurisdicionais. O caminho indicado pelo complexo normativo do novo Código para contornar essa questão aponta para a implementação da participação, a ampliação do debate, a construção de um provimento jurisdicional plural, primando pela comparticipação (ou cooperação) na elaboração da decisão estatal (FREITAS; DURO, 2014, p.112), onde a posição de protagonismo não cabe mais apenas ao juiz, mas a todos os envolvidos na prestação jurisdicional (NUNES, 2010, p. 1204). Esse modelo processual cooperativo, inaugurado pelo CPC/2015 “representa uma nova forma de organização processual, ao redistribuir de forma mais equilibrada os poderes e as faculdades processuais entre as partes e o juiz” (MOUZADAS; NETO; MADRUGA, 2016, p. 39), mantendo aberto um canal dialógico entre as partes e os sujeitos do processo, de modo a operar uma comunidade de trabalho ou, de acordo com precisa lição de Humberto Theodoro Junior, Dierle Nunes et al. (2015, p. 57): [...] se trata de uma releitura democrática normativa da cooperação em perfil comparticipativo, que leva a sério o contraditório como influência e não surpresa, de modo a garantir a influência de todos na formação e satisfação das decisões e inibir aqueles atos praticados em má-fé processual.

A Lei 13.105/2015 traz diversos dispositivos que, podemos dizer, concretizam essa nova dimensão do processo, como por exemplo, a renovação do contraditório, que deixa de cingir-se ao modelo que o concebia a partir do binômio informação + possibilidade de reação e passa a adquirir nova carga de significância, conteúdo dinâmico, expresso como direito de participação na construção do provimento, uma nova arquitetura dialógica expressa no trinômio informação + possibilidade de reação + poder de influência (MOUZADAS; NETO; MADRUGA; 2016, p. 47). O contraditório deve ser substancial, o que implica a efetiva participação das partes6 e, por conseguinte, a construção coletiva do provimenArt. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria

6

178 • Participação e mobilização do direito do novo CPC

to jurisdicional, tendencialmente mais agregador. O NCPC inova, também, do ponto de vista dos ganhos democráticos, ao dispor sobre os elementos essenciais da sentença e do dever de fundamentação das decisões judiciais. Ao fazer essa afirmação, não se ignora a previsão do art. 93, IX7, da Constituição de 1988, embora tal liturgia fosse solenemente ignorada, já que a praxe eram decisões superficiais, lacônicas, embasadas de forma superficial ou, ainda, padronizadas. De acordo com o novo diploma, as sentenças e decisões judiciais, sob pena de nulidade, devem seguir os ditames do art. 489, NCPC, que fixou parâmetros objetivos e concretos para nortear a atividade judicial – garantia contra o arbítrio e a discricionariedade –, de modo a fazer com que os argumentos deduzidos pelas partes e os precedentes jurisprudenciais sejam efetivamente enfrentados e considerados na fundamentação dos atos decisórios. Importante salientar que a fundamentação das decisões além de permitir o controle sobre os parâmetros observados na resolução de conflitos, revela outra função importante no ordenamento processual brasileiro, qual seja, a possibilidade de controle sobre a correta aplicação da jurisprudência (ROQUE, 2013). Paralelamente à ideia de incremento da prestação jurisdicional propriamente dita, por meio de elementos capazes produzir ganho de legitimidade às decisões, o novel diploma pauta, também, a valorização e o incentivo da solução consensual de conflitos (§ 3º, do art. 3º8) mecanismo que por essência confere legitimidade à solução consensual construída pelas partes, seja por elas próprias, seja por induzimento de um terceiro, por meio da mediação ou da conciliação. Há de se destacar, também nesse matiz dos ganhos democráticos e implementação do exercício de direitos do novo Código de Processo Civil, o inédito tratamento normativo emprestado à Defensoria Pública, dispondo em um título próprio sobre o tratamento legal da instituição (Livro III, Título VII, arts. 185 a 187), disciplinando sua atuação no âmbito cível, inclusive como promotora do acesso à justiça, na esteira da previsão constitucional, que a reconhece como instituição permanente, sobre a qual deva decidir de ofício. 7 “Todos os julgamentos dos órgãos do poder judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”. 8 “A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”.

Camila Nicácio, Júlia Vidal & Maria Flávia Diniz Viana • 179

a qual incumbe não apenas a orientação jurídica, mas também a promoção dos direitos humanos e a defesa judicial e extrajudicial dos direitos individuais e coletivos dos necessitados, de forma integral e gratuita. O NCPC atribuiu, ainda, à Defensoria (art. 72, § único) a titularidade da curadoria especial, a regra da contagem em dobro dos prazos processuais, com intimação pessoal do defensor público (art. 186 e § 1º), confere legitimidade à instituição para propositura de incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) (art. 977, III) e determina a participação da Defensoria em hipóteses de litígios envolvendo ações possessórias em que figurem grande número de pessoas em situação de hipossuficiência (art. 554, § 1º). Não há dúvida, com base em todas essas inovações apresentadas, que o novo Código de Processo Civil, a par das críticas a mecanismos e institutos específicos, cunhou uma estrutura tendente a conferir maior efetividade para os direitos, para o funcionamento da justiça e otimização do processo. A par de todas essas relevantes novidades incorporadas pela Lei 13.105/2015, nossa atenção, nesse estudo, se volta especificamente para a figura do amicus curiae, que teve no novo diploma seu cabimento generalizado, passando a ser previsto como terceiro interveniente típico. Esse instituto tem feição notadamente democrática, à medida que atua com o objetivo de qualificar o debate em juízo, conferindo maior qualidade e legitimidade às decisões, aprimorando a prestação jurisdicional, sob o modo da participação e intervenção cidadã, assim como veremos a seguir.

2. O amicus curiae e o desafio da mobilização do direito Na esteira das inovações supramencionadas, e sem apresentar correspondência com instituto que o preceda no antigo código, o amicus curiae é, assim, introduzido no NCPC sob a perspectiva de um aperfeiçoamento das decisões judiciais e mesmo, afirmarão alguns, como maneira de fazer face ao “déficit democrático de atuação do judiciário brasileiro” (BUENO, 2008, p. 137). Para sondar tal inovação, escolhemos algumas entradas interpretativas e analíticas específicas, tais como a) sua disposição e regulamentação, assim como dispostas no novo código e b) seu potencial como instrumento de e para a mobilização do direito. Referidas entradas se inscrevem no contexto de um questionamento mais abrangente, qual

180 • Participação e mobilização do direito do novo CPC

seja, que interesse há em abrir o processo judicial a outros atores que não as partes?

a) O amicus curiae no NCPC Verificado mais histórica e comumente em países de matriz jurídica de common law, o amicus curiae passou, em escala internacional, por um desenvolvimento qualitativo e quantitativo, baseado na intervenção espontânea e sistemática de terceiros em casos em que há inequívoca importância jurídica e social, objetivando melhor esclarecimento do juiz da causa (MENETREY, 2010). É sobretudo em razão da pressão de organizações não-governamentais norte-americanas e canadenses que o instituto se internacionaliza e, ao fazê-lo, enseja críticas e temores de parte de uma certa franja de atores jurídicos. Alguns vão apontar um risco de instrumentalização do procedimento em detrimento das partes, com a presença de “representantes auto-proclamados da sociedade civilˮ se impondo como novos atores do procedimento. A necessidade de regras para enquadrar tal participação e fazer frente a eventuais riscos, sem descurar das reivindicações dos atores da sociedade civil de serem associados às decisões que os concernem, é apontada como forma de dar segurança e visibilidade ao instituto. Com esse fim, Menetrey (2010) apontará os critérios da independência, da representatividade e da competência como mínimos para que a proposição de amicus curiae seja aceita pelo juízo competente. No âmbito específico da Corte Europeia de direitos humanos (CEDH), Hennebel (2007, p. 643) demonstra igualmente a tensão entre a necessária “abertura democrática do processo” e o fechamento de um “ambiente judiciário essencialmente reservado aos Estados”. O autor apontará a atuação de amici curiae como uma “fenda” ou uma “brecha”, tornando possível a participação no processo de terceiros estranhos às partes, a fim de promover a defesa de um interesse geral ou de um bem comum, ou mesmo para chamar a atenção para a eventualidade e risco de um erro na avaliação, prejudicando indivíduos ou grupos não necessariamente representados. Ao apontar algumas das vantagens no recurso aos “amigos da Corte”, o autor demonstra como tal instituto vem ganhando os favores da CEDH, uma vez que pode, potencialmente, contribuir para a redução dos trabalhos dos juízes internacionais, ao complementar dados e argumentações das partes e ao defender alguns interesses primordiais em questão, eventualmente ignorados pelas par-

Camila Nicácio, Júlia Vidal & Maria Flávia Diniz Viana • 181

tes por questões estratégicas (HENNEBEL, 2007, p. 643). Segundo sua avaliação, estariam na confrontação entre estratégias e atores diversos e na riqueza dos debates trazidos à lume os atributos capazes de interferir nas orientações jurisprudenciais, de modo a aperfeiçoar a qualidade da decisão judicial. No Brasil, o movimento de expansão e de reconhecimento do instituto do amicus curiae é particularmente celebrado com o NCPC/2015, precisamente em seu artigo 1389. Tal norma geral vem se coordenar a outras hipóteses de intervenção de terceiros tratadas no próprio código, tais como o art. 927, § 2º, sobre a alteração de entendimento sumulado ou adotado em julgamento por amostragem; art. 950, §§ 2º e 3º, sobre o incidente de arguição de inconstitucionalidade; art. 983, sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas; art. 1.035, § 4º, sobre a repercussão geral e, finalmente, o art. 1.038, I, sobre os recursos especiais e extraordinários repetitivos. A hipótese geral tratada pelo novo código soma-se ainda a outras já disponíveis em legislação esparsa e anterior, servindo-lhes subsidiariamente de referência, cujo exemplo maior é a lei nº. 9.868/99 (Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade) e aquela de número 9.882/99 (Arguição de descumprimento de preceito fundamental). Tais legislações agregaram ao processo constitucional a figura do amicus curiae, constituindo-se etapa fundamental do caminho de democratização do direito constitucional brasileiro, iniciado com a inclusão, pela Constituição de 88, de novos legitimados ativos para propositura de ações diretas. A intervenção do amicus curiae, via abertura procedimental, foi, naquelas ocasiões, agregada como uma possibilidade de potencializar a participação e pluralizar o debate constitucional, dando voz às opiniões que se formam no meio social e tornando-as eficazes, capazes de efetivamente influenciar as decisões judiciais. Frisa-se que, em um primeiro momento, a participação dos amici se restringiu ao controle abstrato, em que não há partes propriamente ditas, diante da ausência de interesses subjetivos, sendo posteriormente Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação. § 1º A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3o. § 2º Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae. § 3º O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas.

9

182 • Participação e mobilização do direito do novo CPC

estendida ao controle concreto (SARMENTO; NETO, 2012). A tais hipóteses, outras se somariam, a exemplo daquelas previstas na lei nº 10.259/2001 (Juizados Especiais Federais) e na de nº 11.417/2006 (Súmula Vinculante), para citar apenas alguns exemplos. Consideradas globalmente, tais hipóteses indicam a ampliação das possibilidades de admissão do amicus curiae na sistemática processual brasileira, em consonância com o posicionamento já largamente consolidado do Supremo Tribunal Federal, cuja jurisprudência indica reconhecimento de legitimidade às intervenções e colaborações de terceiros, sem substituição das partes. Não nos interessa aqui um estudo extensivo sobre o instituto do amicus curiae, uma vez que o que pretendemos explorar com mais detalhe é sua potencialidade como instrumento de mobilização do direito, o que será feito a seguir. No entanto, realçamos prioritariamente apenas dois enfoques capazes de esclarecer sobre características que lhes são essenciais, afastando dúvidas ainda correntes, no meio jurídico inclusive. Em primeiro lugar, e à luz da nova legislação e do apontamento de seus comentadores, há que se afastar a possibilidade de substituição ou titularização das partes pelo terceiro colaborador, demarcando, a diferença, por exemplo, entre este e um assistente. Nas palavras de Alvim (2015, p. 318): [...] a diferença mais frisante entre o assistente simples e o amicus curiae é que o primeiro intervém com o propósito de ajudar a uma das partes, por ser titular de uma relação ou situação jurídica, de tal forma relacionada com aquela que está sendo objeto do processo, que a sentença nele proferida afetará reflexamente a esfera jurídica deste terceiro, fazendo nascer a sua legitimação e interesse na intervenção; enquanto o segundo intervém apenas para ajudar a sustentar uma tese jurídica, na qual se apoia uma das partes, e que, no futuro, lhe poderá ser pessoalmente útil ou a uma coletividade de pessoas, na mesma situação, quando da discussão em juízo do seu eventual direito.

Ora, o temor de uma apropriação ou instrumentalização indevida do instrumento por parte da sociedade civil não se justifica, uma vez que a intervenção a título de amicus curiae se dá, seja quando solicitada ou quando admitida, sob o signo da “colaboração” ou “cooperação” com o julgador, segundo uma “leitura generosa do modelo constitucional do processo civil brasileiro” (BUENO, 2008, p. 134). Sem que assuma condição de parte na ação, o amicus curiae tem sua intervenção

Camila Nicácio, Júlia Vidal & Maria Flávia Diniz Viana • 183

fundamentada não no interesse jurídico pela vitória de um dos lados, mas no fomento e prestação de informações suscetíveis de qualificar, ao clareá-la, a decisão. Em segundo lugar, é necessária uma breve reflexão sobre a “relevância da matéria” e “representatividade adequada” como critérios para admissão/solicitação da intervenção. Ainda que não se substitua às partes, o amicus curiae não é, contudo, um desinteressado em absoluto. Ele se situa, normalmente por uma atuação pregressa e/ou atual, em lugar privilegiado para opinar – donde sua representatividade ser identificada – sobre tema que se destaca de especial relevância para grupos específicos da população. Nesse sentido se pronunciam Mitidiero, Marinoni e Arenhart ao comentar o NCPC: O objetivo da intervenção é o aperfeiçoamento da decisão judicial, subsidiando o magistrado e o processo com argumentos e considerações mais profundas, para a adequada definição do litígio. Embora não se exija imparcialidade do amicus curiae, a função de auxiliar do Judiciário que lhe é inerente impõe, ao menos, que o amigo da Corte não tenha nenhum interesse jurídico (relação jurídica conexa ou dependente da relação deduzida no processo) no feito, sob pena de essa intervenção transformar-se em uma assistência escamoteada (art. 119, CPC). A admissão do amicus curiae no processo exige a aferição de sua representatividade adequada, ou seja, da efetiva verificação de que ele (pessoa natural ou jurídica) tem condições de representar certo grupo, categoria ou interesse e que efetivamente o faz ao longo do processo. (2015, p. 210, grifo nosso).

Ao seu turno, Bueno (2008) identifica a tensão existente entre interessados que gravitam do lado de “fora do processo” e que são, em tese, suscetíveis de serem atingidos por decisão tomada “dentro do processo”, ainda que, como dissemos, não sejam partes constituídas na ação. O amicus curiae, valendo-se de sua experiência e representatividade na matéria em questão, invoca para si o lugar de representante desses interesses que não necessariamente se fazem representar. Nesse sentido é que o autor afirma que “sua admissão em juízo depende sempre e em qualquer caso da comprovação de que ele, amicus, apresenta-se no plano material (isto é: “fora do processo”) como um “adequado representante destes interesses” (2008, p. 133). Refletir sobre a delicada, porém evidente, tensão existente entre o “fora” e o “dentro” do processo nos impele a sondar as relações entre o campo político e o campo jurídico, assim como passamos a fazer.

184 • Participação e mobilização do direito do novo CPC

b) Quando o político e o jurídico se entrelaçam Em uma análise recente sobre os “usos militantes do direito”, Danièle Lochack apontará a caracterização do mesmo como um “instrumento” ou “arma” a serviço de uma causa, normalmente relacionada a associações ou organizações não governamentais (2016, p. 1). As análises de tais usos do direito constituem objeto de um ramo à parte na sociologia contemporânea, cunhado na expressão inglesa cause lawyering (ISRAËL, 2001; GAÏTI; ISRAËL, 2003)10. Importa a tal ramo sondar como a conciliação é feita entre prática profissional e engajamento militante na defesa de franjas da população marginalizadas ou excluídas, além de perscrutar como os movimentos sociais se apropriam do direito quando de suas ações ou, ainda, quais as formas de articulação entre o combate jurídico (e suas armas) e o combate político (e suas armas). Como um exemplo fundador, a autora menciona a experiência da Liga de direitos humanos (LDH), que ainda no século XIX, ocupava-se não somente de evidenciar as violações de direitos garantidos legalmente, como também de apontar as causas de tais violações e de reivindicar novos direitos. Segundo a socióloga, “a experiência da LDH testemunha, ao mesmo tempo, do caráter intrinsecamente político da defesa dos princípios da igualdade e do respeito dos direitos fundamentais e, correlativamente, a inapelável politização das reivindicações formuladas no campo do direito” (LOCHACK, 2016, p. 3, tradução nossa). Segundo tal perspectiva, o Estado de direito permitiria a proteção dos direitos existentes, mas não necessariamente o alargamento do campo das liberdades, a partir da emergência de novos direitos, donde o vital entrelaçamento entre combate político e combate jurídico via um uso militante do direito. A experiência de movimentos de contestação ligados a minorias, vide movimento feminista, LGBT, ecologistas, moraNo contexto das análises do “cause lawyering” interessa se perguntar não somente sobre o que o direito pode fazer à causa (como, por exemplo, em termos de canal de expressão de descontentamento e condições para novos engajamentos), mas também e inversamente ao que a causa pode fazer ao direito (abertura de novos campos de competências aos juristas e possibilidade de transformação das instituições e das práticas que daí advêm), sendo “causa” aqui revestida de um duplo sentido, o objeto da própria ação judicial e o conjunto de interesses pelos quais um grupo se organiza e faz valer sua mobilização. Ao atuar com frequência em países em que se observa a matriz jurídica do common law, os cause lawyers são normalmente relacionados a uma advocacia vocacionada a defender públicos marginalizados (imigrantes, minorias, excluídos etc.), o que os aproximaria da noção de « advogados populares », mais corrente no contexto brasileiro e de que falaremos mais abaixo. Tais advogados, comprometidos com o reconhecimento e o tratamento de referidas causas, desenvolvem estratégias renovadas de ação, em que se confundem orientação, aconselhamento, assistência jurídico-judiciária, representação diante dos poderes públicos, dentre outras. (GAÏTI; ISRAËL, 2003, p. 19 e 20). 10

Camila Nicácio, Júlia Vidal & Maria Flávia Diniz Viana • 185

dores de rua, dentre outros, seria exemplo de uma dupla transposição: das reivindicações políticas à linguagem dos direitos humanos e do recurso ao direito, mormente à sua dimensão contenciosa, como instrumento de luta no campo político (LOCHACK, 2016, p. 4). Se o contencioso faz parte integrante do arsenal utilizado por tais movimentos, outros expedientes seriam, conforme apontado, de mais a mais solicitados, vide intervenções voluntárias, baseadas, por exemplo, no instituto do amicus curiae. A estratégia judiciária, voluntária ou não, se inscreve, assim, em uma estratégia política, em que reivindicação por direitos e denúncia de violações são indissociáveis (LOCHACK, 2016, p. 9). Uma outra característica, fundamental e decisiva, marcaria tais movimentos em sua origem, assim como advertem Gaïti e Israël: [...] a indexação das causas em torno da criação, afirmação e respeito dos direitos para a caracterização e reparação das injustiças situa os promotores dessas causas judiciais como seus co-construtores. [...] O que se deixa entrever dos estudos norte-americanos sobre o cause lawyering é que, para além dos valores defendidos, da entrega comprometida e do altruísmo reivindicado, tais práticas jurídicas e judiciárias se fundam em uma crença fundamental, a da eficácia do próprio direito. (2003, 27-29, tradução nossa).

Tal confiança no direito como “ordenador” do mundo social é marcada, contudo, por uma ambivalência inerente ao próprio direito, a de se prestar, ao mesmo tempo, como vetor de conservação/repressão social, por um lado, e de recurso nas lutas de contestação, por outro (ISRAËL, 2009). Entre subversão e conservação, o que se evidencia é que a mobilização do direito, seja por juristas ou por não juristas, não permite postura neutra com relação a tais campos; ao contrário, implica julgamento de valor avisado, esclarecido, em tempos de maior judiciarização, expressa pelo aumento do volume do contencioso, e juridicização, consubstanciada em ampliação dos temas abrangidos pelo direito (COMMAILLE, 2002; BELLEY, 1993). No Brasil, a disputa pela mobilização do direito, entre uma perspectiva conservadora ou de contestação, tem avolumado curso sobretudo quando da ditadura militar e posterior a ela. De fato, ao final dos anos 70 e começo dos anos 80, uma miríade de novos atores sociais retomariam a cena política e jurídica reclamando o retorno à ordem democrática e o desenvolvimento de uma cidadania mais ativa. Durante esse período, para além das associações de bairro, inúmeros outros atores

186 • Participação e mobilização do direito do novo CPC

coletivos foram criados, a exemplo das organizações civis e religiosas (como as Comunidades Eclesiais de Base – CEB); movimentos sociais urbanos (por exemplo as associações de favelas); as associações profissionais ; os sindicatos de trabalhadores da indústria; a Central única dos trabalhadores (CUT); o Congresso da classe trabalhadora (CONCLAT), ao mesmo tempo em que outros se reforçaram, vide instituições tradicionais como Conferência nacional dos bispos do Brasil, a Ordem dos advogados do Brasil (OAB) e a Associação brasileira de imprensa (ABI) (NICÁCIO, 2013). Se as ações daqueles novos atores encontraram na luta pela redemocratização um ponto em comum, elas se concentram, acessoriamente, sobre a questão do acesso à justiça, entendido como necessidade fundamental, e isso sobretudo no que concerne às populações desfavorecidas11. Tratava-se de democratizar o acesso aos tribunais, mas também de proceder ao reconhecimento daqueles novos atores sociais e das novas normatividades que emergiam pelo viés de suas ações (NICÁCIO, 2013). Assim, movimentos importantes se formaram e se consolidaram durante os anos 80 e 90, mormente em algumas universidades e tribunais, graças à ação de grupos de acadêmicos e juízes. No Brasil da consolidação democrática, o “mouvement critique du droit”, que havia se difundido na França nos anos 70, foi aparentemente o responsável pelas mais frutuosas iniciativas de sensibilização de professores, estudantes, juízes e advogados à tensão existente entre justiça social e igualdade formal. Tal movimento, inspirado de uma orientação crítica do positivismo jurídico, mirou o desenvolvimento de uma corrente de pensamento reconhecida no Brasil com o nome de Nova Escola Jurídica Brasileira, que, sob os auspícios de Roberto Lyra Filho, terá como interlocutores na França sobretudo Michel Miaille, Antoine Jemmeaud e André-Jean Arnaud. Inscritas nessa linha de ideias, duas tendências marcantes da época foram: o direito achado na rua e o direito alternativo (SOUZA JUNIOR, 2008; JUNQUEIRA, 1992). A primeira, desenvolvida no seio da Universidade de Brasília, postulava um projeto de difusão popular do ensino jurídico, enquanto que a segunda, levada a cabo por magistrados, mirava a valorização da função social dos juízes, a partir da reformulação de sua formação e do recurso aos princípios gerais do direito – ainda que a despeito de algumas leis – como fundamentos axiológicos dos julgados. Nesse sentido, muitos autores lembrarão de como novos atores sociais, inicialmente mobilizados em torno da proteção de prisioneiros políticos, continuariam, depois da transição democrática, suas ações em favor dos mais necessitados. (CAPPELLER, 1992; OLIVEIRA, 1992). 11

Camila Nicácio, Júlia Vidal & Maria Flávia Diniz Viana • 187

A efervescência que tomou conta dos meios universitário e judiciário à época, verificou-se em outras cenas sociais, a partir de dinâmicas de grupos mistos, tais como advogados militantes e associações de interesses específicos. Tem-se aqui, por exemplo, o caso do movimento das donas de casa, um dos primeiros a ganhar as ruas para reclamar o respeito aos direitos dos consumidores. Destacaram-se igualmente a OAB e as organizações sociais cujas ações tratavam dos direitos da infância e adolescência. Em razão da organização desses grupos de pressão e suas estratégias de mobilização política e jurídica, ocorreu a promulgação de dois textos legislativos de primeira grandeza no contexto sociopolítico brasileiro (a saber: o Código de defesa do consumidor e o Estatuto da criança e do adolescente), na sequência de um debate aberto a vários setores sociais – o que pareceu, à época, marcar, em definitivo, o retorno dos dias democráticos (NICÁCIO, 2013). Mais perto de nós, e no espírito das reivindicações das décadas passadas, novos atores emergem, seja nas universidades, nos bairros, nos aglomerados, e participam ativamente da vida da cidade, via mobilização, indissociada e ativa, do campo do direito e do campo político12. A atuação desses grupos é o que passamos a sondar na seção que segue, pelo intermédio da análise de casos concretos de intervenção e participação pela via de amicus curiae.

3. Na prática: a repercussão geral, o amicus curiae e a inclusão de minorias. Como já evidenciado, a inovação democrática oriunda do instituto amicus curiae tende a permitir a reinvindicação de direitos a populações minoritárias, historicamente alijadas de qualquer processo democrático e expostas aos mais diversos tipos de violência. A população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), nesse contexto, recebe um destaque no que concerne à demanda por direitos e reconhecimento, tendo em vista as condições de vulnerabilização enfrentadas. Segundo Bahia (2015) e Silva (2015), os dados de homofobia no Brasil foram tema de destaque pela primeira vez somente em 2012, ano em que o Poder público: Nesse sentido, e ilustrando duas perspectivas diversas, chamamos atenção para o trabalho do Coletivo Margarida Alves – Assessoria Popular (Belo Horizonte, Minas Gerais) e da Clínica de Direitos Humanos (CdH) da UFMG, cujo perfil de atividades pode ser, reciprocamente, vislumbrado nas produções que seguem (ISAÍAS; ASSAD, 2015) e (CDH, 2015 e 2016). 12

188 • Participação e mobilização do direito do novo CPC

[...] apresentou um relatório com dados referentes a 2011: foram registradas 6.809 denúncias de violações aos direitos humanos da população LGBT, dentre as quais 278 foram homicídios, merecendo destaque o fato de que a maioria dos casos de violência contra LGBTs é praticada por pessoas conhecidas da vítima (61,9%), o que mostra o sentimento de impunidade do ofensor. Em 2013, com os dados referentes ao ano de 2012, a violência homofóbica cresceu 166% em relação a 2011, tendo sido registradas 9.982 violações relacionadas à população LGBT, das quais 310 foram homicídios13.

Referida situação de vulnerabilidade se torna ainda mais explícita quando nos atentamos para a violência letal que incide sobre os corpos de travestis e transexuais no país que, apesar de sua considerável invisibilidade14, assume números cada vez mais alarmantes. De acordo com os dados publicados pelo Projeto de Monitoramento de Homicídios Trans (Trans Murder Monitoring), de janeiro de 2008 a abril de 2016, ocorreram 845 mortes de pessoas trans no país; apenas nos três primeiros meses do ano foram contabilizadas 42 mortes.15 Diariamente, referida população não somente é alvo de violências psicológicas, físicas, institucionais e familiares, como igualmente tem um acesso mais restrito a direitos sociais básicos. Nesse sentindo, as demandas oriundas da população de travestis e transexuais se inserem como emergencial nessa nova seara de possibilidades de intervenções. Diante desse cenário, o Supremo Federal reconheceu recentemente a repercurssão geral de dois recursos extraordinários16, passíveis de intervenções com amicus curiae, relativas a direitos da população de travestis e transexuais. O primeiro versa sobre a possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo17, asDisponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jan-05/stf-reconhecer-demora-congresso-criminalizar-homofobia. Acesso Set/16. 14 Nesse sentido cumpre ressaltar a lacuna legal existente nos instrumentos de notificação de delitos, fase primeira para início da ação penal que, até recentemente no estado de Minas Gerais, por exemplo, careciam de campos imprescindíveis para a caracterização dessa violência, como o de “identidade de gênero” e “orientação sexual”. 15 Disponível em: http://transrespect.org/wp-content/uploads/2016/05/TvT_TMM_IDAHOT2016_ Tables_EN.pdf. Acesso Set/16. 16 Para Barroso: “é em sede de recurso extraordinário que a Corte Suprema desempenha, normalmente e em grande volume, a fiscalização concreta de constitucionalidade de leis e atos normativos”, cujo cabimento deverá corresponder ao disposto nos termos do art. 102, inc. III da Constituição da República (BARROSO, 2012, p. 87). 17 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Alteração do registro civil sem mudança de sexo será analisada pelo STF. Disponivel em : http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=275563 13

Camila Nicácio, Júlia Vidal & Maria Flávia Diniz Viana • 189

sentada no Recurso Extraordinário nº 670.422. O ministro relator, Dias Toffoli, ao reconhecer a repercurssão geral no Recurso, alegou: As matérias suscitadas no recurso extraordinário, relativas à necessidade ou não de cirurgia de transgenitalização para alteração nos assentos do registro civil, o conteúdo jurídico do direito à autodeterminação sexual, bem como a possibilidade jurídica ou não de se utilizar o termo transexual no registro civil, são dotadas de natureza constitucional, uma vez que expõe os limites da convivência entre os direitos fundamentais como os da personalidade, da dignidade da pessoa humana, da intimidade, da saúde, entre outros de um lado, com os princípios da publicidade e da veracidade dos registros públicos de outro. Assim, as questões postas apresentam nítida densidade constitucional e extrapolam os interesses subjetivos das partes, pois, além de alcançarem todo o universo das pessoas que buscam adequar sua identidade de sexo à sua identidade de gênero, também repercutem no seio de toda a sociedade, revelando-se de inegável relevância jurídica e social18.

O recurso em questão, apesar de ainda não ter ido a plenário para julgamento, ancora-se em demandas latentes da população de travestis e transexuais, no que diz respeito à possibilidade de reconhecimento de uma realidade já experienciada, e caso seja julgada de forma procedente, sinaliza uma vitória significativa no que toca aos direitos dessa população. Até a presente data, contudo, apenas 2 (dois) pedidos de inclusão de participação como amicus curiae foram feitos, o que é largamente representativo da invisibilidade que afeta o público diretamente concernido. O segundo recurso discorre sobre o pedido de danos morais à transexual abordada no banheiro feminino por uma funcionária de um shopping, e a quem se solicitou que fizesse uso do banheiro masculino. Amparada no Recurso Extraordinário nº 845.779, a questão foi submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal que, em sede de julgamento do RE 845.779/SC, iniciou o julgamento sobre o direito de transexuais serem tratados socialmente de forma condizente com sua identidade de gênero. Ao seu turno, o ministro Luís Roberto Barroso, ao reconhecer a repercursão geral sobre o tema, argumentou no seguinte sentido: [...] diferentemente do imenso varejo de miudezas que ainda BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso 670.422. Relator Ministro Dias Toffoli. Julgado em 20 de agosto de 2014. 18

190 • Participação e mobilização do direito do novo CPC

ocupam o tempo desta Corte, as teses ora discutidas inserem-se na órbita de uma das missões precípuas das Cortes Constitucionais contemporâneas: a definição do alcance dos direitos fundamentais, especialmente daqueles referentes às minorias. A essencialidade do tema e seu impacto no tratamento social dos grupos afetados, por si sós, já justificariam a necessidade do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal.19

Após a admissibilidade do recurso em questão, foram protocoladas 6 (seis) petições com pedido de intervenção como amicus curiae. Os pedidos vinham de instituições diversas, desde movimentos universitários, conselhos e associações que trabalham com a temática de gênero e sexualidade, tais como: o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS), o Centro Latino-Americano em sexualidades e Direitos Humanos (CLAM) e o Laboratório Integrado em Diversidade Sexual e de Gênero, Políticas e Direitos (Lidis) – ambos representados pela Clínica de Direitos Fundamentais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) –, bem como a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), e o Grupo Dignidade pela Cidadania de Gays, Lésbicas e Transgêneros, dentre outros. No que concerne ao documento elaborado pela ABGLT, requerendo a admissibilidade no recurso, alega-se como evidente que o tema do Recurso Extraordinário nº 845.779 “representa uma das situações típicas de violações de direitos humanos e da dignidade humana de pessoas transexuais e travestis, as quais cotidianamente estão expostas a situações humilhantes e degradantes, sendo relatada nestes autos apenas um exemplo.” (KIRCHHOFF, 2015). Dos 6 (seis) pedidos de admissão, cumpre ressaltar, ainda, que 3 (três) foram declarados inadmissíveis, seja pelo requerimento ter sido feito depois da data de inclusão do processo em pauta ou por critérios de carência de representatividade e âmbito de atuação. Nesse cenário, a peça de amicus curiae elaborada pela Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ merece destaque no que concerne à possibilidade de intervenção direta nas decisões dos magistrados, haja vista que os dois ministros votantes utilizaram os argumentos elencados na referida peça para sustentar seu voto em sentido favorável ao pleito. Além de apontar as normativas nacionais que versam sobre o nome social de pessoas trans, o documento em questão abordou o panorama de violência e vulnerabilização que circunda a vivência da transexualidade BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão geral no recurso nº 845.779. Relator Ministro Roberto Barroso. Julgado em 19 de novembro de 2015.

19

Camila Nicácio, Júlia Vidal & Maria Flávia Diniz Viana • 191

no país, destacando a relevância social da decisão, na medida em que “as pessoas trans são uma minoria vulnerável e historicamente marginalizada, marcada pela discriminação, pela invizibilização e exclusão da sociedade” (UERJ, 2015, p. 23); elencou também normativas internacionais na defesa do pleito, conforme atesta excerto do documento: Note-se que a proteção da dignidade dos indivíduos envolve ainda uma dimensão reparatória. Em outras palavras, quando a dignidade de alguém é ofendida impõe-se o pagamento de danos morais pelo injusto sofrido. Consequentemente, as violações à dignidade humana decorrentes da negativa do exercício do direito à identidade de gênero ensejam o pagamento de indenização pecuniária (UERJ, p. 13).

Na esteira desse raciocínio, no momento de proferir o voto amplamente favorável, o ministro relator, Luís Roberto Barroso, atesta: [...] que a solução constitucionalmente adequada consiste no reconhecimento do direito dos transexuais serem socialmente tratados de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive no que se refere à utilização de banheiros de acesso público. [...] É possível, senão provável, que a aceitação social a identidades de gênero que fogem ao padrão culturalmente estabelecido gere estranheza e até constrangimento em grande parte da população brasileira. Afinal, trata-se de uma realidade que passou a ser abertamente exposta e debatida há relativamente pouco tempo. Vivemos, porém, em um Estado Democrático de Direito, o que significa dizer que a maioria governa, mas submetida à necessária observância aos direitos fundamentais – de quem quer seja, qualquer que seja sua identificação de gênero20.

Em seguida, o Ministro Edson Fachin proferiu seu voto também em sentido favorável ao pleito. O ministro, assim, não apenas caracterizou a conduta do shopping como atentadora aos dispositivos constitucionais pátrios, majorando a indenização para R$ 50 mil, como igualmente atestou a necessidade de ser providênciada a “reautuação do [...] recurso para que se inclua o nome social da requerente”. Dos casos acima analisados, resta patente a importância em promover discussões acerca do direito dos transexuais de serem reconhecidos pela sua identidade de gênero21. Infere-se, ainda, que a concepção de BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão geral no recurso nº 845.779. Relator Ministro Roberto Barroso. 21 Ainda sobre a temática, Gomes (2016) discute a questão de sensibilidade e acessibilidade do Su20

192 • Participação e mobilização do direito do novo CPC

direito à identidade de gênero enquanto direito fundamental, consubstanciado nos valores de dignidade, liberdade e igualdade (ANDRADE, 2016) e, até mesmo, direito humano, se estabelece em contra fluxo a um histórico de marginalização, exclusão social e invisibilidade impostas às identidades travestis e transexuais. Ao que nos interessa, a importância de elaboração de amicus curiae aparenta possibilitar a intervenção e mobilização do direito nesses casos, sendo ao menos, uma possibilidade de dar voz às reinvindicações dessas minorias estigmatizadas. Pela “excepcionalidade” do tema, e pelo baixo índice de conhecimento por parte dos julgadores a seu respeito, referido instituto assume um papel cada vez mais importante no que toca ao esclarecimento de algumas questões para os ministros da Suprema Corte. Como exemplificado, até então, ambos os Recursos Extraordinários propostos no tribunal máximo brasileiro não têm recebido muitas manifestações via amicus curiae, reduzindo, assim, a possibilidade de intervenção e ajuda junto ao STF quanto à elaboração de decisões mais justas, razoáveis e adequadas sobre o tema.

4. Considerações finais Em tempos de crítica a respeito da “autocracia do judiciário” como pilar de um “estado de exceção” permanente (BAHIA; CATTONI; BACHA, 2016), as medidas em favor da abertura do sistema de direito à participação social chegam a soar como providenciais. O novo código, gestado durante anos a fio nas casas legislativas vem, mormente no que toca à regulamentação do amicus curiae, emprestar ganhos de legitimidade sistêmicos às decisões judiciais, ao mesmo tempo em que opera como instrumento de denúncia das incongruências e equívocos das mesmas. Pelos exemplos a que recorremos, percebe-se que a simples possibilidade de abertura à participação não implica necessariamente incremento de participação, o que carece tempo, preparação e, igualmente, uma certa pedagogia ou aprendizado social capaz de decodificar os tribunais, junto ao público em geral, como arenas capazes de absorver reivindicações minoritárias e traduzi-las em termos de direitos, para premo Tribunal Federal (STF) no que concerne questões de gênero, e defende que a acessibilidade a populações minotirarias ao pleito, bem como as decisões favoráveis aos direitos de gênero, são requisitos necessários para que referida corte possa ser considerada protetiva nesse quesito. In: GOMES, Juliana Cesario Alvim. O Supremo Tribunal Federal em uma perspectiva de gênero: mérito, acesso, representatividade e discurso. Direito & Praxis. Rio de Janeiro, vol. 07, nº15, 2016, p. 652-676.

Camila Nicácio, Júlia Vidal & Maria Flávia Diniz Viana • 193

protegê-los, resguardar-lhes efetividade, quando não ampliá-los. Produzida nesses termos, a intervenção via amicus curiae se inscreve no que chamamos aqui de “mobilização do direito” ou “usos militantes do direito”, marco sem equívoco da correlação entre os campos político e jurídico, pois que expressão da necessidade de participação de uma sociedade em transformação, em que os debates no seio do espaço público são normalmente retranscritos no campo jurídico sob a forma de controvérsias entre juristas (CHEVALLIER; LOCHACK, 2016) – sem poder, contudo, permanecer confinados unicamente em suas mãos. Se tais usos do direito não se inauguram com o novo código, é forçoso admitir que, à luz de sua elaboração, condições ampliadas de participação se desenham como uma promessa de maior conexão entre sistema e jurisdicionado, interferindo, sobretudo, na quantidade e qualidade de representação de setores sociais inteiros, assim como o exemplo do público de transexuais pretendeu demonstrar.

Referências bibliográficas AGRIKOLIANSKY, Eric. Les usages protestatoires du droit. In: AGRIKOLIANSKY, E.; FILLIEULE, O.; SOMMIER, I. (dir.), Penser les mouvements sociaux, La Découverte, Coll. Recherches, 2010, p. 225-243. ALVIM, J. E. Carreira. Comentários ao novo Código de Processo Civil. Curitiba: Juruá, 2015. ANDRADE, Larissa. Direito à identidade de gênero à luz da constitucionalização do Direito Civil: análise do Projeto de Lei João W. Nery (PL nº 5.002/2013). 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40126/direito-a-identidade-de-genero-a-luz-da-constitucionalizacao-do-direito-civil-analise-do-projeto-de-lei-joao-w-nery-pl-n-5-002-2013, consultado dia 28 de setembro de 2016. AVRITZER, Leonardo; MARJORIE, Marona e GOMES, Lilian. Cartografia da Justiça no Brasil, uma análise a partir de atores e territórios. São Paulo: Saraiva, 2014. BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes; BACHA E SILVA, Diogo; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Autocracia judicial? O poder judiciário e o risco do estado de exceção. Dispónivel em :

194 • Participação e mobilização do direito do novo CPC

http://emporiododireito.com.br/autocracia-judicial-o-poder-judiciario-e-o-risco-do-estado-de-excecao-por-alexandre-gustavo-melo-franco-de-moraes-bahia-diogo-bacha-e-silva-e-marcelo-andrade-cattoni-de-oliveira/, consultado dia 28 de setembro de 2016. BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes; BACHA E SILVA, Diogo. STF deve reconhecer demora do Congresso em criminalizar homofobia. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jan-05/stf-reconhecer-demora-congresso-criminalizar-homofobia. Acesso Set/16. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012. BELLEY, Jean-Guy (entrée : juridicisation). In : ARNAUD, André-Jean (dir.). Dictionnaire encyclopédique de théorie et de sociologie du droit. 2ème éd. Paris : LGDJ, 1993, p. 319 et s. BUENO, Cássio Scarpinella. Quatro perguntas e quatro respostas sobre o amicus curiae. Revista da Escola Nacional de Magistratura, v. 2, n. 5 , abr. 2008, p. 132-138. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso 670.422. Relator Ministro Dias Toffoli. Julgado em 20 de agosto de 2014. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão geral no recurso nº 845.779. Relator Ministro Roberto Barroso. Julgado em 19 de novembro de 2015. CAMPILONGO, Celso Fernandes, « O judiciário e a democracia no Brasil », Revista USP, v. 21, mars/avril/mai, São Paulo, 1994, p. 116-125. CAPPELLER, Wanda, Un regard différent, l’Amérique latine, les juristes et la sociologie, Paris, L.G.D.J, Droit et société, n. 22, 1992, p. 363-373. CHEVALLIER, Jacques ; LOCHACK, Danièle. Les juristes dans l’espace public. Droit et société. 2016/2. (nº 93). P. 359-374. CLÍNICA DE DIREITOS HUMANOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (CdH). Recomendação da Clínica de Direitos Hu-

Camila Nicácio, Júlia Vidal & Maria Flávia Diniz Viana • 195

manos da UFMG sobre o PL 5555/2013. Belo Horizonte: setembro, 2015. CLÍNICA DE DIREITOS HUMANOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (CdH) e outros. Resumo executivo apresentado pela CdH perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos na Audiência Temática “Direitos Culturais e Internet no Brasil” do 157º período ordinário de sessões. Washington D.C: abril, 2016. COMMAILLE, Jacques, La judiciarisation. Une nouvelle économie de la légalité face au social et au politique ?, Note de bilan d’étape du groupe « Judiciarisation de la société et du politique », CERAT, 17 février 2002, p. 1. DURO, Cristiano ; FREITAS, Chirstiano Rodrigo Gomes de. Legitimação decisória no Novo Código de Processo Civil. Revista Opinião Jurídica (Fortaleza). 2014, v.12, n.16 FARIA, José Eduardo. Direito e Justiça no século XXI: a crise da Justiça no Brasil. Texto apresentado no Colóquio Internacional – Direito e Justiça no Século XXI, Coimbra, 29 a 31 de maio de 2003. GAÏTI, Brigitte; ISRAËL, Liora. Sur l’engagement du droit dans la construction des causes, Politix, n° 62, 2003, p. 17-30. GOMES, Juliana Cesario Alvim. O Supremo Tribunal Federal em uma perspectiva de gênero: mérito, acesso, representatividade e discurso. Direito & Praxis. Rio de Janeiro, vol. 07, nº15, 2016, p. 652-676. HENNEBEL, Ludovic. Le rôle des amici curiae devant la Cour européene des droits de l’homme. Revue Trimestrielle des droits de l’homme. (71-2007). P. 641-668. ISAÍAS, Thaís Lopes Santana; ASSAD, Carolina Spyer Vieira. A tese patrimonialista e seus reflexos na cidade-mercado: uma análise à luz do conflito da Izidora. Direito urbanístico, cidade e alteridade [Recurso eletrônico on-line]. Organização CONPEDI/ UFMG/FUMEC/Dom Helder Câmara; Coordenadores: Edson Ricardo Saleme, Flavia Piva Almeida Leite, Daniel Gaio – Florianópolis: CONPEDI, 2015. p. 96-111.

196 • Participação e mobilização do direito do novo CPC

ISRAËL, Liora. Usages militants du droit dans l’arène judiciaire : le cause lawyering. Droit et société. 49-2001. P. 793-824. ISRAËL, Liora. L’arme du droit. Paris: Presses de Sciences-po. 2009. JUNQUEIRA, Eliane Botelho, La sociologie juridique brésilienne à travers le miroir, Paris, L.G.D.J, Droit et société, numéro 22, 1992, p. 433444. KIRCHHOFF, Advocacia. Pedido de intervenção como amicus curiae no recurso extraordinário nº 845.779. Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais Travestis e Transexuais (ABGLT), Curitiba, 2015. LOCHACK, Danièle. Les usages militants du droit. La Revue des droits de l’homme. 10, 2016. P. 1-14. MENETREY, Séverine. L’amicus curiae, vers un principe commun de droit procédural ? Paris: Dalloz, 2010. MITIDIERO, Daniel; MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2015. MOUZALAS, Rinaldo ; NETO, João Otávio Terceiro ; MADRUGA, Eduardo. Processo Civil : volume único. 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. NICÁCIO, C. S. Des normes et des liens. Médiation et complexité juridique. 1. ed. Saarbrücken: Presses Académiques Francophones, 2013. NUNES, Dierle. Processo Jurisdicional Democrático. Curitiba: Juruá Editora, 2010. OLIVEIRA, Luciano, Violation des droits de l’homme et re-démocratisation au Brésil, sous l’État scélérat, la société perfide, Paris, L.G.D.J, Droit et société, n. 22, 1992, p. 447-463. ROQUE, André Vasconcelos. Dever de motivação das decisões judiciais e controle da jurisprudência no novo CPC, in Alexandre Freire et al.

Camila Nicácio, Júlia Vidal & Maria Flávia Diniz Viana • 197

(Org.), Novas tendências do processo civil. Salvador: Juspodivm, 2013, v. 1, p. 247-263. SADEK, Maria Teresa; LIMA, Fernão Dias de; ARAÚJO, José Renato de Campos. O Judiciário e a prestação de justiça. In SADEK, Maria Teresa (coord.), Acesso à justiça. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001, p. 13-41. SADEK, Maria Tereza et ARANTES, Rogério Bastos, “A crise do judiciário e a visão dos juízes”, Revista USP, v. 21, mars/avril/mai, São Paulo, 2007, p. 34-45. SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012. 1233 KB:e-pub. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de Sousa Júnior. Direito como liberdade: o Direito achado na Rua, experiências populares emancipatórias de criação do direito, thèse de doctorat, Brasília, s.n., 2008. STRECK, Lênio. O que fazer quando juízes dizem que o novo CPC não deve ser obedecido? Disponível em https://estudosnovocpc.com. br/2015/09/14/lenio-streck-fala-sobre-a-onda-anti-novo-cpc/, acessado no dia 25 de setembro de 2016. THEODORO JUNIOR, Humberto ; NUNES, Dierle ; BAHIA, Alexandre de Melo Franco, PEDRON, Flávio Quinadu. Novo CPC. Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015. TRANSGENDER EUROPE. Projeto de Monitoramento de Homicídios Trans (Trans Murder Monitoring). Disponível em : http://transrespect.org/ wp-content/uploads/2016/05/TvT_TMM_IDAHOT2016_Tables_EN.pdf, acessado em Set./2016. UERJ, Clínica de Direitos Fundamentais. Intervenção como amicus curiae no recurso extraordinário nº845.779. Centro Latino-Americano em sexualidades e Direitos Humanos (CLAM) e Laboratório Integrado em Diversidade Sexual e de Gênero, Políticas e Direitos (Lidis). 2015.

MEDIAÇÃO E INTERCULTURALIDADE: A CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO PARA A EFETIVIDADE Miracy Barbosa de Sousa Gustin1 Giselle Fernandes Corrêa da Cruz2 Resumo: A finalidade precípua desta comunicação é discutir o conteúdo do novo CPC, bem como da Lei nº 13.140/2015, que dispõe sobre a mediação, à vista de novas questões sociais que ainda não estão convenientemente abordadas pela legislação. Muito especialmente os problemas que se relacionam à mediação aplicada de forma intercultural, ou entre culturas diversas. O aumento do fluxo de imigração no Brasil nos últimos anos é uma realidade crescente e que demanda meios efetivos de inserção social dos imigrantes. A maior parte desses grupos encontra-se em situação de forte vulnerabilidade e de privações no acesso à justiça, aos bens e serviços públicos, assim como às decentes condições de trabalho e de sobrevivência. A Mediação Intercultural é apresentada como uma forma de efetivação de direitos nos processos de inserção social de imigrantes. Palavras-chave: Mediação. Interculturalidade. Efetividade jurídica. Fluxos imigratórios. Abstract: The main purpose of this communication is to discuss the content of the new CPC and Law No. 13,140 / 2015, which provides for mediation, in view of the new social issues that are not properly addressed by the legislation. Especially the problems relating to the mediation applied across cultures, or between different cultures. The growing of Brazilian flow of immigration in recent years is an increasing reality and demands effective means of social integration of immigrants. Most of GUSTIN, Miracy B. S. Professora Associada da Faculdade de Direito da UFMG (Aposentada). Professora do Corpo Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito - UFMG. Professora do Mestrado em Direito da Universidade de Itaúna. Pós-doutorado pela Universidade de Barcelona – CAPES. Doutora em Filosofia do Direito e Mestre em Ciência Política UFMG. Membro da Câmara de Ciências Sociais Aplicadas da FAPEMIG. 2 CRUZ, Giselle F.C. Professora no curso de Direito do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix - MG. Doutoranda em Direito na UFMG. Pesquisadora do Programa Cidade e Alteridade da UFMG e do Observatório das Migrações Internacionais de Minas Gerais. 1

Miracy Barbosa de Sousa Gustin & Giselle Fernandes Corrêa da Cruz • 199

these groups is in a situation of high vulnerability and deprivation with a view to the access to justice, public goods and services, as well as to decent working conditions and survival. The Intercultural mediation is presented as a way of enforcing rights in the social integration process of immigrants. Keywords: Mediation. Interculturality. Legal effectiveness. Immigration flows.

Introdução Diante da necessidade ampliada de acesso à justiça e da atual complexidade social, que também se mostra crescente, e o fato de que instrumentos jurisdicionais têm sido insuficientes e ineficientes para atenderem o surgimento da multiplicidade de demandas, tornou-se indispensável a busca por meios alternativos de solução de conflitos. Esta complexidade envolve, inclusive, um número crescente de processos ao lado de uma morosidade processual que inevitavelmente prejudicam a prestação judicial efetiva, ou seja, que corresponda às necessidades e demandas sociais. A análise da efetividade da mediação entre participantes de culturas diversas é o núcleo temático deste artigo. Antes precisaremos pontuar teoricamente alguns elementos centrais desta abordagem. Ao mesmo tempo, entendamos que o processo de mediação é uma das formas de resolução extrajudicial de conflitos que tem sido aplicada e desenvolvida, por programas sociais ou universitários e pelo próprio judiciário, com o objetivo final não só de corresponder às demandas de solução de conflitos, como também com o propósito de desobstruir as esferas judiciais e de construir nas organizações locais e nos indivíduos ou grupos em litígio a consciência das condições em que esses conflitos ou interesses se instauraram e a possibilidade de sua auto superação. Deve-se, portanto, considerar as dificuldades enfrentadas pelo Poder Judiciário para que se possa analisar de forma crítica outros procedimentos que permitam a prevenção e resolução de controvérsias a partir das obrigações, necessidades e interesses das partes. Assim, os tribunais passam a ser fontes secundárias ou suplementares, não devendo ser a primeira forma de acesso como alternativa para a solução das questões em pauta, que nem sempre são conflitos. Muito recentemente, a Lei n° 13.140/2015 dispõe especificamente sobre a mediação e, por seu aspecto inovador, ainda não foi suficiente-

200 • Mediação e interculturalidade

mente analisada à vista de casos concretos e múltiplos. De certa forma é isto que faremos neste texto.

1. O processo de mediação Pode-se afirmar que a mediação é um processo dialético de compreensão do litígio. Deriva dessa forma de compreensão o fato de que há uma complexidade inerente a esse processo. Dir-se-ia, ainda, que se constitui na prática como um processo dialógico para a resolução de situações problemáticas ou de conflitos sociais e jurídicos, por meio de acordo/consenso que, em suma, substitui a aplicação coercitiva de uma sanção legal ou, até mesmo, moral. Por essas razões, entende-se que esse processo necessita de um apoio retórico para se atribuir às partes um poder de decisão sobre a situação exposta. Esse poder de decisão pode parecer um privilégio que se atribui ao mediador. E, em grande parte dos casos, aqueles que procuram o procedimento extrajudicial de mediação desejam que assim o fosse. O poder de decisão, entretanto, pertence às próprias partes, a partir de convencimento e não de persuasão. O convencimento dá-se por meio da aceitabilidade da argumentação colocada durante o procedimento. E, essa argumentação é legitimada no próprio processo argumentativo, não só do mediador, como das próprias partes que, inúmeras vezes, se ouvem pela primeira vez. Vê-se, pois, que o processo de mediação é democrático, por incorporar todas as “vozes” e, apesar de ter um poder decisório muitas vezes entendido como limitado, quando efetivamente aceito pelas partes, tem efeitos duradouros. Além de democrático ele é, principalmente, emancipador. Isto porque, numa situação de mediação, os integrantes (individuais ou grupais) devem exercer sua capacidade de autonomia crítica e de interação dialógica para o julgamento da questão. Essa criticidade não deve ser qualidade apenas dos indivíduos que se encontram em situação problemática ou de litígio. Toda a equipe deve ser portadora dessa autonomia crítica. Ou seja, durante o processo de mediação, todos deverão ter o poder de apreender, ordenar e de julgar conceitualmente seu entorno social, sua pessoa e suas interações, conflitivas ou problemáticas. Além disso, deverão ser capazes de, a partir de formas discursivas, justificar suas escolhas e decisões perante os demais. A importância da resolução de problemas e conflitos a partir do mecanismo extrajudicial da mediação é que, além de realçar a autonomia

Miracy Barbosa de Sousa Gustin & Giselle Fernandes Corrêa da Cruz • 201

dos participantes, propõe a reconstrução crítica do conflito ou litígio. E, essa reconstrução tem aspectos da maior relevância. Em primeiro lugar, ela é capaz de valorizar os pontos positivos do problema/argumentação de cada envolvido. Além disso, permite a compreensão do “verdadeiro” conflito/litígio ou de seu aspecto mais importante. E, finalmente, promove a consciência das partes de que a situação problemática em questão pode ser solucionada de forma mais fácil e em menor prazo, pois são eles mesmos que deverão superá-la. Elimina-se, afinal, a conflitualidade a partir de modo consensual de solução da questão em foco. Pelas razões expostas é que o Código de Processo Civil, publicado em 17 de março de 2015 e, em vigor desde 18 de março de 2016, conforme consideração do Conselho Nacional de Justiça -CNJ, houve por bem colocar como um dos requisitos da petição inicial (Art. 319, VII) a opção do autor pela realização ou não de audiência de conciliação ou de mediação. Não se pode depreender, contudo, que esse requisito seja obrigatório, pois ambas as partes podem demonstrar desinteresse pela composição consensual. Seguindo o modelo de entradas múltiplas, cada pleito ou lide se submete a uma técnica ou método mais adequado para a solução da questão envolvida, sendo que a composição consensual deve ser o foco dos esforços da ação. Em seu art. 334, o Código de Processo Civil – CPC trata especificamente da “Audiência de Conciliação ou de Mediação”. Nesse artigo, o Código aborda conteúdos referentes quer à conciliação quanto à mediação. No caso da temática deste texto, interessa considerar, talvez prioritariamente, a abordagem da Lei n. 13.140/2015, marco legal estrito da Mediação. Aí se encontra o instituto básico para a mediação judicial e extrajudicial. Há que se ressaltar que o atual CPC prioriza a utilização de formas consensuais de resolução de conflitos. Apenas se esta não for adequada ou desejada pelas partes o procedimento seguirá para a faixa litigiosa do processo, com a participação direta do juiz. Tendo em vista a priorização que se dá em nosso Código de Processo Civil (art. 3.º) dever-se-á tratar aqui, conforme a percepção das autoras, do processo pedagógico que exala da mediação como ação de resolução de conflitos ou de qualquer ameaça ou lesão a direito.

2. A mediação como um processo pedagógico Afirmou-se que o poder decisório de todos os atores de mediação é ampliado se houve aceitação do procedimento consensual ou dos

202 • Mediação e interculturalidade

argumentos desenvolvidos durante o processo e este fato só se dá a partir do convencimento dos envolvidos. Mas, como se daria esse “convencimento”? Essa ação ou intervenção por convencimento é um sistema (ou conjunto de procedimentos) contínuo de interações dialógico-argumentativas entre pessoas, grupos e/ou organizações com o objetivo de alterar positivamente uma situação problemática ou um litígio. Sendo assim, pode-se afirmar que a mediação e os demais métodos de solução consensual de conflitos, se dá a partir do convencimento e, em grande parte por essa razão, o mecanismo da mediação é essencialmente promoção de intersubjetividade e de intercompreensão. Isto se dá a partir de um processo pedagógico no qual a linguagem deve ser socializada, ou seja, todos, mesmo de forma pressuposta, se entendem; onde há a preservação da capacidade de veracidade, isto é, não se utiliza, de esquemas de ocultamento ou de distorções da realidade; e, a figura do mediador que integra esse processo é, antes de tudo, a de um promotor e facilitador dessa ação pedagógica. Sabe-se que todo processo pedagógico é sempre edificante, ou seja, ele é, ininterruptamente transformador; ele “edifica” porque constrói novos parâmetros para a decodificação da situação problemática ou litigiosa. E, por ser um processo pedagógico, onde se aprende na argumentação-convencimento, ele é essencialmente libertador pois, qualquer processo de aprendizagem, emancipa os seres das amarras do desconhecimento e desinformação. Enfim, por ser um processo pedagógico, a mediação é não só uma abordagem informativa, mas também, formativa. Por isso, cidadã, isto é, constitutiva de novas cidadanias. Justamente devido ao seu caráter pedagógico, formativo e constitutivo de novas cidadanias e novas possibilidades de regulação, construída entre sujeitos e grupos envolvidos na solução das questões, é que a mediação comporta inúmeras possibilidades e formas a serem exercidas. A mediação consiste assim em um espaço para a abordagem de situações complexas e que demandam intercompreensão entre os envolvidos. Este processo, facilitado pela figura do mediador, um terceiro imparcial que auxilia as partes na solução das questões, é um encontro entre as diferentes perspectivas, culturas, juridicidades, moralidades, visões de mundo e necessidades das pessoas envolvidas nos conflitos ou questões. Ou seja, ocorre um encontro de múltiplas e complexas realidades entre as quais é possível construir pontes de diálogo. Esta é a proposta da mediação e sua relação com a interculturalidade, que se apresenta neste artigo.

Miracy Barbosa de Sousa Gustin & Giselle Fernandes Corrêa da Cruz • 203

3. A solução de controvérsias e a autocomposição de conflitos Este título será analisado a partir da Lei nº 13140, de 26 de junho de 2015, também denominada a “Lei da Mediação”. Essa lei dispõe sobre a mediação e seus princípios e características como meio de solução de controvérsias entre particulares e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública, conforme posicionado em seu art. 1º. No Parágrafo Único, deste mesmo artigo, o esclarecimento do conceito de mediação é mais detalhado. Afirma-se ali que, “considera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia”. Há que se considerar, entretanto, que o consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, conforme a referida lei, deve ser homologado em juízo e exigida a oitiva do Ministério Público. Pois, o objeto da mediação podem ser os direitos disponíveis ou os indisponíveis que admitam transação. Há que se comentar o fato de que a Lei 13140 apresenta um valor primeiro, pois estabelece, finalmente, um marco regulatório para a mediação e a conciliação judicial e extrajudicial, que promove uma transformação significativa por meio de novo formato para a solução de conflitos sociais pelo movimento da tradicional justiça estatal para a autocomposição. Atribui-se, dessa forma, autonomia às partes na solução dos seus conflitos. Em seu art.2º arrolam-se os princípios da mediação, ou seja, imparcialidade do mediador, isonomia entre as partes, oralidade, informalidade, autonomia da vontade, busca de consenso, confidencialidade e boa-fé. Na análise do Desembargador Paulo Afonso Brum Vaz, na Revista de Doutrina da 4ª Região, n. 68, out. 2015, O art. 166 do NCPC elenca os seguintes princípios informativos da conciliação e da mediação: independência, imparcialidade, autonomia da vontade, confidencialidade, oralidade, informalidade e decisão informada. É a prova da banalização dos princípios. Nem o legislador sabe bem quais são os princípios aplicáveis aos institutos. Os princípios são matemáticos, ou seja, representam aquilo que conhecemos de antemão sobre a essência das coisas. Princípio é um referencial tão importante que nenhuma dúvida deveria haver acerca de sua existência. Deveria ser tão evidente que ninguém precisasse perguntar sobre ele.

204 • Mediação e interculturalidade

Em seu art. 43, a lei em comento afirma que órgãos e entidades da administração pública poderão criar câmaras para a resolução de conflitos entre particulares, que versem sobre atividades por eles reguladas ou supervisionadas. Parece ser o caso do PROCON, como exemplo, que poderá criar câmara de mediação para intermediar a solução dos conflitos entre consumidores e fornecedores. E, ressalte-se, a mediação poderá ser feita pela internet ou por outro meio de comunicação que permita a transação à distância, desde que as partes estejam de acordo. Esta legislação pode ser considerada inovadora tendo em vista todas as demais regulamentações anteriores sobre o tema? Pode-se dizer que sim. Primeiro por sua abordagem mais completa; segundo pela permissão para a União, os estados e os municípios criarem câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos para promover a busca de acordos; terceiro, pela autorização expressa do uso da mediação para solucionar conflitos entre órgãos da administração pública ou entre a administração pública e particulares e, ainda, pela viabilidade da mediação ser feita à distância, desde que as partes estejam de acordo. Inclusive quando alguma das partes esteja no exterior. E outra inovação é que a mediação poderá envolver apenas parte do conflito e não todo ele. Isto porque inúmeras vezes a solução de conflitos não exige apenas o método da mediação, especialmente nos casos de mediações interculturais que, via de regra, são mais complexas. Mesmo durante um processo judicial, as partes poderão sugerir a utilização da mediação, suspendendo-se a forma anterior utilizada para início do processo mediador. Iniciada a mediação, é dever do mediador apresentar às partes as regras do procedimento, muito especialmente aquele relacionado à confidencialidade, não podendo, portanto, serem as questões abordadas reveladas sequer em processo judicial, salvo se as partes decidirem de forma diversa e formalmente. Este quesito pode ser rompido quando da exigência por lei ou quando indispensável para a efetivação do acordo realizado. A lei da mediação que está sendo analisada neste texto, por infelicidade, deixa uma lacuna que aqui se tentará remediar. Ela não aborda de forma direta, ou mesmo indireta, a utilização do mecanismo da mediação entre indivíduos ou grupos pertencentes a culturas diferentes ou extremamente diversas em seus costumes, hábitos cotidianos ou em suas relações internas ou externas. Daí a importância que se deve atribuir à mediação intercultural e suas formas de realização. Sabe-se que nosso País tem recebido grandes levas de imigrantes, quer por força de questões impositivas advindas de problemas políticos, de sobrevivência

Miracy Barbosa de Sousa Gustin & Giselle Fernandes Corrêa da Cruz • 205

ou ambientais. Nestes casos, a mediação intercultural apresenta importância inescusável.

4. A intermediação cultural As formulações a respeito da intermediação cultural3 que serão referidas nesta seção foram desenvolvidas por LE ROY (2007)4, ao relatar a experiência do Laboratório de Antropologia Jurídica de Paris – LAJP, realizada em tribunais da Infância e da Juventude. A prática da Intermediação Cultural desenvolvida por Le Roy e pelo LAJP ocorre a partir de um pedido do juiz, a fim de que as decisões judiciais e seus desdobramentos estejam melhor compreendidas e mais adequadas ao contexto cultural do imigrante, no caso, a criança ou o jovem e sua família. Ao iniciar o relato da experiência do LAJP, o autor parte do pressuposto de que qualquer encontro entre culturas requer não apenas um esforço de tradução, mas também a descoberta e transposição das diferenças de uma experiência que pode ser designada como uma dialogia. A experiência da intermediação cultural do LAJP, como referido, ocorre no âmbito do judiciário em Varas da Infância e da Juventude em Paris5 - França, e trata-se de uma prática inscrita no terreno da antropologia jurídica. O autor esclarece que a antropologia, traz para a abordagem da intermediação cultural, dois requisitos. O primeiro deles é que a antropologia tem como objetivo o conhecimento global, considera a totalidade do desenvolvimento histórico e psicológico do homem. O intermediador realiza suas intervenções nas situações abordadas a partir de três paradigmas: o respeito à alteridade; a leitura pluralista de repre“A experiência de intermediação cultural junto ao tribunal de Paris começou nos anos 1980, no Laboratório de antropologia jurídica de Paris, por meio de uma pesquisa realizada com jovens magistrados. As observações relativas à justiça de menores foram realizadas principalmente entre 1984 e 1988, junto às jurisdições de Nanterre e de Créteil. Em Paris, dois presidentes sucessivos do Tribunal, Sra. Sabatini e Alain Bruel, favoreceram a implantação das primeiras formações de intermediadores. Um primeiro relatório de pesquisa foi elaborado para o Ministério da Justiça em 1989. Entre 2000 e 2002, o LAJP tentou implementar uma formação contínua na forma de um DU, na universidade de Paris 1, mas que nunca foi efetivada.” NICOLAU, Gilda. Intermediação cultural e mediação em situações de Interculturalidade. (s.d., p.3)

3

LE ROY, 2007. Étienne Le Roy é professor de Antropologia do Direito e Diretor do Laboratório de Antropologia Jurídica de Paris. 5 Segundo o relatório sobre a prática da Intermediação cultural do LAJP, a intermediação cultural junto às jurisdições competentes para tratar de menores, em Paris, pode ser comparada a outras formas de mediação intercultural, em particular no contexto do direito à informação e ao consentimento dos povos indígenas, consagrado por lei em países como a Bolívia e o Peru. Tal afirmativa tem por base as pesquisas que tem sido produzidas por alunos Bolivianos e Peruanos, que atuam como pesquisadores no LAJP. 4

206 • Mediação e interculturalidade

sentações culturais e o processamento de situações reais em sua complexidade, sem tentar simplificar os dados em padrões etnocêntricos. Neste sentido, pode-se considerar como padrões etnocêntricos a legislação vigente no país que acolhe o imigrante, e especificamente, as normas que irão regular as inúmeras situações jurídicas nas quais estes imigrantes venham a incorrer. Inclusive, as próprias atividades de solução de conflitos por meio de métodos extrajudiciais, consensuais ou adequados à solução de controvérsias, são, por vezes, balizados por normas do ordenamento jurídico referentes às questões envolvidas nos conflitos. Daí a necessidade de se pensar em novos modelos e práticas de mediação ou de negociação quando as situações envolverem culturas diversificadas e/ou os processos de inserção social. A segunda contribuição dada pela antropologia jurídica à intermediação cultural, refere-se à observação participante com uma abordagem do etnógrafo em seu próprio contexto. Isto pressupõe a necessidade da manutenção de uma distância crítica nas ações, por exemplo, de visitas às famílias, de observação das condições de vida, nas tentativas de se entender os riscos sociais. Faz-se necessária a utilização de um roteiro de observação que deve ser montado, discutido e alterado no grupo de orientação de campo, com o próprio intermediador, para que a coleta de dados seja suficiente para a formação de um argumento coerente. Recorre-se, para tanto, ao uso de certas técnicas de entrevista, histórias de vida, guias de investigação. A estes requisitos científicos, salienta LE ROY (2007:.4): “adicione o respeito escrupuloso a cada um dos envolvidos no processo ou na situação”. Sobre a concepção da intermediação cultural, LE ROY (2007) esclarece que esse procedimento faz parte do fenômeno de mediação. Ela trata da diferença cultural enquanto argumento diante da justiça, e se inscreve numa abordagem intercultural. No caso da intermediação cultural ocorrida nas Varas da Infância e Juventude de Paris, o intermediador cultural recebe um mandato do juiz, ou seja, ele representa a instituição. Quanto ao objetivo desta intermediação, ele versa sobre a troca de informações propriamente culturais, com o intuito de melhorar a comunicação entre o magistrado e as famílias. Como consequência, a intermediação cultural oferece ao juiz uma melhor orientação para sua ação e decisão, com base nas informações culturais que lhe são trazidas pelo intermediador cultural, ampliando sua compreensão sobre o contexto e o comportamento das partes. A intermediação cultural, ao promover diálogos ou pontes entre culturas distintas, especificamente no âmbito da regulação das práticas

Miracy Barbosa de Sousa Gustin & Giselle Fernandes Corrêa da Cruz • 207

sociais, promove uma tradução recíproca e expande possibilidades de reconhecimento de representações culturais diversas.

5. O caso dos imigrantes residentes na região metropolitana de Belo Horizonte Atualmente, o maior público de imigrantes no Brasil é constituído pelos haitianos. Segundo o relatório final do projeto “Estudos sobre a migração haitiana ao Brasil e Diálogo Bilateral”, coordenado por FERNANDES (2014)6, os haitianos relataram nas discussões dos grupos focais, os diversos motivos para a saída do Haiti rumo ao Brasil. A maioria afirma ter saído em decorrência do terremoto ocorrido em 12 de janeiro de 2010 na Cidade de Porto Príncipe, capital haitiana, que vitimou centenas de milhares de pessoas. Devido ao terremoto, o país aprofundou ainda mais a crise social, econômica e política que já vinha enfrentando. Muitos disseram que vieram para o Brasil em busca de melhores condições de vida, de emprego, de segurança e de estudos para os filhos. Alguns relatam que ouviram dizer que o “porto” do Brasil estava aberto, e outros, que poderiam ter documentos e mais liberdade. Segundo os dados do referido relatório de pesquisa coordenado por FERNANDES (2014: 39), as informações levantadas junto à Polícia Federal, demonstram que quase 85% dos imigrantes haitianos entram no Brasil por cinco cidades: São Paulo e Guarulhos (37%), Tabatinga – AM (29,7%), Epitaciolândia e Brasiléia – AC (18,1%). Porém, após chegarem ao Brasil, os haitianos deslocam-se para outras regiões. As cidades que concentram a maior parte dos imigrantes haitianos são: São Paulo (24%), Manaus (13%), Porto Velho (7%), Curitiba (4%), Caxias do Sul (4%) e Contagem e Esmeraldas - MG, que, juntas, concentram (6%). Não se sabe com exatidão o número de haitianos que se encontram nas cidades de Contagem e Esmeraldas, mas estima-se que o número varie entre 2 mil e 5 mil. Deve-se esclarecer que a região metropolitana de Belo Horizonte, especificamente as cidades de Contagem e Esmeraldas, mais afetadas pela chegada de fluxo imigratório, tem recebido não somente haitianos, como também bolivianos, sírios (estes, em situação de refúgio ou de sua solicitação, concentram-se mais na capital, Belo Horizonte) e de outras nacionalidades, africanas, por exemplo. Neste artigo, para tornar mais objetiva a questão da mediação in6

FERNANDES, 2014.

208 • Mediação e interculturalidade

tercultural, expõe-se parte do resultado de uma pesquisa realizada com Haitianos que vivem nas cidades de Contagem, Belo Horizonte e Esmeraldas, em Minas Gerais. O Diagnóstico realizado como primeira fase da pesquisa sobre a Inserção Laboral e Produtiva de Imigrantes Residentes na Região Metropolitana de Belo Horizonte, aponta as condições em que tem se dado a inserção laboral de haitianos. Este projeto de pesquisa-ação, insere-se no rol de pesquisas realizadas pelo Programa Cidade e Alteridade: convivência multicultural e justiça urbano-rural, da UFMG,7 e a fase do diagnóstico foi realizada em cooperação com o Programa Clínica de Direitos Humanos da UFMG.8 A metodologia utilizada na realização do diagnóstico, foi a de grupos de controle. Foram formados grupos segundo os critérios de nacionalidade (haitianos e grupos de controle com brasileiros), gênero, idade (entre 25 e 35 anos) e nível de escolaridade (Ensino Fundamental completo e incompleto, Ensino Médio e Ensino Superior). O objetivo foi o de verificar, por meio de rodas de conversas, orientadas por um conjunto de questões, a situação de emprego, a rotina de trabalho, o conhecimento da legislação trabalhista, a ocorrência ou não de situações de exploração laboral, os tipos de atividades realizadas por haitianos, a ocorrência ou não de discriminação e de xenofobia, as possibilidades que vislumbram em relação à formas de cooperativismo ou alternativas ao mercado formal de trabalho e as perspectivas para o futuro em relação ao trabalho e aos estudos no Brasil. Todas essas questões foram trabalhadas nos grupos com haitianos, grupos específicos com homens e com mulheres e também com grupos de brasileiros e de brasileiras, justamente para que fosse possível medir se e em que termos as condições de inserção laboral de haitianos na RMBH são mais, ou menos, precárias em relação às condições dos brasileiros. Os resultados a que se chegou no diagnóstico, demonstram a seO Programa Cidade e Alteridade: convivência multicultural e justiça rural-urbana é um Programa de pesquisa da Faculdade de Direito da UFMG que, desde 2012, por meio de suas frentes e projetos, propõe-se a investigar as cidades e o campo a partir de um enfoque plural que permita intensificar o diálogo entre pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento e as percepções de diferentes grupos e pessoas que vivem e convivem nesses espaços. Fonte: Site do Programa cidade e Alteridade. Disponível em < http://www.cidadeealteridade.com.br/ >.. Acesso em 03/10/2016. 8 A Clínica de Direitos Humanos é um programa interdisciplinar de pesquisa e extensão voltado à consolidação e promoção dos direitos humanos. As atividades da Clínica são estruturadas em momentos de capacitação em direitos humanos para a equipe – envolvendo leituras, debates e pesquisas acadêmicas, bem como o acompanhamento jurídico de casos paradigmáticos de pessoas que tiveram seus direitos violados. Busca-se refletir e propor sobre formas de atuação que contribuam para a humanização da justiça e a transformação social. Fonte: Site do Programa Clínica de Direitos Humanos da UFMG. Disponível em < http://www.clinicadhufmg.com/a-clinica > . Acesso em 03/10/2016. 7

Miracy Barbosa de Sousa Gustin & Giselle Fernandes Corrêa da Cruz • 209

guinte realidade: - Apesar de uma porcentagem considerável de haitianos e haitianas estarem empregados formalmente (80% dos participantes dos grupos encontram-se com a carteira assinada), eles desconhecem, quase completamente, a legislação trabalhista brasileira; - As mulheres encontram muitas dificuldades para trabalhar quando têm crianças pequenas, pois não encontram vagas nas creches. Vários casos foram relatados de mulheres que deixam seus filhos, às vezes, com desconhecidos, para cumprirem sua rotina de trabalho; - Há inúmeros relatos de situações de exploração no trabalho, devido à carga horária excessiva, à não realização de intervalos de descanso e alimentação, ao volume de tarefas, ao não pagamento de horas extras; - Em situações de acidentes de trabalho, ou quando enfrentam alguma questão de saúde, os haitianos não acessam os serviços públicos de saúde. Há relatos de serviço de saúde negado por enfermeiros em postos de saúde na RMBH; - Casos de discriminação racial e de xenofobia como as demonstradas nas frases que destacamos a seguir, relatadas nos grupos: “Hatiano é preto e preto fede.” (Mulher haitiana, relato ocorrido no grupo realizado em 21 de maio de 2016, Contagem - MG) “Agora que a ex-presidente Dilma saiu do governo, vocês poderiam voltar para o Haiti, porque foi ela quem trouxe vocês para o Brasil.” (Homem haitiano, relato ocorrido no grupo realizado no dia 11 de junho de 2016, Contagem – MG). - Os haitianos (homens e mulheres) relatam que, mesmo em situações em que realizam bem as tarefas, os brasileiros são preferidos nas promoções no trabalho em detrimento dos haitianos. - Nenhum haitiano realiza atividades conforme a sua formação acadêmica. De todos os 45 haitianos e haitianas participantes dos grupos, dos que têm graduação, nenhum atua em sua área de formação. Somente um haitiano com experiência como carpinteiro, relatou que aqui no Brasil, atua como ajudante em uma carpintaria. A maioria dos homens (60%) realiza atividades braçais, como carregadores ou repositores. Outros 13% estão na Construção Civil como ajudantes de pedreiro.

210 • Mediação e interculturalidade

Das mulheres que estão empregadas, 85% realizam serviços de faxina, em lojas, empresas, casas ou escolas. Pode-se observar, a partir deste diagnóstico sobre as condições de inserção social de haitianos pela via do trabalho, que o cenário vivenciado por este público na RMBH é bastante permeado de conflitos, de violações de direitos, de desconhecimento da legislação trabalhista, desconhecimento acerca dos bens e serviços públicos aos quais os imigrantes têm direitos, de expectativas e necessidades não supridas, de ausências de políticas públicas voltadas para o acolhimento e inserção social do imigrante. Neste sentido de políticas para acolhimento de imigrantes, algumas experiências têm se iniciado no Brasil, como a implantação do Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes – CRAI na cidade de São Paulo e o Centro de Informação para Migrantes, Refugiados e Apátridas, que será inaugurado nos próximos dias em Curitiba, no Estado do Paraná. São iniciativas que devem acolher situações como as diagnosticadas pelo Projeto do Cidade e Alteridade, relatadas anteriormente. Porém, além de serviços de acolhimento e informação de imigrantes, tais equipamentos públicos devem dispor, para uma maior efetividade na abordagem das demandas envolvendo imigrantes, de serviços de mediação intercultural. Os atendimentos de mediação intercultural poderiam envolver os casos de conflitos ou pretensões de direitos, judicializados ou não, com a participação de um mediador intercultural. O intermediador deve realizar suas intervenções nas situações concretas a partir de três pressupostos: o respeito à alteridade; a leitura pluralista de representações culturais e o processamento de situações reais em sua complexidade, sem tentar simplificar os dados em padrões etnocêntricos. Ao promover a intercompreensão entre os contextos dos grupos e indivíduos que migram e o contexto no qual ingressam, a intermediação cultural abre caminhos para que os direitos humanos e coletivos dos imigrantes sejam conhecidos, respeitados e exercidos. Abrem-se caminhos relacionados também à emergência de soluções que contemplem a dialogicidade em casos de conflitos, jurídicos ou não, que envolvam os imigrantes e indivíduos, grupos, órgãos públicos ou instituições brasileiras. Dessa forma, entende-se que a intermediação cultural amplia a efetividade no exercício de direitos humanos dos imigrantes, auxilia

Miracy Barbosa de Sousa Gustin & Giselle Fernandes Corrêa da Cruz • 211

na construção de seus papéis sociais enquanto sujeitos de direitos e deveres na ordem social, cultural e jurídica na qual ingressam, ampliando as condições de proteção social e possibilitando, assim, a sua integração cultural, social, laboral e produtiva no país acolhedor.

6. Notas conclusivas O valor deste artigo deve-se à apresentação, algo inovadora, da teoria e de uma prática de aplicação da mediação em condições culturais diversas. No texto se aborda as limitações de uma compreensão mais apurada de casos conflituosos que são investigados sem a utilização de um modelo teórica e metodologicamente frágeis de mediação. As características dos casos e de suas formas de exposição sob o ponto de vista de culturas diversas, limitam a capacidade da teoria de compreender a realidade sem um processo de intermediação. Daí porque, deve haver um processo pedagógico de compreensão do litígio que é bem diverso do procedimento silogístico utilizado pelas estruturas formais do Direito. Entre o caso tópico e sua teoria deve se estruturar um caminho sinuoso de múltiplas mediações até se chegar às opções de entendimento efetivo da linguagem do Direito. A mediação intercultural, proposta neste artigo como uma das formas de efetivação da inserção social e cultural de imigrantes, não está contemplada expressamente nos recentes diplomas legais que regulam as atividades no campo da resolução de conflitos no Brasil. Talvez, esta seja uma das maiores razões para a existência, ainda até nossos dias, de inúmeras violências e variadas formas de exclusão dos imigrantes em nosso país. Isto tem se aplicado, sobretudo, àquelas imigrações mais recentes. Por essas razões, tentou-se neste texto analisar o novo Código de Processo Civil, bem como a Lei 13.140/2015 que trata especificamente da mediação, para se discutir as lacunas de conteúdo da legislação brasileira em face das questões sociais da atualidade à vista da grande capacidade do País de acolher culturas as mais diversas, originárias tanto de sua própria heterogeneidade interna quanto aquelas que derivam do aumento das imigrações. De mais a mais, não se pode esquecer que pesquisa de 2013 do IPEA mostra o aumento de sentenças homologatórias de acordos, o que possivelmente significa um correspondente aumento de soluções consensuais. Não há, entretanto, no Brasil um conhecimento/reconhecimento

212 • Mediação e interculturalidade

da existência de soluções consensuais, judicializadas ou não, por falta de uma educação para as formas que promovem os acordos consensuais e não a cultura de outras soluções para os litígios. A mediação intercultural é uma das formas dessa nova vivência da resolução de conflitos se concretizar.

Referências bibliográficas FERNANDES, Duval (coord.) Estudos sobre a migração haitiana ao Brasil e diálogo bilateral. 2014. 158 f. Projeto de Pesquisa – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re) Pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. 4ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2013. GUSTIN, Miracy B. S. Resgate dos direitos humanos em situações adversas de países periféricos. Revista da Faculdade de Direito. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.47, p. 181-216, 2005 GUSTIN, M. B. S.. A governança social em comunidades periféricas e de exclusão: questões de fundo sobre sua efetividade. Revista do Observatório do Milênio de Belo Horizonte, v. Ano 3, p. 14-35, 2012 LEANDRO, Ariane Gontijo Lopes e CRUZ, Giselle Fernandes Corrêa. Programa Mediação de Conflitos da Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais: delineando uma metodologia em mediação individual e comunitária. In: CASELLA, Paulo Borba e SOUZA, Luciane Moessa (Coord.) Mediação de Conflitos. Novo Paradigma de acesso à justiça. Belo Horizonte: Fórum, 2009 LE ROY, Etienne. L’Intermédiation Culturelle Judiciaire. L’expérience du Laboratoire d’Anthropologie juridique de Paris au sein de juridictions des mineurs de la région parisienne. Principales orientations méthodiques et déontologiques. Paris, 2007. Le Roy Étienne, « Jeux et enjeux d’une négociation dans un cabinet de juge des enfants »,Cahiers du CRIV, volume 4, « De quel droit ?, de l’in-

Miracy Barbosa de Sousa Gustin & Giselle Fernandes Corrêa da Cruz • 213

térêt aux droits de l’enfant », janvier 1988, p.113-145. Le Roy Étienne (ss la dir. de), La différence culturelle, argument devant la juridiction des mineurs, défi à la société française, Paris, LAJP, rapport de fin de recherche, 1989. Le Roy Étienne, « Espace public et socialisation dans les métropoles : quelques préliminaires à une problématique interculturelle », Stéphane Tessier (ed.), L’enfant des rues et son univers, ville socialisation et marginalité, Paris, Syros, 1995, p. 31-45. Le Roy Étienne, Le jeu des lois, une anthropologie dynamique du droit, Paris, LGDJ, 1999. Le Roy Étienne, « La démarche d’intermédiation culturelle, une expérience du Laboratoire d’Anthropologie Juridique de Paris au Tribunal pour enfant de Paris », Derpad, Protection de l’enfance et diversité européenne, Paris, Petite capitale Éditions, 2003, p. 195-208. LITTLEJOHN, Stephen W. Book reviews: The promise of Mediation: Responding to Conflict Through Empowerment and Recognition by Roberto A. B. Bush and Joseph P. Folger. International Journal of Conflict, p. 101-104, janeiro, 1995. LOTETEKA Botimela, « L’intermédiation culturelle », Carole Younès et Étienne Le Roy (eds.), Médiation et diversité culturelle, pour quelle société ?, Paris, Karthala, 2002, p. 169-175. NICÁCIO, Camila S; OLIVEIRA, Renata C. A mediação como exercício de autonomia: entre promessa e efetividade. In: DIAS, Maria Tereza Fonseca; PEREIRA, Flávio Henrique Unes (Orgs.). Cidadania e inclusão: estudos em homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, p. 111-120. NICOLAU, Gilda. Intermediação cultural e mediação em situações de interculturalidade. Paris. S.d Programa cidade e Alteridade: convivência multicultural e justiça rural-urbana. Apresentação. Disponível em < http://www.cidadeealteridade.

214 • Mediação e interculturalidade

com.br/ >.. Acesso em 03/10/2016. Programa Clínica de Direitos Humanos da UFMG. A Clínica. Disponível em . Acesso em 03/10/2016.

A PEDAGOGIA DA MEDIAÇÃO NA NOVA ORDEM PROCESSUAL CIVIL: PARTICIPAÇÃO E AUTONOMIA NA ABORDAGEM DOS CONFLITOS Adriana Goulart de Sena Orsini1 Cibele Aimée de Souza2 Nathane Fernandes da Silva3 Resumo: Este artigo objetiva abordar a mediação enquanto instrumento pedagógico para a promoção da participação e da cidadania no âmbito social. Essa metodologia, cuja adoção foi estabelecida pelo novo Código de Processo Civil (Lei Federal nº 13.105/2015), consiste em forma de prevenção, gestão e solução de conflitos, pautada no diálogo, na alteridade, na autonomia e no auxílio do mediador, terceiro equidistante dos envolvidos. Buscou-se, portanto, evidenciar como a mediação integrada à nova ordem processual civil promove canais de diálogo e de compreensão, com consequente autonomia e empoderamento para o tratamento das próprias questões, contribuindo para a mudança de atitude dos atores, viabilizando a construção de uma cultura de participação ativa e de inclusão. Acredita-se, pois, no potencial transformador e pedagógico da mediação, pela promoção de uma cultura emancipatória voltada ao diálogo, à paz e à melhoria da qualidade das relações, abrindo canais de efetivação de direitos e de exercício da cidadania. Palavras-chave: Resolução de Conflitos. Sistema processual. Mediação. Participação. Autonomia. Empoderamento.

1 Doutora e Mestre em Direito (UFMG). Professora Associada (UFMG). Membro do Corpo Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (UFMG). Coordenadora do Programa de Resolução de Conflitos e Acesso à Justiça (RECAJ/UFMG). Desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho 3ª Região. 2 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito (UFMG). Pesquisadora-extensionista do Programa de Resolução de Conflitos e Acesso à Justiça (RECAJ/UFMG). Assessora Judiciária no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. 3 Doutoranda e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito (UFMG). Pesquisadora-extensionista do Programa de Resolução de Conflitos e Acesso à Justiça (RECAJ/UFMG). Professora Assistente do curso de graduação em Direito (UFJF), Campus Governador Valadares. Mediadora.

216 • A pedagogia da mediação na nova ordem processual civil

Abstract: This article aims to approach mediation as a pedagogical tool for promoting participation and citizenship in the social sphere. This methodology, whose adoption was established by the new Civil Procedure Code (Federal Law No. 13,105 / 2015), is a form of prevention, management and conflict resolution, based on dialogue, otherness, autonomy and assistance of the mediator, third party equidistant from the ones involved. It was the objective therefore, to show how the integrated mediation in the new civil procedures promotes dialogue and understanding channels, with consequent autonomy and empowerment for the treatment of its own issues, contributing to the change in attitude of the actors, enabling the construction of a culture of active participation and inclusion. We believe, therefore, in the transformer and teaching potential of mediation, through the promotion of an emancipatory culture based on dialogue, peace and improvement of the quality of relations, opening channels of realization of rights and citizenship. Keywords: Conflict Resolution. Procedural System. Mediation. Participation. Autonomy. Empowerment. Sumário: Introdução. 1. Mediação na nova ordem processual civil. 2. Conhecimento como instrumento de empoderamento na mediação. 3. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução As relações existentes na sociedade, em geral, envolvem indivíduos distintos entre si, com variados perfis, formações, histórias de vida e saberes adquiridos. Por conseguinte, os conflitos verificados no âmbito social reproduzem a referida variedade, conforme se deem no âmbito de relações privadas ou públicas, com maior ou menor grau de continuidade. Nessa conjuntura, faz-se necessário, portanto, considerar e gerir os conflitos de forma a considerar suas particularidades, mormente suas causas e os elementos que os compõem. É importante salientar ser comum a existência de questões delicadas ou obscuras nos conflitos, que não são naturalmente expostas, discutidas e resolvidas pelos sujeitos envolvidos e que, se não abordadas devidamente, geram um campo fértil para litígios de proporções que não seriam esperadas ou mesmo queridas pelos envolvidos. Nesse âmbito, verifica-se que diversos conflitos decorrem do fato de os sujeitos serem desprovidos de conhecimento mínimo acerca de seus direitos e

Adriana Orsini, Cibele Aimée de Souza & Nathane Fernandes da Silva • 217

deveres, de formas de acesso às políticas públicas, bem como de formas de comunicação não violentas com o outro. Diante do desconhecimento de direitos e de formas de efetivá-los, bem como dos deveres que lhe pertinem, os indivíduos silenciam ou deixam de adotar postura ativa em relação às suas próprias questões e conflitos, mormente por desconhecerem os meios para uma atuação diferenciada da acima descrita. Portanto, fica evidente a necessidade de desenvolver formas de acesso ao conhecimento pelos indivíduos, com o consequente empoderamento e formação pessoal em formas de solução de conflitos. Destarte, vislumbram-se diversas abordagens possíveis para administração e solução de conflitos. Segundo Moore (1998, p.19), “os procedimentos disponíveis diferem, consideravelmente, na maneira como o conflito é direcionado e definido, e com frequência terminam em resultados diferentes, tanto tangíveis quanto intangíveis”, de modo que se revela essencial avaliar a adequação entre o procedimento adotado e o conflito que se pretende resolver. À vista disso, o novo Código de Processo Civil (Lei Federal nº 13.105/2015) estabelece, em seu art. 3º, §§ 2º e 3º, que o Estado promoverá a solução consensual dos conflitos sempre que possível, devendo tais formas serem estimuladas, destacando-se entre os métodos a conciliação e a mediação. A autonomia do sujeito, a compreensão de direitos e deveres, a emancipação pelo conhecimento é essencial em uma sociedade que pretenda efetivar o acesso a Justiça pela via dos direitos e que conduza seus membros ao efetivo exercício da cidadania, da solidariedade, da alteridade e da autodeterminação. Em concreto, muitas vezes, a estrutura jurídica, política e social não efetiva, por si só, aos indivíduos o descrito espaço da autonomia e de reconhecimento mútuo, de forma que a solução denominada mediação revela seu potencial ao proporcionar a presença de um terceiro, o mediador, que catalisa as partes a alcançar esse espaço. A conjectura que está por trás da intervenção de alguém externo é de que uma terceira parte e que será capaz de alterar o poder, a dinâmica social e eventual carência de conhecimento no relacionamento conflituoso. Nesse contexto, passa-se à análise do potencial da mediação para prevenção, gestão e resolução de conflitos, considerando o seu potencial para propiciar o empoderamento dos sujeitos envolvidos no conflito. Para tanto, a técnica metodológica adotada constituiu a pesquisa teórica, mediante coleta e análise de documentos, relató-

218 • A pedagogia da mediação na nova ordem processual civil

rios, obras, artigos, periódicos, legislações e outras fontes de informação concernentes à mediação, sua aplicação e seus efeitos, e às relações sociais. Destaca-se, pois, a mediação enquanto forma de gestão e prevenção de conflitos, pautada no diálogo, na alteridade, na autonomia e no auxílio do mediador, terceiro sujeito necessário ao mecanismo tratado, o que evidencia seu potencial transformador e pedagógico, pelo desenvolvimento de uma cultura emancipatória voltada ao diálogo, à paz e à melhoria da qualidade das relações.

1. Mediação na nova ordem processual civil As relações existentes na sociedade, em geral, envolvem indivíduos distintos entre si, com variados perfis, formações, histórias de vida e saberes adquiridos. Por conseguinte, os conflitos verificados no âmbito social reproduzem a referida variedade, conforme se deem no âmbito de relações privadas ou públicas, com maior ou menor grau de continuidade. Nessa conjuntura, faz-se necessário, portanto, considerar e gerir o conflito de forma a conhecer as suas particularidades, mormente suas causas e os elementos que o compõe. Em consonância com a constatação de que os conflitos podem envolver diferentes fatores e complexidades muitas vezes não aparentes frente a uma análise superficial, Ildemar Egger (2008, p.40) ensina que as causas dos conflitos respondem a um complexo de ingredientes que, se não são bem diagnosticados, agravam a desavença existente, potencializando seus efeitos. O referido autor lista ainda possíveis elementos afetos à causa dos conflitos, entre os quais, cita fatores orgânicos, como o estresse; psicológicos, como bipolaridade, depressões, esquizofrenia; econômicos; políticos, especialmente quando presentes influências externas; fatores referentes à intervenção nos conflitos, projetando sobre eles problemas ou experiências de terceiros; outras vezes decorrem de projeção de experiências coletivas ou que pedagogicamente aprende-se da sociedade. Muitas vezes as dificuldades são comunicacionais, constituindo-se de defeitos na compreensão de intenções e de ações, lacunas que são preenchidas pelas próprias histórias em conflito; ou a incapacidade de escutar o que o outro comunica de diversas formas. Nesse sentido esclarece Egger:

Adriana Orsini, Cibele Aimée de Souza & Nathane Fernandes da Silva • 219

Quanto ao conflito, observa-se que, o que se apresenta na realidade não é o conflito em si, mas sim sua manifestação e expressão. Pode-se assim dizer que, todo conflito tem um aspecto/conteúdo manifesto (ponta do iceberg) e um subjacente (oculto), isto é, todo conflito apresenta um conteúdo manifesto, declarado, correspondente a própria expressão do conflito, entendido como a posição das partes, e, um conteúdo subjacente/ latente, ou seja, o que está implícito, não declarado, oculto ou negado, que, via de regra, corresponde ao real interesse das partes. E, o mediador trabalha no sentido de investigar o que está oculto. (EGGER, 2008, p.127).

Diante da complexidade dos conflitos que ocorrem nas relações sociais na contemporaneidade, é de se dizer que há necessidade do diálogo, de colaboração e de solidariedade entre as pessoas, bem como ante a importância da participação ativa da sociedade na solução dos problemas individuais ou coletivos. Assim, é de se pensar sobre um meio capaz de resolver as controvérsias, de modo a exigir e atribuir maior responsabilidade aos envolvidos no conflito para que o empoderamento gerado, a formação cidadã empreendida no processo, possa incluí-los socialmente e mitigar a exclusão social (SALES, 2004, p.13-14). Sobre o tema, Nicácio defende a necessidade do tratamento adequado de cada conflito, destacando a importância da mediação nesse contexto. Confira-se: [...] a coordenação entre direito/justiça e mediação poderia levar a uma política pública abrangente e coerente de acesso aos direitos, que, tendendo a um sistema “multi-portas” ou a um “pluralismo judiciário radical” adaptados à realidade brasileira, fosse capaz de levar em conta a diversidade das demandas e das possibilidades de responde-las o mais adequadamente. (NICÁCIO, 2011, p.35-36).

É importante salientar ser comum a existência de questões delicadas ou obscuras nos conflitos, difíceis de serem expostas, discutidas e resolvidas pelos próprios sujeitos envolvidos e que, se não abordadas devidamente, geram um campo fértil para litígios de proporções muito maiores do que a que se poderia esperar ou querer. Com efeito, entre os componentes do conflito se faz presente frequentemente o desconhecimento ou a desinformação, enquanto fatores que levam o indivíduo a posturas de passividade em relação a seus direitos e à eventual inobservância deles ou mesmo a deixar de se responsabilizar por questões afetas a sua própria vida, resvalando, quando não efetivando a anomia.

220 • A pedagogia da mediação na nova ordem processual civil

A promoção da justiça e da efetivação de direitos só será possível quando se propiciar àquele que não detêm os saberes e meios essenciais à condução ativa em relação à própria vida, especialmente em conflitos nos quais exista uma disparidade de conhecimento entre os envolvidos, como na relação entre cidadão e Estado em suas variadas formas. Esses aspectos conduzem o cidadão a uma posição que lhe permite real exercício de sua autonomia. Diante disso, urge a adoção de métodos que possibilitem o acesso à informação e formação, bem como aos saberes diretamente relacionados aos indivíduos, de forma a muni-los das ferramentas necessárias ao exercício de sua autonomia, de sua autodeterminação e cidadania ativa. No Brasil, historicamente, verifica-se a expansão do uso das formas de solucionar conflitos denominadas complementares à jurisdição, cujo marco ocorreu com a edição da Resolução nº 125 em 29 de novembro de 2010 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), atualizando-a em 31 de janeiro de 2013, que dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário, objetivando expressamente assegurar a todos o direito à solução das controvérsias por meios adequados à sua respectiva natureza e peculiaridade. Nesse âmbito, o novo Código de Processo Civil dispõe acerca da criação de centros judiciários de solução consensual de conflitos (CEJUSCs) pelos tribunais, responsáveis por realizar sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição (art. 165, caput). A nova legislação processual civil determina, ainda, a designação de audiência de conciliação ou de mediação pelo juiz quando a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido (art. 334). Dentre as referidas formas complementares, destaca-se a mediação de conflitos. Este último método ganha relevo especialmente na solução de questões que envolvem relações continuadas, em que eventual judicialização tende a intensificar a desavença, acentuando o desgaste do relacionamento dos envolvidos. A mediação consiste em uma forma complementar de prevenção, de gestão e de resolução de conflitos4, em que os sujeitos envolvi4

Conforme Soler (2012), existem ao menos três formas de abordagem de conflitos: a prevenção, que se destina a uma análise prévia de situações para prevenir conflitos futuros; a gestão, que se refere a conflitos imaturos ou insolúveis; e a solução, que envolve a dissolução – a eliminação do conflito pela perda do objeto – e a resolução, que envolve métodos endógenos (sem a intervenção de terceiros) e exógenos (com a intervenção

Adriana Orsini, Cibele Aimée de Souza & Nathane Fernandes da Silva • 221

dos buscam voluntariamente, por meio do diálogo e de uma participação ativa, uma solução boa e mutuamente aceitável para a desavença interpessoal, criando ou fortalecendo laços relacionais deteriorados ou enfraquecidos pelo conflito, tudo isso auxiliados por uma terceira pessoa equidistante e não autoritária denominada mediador, que facilita a comunicação entre as partes e que figura no novo Código de Processo Civil como auxiliar da Justiça. De acordo com Moore (1998, p.22), a mediação é um processo voluntário, caracterizado como prolongamento ou aperfeiçoamento do processo de negociação, que envolve a interferência de uma terceira parte aceita pelos envolvidos no conflito e que ajudará as partes principais a chegarem de forma voluntária a formas mutuamente aceitáveis de intervir nas questões em disputa. Abordando o procedimento em questão, Egger (2008, p. 54) afirma tratar-se de método pacífico e consensual que busca a preservação do relacionamento e cria alternativas, propiciando o diálogo entre as partes, então rompido ou inexistente, e desvelando o motivo real do confronto. Outrossim, em atenção às características e aos elementos listados, o novo Código de Processo Civil prescreve, em seu art. 166, caput, que a mediação será informada pelos princípios da independência, da imparcialidade do mediador, da autonomia da vontade, da confidencialidade, da oralidade, da informalidade e da decisão informada. Sales e Andrade (2005, p.6-7) acrescentam que a mediação auxilia as partes a compreenderem o problema que se apresenta, suas reais causas e possibilidades de equacionamento, e ressaltam que o mediador não decide a questão, mas apenas conduz o diálogo, estimulando e possibilitando a conversa franca e sem agressões entre os envolvidos, com o intuito de leva-los a alcançarem as mais eficientes respostas para a solução do conflito. Dissertando sobre a mediação, Sales complementa: As partes são as responsáveis pela decisão que atribuirá fim ao conflito. A mediação, quando oferece liberdade às partes de solucionar seus conflitos, agindo como meio facilitador para tal, passa não somente a ajudar na solução de conflitos, como também a preveni-los. [...] É um mecanismo de resolução de controvérsias pelas próprias partes, construindo estas uma decisão ponderada, eficaz e satisfatória para ambas. Essa decisão construída possui o mediador como facilitador dessa construção por meio do restabelecimento do diálogo pacífico. de terceiros) destinados a por fim ao conflito.

222 • A pedagogia da mediação na nova ordem processual civil

As partes, no processo de mediação, detêm a gestão de seus conflitos e, consequentemente, o poder de decidir, tendo o mediador como auxiliar, diferentemente da jurisdição estatal em que o poder de decidir cabe ao Estado. (SALES, 2004, p.23-24).

Ressalte-se que o efetivo poder de decisão e a liberdade para a solução dos próprios conflitos por meio da mediação ocorrem quando há o acesso à cidadania, compreendida enquanto processo gradual, construído e realizado a partir da organização da autonomia (GUSTIN, 2005, p. 182), do empoderamento e da busca pela efetivação de direitos, inclusive o acesso a soluções justas e adequadas para os conflitos. Inclui, também, o envolvimento, a responsabilização e a participação ativa na tomada de decisões, seja em questões individuais, seja em questões públicas. Logo, a mediação se trata de processo voluntário em que são tomadas decisões negociadas e de autoria das partes, sendo o mediador um facilitador. Nesse contexto, o mediador não resolve o conflito, não toma quaisquer decisões nem propõe soluções, bem como não pode obrigar as partes a resolverem suas diferenças. Ele não é um juiz investido do poder de tomar uma decisão unilateral pelos envolvidos, sentenciando e indicando qual dos litigantes está certo, e concluir uma demanda judicial, além de não ser, também, necessariamente, advogado ou psicólogo. Nesse âmbito, é importante destacar que o mediador não é um “juiz informal” nem substitui, em momento algum, a figura do juiz. É, então, essencial que o mediador saiba discernir o que é do domínio do Poder Judiciário e que será mais bem tratado em Juízo, o que compõe a esfera estatal e que demanda política pública correspondente, e o que pode ser trabalhado com o uso da mediação. Na verdade, o mediador convida as partes principais do conflito à cidadania, a superar a lógica de “ganhador versus perdedor”, inspirando-as a descobrirem alternativas entre o que lhes aparenta justo e injusto e entre uma ou outra solução predefinida. Por meio da abordagem citada, esse terceiro ajuda os envolvidos na comunicação para a resolução de desavenças, o que gera mudança por meio da promoção do diálogo e da mudança do conflito onde se encontra um espaço de tensão, com a criação e potencialização de um novo espaço, um espaço em que seja possível discutir o conflito e reconfigurá-lo. O terceiro, mediador, atua propriamente como um catalisador, agindo de forma a instigar à mudança, sem fazê-la pelas próprias mãos,

Adriana Orsini, Cibele Aimée de Souza & Nathane Fernandes da Silva • 223

a estimular os envolvidos à comunicação, a suscitar ou revigorar a liberdade de cada um, evitando toda forma de assistencialismo e, por meio desse processo, a despertar os indivíduos a uma postura ativa sobre sua própria vida e sobre o conflito que os envolve, compreendendo-o, gerindo-o e solucionando-o quando possível. No exercício dessa função, o mediador se propõe, primeiramente, a encontrar pessoas que estão em uma situação de conflito e ajudá-las a obter, por seus próprios meios, uma saída. Portanto, ele não apresenta uma solução externa, mas estimula a liberdade, a coragem e a vontade própria das pessoas, sobre o que Six salienta: Os mediadores cidadãos fazem então apelo aos recursos próprios das pessoas que os procuram. Apoiam-se sobre o que essas pessoas dispõem e que não se atrevem a utilizar: seus próprios recursos. Despertam tais recursos se estes estão adormecidos, dando confiança às pessoas, confortando-as, ajudando-as a colocar os recursos em aplicação, a passar à ação. (SIX, 2001, p.34-35).

Nesse âmbito, destaca-se o desafio, inerente à mediação e à tarefa do mediador, de fazer com que pessoas em conflito dialoguem, se encarando não como adversárias, mas como aliadas que desejam uma solução reciprocamente aceita e, por si mesmas, transformem positivamente suas desavenças ou resolvam uma questão de suas vidas por meio da intercompreensão e da escuta mútua, sem que haja imposição de soluções e de medidas por apenas uma delas ou por um terceiro (SILVA, 2013, p.34). Nos ensinamentos de Warat: A mediação seria uma proposta transformadora do conflito porque não busca a sua decisão por um terceiro, mas, sim, a sua resolução pelas próprias partes, que recebem auxílio do mediador para administrá-lo. A mediação não se preocupa com o litígio, ou seja, com a verdade formal contida nos autos. Tampouco, tem como única finalidade a obtenção de um acordo. Mas, visa, principalmente, ajudar as partes a redimensionar o conflito, aqui entendido como conjunto de condições psicológicas, culturais e sociais que determinaram um choque de atitudes e interesses no relacionamento das pessoas envolvidas. (WARAT, 2001, p.80).

Six (2001) sustenta existirem dois tipos de mediação. Um deles é a mediação institucional, que é emitida por um poder, vinda “de cima”,

224 • A pedagogia da mediação na nova ordem processual civil

institucionalizada e proveniente de algum organismo constituído, do qual se originam os mediadores, os quais serão “funcionários” da Administração Pública ou de uma instituição específica. Essa mediação permite ao organismo estabelecer intermediários entre si e os que dele se utilizam, além de reencontrar o diálogo com seus usuários e oferecer a eles um recurso à respectiva organização. O outro tipo é a mediação cidadã, que é autônoma, independente, suscitada pela vida cotidiana, em livre associação dos indivíduos e comunidades, e cujos mediadores são “naturais”, nascem nos grupos sociais e são propostos por associações não inseridas no poder público, por cidadãos a outros cidadãos. Nesse ponto, importa ressaltar que o procedimento de mediação pode ser introduzido no âmbito social tanto por meio da chamada mediação cidadã, como pela institucionalização dela, conforme o próprio Six (2001) demonstra ser possível. O autor evidencia, inclusive, ser possível uma convivência entre as duas formas de estruturação da mediação sem se excluírem, o que é, inclusive, desejável pelo potencial em esferas distintas e necessárias. Ressalta-se, nesse contexto, que a mediação é mutável e, de fato, pode adquirir formas e manifestações conjunturais diversas, segundo os contextos em que seja observada, de modo que não apresenta uma uniformidade e varia de acordo com tempo, espaço, cultura, pessoas, grupos, circunstâncias e tipo de conflito envolvido. Six (2001) aponta que a incerteza que caracteriza o período em que vivemos é uma das razões pelas quais a mediação se tornou essencial em nossa sociedade. Sobre a questão, esclarece que, até então, instituições e especialmente o Estado determinavam os destinos individuais, de modo que o coletivo político fornecia os contornos do futuro do indivíduo . Contudo, “hoje cada um sabe, no seu íntimo, que esses apoios vacilam e que será necessário contar, antes de tudo, consigo mesmo e construir com outros indivíduos, que estão no mesmo barco que ele, novas solidariedades. O futuro são os outros” (SIX, 2001, p.4). Nesse sentido, acrescenta: Aqui [na mediação] não é mais a proteção de cima, institucional, binária, que estabelece um terreno de coexistência no qual cada um finca o pé em suas posições; é, em igual paridade, admitir-se próximos e diferentes, outros e parecidos. Isso graças à mediação: isto é, que dois podem se reconhecer mutuamente porque são um e outro reconhecidos por um terceiro (SIX, 2001, p.4-5).

Adriana Orsini, Cibele Aimée de Souza & Nathane Fernandes da Silva • 225

Em consonância com a caracterização da mediação explicitada, este mecanismo de gestão de conflitos se presta a suscitar uma alternativa, um terceiro caminho, onde, até então, havia apenas dois, pela disseminada lógica binária que restringe todas as realidades a isto ou aquilo, certo ou errado, vencedor ou perdedor, inocente ou culpado. Lógica excludente e que ainda muito presente nas relações sociais. Nas palavras de Six: Assim, a mediação, impulsionada por um terceiro, quer fazer nascer o “3”, isto é, quer fazer de modo tal que, deste diálogo-confrontação em presença de um terceiro, nasça qualquer coisa que não será nem a solução unilateral do primeiro, nem a solução unilateral do segundo, mas uma saída original realizada por um e outro juntos, uma saída que não pertence a nenhum dos dois propriamente, mas aos dois, como uma criança que nasce de dois pais. (SIX, 2001, p.6-7).

Ainda conforme o autor: O mediador não pode ser um homem binário: a identidade do mediador se exprime através de uma outra lógica que não aquela do pensamento binário. Ele utiliza a lógica “dialética”, “aquela que admite uma terceira possibilidade: a relação estrutural, totalmente intrínseca, entre termos autônomos enquanto autônomos [...]. A lógica dialética extrai sua inteligibilidade, de um lado, da impossibilidade em que se está, no terreno da experiência, de se fixar à alternativa simples demais da exclusão ou da fusão. Ela se mostra vantajosamente operatória porque respeita melhor a complexibilidade do real”. [...] Olhar o “3”, tarefa de todo mediador, é perceber a terceira dimensão e valorizá-la ali onde se tem a tendência de aplainar o real e de mostrar o mundo e os seres em duas dimensões. Fazer o “3” é provocar as pessoas e situações para que elas não se deixem aprisionar no preto e branco, no maniqueísmo. (SIX, 2001, p.218-219).

Além de permitir a superação da lógica binária e a busca por um terceiro caminho, no procedimento de mediação, o conflito é descaracterizado como algo propriamente negativo. Isso porque é usual que se visualize as desavenças como prejudiciais e destrutivas, o que tende a despertar o desejo de extingui-las por inteiro. Contudo, com a ajuda do mediador, o conflito pode ser transformado e o entendimento dos envolvidos sobre o problema pode ser modificado. De algo negativo, o conflito passa a ser compreendido como possibilidade de mudança e de

226 • A pedagogia da mediação na nova ordem processual civil

estabelecimento de harmonia entre as partes, viabilizando a retomada de uma relação permeada pela paz e de cooperação. Assim o conflito pode ser trabalhado numa ótica positiva e produtiva, e a sua solução torna-se mais simples, vez que é evidente tratar-se de elemento natural e transformador da sociedade. Sem o conflito, o ser humano não cria, não vive, não se recria (SIX, 2001, p.7-8). Nesse sentido, relevante destacar que, enquanto paradigma do direito e de gestão de conflitos, a mediação tem potencialidade de transformar positivamente contextos individuais, sociais e políticos. Em adição a este esclarecimento, outra elucidação se mostra essencial. O procedimento de mediação não pretende conduzir ao encolhimento do Estado ou de suas funções. Trata-se de método que não está à margem do sistema político-jurídico, mas, ao contrário, revela-se como técnica promotora da aplicação e de conscientização do próprio Direito. Conforme exposto, a mediação não busca obter uma decisão, segundo normas específicas adequadas ao caso concreto, como ocorre no sistema judicial. Busca-se, na verdade, um retorno ao diálogo e, se possível, um consenso entre as partes conflitantes, de forma a acomodar suas divergências e promover condutas voltadas para a paz. Todavia, segundo Rosa (1981), o direito é instrumental na organização e na acomodação de conflitos sociais e, por consequência, é instrumento de que se utilizam todos os mediadores e as partes ao firmarem mutuamente formas para a gestão de suas desavenças, embora em graus variáveis e segundo circunstâncias também diversificadas, conforme os tipos de mediação, a natureza do conflito, a conjuntura em que o processo se desenrole, os condicionamentos socioeconômicos que são exercidos sobre as partes e os mediadores, e a espécie de composição pretendida e também possível. Assim, é necessário esclarecer que: O fato de que se busque chegar a um acordo não exclui a influência das normas jurídicas durante todo o processo de negociação (direta ou com a intervenção do terceiro mediador). Em verdade, esse fato reforça a influência das normas jurídicas, pois o acordo é, em si, um ato jurídico, com consequências jurídicas, na maior parte das vezes. O que se passa é que as partes, e também os mediadores, discutem e negociam com a invocação de interesses, fundamentando-os em “direitos” (o vocábulo é usado entre aspas a fim de significar a alusão a interesses justos, ou considerados justos pelas partes), além de a direitos assim reconhecidos na ordem jurídica e ao que é “justo”, ou considerado justo (ROSA, 1981, p.69).

Adriana Orsini, Cibele Aimée de Souza & Nathane Fernandes da Silva • 227

Porquanto, a norma jurídica funciona quase sempre como componente de grande importância do pano de fundo no qual se resolve sobre o modo de administrar, compor e organizar conflitos, tendo em vista tratar-se de enunciado formal e institucionalizado do que é entendido como a forma adequada de dirimir determinados litígios e de estabelecer as formas de abordar e de conduzir os fatores e as circunstâncias nas relações sociais. Além de adotar o direito estatal vigente, normatização esta instrumental para a acomodação do conflito, a mediação se utiliza também de outras regras de conduta social, conforme o contexto em que se insere a desavença. Nesse mesmo sentido acentua Six, ao discorrer sobre um dos eixos componentes da mediação, o qual abarca os elementos que constituem as relações em sociedade, quais sejam, as leis e os costumes, a justiça e a equidade: Trata-se de direito, mas de direito vivo, do espírito das leis, tal como o aplicam os grandes juristas. É preciso dizer aqui que os verdadeiros mediadores não são de modo algum anarquistas que virariam as costas às leis que gostariam de estabelecer pequenos tribunais de bairros, por exemplo, tomando indevidamente o lugar dos juízes, mesmo para estabelecer uma justiça dita amena (SIX, 2001, p.273).

Pelo exposto, vislumbra-se a potencialidade de o procedimento de mediação trabalhar o conflito e todas as suas eventuais dimensões (jurídica, sociológica e psicológica), em especial por permitir entendimento, recomposição de relações desarmônicas, empoderamento, capacitação, desarme de espírito, ajustamento de interesses sem, contudo, opor-se ao sistema jurídico.

2. Conhecimento como instrumento de empoderamento na mediação Da análise da mediação ressai que, pelo fato de a solução do conflito ser encontrada pelos próprios interessados que, nesse processo, auxiliados pelo terceiro (mediador), desenvolvem um canal de diálogo e intercompreensão, com consequente autonomia e empoderamento para o tratamento das próprias questões, a mediação passa a desencadear resultados positivos, contribuindo para a mudança de atitude dos sujeitos, viabilizando a construção de uma cultura de participação ativa e de inclusão.

228 • A pedagogia da mediação na nova ordem processual civil

Por essas razões, a mediação se mostra um mecanismo eficaz para a resolução de controvérsias, especialmente, como já se salientou, aquelas referentes a relações continuadas, tendo em vista que o mediador incentiva as partes a adotarem uma postura solidária, a partir da qual, em muitos casos, a relação harmoniosa que se criou no momento da mediação perdura, evitando a má administração de conflitos futuros, diante do resgate do respeito e da dignidade entre os envolvidos. Nas palavras de Silva: Mais do que auxiliar no desafogamento dos tribunais e no tratamento adequado dos conflitos, a mediação deve desenvolver seu potencial de devolver à população a possibilidade de se responsabilizar pelas suas demandas e solucioná-las de forma dialógica e participativa, melhorando as relações entre as pessoas, bem como abrindo canais de efetivação de direitos e de exercício da cidadania. (SILVA, 2013, p.23).

Considerando, portanto, que a mediação possui esse potencial pedagógico e transformador, inclusive modificador das perspectivas tanto individual como coletiva, que promove o autoconhecimento e a compreensão do outro e, dessa forma, sendo importante na solução de controvérsias (iminentes ou já deflagradas), é método relevante ao desenvolvimento da cidadania e de uma cultura voltada à paz. Além de prover o tratamento adequado do conflito, vislumbra-se na mediação uma forma de devolver aos sujeitos envolvidos a possibilidade de se ater e de se responsabilizar por seus próprios conflitos de forma dialógica, participativa e com solução compartilhada. Desse modo, faz-se possível não apenas a promoção de uma cultura harmônica e voltada para a paz, como também a abertura à efetivação de direitos e de exercício da cidadania pelos envolvidos. A própria circunstância do desconhecimento que acomete o sujeito acerca de seus direitos e das formas de efetivá-los não raro cria injustiças ou engessamentos sociais, e a mediação é hábil a superá-los. Acerca disso, ressalta-se que o indivíduo precisa do acesso ao Poder Judiciário, que deve ser assegurado pelo Estado por força da Constituição da República de 1988, mas também é mister que seja reconhecido como sujeito detentor de direitos que devem ser observados e ser habilitado como tal. Verifica-se que a mediação é possível instrumento de promoção da participação popular na gestão ou solução dos conflitos, ferramenta de estímulo ao desenvolvimento de uma cultura voltada ao diálogo, à paz e à melhoria da qualidade das relações sociais.

Adriana Orsini, Cibele Aimée de Souza & Nathane Fernandes da Silva • 229

A mediação se apresenta, portanto, como um instrumento de auxílio nesta prática do empoderamento pelo conhecimento, voltada para o indivíduo e a qualidade das relações, estimulando e desenvolvendo nas pessoas habilidades como a participação ativa, a consciência da realidade, a ponderação das dificuldades do outro e o respeito pelas diferenças. A mediação é capaz de incluir esses atores cada vez mais no meio em que estão inseridos, a partir de sua própria iniciativa, levando-os a serem os responsáveis pela boa resolução de seus conflitos e pela manutenção da qualidade de suas relações. No momento em que se entende a mediação como criadora de comunicação entre as partes e hábil a conscientizar os sujeitos de sua responsabilidade na administração das eventuais divergências, percebe-se que o método pode ultrapassar a simples resolução de conflitos, passando também a preveni-los. Nesse sentido, vislumbra-se outros objetivos da mediação além da resolução dos conflitos, quais sejam, a prevenção deles, a inclusão e responsabilização social, em razão da participação ativa das partes mediante o diálogo, bem como o desenvolvimento de uma cultura voltada à paz social. Não obstante, o recurso ao Poder Judiciário figura sempre como uma via possível ao tratamento de conflitos, nos termos do sistema normativo. É e sempre será um caminho viabilizado pelo poder público para a resolução de controvérsias. O acesso ao Poder Judiciário deve ser cada vez mais possível e mais justo. Ressalte-se, inclusive, que tal acesso pode ser estratégico para promoção de reformulações e alterações estruturais, como em ações coletivas. Contudo, por outro lado, o recurso à mediação aparece para os sujeitos como um processo didático de mudança cultural e comportamental, de harmonização do convívio, de elaboração de uma proposta de cidadania e de assunção de responsabilidade. Como explica Nicácio: Apenas um olhar voltado ao caráter antropológico do direito parece, no entanto, permitir avalizar a suposição segundo a qual a mediação atualizaria a noção de autonomia, reinterpretando-a e alargando seu conteúdo para além da satisfação de interesses e necessidades individuais, para alcançar a criação, a preservação e a reparação das relações sociais (NICÁCIO, 2011, p.31).

Evidencia-se, assim, a relevância do emprego da mediação nos conflitos que emergem no meio social, porquanto o tratamento dialógico

230 • A pedagogia da mediação na nova ordem processual civil

da divergência pelos próprios interessados faz com que o conflito possa desencadear resultados positivos, contribuindo para a mudança de atitude dos atores e viabilizando a construção de uma cultura inclusiva, de respeito e de participação ativa. Logo, verifica-se que a mediação é capaz de auxiliar nos processos de empoderamento e de responsabilização dos envolvidos em eventuais conflitos, bem como o reconhecimento do outro na relação, instituindo o respeito à alteridade. Nas palavras de Warat: A mediação é, assim, uma forma alternativa (com o outro) de intervenção nos conflitos. Falar da alteridade é dizer muito mais coisas que fazer referência a um procedimento cooperativo, solidário, de mútua autocomposição. Estamos falando de uma possibilidade de transformar o conflito e de nos transformarmos no conflito, tudo graças à possibilidade assistida de poder nos olhar a partir do olhar do outro, e colocarmo-nos no lugar do outro para entendê-lo a nós mesmos. [...] Enfim, é a alteridade, a outridade como possibilidade de transformação do conflito, produzindo, no mesmo, a diferença com o outro. A outridade afeta os sentimentos, os desejos, o lado inconsciente do conflito, sem que exista a preocupação de fazer justiça ou de ajustar o acordo às disposições do direito positivo. Nesse sentido, também se fala em outridade ou alteridade: a revalorização do outro do conflito em detrimento do excessivo privilégio outorgado aos modos de dizer do direito, no litígio. (WARAT, 2001, p.83).

O espaço dialógico gerado pela mediação permite compreender e considerar os componentes emocionais, socioculturais, afetivos e éticos, relacionados com os indivíduos e com o ambiente social em que estão inseridos, os quais são partes indissociáveis do sujeito. Sem essa compreensão, o cidadão jamais alcançará o conhecimento e a efetivação de seus direitos e garantias. Diante desse quadro, a adoção da mediação se revela bastante apropriada. Sobre o tema: É característica do instituto [da mediação] recuperar o poder de comunicação e trazer novamente as partes ao diálogo aberto e franco, atendendo suas necessidades psicológicas e, principalmente, dando importância a este momento de debates, trocas de experiências; enfim, de alinhamento de expectativas frente a um problema real vivenciado por ambas as partes (VILELA, 2007, p.48).

Adriana Orsini, Cibele Aimée de Souza & Nathane Fernandes da Silva • 231

Em consonância com o tema, Warat aduz: A mediação como ética da alteridade reivindica a recuperação do respeito e do reconhecimento da integridade e da totalidade de todos os espaços de privacidade do outro. Isto é, um respeito absoluto pelo espaço do outro, e uma ética que repudia o mínimo de movimento invasor em relação ao outro. É radicalmente não invasora, não dominadora, não aceitando dominação sequer nos mínimos gestos (WARAT, 2001, p.70).

Portanto, fica evidente que a instituição, viabilização e contínua efetivação da mediação, especialmente a comunitária, presta real serviço à conscientização social acerca de direitos e de formas de efetivá-los, sejam mediações judiciais ou extrajudiciais. A reestruturação das relações pela difusão para a concretude de uma cultura do diálogo, por meio da mediação, emerge como real possibilidade de desenvolvimento de uma cultura voltada à paz, pautada pelo desenvolvimento de relações sustentáveis e em que se faz presente a confiança, solidariedade e a compreensão mútua.

3. Conclusão O conflito é inerente à vida humana, de modo que não se trata de elemento passível de erradicação. Aliás, já se disse que é próprio de regimes ou pensamentos totalitários a extinção dos conflitos. Questões conflituosas devem ser, na verdade, trabalhadas, geridas e transformadas, de maneira que os sujeitos tenham ampliado o conhecimento e compreensão de seus direitos e deveres, possam assim, assumir a responsabilidade que lhes cabe, bem como a tomada de decisões sobre sua própria vida e a melhoria das relações que lhe envolvem. Atentando para isso, o novo Código de Processo Civil empreende a inequívoca valorização dos meios consensuais de solução de conflitos, entre os quais a mediação, estabelecendo-os como parte integrante da nova ordem processual civil e como métodos cuja utilização deve ser estimulada pelo Estado, de forma a promover a solução consensual dos conflitos sempre que possível. A legislação processual em questão se empenha em inserir, no contexto social e jurídico, uma nova perspectiva de solução de conflitos e de construção do processo, visando a autocomposição e a participação efetiva das partes, bem como a concretização do direito pautada no dever de cooperação, em um efetivo contraditório

232 • A pedagogia da mediação na nova ordem processual civil

e na efetivação dos preceitos normativos da ordem constitucional, em especial os direitos fundamentais. Dessa forma, a mediação se apresenta então como um processo que incita mudanças de comportamentos sem que haja perda de identidades, torna possível no espaço dialógico criado a intercompreensão, além da compreensão efetiva dos direitos, deveres e possibilidades com criatividade para sua solução. É de se dizer que a mediação conduz os envolvidos a uma reflexão de problemas que lhes são comuns de forma conjunta e a um desvelar de questões muitas vezes escondidas sob outras manifestações muitas vezes de menor relevância. Com a utilização da mediação no tratamento de conflitos, há de se verificar a transformação não apenas da maneira de tratar os conflitos e os direitos que os revestem, mas também a mudança dos sujeitos de direito envolvidos com o empoderamento e a formação para outras formas de solução de conflitos baseadas no diálogo. Em razão do caráter pedagógico da mediação, bem como de seu potencial transformador das relações e construtor de canais de diálogo, verifica-se que esse método é capaz de proporcionar solução efetiva e adequada a diversos conflitos, bem como promover a intercompreensão, a inclusão e o resgate da autonomia dos sujeitos envolvidos; tudo isso baseado no diálogo e na tomada de decisões sobre o destino de suas próprias questões. Nesse sentido, catalisado pelo mediador, configura-se um novo espaço, com outras possibilidades para a sua efetivação, onde é possível pensar em soluções onde ambos os sujeitos sejam construtores de uma solução onde haja ganhos recíprocos e seja permeado por um processo voluntário e pedagógico intersubjetivo de prevenção, gestão e solução de conflitos. Por meio da mediação é possível restaurar relações, promover a sustentabilidade de vínculos e criar um estado de diálogo que envolva argumentos de validade e de reconhecimento mútuo, não de autoridade e imposição. A mediação se configura, portanto, em um importante instrumento para proporcionar conhecimento aos mediandos, uma vez que, por sua metodologia, os envolvidos em conflitos têm a oportunidade de apreenderem novas possibilidades de abordagem de suas situações conflitivas, passando, assim, de uma lógica adversarial e competitiva a uma lógica cooperativa e produtiva. Por meio da metodologia pedagógica da mediação, é possível ensinar a indivíduos e grupos formas dialógicas para abordar conflitos futuros, que sejam menos desgastantes, mais participativas e mais emancipatórias.

Adriana Orsini, Cibele Aimée de Souza & Nathane Fernandes da Silva • 233

Assim, sustenta-se que a mediação é metodologia apropriada para criar, preservar e aprimorar laços relacionais, aliada ao fato de se apresentar como forma dialógica, consensual e participada de resolução de um conflito. Nesse âmbito, a mediação tem o potencial de estabelecer relações sustentáveis nos locais onde é empregada, inclusive a longo prazo. Destarte, a mediação é método que se propõe a auxiliar os seres humanos a investigarem suas melhores alternativas e suas possibilidades em face das situações de impasse, até mesmo para evitá-las. Permite, portanto, ir muito além da simples resolução de conflitos, pois conflito não é algo que se resolve ou mesmo se dissolve, mas algo que se transforma, fortalecendo laços relacionais e fomentando o exercício da cidadania, valores e ideias tão caras e importantes quando se pretende colaborar para a transformação social.

Referências bibliográficas ANDRADE, Denise Almeida de; SALES, Lília Maia de Morais. A possibilidade de utilização da mediação como instrumento de resolução de conflitos oriundos do meio médico-hospitalar. Fortaleza, 2005. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2016. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010. Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2016. EGGER, Ildemar. Cultura da Paz e mediação: uma experiência com adolescentes. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa. Metodologia da Mediação. Belo Horizonte, 2000. ______. Resgate dos direitos humanos em situações adversas de países periféricos. Revista da Faculdade de Direito UFMG. Belo Horizonte, nº

234 • A pedagogia da mediação na nova ordem processual civil

47, 2005, p. 181-216. MOORE, Christopher W. O Processo de mediação. Estratégias práticas para a resolução de conflitos. Tradução de Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 1998. NICÁCIO, Camila Silva. Direito e mediação de conflitos: entre metamorfose da regulação social e administração plural da justiça. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 59, p. 11 a 56, jul./dez. 2011. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2016. ______. Mediação para autonomia: alteridades em diálogo. In: DIAS, Maria Tereza Fonseca Dias (Org.). Mediação, cidadania e emancipação social: a experiência da implantação do Centro de Mediação e Cidadania da UFOP e outros ensaios. Belo Horizonte: Fórum, 2010. ROSA, Felippe Augusto de Miranda. A importância do conceito de mediação para o estudo das relações entre direito e conflito. In: ______ (Org.). Direito e conflito social. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. SALES, Lília Maia de Morais. Justiça e mediação de conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. _______(Org.). Estudos sobre a efetivação do direito na atualidade: a cidadania em debate. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2005. SILVA, Nathane Fernandes da. Da mediação voltada à cidadania às essencialidades da atuação do mediador: a independência, a equidistância e o não-poder. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013. SIX, Jean-François. Dinâmica da mediação. Tradução de Giselle Groeninga de Almeida, Águida Arruda Barbosa e Eliana Riberti Nazareth. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. SOLER, Raul Calvo. VII Jornada de prevenció i mediació comunitária: Escenaris Del diáleg. Generalitat de Catalunya. Departament de Justicia.

Adriana Orsini, Cibele Aimée de Souza & Nathane Fernandes da Silva • 235

Disponível em . Acesso em: 27 de nov. de 2015. VILELA, Marcelo Dias Gonçalves. Métodos extrajudiciais de solução de controvérsias. São Paulo: Quartier Latin, 2007. WARAT, Luis Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001. ZAPPAROLLI, Célia Regina. A experiência pacificadora da mediação: uma alternativa contemporânea para implementação da cidadania e da justiça. In: MUSZKAT, Malvina Ester (Org.). Mediação de conflitos: pacificando e prevenindo a violência. 2 ed. São Paulo: Summus, 2003.

O DIREITO À CIDADE E O SEU PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO NO BRASIL Daniel Gaio1

Resumo: A terminologia “direito à cidade”, cunhada por Lefebvre nos anos 1960, tem atraído a atenção de teóricos e ativistas políticos como uma possibilidade de redimensionar e qualificar as lutas por direitos nas cidades marcadas por processos de exclusão social. Mas qual é a relevância ou as consequências de o direito à cidade ser uma categoria jurídica? Há possibilidade de que a normatização do direito à cidade proporcione avanços sociais ou o Direito tem se constituído um obstáculo à efetivação da reforma urbana? Outra abordagem necessária para compreender o papel do Direito diz respeito ao processo de institucionalização da plataforma de reforma urbana. Ademais, este artigo realizará uma breve contextualização acerca da construção do direito à cidade como direito humano, além de propor uma delimitação do conteúdo jurídico do direito à cidade. Conclui-se que a institucionalização envolve muitos riscos, preferindo-se que se criem condições para a atuação no campo da exigibilidade judicial por meio do mecanismo da lesão à ordem urbanística. Palavras-chave: Direito à cidade. Reforma urbana. Institucionalização. Direito humano. Abstract: The term “right to the city”, coined by Lefebvre in the 1960s, has attracted the attention of theorists and political activists as a possibility to resize and qualify the struggle for rights in cities marked by processes of social exclusion. But what is the significance or consequences of the right to the city is a legal category? There is possibility that the standardization of the right to the city provides social advances or the law has constituted an obstacle to the realization of the urban reform? Another approach needed to understand the role of law with regard to the institutionalization process of urban reform platform. Moreover, this Professor Adjunto de Direito Urbanístico da Faculdade de Direito e Ciências do Estado (UFMG), e Membro Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. e-mail: danielgaio72@ yahoo.com.br

1

Daniel Gaio • 237

article will hold a brief background about the construction of the Right to the City as a human right, and propose a definition of the legal content of the right to the city. It is concluded that the institutionalization involves many risks, preferring that to create conditions for the activities in the field of legal exigibility through lesion mechanism of urban order. Keywords: Right to the city. Urban reform. Institutionalization. Human right. Sumário: Advertência preliminar. 1. Antecedentes da categoria jurídica “direito à cidade” no Brasil - aproximações com a plataforma da reforma urbana. 2. O direito à cidade como direito humano. 3. O direito à cidade e o Direito. 4. Considerações finais. Referências bibliográficas.

Advertência preliminar Existem várias possibilidades de interpretação e apropriação da categoria “direito à cidade”. O campo do urbanismo e da geografia prioriza as categorias teorizadas por Lefebvre, como o processo de produção do espaço urbano, a relevância do valor de uso, e a imprescindibilidade da mobilização e luta —, ou seja, a cidade como local de conflito. Por sua vez, os intérpretes do direito tendem a analisar o direito à cidade a partir da sua institucionalização, seja no plano constitucional por intermédio do capítulo da política urbana (art. 182, Constituição Federal – CF), ou no seu reconhecimento formal pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01). Ao circunscrever o presente trabalho à segunda perspectiva, evita-se qualquer tentativa de ressignificação da concepção do direito à cidade realizada por Lefebvre a partir da década de 1960. Questões diversas serão aqui abordadas, como a aposta no campo da institucionalidade pelo Movimento e pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana; a relevância ou as consequências de o direito à cidade ser uma categoria jurídica; e as diferentes apropriações pelo Direito.

1. Antecedentes da categoria jurídica “direito à cidade” no Brasil - aproximações com a plataforma da reforma urbana Ainda que existam diferenças e especificidades, o conteúdo jurídico do direito à cidade e a reforma urbana guardam inúmeras identidades, sobretudo porque no caso brasileiro, o direito à cidade se desenvolveu a partir do ideário de reforma urbana construído ao longo das

238 • O direito à cidade e o seu processo de institucionalização no Brasil

últimas cinco décadas. Em verdade, há uma intrínseca relação entre a reforma urbana e o reconhecimento de direitos. Desde o histórico Seminário de Habitação e Reforma Urbana (1963) — realizado em duas etapas nos municípios de Petrópolis (RJ) e de São Paulo (BONDUKI; KOURY, 2010) — aos poucos foi se desenvolvendo a ideia de que a criação de um marco regulatório urbanístico seria um pressuposto fundamental para a democratização do solo urbano, sobretudo no que se refere à moradia social2. Enquanto na década de 1970 urbanistas, juristas e gestores públicos defenderam propostas como o coeficiente único de aproveitamento, que permitiria maior justiça na cidade, pois estabeleceria contrapartidas efetivas de quem explorasse o solo urbano (GAIO, 2015b, p. 222-224); em meados dos anos 1980 ocorre a retomada da reforma urbana, em especial a mobilização para a apresentação de Proposta Popular de Emenda ao Projeto de Constituição sobre a Reforma Urbana a Constituinte (1987). Esta proposta; além de defender a adoção de medidas relacionadas ao cumprimento da função social da propriedade, política habitacional, transporte, serviços públicos, e gestão democrática da cidade; estabeleceu os contornos iniciais do conteúdo jurídico do direito à cidade ao prever condições de vida urbana digna aos cidadãos; além de enumerar os elementos que compõem esse direito. Art. 1º - Todo cidadão tem direito a condições de vida urbana digna e justiça social, obrigando-se o Estado a assegurar: I - Acesso à moradia, transporte público, saneamento, energia elétrica, iluminação pública, comunicações, educação, saúde, lazer e segurança, assim como preservação do patrimônio ambiental e cultural; II - A gestão democrática da cidade. (MOVIMENTO NACIONAL DE REFORMA URBANA, 1987).

Percebe-se que houve por parte do Movimento Nacional de Reforma Urbana um esforço em criar um discurso de unificação das diferentes lutas em torno da reforma urbana de modo a reivindicar o direito à cidade como um todo, incluindo o direito de participação na gestão da coisa pública. Ou seja, ao aderir às instâncias jurídico-institucionais o movimento de reforma urbana passou a precisar decodificar a Lei (SILAssinala-se que a Resolução Final do Seminário estabeleceu como questão central atribuir à habitação o status de direito fundamental, exigindo que houvesse limitações ao direito de propriedade por meio de um conjunto de medidas estatais visando à justa utilização do solo urbano (ARQUITETURA, 1963).

2

Daniel Gaio • 239

VA, 1991, p. 28-29). Nesse contexto, a apropriação da categoria “direito à cidade” está diretamente relacionada à organização de lutas fragmentadas em torno de um denominador comum, bem como do seu reconhecimento estatal — “e menos como conceito associado a um livro de um filósofo francês de tradição marxista que deveria ser contextualizado ou modificado de acordo com o caso brasileiro” (TAVOLARI, 2016, p. 102). Essa percepção foi favorecida pelo momento político que o país vivia em decorrência do processo de redemocratização e das expectativas geradas pela Constituição Federal de 1988. Isso não significa que a adesão ao processo de institucionalização tenha ocorrido de modo automático. Exemplo disso é o desconforto gerado no seio do movimento de reforma urbana pelo fato do texto constitucional ter privilegiado o plano diretor municipal como instrumento para o cumprimento da função social da cidade e da propriedade (art. 182, CF)3. Mesmo assim, o Fórum Nacional de Reforma Urbana (1989) apostou na institucionalidade ao associar o plano diretor à efetivação da reforma urbana (FÓRUM NACIONAL DE REFORMA URBANA, 1990, p. 91). A crença no plano jurídico-constitucional foi reforçada pela presença de governantes com projetos de esquerda em várias capitais do país desde o final da década de 1980 (COSTA, 2012, p. 171)4. Nesse contexto, o Projeto de Lei 181/89, que se constituiu o texto-base para o futuro Estatuto da Cidade, previu expressamente que a política urbana tem por objetivo assegurar o direito à cidade. Vê-se que, além de se relacionar com o ideário da reforma urbana, a construção do “direito à cidade” no Brasil se iniciou com um nítido grau de institucionalização, o que evidencia por parte do movimento de reforma urbana a aposta na Lei como possibilidade de concretização de direitos. Uma postura crítica quanto a essa possibilidade pode ser vista em Ribeiro (1990, p. 17): Cf. Coelho (1990, p. 38). O desconforto com esse encaminhamento fica evidente no seguinte trecho: “O Plano é, portanto, um instrumento limitado, que não pode e não deve ser entendido como solução de conflitos mas como espaço privilegiado para sua explicitação”. Cf. Fórum Nacional de Reforma Urbana (1990, p. 91). Para uma avaliação mais ampla dos planos diretores, ver Villaça (2004). 4 Além da participação mais ativa da sociedade civil organizada, os conteúdos programáticos defendidos por estas gestões em grande parte correspondiam à plataforma dos movimentos sociais urbanos: política habitacional a fundo perdido ou com fortes subsídios; acesso à terra urbanizada; habitabilidade; cumprimento da função social da propriedade com a eliminação dos grandes vazios urbanos; recuperação das mais-valias urbanísticas; participação popular efetiva nos processos decisórios. Uma avaliação conjuntural da época em relação à participação da sociedade pode ser encontrada em Daniel (1994). 3

240 • O direito à cidade e o seu processo de institucionalização no Brasil

[...] dado a origem do movimento ter estado vinculada ao processo de reorganização político-institucional do país, os principais instrumentos de reforma encontram-se expressos em leis e em suas aplicações potenciais, e não, em projetos imediatamente inscritos no ordenamento global dos espaços urbanos.

O grau de institucionalização do direito à cidade ganha novo capítulo com a inscrição expressa desse direito no Estatuto da Cidade (art. 2º, I, Lei 10.257/01). Entretanto, salvo algumas menções5, o direito à cidade não foi inicialmente priorizado enquanto categoria de análise por parte dos intérpretes do Direito e do movimento de reforma urbana, sendo nítida a preocupação em conferir efetividade aos instrumentos do Estatuto da Cidade —, em especial os relacionados à regularização fundiária de assentamentos informais consolidados6.

2. O direito à cidade como direito humano Do ponto de vista jurídico, ocorre uma mudança de percepção em relação ao direito à cidade com a assinatura da Carta Mundial pelo Direito à Cidade (2005) por inúmeras redes e organizações internacionais, regionais, nacionais e de outros países. Há de fato um esforço em conceituar e enumerar um grande número de conteúdos a serem albergados sobre o manto do direito à cidade. Além de trazer uma abrangente definição de direito à cidade como sendo “[...] o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social” (art. I, nº 02), a Carta Mundial pelo Direito à Cidade também detalha itens que tradicionalmente compõem a plataforma de reforma urbana — gestão democrática e participação, moradia adequada, função social da propriedade e da cidade, e mobilidade. Embora tenha agregado conteúdos importantíssimos, tais como o direito à liberdade e à integridade, e o direito à justiça, a referida Carta extrapola o seu âmbito de atuação ao transformar o direito à cidade em uma espécie de síntese de direitos individuais e sociais. Em outro ponto relevante, este documento enuncia que o direito à cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, incluindo todos os direitos civis, políticos, econôCf. CÂMARA DE DEPUTADOS, 2002, p. 32. Para uma análise da percepção dos intérpretes do Direito em relação ao Estatuto da Cidade, ver Gaio (2015b).

5 6

Daniel Gaio • 241

micos, sociais, culturais e ambientais que já estão regulamentados nos tratados internacionais de direitos humanos (art. I, nº 02). Ainda que seja possível delinear múltiplas conexões entre estes direitos, destaca-se a relação direta entre o direito à moradia e o direito à cidade, em especial o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais7 (1966) —, que reconhece o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida (art. 11, I). Ressalta-se que a moradia é a base e o pressuposto indispensável à realização dos demais elementos que compõem o direito à cidade. Mas para isso é necessário que essa moradia seja adequada8, pois se nega o direito à cidade às pessoas que moram em áreas — comumente periféricas — que não possuem apropriada infraestrutura, equipamentos e serviços públicos e mobilidade. Como acentua Borja “fazer moradia não é fazer cidade” (2013, p. 286). Apesar da referida Carta não possuir efeito jurídico vinculante, o que poderia ser atribuída a mesma um papel predominantemente político, ela passa a se constituir como importante fundamento para a exigibilidade do direito à cidade, conferindo-lhe assim um papel privilegiado no campo da institucionalidade. Ao comentar a Carta Mundial do Direito à Cidade, diz Osório (2006, p. 194-195): O direito tem sido, em alguma medida, um instrumento a ser utilizado quando fracassam outras mediações, como a política e a demanda social. O movimento de direitos humanos tem comprovado que as estratégias sociais são insuficientes, de per si, para alcançar a justiça social e por isso foi necessário avançar na instrumentação de mecanismos jurídicos de exigibilidade dos direitos9.

Igualmente Ortiz (2006) propõe que o conteúdo da Carta Mundial pelo Direito à Cidade possa se constituir em direitos e obrigações Este tratado foi incorporado ao ordenamento jurídico pátrio por meio do Decreto 591/92. Ver o Comentário nº 04 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU. Cf. ONU HABITAT, 2010, p. 03. 9 É necessário ainda pontuar que o debate acerca do campo institucional não pode desconsiderar a posição ocupada pelos diversos atores sociais que se relacionam com o direito à cidade. Enquanto a Constituição Federal circunscreve que cabe aos defensores públicos e aos membros do Ministério Público uma atuação institucional, permite-se que os movimentos sociais utilizem os sistemas estatais de proteção de direitos de modo subsidiário aos processos de mobilização e resistência. 7 8

242 • O direito à cidade e o seu processo de institucionalização no Brasil

exigíveis independente das vontades circunstanciais de governos10. Na mesma linha, o Fórum Nacional de Reforma Urbana defendeu a exigibilidade do direito à cidade como um dos seus princípios, ao lado da gestão democrática das cidades, e da função social da propriedade (SANTOS JÚNIOR, 2009)11. Mais recentemente, a Plataforma Global pelo Direito à Cidade12 manifestou-se pela incorporação dos princípios do direito à cidade nas resoluções do Habitat III - 3ª Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável (PLATAFORMA GLOBAL DO DIREITO À CIDADE, 2015). Ainda que o caminho para a implementação de direitos conheça inúmeros obstáculos, não restam dúvidas de que o reconhecimento internacional do direito à cidade por si só proporciona um referencial político que pode influir na tomada de decisões (administrativa, legislativa ou judiciária) em favor de cidades com mais inclusão social, diversidade cultural e participação democrática. Entretanto, ainda que as conclusões do Habitat III não produzam efeitos jurídicos vinculantes — tal como ocorreu com as anteriores Conferências das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos —, torna-se relevante problematizar sobre as consequências de se implementar parâmetros mínimos ao direito à cidade, de modo a abranger, dentre outras questões: a progressividade13, a não regressividade14, e as hipóteses de lesão ao direito à cidade. Portanto, se a trajetória de construção do direito à cidade no Brasil foi majoritariamente permeada pelo processo de institucionalização, estratégia essa recentemente confirmada com a adesão do Fórum de Reforma Urbana ao reconhecimento internacional do direito à cidade, é necessário ir além dos objetivos gerais comumente estabelecidos em plaEsse também é o posicionamento de Correa Montoya (2012, p. 66). Essa é a formulação atual da referida organização (FÓRUM NACIONAL DE REFORMA URBANA), diferentemente da formulação de 2009, onde a função social da propriedade estava organizada ao lado da função social da cidade. Cf. Santos Júnior, 2009, Contracapa. 12 Rede internacional que conta com o apoio de mais 100 organizações da sociedade civil, movimentos sociais, instituições acadêmicas, governos locais, agências públicas, fundações e organizações internacionais. 13 Recorda-se que o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) prevê o dever em assegurar de modo progressivo, até o máximo de seus recursos disponíveis e por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas (2º, item 1). 14 Um dos poucos autores brasileiros a abordar a não regressividade do direito à cidade, Molinaro (2009, p. 66) defende que “[...] a proteção de um perímetro mínimo ecológico existencial no espaço urbano, vedando-se a degradação pela efetividade do princípio da vedação de retrocesso socioambiental, são as condições nucleares para dar concreta eficácia ao princípio da dignidade da pessoa humana”. 10 11

Daniel Gaio • 243

taformas de direitos, ou pelo menos entender os seus limites e reduzir expectativas quanto à possibilidade de se obter avanços reais. Isso porque, deve-se evitar que a institucionalização do direito à cidade cumpra um papel de legitimação para ocultar a cidade real tal como ocorreu com o Estatuto da Cidade, pois se acreditou que este seria um marco divisório nos processos de apropriação do solo. A crença na democratização do solo fez com que os movimentos sociais urbanos e técnicos comprometidos com a reforma urbana priorizassem a aprovação do plano diretor municipal e a adoção de estratégias jurídicas para a concretização dos instrumentos urbanísticos, principalmente os relacionados à regularização fundiária. Essa confiança excessiva na institucionalidade e a falsa percepção de que a mera existência de um aparato legal traria avanços sociais (fetiche da Lei) foram decisivas para abrandar as críticas acerca das lacunas e das contradições do Estatuto da Cidade, mas, sobretudo tirou o foco do problema central: detectar os processos e as estratégias de resistência em tornar reais os avanços prometidos pela referida Lei federal15. Como afirma Harvey (2011, p. 336), “damos a impressão de ser incapazes de pensar para além das estruturas e normas estabelecidas”.

3. O direito à cidade e o Direito Existem diferentes leituras acerca das relações entre o direito à cidade e o Direito. A primeira delas, e mais usual, se refere aos direitos de cidadania reivindicados por movimentos sociais urbanos e foram incluídas na plataforma da reforma urbana, os quais de modo geral são progressivamente incorporados em legislações. O conteúdo do direito à cidade a partir das propostas de reforma urbana16 contempla historicamente17 medidas que objetivam a gestão democrática da cidade, o cumprimento da função social da propriedade, e a universalização do acesso à moradia, equipamentos e serviços públicos. Trata-se de direitos mais diretamente relacionados à inclusão social, que inicialmente priorizou o usufruto equitativo de moradia adeOutras fundamentações podem ser encontradas em Gaio (2015b). Toma-se aqui como referências: o Movimento Nacional de Reforma Urbana, que se inicia em 1985/1986 (SILVA, 1990, p. 03); e o Fórum Nacional de Reforma Urbana, que realizou o seu primeiro encontro em 1988 (DE GRAZIA, 2002, p. 16). 17 Assinala-se que a plataforma do Fórum de Reforma Urbana atualmente agrega outras pautas, tais como: sustentabilidade, saneamento, priorização do transporte público, segurança pública baseada nos direitos humanos, distribuição de renda e prioridade de recursos para as áreas pobres. Cf. FÓRUM NACIONAL DE REFORMA URBANA. 15 16

244 • O direito à cidade e o seu processo de institucionalização no Brasil

quada e a participação social, mas que posteriormente agregou a qualidade ambiental e a luta por espaços urbanos comuns (áreas livres, áreas verdes, bens culturais). Percebe-se aqui que há interdependência entre os referidos elementos, uma vez que a efetivação de um direito é pressuposto para a realização dos demais (ex: a melhoria na mobilidade possibilita mais saúde, mais tempo de descanso e de lazer, mais acesso aos espaços públicos e à participação política, redução da poluição). Embora o pano de fundo das referidas propostas seja a redução das desigualdades sociais e a mudança na estrutura fundiária socialmente excludente — sendo essencial a aplicação de mecanismos que combatam a especulação imobiliária18 —, de um modo geral o conteúdo do direito à cidade do Movimento/Fórum Nacional de Reforma Urbana ficou imobilizado na teia jurídica da institucionalidade19, pouco ou nada avançando na promoção do acesso à terra urbanizada (OLIVEIRA; BIASOTTO, 2011, p. 95)20. Tendo em vista esse histórico, caso seja bem-sucedida a proposta de inserção do direito à cidade na 3ª Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável, deve-se evitar uma confiança excessiva na institucionalidade tal como ocorreu com o Estatuto da Cidade. Há ainda de se observar o risco do direito à cidade ser banalizado (SOUZA, 2010, p. 319), o que parece ainda não ter ocorrido no Brasil, talvez porque até o momento não houve necessidade de ele ser apropriado pelo Estado ou pelas elites urbanas como discurso de legitimação — tal como ocorreu com os princípios do desenvolvimento sustentável e o da função social da propriedade. Mas se esse risco existe, pergunta-se qual é a vantagem de se atribuir um conteúdo jurídico ao direito à cidade? Conforme visto no item 3 deste trabalho, a incorporação formal de direitos abre um novo campo de disputa que é o da exigibilidade judicial21. Entretanto, alguns elementos não podem ser desconsiderados no cenário atual: i) há uma incipiente teorização acerca do conteúdo jurídico do direito à cidade; ii) com poucas exceções, o Judiciário tem tido posicionamentos conservadores quando fortes interesses econômicos são contestados por reivindicações A título de exemplo, ver Pinto (1993). Afirma Baldez (2003, p. 83) que é propositada a estratégia de retirar os movimentos populares do campo político para imobilizá-los na teia jurídica. Portanto, o descolamento da política para o jurídico é interessante para o sistema, fato este percebido pelo movimento social de reforma agrária, que historicamente resiste em aderir à institucionalidade. 20 Para uma análise das técnicas de esvaziamento da efetividade das leis urbanísticas relacionadas à reforma urbana, ver Gaio (2015b, p. 287 a 290). 21 Defendendo essa possibilidade, ver Correa Montoya, 2012, p. 66. 18 19

Daniel Gaio • 245

sociais — como é o caso do direito à moradia22; iii) o risco da banalização do direito à cidade; iv) já existe a possibilidade de judicialização por lesão à ordem urbanística (art. 1º, VI, Lei 7.347/8523), permitindo-se exigir o cumprimento do Estatuto da Cidade, em especial os princípios24 arrolados no seu art. 2º (Lei 10.257/01)25. Tendo em vista a ausência de precisão em relação ao conteúdo jurídico do direito à cidade, é preferível que se criem condições para a atuação no campo da exigibilidade judicial por meio do mecanismo da lesão à ordem urbanística — pouco lembrado desde que foi criado em 2001 e que é autoaplicável. Mas a adoção deste caminho implica construir uma teoria do direito urbanístico que problematize acerca dos seus conceitos e princípios26 — em especial o da função social da cidade (art. 182, caput, CF) —, ou seja, que supere a tradicional análise sobre efetividade dos instrumentos urbanísticos. Uma segunda perspectiva para delimitar o conteúdo jurídico do direito à cidade diz respeito à abertura para incorporação de novos direitos. Isso significa dizer que o direito à cidade não pode ser compreendido como uma categoria fechada, pois ele é permanentemente construído a partir das percepções sociais do que é Direito. Ele é reivindicado por moradores em situação de rua, pichadores, movimento de rap, funk, defensores da agroecologia, profissionais do sexo, migrantes, dentre outros. Ou seja, não se trata de restringir o direito à cidade a um núcleo fechado ou à efetivação de direitos, mas igualmente ao reconhecimento de novos direitos, de novas percepções e vivências da cidade – que, aliás, é diversa entre as classes e grupos sociais. Como afirma Harvey (2013, p. 31-33), “o direito à mudança da cidade não é um direito abstrato, mas sim um direito inerente às nossas práticas diárias”, privilegiando não apenas o “acesso àquilo que já existe, mas de um direito ativo de fazer a cidade diferente”, de construí-la a partir das necessidades coletivas. Tal abertura deve implicar não apenas considerar o direito à diversidade cultural — de forma a proteger e valorizar as múltiplas identidades que compõe a cidade, territorializadas Esse posicionamento pode ser exemplificado pela decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que, por 18 votos a 01, determinou a remoção de 8000 famílias (aproximadamente 30.000 pessoas) que lutam por uma moradia digna. Cf. Justiça (2016). 23 Incluído pelo art. 6º da Medida Provisória 2.180/01. 24 Adota-se aqui o entendimento de que as diretrizes do Estatuto da Cidade têm natureza principiológica, ou seja, com força vinculante. Cf. Medauar, 2005. 25 Assinala-se que o próprio “direito a cidades sustentáveis” (art. 2º, I, Lei 10.257/01) é um dos princípios/fundamentos que permitem a aplicação do mecanismo da lesão à ordem urbanística. 26 Com esse propósito, ver Bruno Filho (2015). 22

246 • O direito à cidade e o seu processo de institucionalização no Brasil

ou não —, mas igualmente o direito de participação democrática, entendido como prática cotidiana e permanente de manifestação pública na cidade, além da possibilidade de influir de modo real em esferas públicas participativas. Interessante observar que o direito à diversidade cultural e direito à participação democrática tem em comum a autonomia socioespacial, que consiste nas “possibilidades para que diferentes coletividades adquiram o direito e a capacidade de definir a produção do espaço” (KAPP, 2012, p. 468). Como acentua Tavolari (2016, p. 107), existem novas maneiras de olhar para o Direito, sem que a institucionalização ocorra sob a forma de Lei. Uma terceira possibilidade de leitura do conteúdo jurídico do direito à cidade é a sua utilização em contraposição à própria lógica do Estado. Abre-se aqui um campo para todas as insurgências relacionadas a práticas sociais não albergadas pelo sistema jurídico, mas que se relacionam a diferentes dimensões do direito à cidade. Não raramente tais práticas — ainda que objetivem o reconhecimento de direitos — acabam por colidir com valores constitucionais, como o direito de ir e vir e o direito de propriedade27. Outra característica é que esses processos de insurgência em geral possuem fundamentação em princípios constitucionais, embora flertem com processos de desobediência, pois a ilegalidade em muitas situações é o único instrumento disponível para concretizar direitos. Como afirma Borja (2013, p. 291-292), em determinadas circunstâncias é legítimo o direito a desobedecer, é legítimo o direito à ilegalidade no caso de violação de princípios gerais de direitos.

4. Considerações finais Em virtude da complexidade que envolve o direito à cidade, bem como da escassa e recente literatura no campo jurídico, mais importante do que realizar todas as conexões e desenvolvimentos jurídicos, é delimitar o que não é aceitável, apontar os riscos e as eventuais apropriações indevidas desta categoria. Ao invés de priorizar a elaboração e reconhecimento formal do direito à cidade, é preferível propiciar efetividade ao mecanismo da lesão à ordem urbanística, que já é previsto pelo Estatuto da Cidade. É necessário distinguir no caso concreto se ocorre descumprimento de um dever fundamental ligado à função social — e que pode ocasionar a perda da tutela ou a ocorrência de situações proprietárias não relacionadas à dignidade da pessoa. Para outras considerações ver, Gaio (2015a, p. 133). 27

Daniel Gaio • 247

Ao mesmo tempo em que o direito à cidade seduz pela sua potência, pela sua abertura a novos direitos, pela diversidade de reivindicações e aspirações sociais e por colocar em xeque o direito estatal que produz injustiças, a teia da institucionalidade pode captura-lo da mesma forma como se fez com os instrumentos de justiça social existentes no Estatuto da Cidade. É necessária prudência para evitar que institucionalização torne o direito à cidade apenas mais um dos direitos apropriados pelo Estado e pelas elites urbanas como discurso de legitimação, corroborando para o esvaziamento dos processos de resistência e da reforma urbana.

Referências bibliográficas ARQUITETURA, Seminário de Habitação e Reforma Urbana. Arquitetura, Rio de Janeiro, n. 15, p. 17-24, set. 1963. BONDUKI, Nabil; KOURY, Ana Paula. Das reformas de base ao BNH: as propostas do Seminário de Habitação e Reforma Urbana. Arquitextos, mai. 2010. Disponível em: . Acesso em: 06 ago. 2014. BORJA, Jordi. Revolución urbana y derechos ciudadanos. Madrid: Alianza Editorial, 2013. BRUNO FILHO, Fernando Guilherme. Princípios de direito urbanístico. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2015. CORREA MONTOYA, Lucas. Algunas reflexiones y posibilidades del derecho a la ciudad en Colombia. In: RENGIFO GARDEAZÁBAL, Mauricio; PINILLA PINEDA, Juan Felipe (Org.). La ciudad y el derecho: una introducción al derecho urbano contemporáneo. Bogotá: Universidad de los Andes, 2012, p. 58-107. COSTA, Maria de Fátima Tardin. Ideologia e utopia no ocaso da Reforma Urbana no Brasil. Rio de Janeiro, 2012. Tese de Doutorado - Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

248 • O direito à cidade e o seu processo de institucionalização no Brasil

DANIEL, Celso. Gestão local e participação da sociedade. Pólis, nº 14, p. 21-41, 1994. DE GRAZIA, Grazia. Estatuto da cidade: uma longa história com vitórias e derrotas. In: OSÓRIO, Letícia Marques (Org.). Estatuto da cidade e reforma urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2002, p. 15-37. FÓRUM NACIONAL DE REFORMA URBANA. II Fórum Nacional sobre reforma urbana: Carta de princípios sobre o plano diretor. In: DE GRAZIA, Grazia. Plano diretor: instrumento de reforma urbana, Rio de Janeiro: FASE, 1990, p. 89-93. FÓRUM NACIONAL DE REFORMA URBANA. O direito à cidade. Disponível em: < http://www.forumreformaurbana.org.br/plataforma-do-fnru/2-sem-categoria/75-o-direito-a-cidade>. Acesso em: 03 nov. 2015. GAIO, Daniel. A interpretação do direito de propriedade em face da proteção constitucional do meio ambiente urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2015a. GAIO, Daniel. O fetiche da Lei e a reforma urbana no Brasil. In: COSTA, Geraldo Magela; COSTA, Heloisa Soares de Moura; MONTE-MÓR, Roberto Luís de (Org.). Teorias e práticas urbanas: condições para a sociedade urbana. Belo Horizonte: C/Arte, 2015b, p. 283-296. HARVEY, David. A liberdade da cidade. In: MARICATO, Ermínia et. al. (Org.). Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013, p. 27-34. JUSTIÇA autoriza reintegração de posse na região do Isidoro. In: O Tempo. Caderno Cidades, 28 set. 2016. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2016. KAPP, Silke. Direito ao espaço cotidiano: moradia e autonomia no plano de uma metrópole. Caderno Metrópole, São Paulo, nº 28, p. 463-483, jul.-dez. 2012.

Daniel Gaio • 249

MEDAUAR, Odete. A força vinculante das diretrizes da política urbana. Temas de Direito Urbanístico 4. São Paulo, 2005, p. 15-23. MOLINARO, Carlos Alberto. Direito à cidade e proibição de retrocesso. Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre. Porto Alegre, nº 23, p. 51-67, dez. 2009. MOVIMENTO NACIONAL DE REFORMA URBANA. Proposta Popular de Emenda ao Projeto de Constituição - Emenda sobre: “Reforma Urbana”. 1987. Disponível em: . Acesso em 29 out. 2015. ONU HABITAT. El derecho a una vivienda adequada. Folleto Informativo nº 21/Rev 1, abr. 2010. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2015. ORTIZ, Henrique. Toward a World Charter for the Right to the City, 2006. Disponível em: . Acesso em 01 nov. 2015. OSORIO, Letícia Marques. Direito à cidade como direito humano coletivo. In: ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Org.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 193-214. PINTO, Victor Carvalho. Desenvolvimento urbano ou reforma urbana?. 2ª ed. São Paulo: Associação Nacional do Solo Urbano - ANSUR, 1993. PLATAFORMA GLOBAL DO DIREITO À CIDADE. Declaração da Plataforma Global do Direito à Cidade - Mensagens Fundamentais para Habitat III no dia Mundial Habitat 2015, 2015. Disponível em: . Acesso em: 01 nov. 2015. RIBEIRO, Ana Clara Torres. A reforma e o plano: algumas indicações

250 • O direito à cidade e o seu processo de institucionalização no Brasil

gerais. In: DE GRAZIA, Grazia. Plano diretor: instrumento de reforma urbana, Rio de Janeiro: FASE, 1990, p. 13-25. SANTOS JUNIOR, Orlando Alves. O Fórum Nacional de Reforma Urbana: incidência e exigibilidade pelo direito à cidade. Rio de Janeiro: FASE, 2009. SILVA, Ana Amélia da. Reforma urbana e o direito à cidade. São Paulo: Pólis, 1991. SOUZA, Marcelo Lopes de Souza. Which right to which city? In defence of political-strategic clarity. Interface: a journal for and about social movements, 2010, vol. 2, p. 315-333, maio 2010. TAVOLARI, Bianca. Direito à cidade: uma trajetória conceitual. Novos Estudos Cebrap, nº 104, p. 93-109, mar. 2016. VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. In: DEÁK, Csaba e SCHIFFER, Sueli Ramos (Org.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1999, p. 169-243.

A FENOMENOLOGIA NOS CAMINHOS DO CONHECER AMBIENTAL E DA TUTELA JURÍDICA Maria Helena Damasceno e Silva Megale1 Paula Vilaça Bastos2 Resumo: Árdua é a tarefa do conhecimento, anseio sublime desse ser distinto que é o humano. Anseio, por sua vez, inesgotável no reprocessar e no redizer inatos ao pensar deste que nunca se cansa de perquirir, por mais espinhoso seja o ofício da interpretação, da compreensão e da cognição. Enquanto refletirmos, estaremos, certamente, capacitados a conhecer e formular teorias do conhecimento, aporte indispensável ao intérprete/aplicador do direito, mas não único, cabendo a este extrapolar os saberes da técnica, da lógica, enfim, do olhar científico para bem acolher os seus semelhantes, assim como os demais seres, vivos e não vivos, que abrigam o nosso Planeta, de modo a semear a justiça. Valendo-se do método dialógico de pesquisa, este comunicado objetiva evidenciar o alto custo da degradação ambiental, com enfoque na atividade minerária e nos efeitos, principalmente neurológicos/psicológicos, dela decorrentes, que afetam não só a garantia do bem-estar do indivíduo e da sociedade, mas também a capacidade dos cofres públicos, comprometendo a integridade da vida e a sustentabilidade do erário. Por isso o resultado das pesquisas aqui apresentado enfatiza a necessidade urgente de medidas preventivas e combativas em favor do meio ambiente, subsidiadas, desde sempre, pelos diversos modos de conhecer orientados por uma lógica e valores peculiares, comprometidos, antes de tudo, com o bem maior para o Direito, isto é, o ser humano. Palavras-chave: Fenomenologia. Processo de conhecimento. Hermenêutica Jurídica. Direito Ambiental. Direito Previdenciário. Direito Tributário. Professora Titular de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. email: [email protected] 2 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, sob orientação da Professora Doutora Maria Helena Damasceno e Silva Megale. Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES/Demanda Social – DS. email: [email protected]. 1

252 • A fenomenologia nos caminhos do conhecer ambiental e da tutela jurídica

Abstract: The task of knowledge is hard, sublime yearning of this distinguished being: the human. Inexhaustible longing in the reprocessing and retelling inherent to the thinking of the human being who never gets tired of searching, however thorniest is the craft of interpretation, understanding and cognition. As we reflect, we are certainly able to know and formulate theories of knowledge, indispensable contribution – but not the only one – to the interpreter of law, who must always extrapolate the technique, logic, in short, the scientific look to welcome his fellows, as well as other, living and non-living, beings which find shelter in our Planet in order to sow justice. Taking advantage of the dialogical method of research, this statement aims at highlighting the high cost of environmental degradation, focusing on the mining activity and the effects, mainly neurological/psychological, resulting from it, which affect not only the welfare of the individual and of society, but also the public funds, jeopardizing the integrity of life and the sustainability of the public treasury. Thus, the result of the researches presented here emphasizes the urgent need for preventive and combative measures towards environment, always subsidized by several ways of knowing guided by a unique logical and values, committed, above all, with the greater good safeguarded by law: the human being. Keywords: Phenomenology. Cognitive process. Legal Hermeneutics. Environmental Law. Social Security Law. Tax Law. Sumário: Apontamentos iniciais. 1. O conhecimento da degradação ambiental e sua influência no sistema nervoso: a contaminação por metais pesados. 2. Implicações jurídicas. 3. Conclusões. Referências bibliográficas

Apontamentos iniciais Alguém pode dizer que, se em tudo na vida, vislumbrarmos o bem conhecer, esse, segundo se espera, abrir-se-á em clareiras a mundos possíveis, portais, até certo ponto, interditados para o saber de tudo e de todos, mas transitáveis para o compartilhamento da sapiência mesma, autêntica vivência na miragem dos que acreditam em si e no outro. Conhecer consiste numa das mais complexas respostas diante da perplexidade da existência. Talvez, por isso, pressuponha diálogos e boa vontade. Todos almejamos conhecer, verdadeira pulsão a socorrer e estimular esse ser que aprende. Diz o filósofo simplesmente que o homem

Maria Helena Damasceno e Silva Megale & Paula Vilaça Bastos • 253

aprende3 capacidade própria desse inconfundível ser que é o humano. Só ele tem linguagem para ser habitada e compartilhada; só ele intencionalmente se comunica; só ele é dotado de racionalidade e é infinitamente instigado a conhecer com os outros. Guiado pelo ser atual de seu espírito, que nele reconhece um ser que transcende às formas do ser deste mundo, o homem apreende também um ser que é por si mesmo, ou seja, absoluto, o “eu sou”. Enfim, o homem é esse ser que não mais se viu propriamente parte do mundo. Ele está no mundo, mas não é membro deste como o são as coisas que o circundam e que ele pode conhecer. Na sua existência, o homem tem consciência do si próprio e consciência do outro, neste incluído o absoluto, do qual participa mediante aquiescência pessoal correspondente à graça. Assim, o homem volta-se para si mesmo, para os semelhantes, para o ser absoluto e para as coisas, no instigante processo de conhecer. Consciência do si próprio, consciência do mundo e de Deus formam o que Max Scheler chama de unidade estrutural ilacerável.4 É no homem e na mulher que se dá essa unidade imponderável de energia para o processo de conhecimento. Apesar do jugo da ideia de progresso que orientou o trabalho de cognição do homem moderno, cada vez mais aprofundamo-nos na sensação heurística que nos acompanha nos processos de conhecer. Mesmo que não contássemos com uma mera que fosse página em branco, muito haveria para ser conhecido e compreendido. Inesgotável parece o reprocessar e o redizer desse ser que pensa e não se cansa de buscar. Não importa que em tudo já visto estejamos apenas redizendo o mesmo. Se assim o for, desse tudo infinitamente, sobejarão perguntas e respostas a engendrarem redizeres novos nesses recontares que trazem saberes no conhecer desse ser incontável do homem e da mulher. Isso é possível porque permanecemos aptos à reflexão, antes de tudo, sobre nós mesmos. Enquanto refletirmos, estaremos capacitados a conhecer e a formular teorias do conhecimento, que podem até esboçar um sinal que seja de conhecer sobre esse mundo em andamento que é o Direito e nós, que nos aventuramos no conhecimento de tudo. É a filosofia, são as ciências, as artes, a fé e outros a formarem ninhos de pensares e sentires que permitem alcançar tesouros de conhecimento. No campo reflexivo, ao lado da teoria do conhecimento,5 que se compõe da materialidade acumulada de um saber, comparece a lógica, PLATÓN. Sofista. In: PLATÓN, 1988, Vv, §262c, p. 465. SCHELER, 2003, p. 86. 5 HESSEN, 2012. 3 4

254 • A fenomenologia nos caminhos do conhecer ambiental e da tutela jurídica

teoria formal desse mesmo saber, e a teoria dos valores, todas relevantes à compreensão do Direito e de nós próprios. Em busca da justiça, fino bem a que aspiramos quando o assunto é Direito, antes de saberes reduzidos em categorias, relações e institutos especificamente de natureza jurídica, precisamos extrapolar o tecnicismo para concretizarmos o que corresponde à razão mesma de ser dos saberes alcançados. Observamos que nessas reflexões não excluímos a técnica, mesmo porque, sendo esta aliada nata da ciência, de antemão, já se justifica ressalvada em qualquer reflexão sobre conhecimento, seja este em que área for. Ressaltamos, porém, a importância de não nos apegarmos ao tecnicismo, sob pena de afastarmo-nos de nosso foco, que é a justiça. Qualquer possibilidade de cogitação dessa pressupõe a presença de relações de significado jurídico. Com esse objetivo, intencionamos distinguir nesse despretensioso texto pontos que consideramos relevantes no âmbito da compreensão jurídica, diante de formulações que poderão interferir na configuração de conhecimentos no campo do Direito, o qual participa da grande área de saberes inspirados na liberdade e, portanto, não sujeitos à ditadura da necessidade. Necessariamente, no campo das ciências astrofísicas, as conexões entre causa e efeito ocorrem de modo inevitável, sem escolhas. Se uma nave interplanetária escapa de seu eixo, um ou outro efeito ocorrerá, cabendo ao cientista apenas aguardar qual será, sem escolher além das inexorabilidades. Um e outros efeitos escaparão à compreensão e à vontade do observador do ponto de vista da ciência. A materialidade no campo do Direito submete-se ao crivo da liberdade do ser humano. Trancafiar o delinquente por toda a vida depende de nós, assim como definir os meios que levem a esse absurdo. Um simples nome que seja pode levar à bancarrota de uma vida, que poderia ter sido diferente. O tratamento dispensado ao meio ambiente sujeita-se às nossas escolhas. Dessas poderão derivar consequências diversas, inclusive de natureza previdenciária e tributária. Por hoje, é dessas matérias que pretendemos cogitar a propósito de conhecimento no campo do Direito. O jurista precisa dedicar atenção às aspirações como às condutas humanas, sem perder de vista valores, motivações e objetivos, dependentes sempre de reconstruções ou desconstruções. Essa atenção corresponde de perto ao caráter do Direito ao lado das ciências de base compreensiva, como bem percebera Wilhelm Dilthey6 com estudos que apontam diferenças importantes entre as chamadas ciências explicati6

DILTHEY, 1947. 1t.

Maria Helena Damasceno e Silva Megale & Paula Vilaça Bastos • 255

vas e as ciências culturais ou compreensivas. Não que estas dispensem explicações, e as ciências astrofísicas excluam orientações nascidas da capacidade de compreender. Não só o ser humano interessa ao Direito diretamente. As coisas podem receber a sua atenção quando se apresentarem também como bens jurídicos aos olhos dos profissionais do Direito, desde que entrem em interação com a vida. O mesmo pode-se dizer dos viventes. Muitos bens, porém, ainda escapam à visão do Direito e de sua tutela. Ainda assim, até uma página branca pode indicar discursos jurídicos. Muitos permanecem à margem na carência de cuidados por parte da sociedade. Por isso, meio século após pronunciada, pode ganhar sentido aquela interpelação do poeta: “A página branca indicará o discurso ou a supressão do discurso?”7. A página branca pode merecer ou não considerações jurídicas. Podemos questionar e dar respostas jurídicas sobre coisas como o meio ambiente que, sob certos ângulos, permanece não notado por imensa parte dos homens e das mulheres que o habitam. Muitos são os que olham ao seu redor e o que veem não passa de uma página branca que o vento pode soprar sem a mínima inspiração tutelar por parte de quem quer que seja. Um querer voltado para o bem concreto de cada um e de todos pode imprimir respostas às coisas que silenciosamente nos interpelam, como o meio ambiente, coisa que parece a muitos estar aí para sempre, sem nenhuma suspeita quanto a perguntas e respostas. Simplesmente inerme como montanhas que apenas parecem assistir aos homens e mulheres que passam em seu peregrinar. Ou como aquele Rio que, de tão generoso, pode ser desviado ou transposto de um lado para outro à mercê de programas poderosos na ignorante certeza de que não reagiria e de que seria esquecido. Mas como esquecer a dessedentação da vida e a hidratação da Terra? De certa forma, a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988,8 já delineou as diretrizes básicas de proteção ambiental, que precisa decolar com a maior urgência após essas longas décadas de vigência pouco sentida. Precisamos voltar nossos olhos para a casa comum,9 necessitada de socorro para se tornar partilhadamente habiMENDES, Murilo. Texto de consulta. In: GUIMARÃES; MOURA, 2014, s./p. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2014. 9 “Casa comum” é a expressão tomada pelo Papa Francisco em sua encíclica Laudato Si’ para designar o nosso Planeta, que pede socorro contra a degradação ambiental. (SANTO PADRE FRANCISCO. Laudato Si’: sobre el cuidado de la casa común. [online]. Disponível em: . Acesso em: 23 set. 2016). 10 RILKE, Rainer Maria. Décima elegia. In: RILKE, Rainer Maria. Elegias de Duíno. Tradução de Dora Ferreira da Silva. 6. ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013, p. 83-91, p. 85.

Maria Helena Damasceno e Silva Megale & Paula Vilaça Bastos • 257

1. O conhecimento da degradação ambiental e sua influência no sistema nervoso: a contaminação por metais pesados Embora a associação entre diversas enfermidades e o desequilíbrio ambiental, não raro, atrelado a esse tipo de ação, seja complexa e de difícil mensuração até mesmo para uma equipe interdisciplinar de especialistas, não há como ignorar o fato de que ela existe. E existe na complexidade da própria vida, sensivelmente articulada com o meio ambiente, isto é, com seres vivos e não vivos aí presentes, muitas vezes, para além do que os sentidos e a própria razão humana podem compreender, ainda que norteados pelos mais sofisticados métodos e procedimentos técnico-científicos. Por se relacionarem de modo mais direto com determinadas perturbações no meio ambiente, alguns efeitos que sobre ele incidem acabam sendo facilmente percebidos, e, por isso, mais conhecidos do que outros. Desmatamentos, por exemplo, provocam, de imediato, a supressão da vegetação e de muitos seres vivos que habitam a área desmatada. Acarretam, ainda, talvez de modo não tão evidente, mas também suscetível à percepção, o empobrecimento do solo, desencadeando processos como erosão, desertificação e seca. Queimadas, por sua vez, caracterizadas como uma forma de desmatamento, ocasionam não só os efeitos anteriores, mas a dispersão de poluentes capazes de provocar problemas respiratórios e contribuir para o efeito estufa, responsável pelo aquecimento global e, por conseguinte, pelas significativas alterações climáticas no Planeta. É claro que a associação entre as queimadas e o efeito estufa, bem como entre este, o aquecimento global e as alterações climáticas, são mais complexas do que as demais correlações supracitadas, demandando, inclusive, conhecimentos específicos, de ordem científica, para tal. No entanto, não deixam de significar uma relação direta de causa e efeito. Os efeitos indiretos, por outro lado, vinculam-se às suas causas de modo bem mais intricado, repleto de variáveis, sendo, muitas vezes, imperceptíveis a curto prazo e de difícil avaliação, até mesmo para os cientistas mais bem formados. É o caso das doenças infecciosas.11 Embora se saiba que algumas delas sofrem flutuações em períodos de enchente e seca, decorrentes de significativas alterações climáticas, como indicam estudos realizados pelo Ministério da Saúde em conjunto com 11

Cf. RADICCHI, LEMOS, 2009.

258 • A fenomenologia nos caminhos do conhecer ambiental e da tutela jurídica

a Organização Pan-Americana de Saúde,12 não se consegue precisar o quanto estes e outros distúrbios ambientais, conjugados ou não, estão afetando a dinâmica dos próprios agentes infecciosos ou, até mesmo, dos vetores responsáveis por sua transmissão. Ainda mais árdua é a tarefa que se destina a associar determinadas perturbações no meio ambiente, como a emissão de elementos químicos no ar, no solo e na água, com doenças não-infecciosas, principalmente neurológicas, a exemplo do mal de Alzheimer, da síndrome de Parkinson, e de outras disfunções dessa ordem, aparentemente desvinculadas de qualquer agente etiológico. Nesses casos, mesmo se valendo dos métodos mais sofisticados de pesquisa e da mais alta tecnologia, a ciência, muitas vezes, alcança apenas baixos ou médios índices probabilísticos de associação entre determinado elemento e uma dada enfermidade, haja vista a enorme quantidade de fatores capazes de interferir nos processos químicos e biológicos do corpo humano, o que dificulta a análise isolada de suas consequências, principalmente a curto prazo. Tal circunstância, porém, não exclui o risco que esses efeitos trazem à saúde, sendo esta a única compreensão a que pode chegar o intérprete autêntico diante de resultados inconclusivos da ciência, tais como os que apontam indícios da ocorrência de graves distúrbios neurológicos/psicológicos a partir da absorção nefasta de metais pesados pelo organismo humano. Metais, não raro, despendidos em quantidade significativa, principalmente, no ar e na água em razão de atividades minerárias de relevância nacional, ganhando, em cada um desses meios, dispersão descomunal. Ocasião em que expõem ao risco de intoxicação não só trabalhadores diretamente envolvidos nessas ocupações, mas toda uma população. Afinal, uma vez deflagrados em rios, lençóis freáticos e correntes de ar podem alcançar quilômetros de distância da área diretamente impactada. O zinco, por exemplo, extraído, muitas vezes, com fins metalúrgicos, embora exerça papel crucial em quantidade significativa de processos bioquímicos no organismo humano – inclusive em atividades cerebrais, interferindo diretamente em sua maturação/desenvolvimento, e em receptores associados a sinapses e à excitabilidade neuronal –, quando em excesso, resulta tóxico aos neurônios. O acúmulo de íons de zinco na mitocôndria, por exemplo, pode levar a danos neurais graves. AlteMUDANÇAS climáticas e ambientais e seus efeitos na saúde: cenários e incertezas para o Brasil. Brasília, 2008. Ministério da Saúde; Fundação Oswaldo Cruz; Organização Pan-Americana da Saúde. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2016. 12

Maria Helena Damasceno e Silva Megale & Paula Vilaça Bastos • 259

rações nos níveis desse elemento químico (para mais ou para menos, a depender do caso) têm sido constatadas em doenças como depressão, Alzheimer, Parkinson e outras.13 Em se tratando do mal de Alzheimer, a elevação da concentração de zinco extracelular, por exemplo, induz a formação de placas amiloides, fator associado a essa doença neurodegenerativa.14 O equilíbrio do elemento químico em questão se mostra, portanto, crucial a uma “[...] regulação adequada da função cognitiva normal, pela modulação da neurotransmissão sináptica”.15 Pesquisas envolvendo outro metal pesado igualmente associado a atividades de mineração, o mercúrio, também evidenciam efeitos nefastos ao sistema nervoso humano quando de sua exposição crônica a esse elemento químico, que vão de uma baixa amplitude dos potenciais cognitivos, uma precária memória de longo prazo e um pensamento associativo carente até um intelecto pobre e memórias de curto e longo prazo significativamente deficientes.16 Embora os supracitados estudos não tragam respostas contundentes, suscitando, ao contrário, ainda mais indagações, principalmente acerca da natureza e do modo peculiar, deslumbrante e único com que ela faz interagir tudo o que a integra, inclusive o ser humano, fato é que anunciam com clareza o modo de ser do homem, que não é outro senão existir no mundo que é o seu. Mundo com o qual ele se relaciona intimamente, inclusive a nível biomolecular, razão pela qual degradar o meio ambiente, desequilibrando-o, é proceder do mesmo modo com o ser humano, com a sua saúde, enfim, com a sua própria existência em todas as suas dimensões, inclusive a neurológica, ainda que a ciência não consiga detectar ou mensurar precisamente essa degradação. Fato que acarreta inúmeras repercussões jurídicas, dentre as quais as que se seguem.

2. Implicações jurídicas Diante dos efeitos nefastos que a contaminação por metais pesados é capaz de ocasionar ao ser humano, em particular, ao sistema nervoso, não há dúvidas de que a principal implicação jurídica daí decorrente seja uma clara violação dos direitos à saúde, à segurança, enfim, à própria vida humana, desde sempre carente do equilíbrio ambiental para o seu pleno desenvolvimento. Carência muito bem estampada no TYSZKA-CZOCHARA, 2014. Ibidem, p. 374. 15 Loc. cit. 16 KATAMOVA, 2014. Cf. ainda MELA, 2014. 13 14

260 • A fenomenologia nos caminhos do conhecer ambiental e da tutela jurídica

art. 225 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, que, reconhecendo a essencialidade do meio ambiente para a existência de quaisquer gerações humanas, eleva-o à categoria dos direitos fundamentais de modo a conferir tutela jurídica a esse bem tão precioso, e, assim, a tantos outros dele dependentes, como a saúde, a segurança e a vida. Direitos igualmente fundamentais estampados, especificamente, nos artigos 5º e 6º da referida Constituição.17 Não obstante os diversos alertas sinalizados por desastres ambientais e por pesquisas científicas cada vez mais sofisticadas, capazes de, mesmo minimamente, estabelecer uma correlação entre a contaminação por metais pesados e distúrbios de ordem neurológica/psicológica, sem mencionar outras disfunções biológicas, como as do aparelho respiratório, fato é que esses elementos químicos continuam sendo irresponsável e perversamente disseminados no meio ambiente. Não que nele já não estejam, desde sempre, presentes, mas, com a intervenção humana, mais propriamente, com o modo de extração e tratamento que recebem para fins industriais, desagregam-se das rochas para alcançar vias vitais a todo e qualquer ser vivo. Cenários como esses, infelizmente, se espraiam de forma corriqueira em clara violação ao equilíbrio ambiental, à saúde, à segurança e à própria vida humana, todos eles direitos constitucionalmente assegurados. Colocam ainda em xeque o compromisso da sociedade e, principalmente, do Poder Público com a efetiva construção de um ambiente propício às presentes e futuras gerações, conforme dispõe a atual Constituição. Outras implicações jurídicas, tão relevantes como as suscitadas, referem-se às repercussões trabalhistas/previdenciárias que a contaminação por metais pesados pode ensejar, culminando, inclusive, em uma aposentadoria antecipada, por invalidez, a depender do grau de disfunção neurológica/psicológica do indivíduo, que pode chegar ao extremo de doenças mentais degenerativas, como o Alzheimer, conforme pesquisa anteriormente mencionada. O mesmo entendimento se aplica ao câncer, enfermidade corrente na atualidade capaz de inviabilizar a atividade laborativa a um número significativo de pessoas, acarretando, portanto, importantes implicações jurídicas, especialmente na esfera previdenciária, embora não tenha sido o foco do presente trabalho, que se ateve a distúrbios associados ao sistema nervoso. Dispõe o art. 42 da Lei de Planos de Benefícios da Previdência So17

BRASIL, 1988.

Maria Helena Damasceno e Silva Megale & Paula Vilaça Bastos • 261

cial que, cumprido o prazo de carência, quando exigido, será devido ao segurado, independentemente do gozo de auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, caso seja ele “[...] considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e ser-lhe-á paga enquanto permanecer nesta condição”.18 Nota-se, portanto, que, em se tratando de doenças mentais progressivas, logo, de incapacidade laborativa sem perspectiva de reabilitação, o mal de Alzheimer e outros tipos de demência ensejam, a princípio, tal benefício aos seus portadores. Outras disfunções neurológicas/psicológicas igualmente associadas à contaminação por metais pesados, como a depressão, também podem culminar nesse tipo de aposentadoria, bastando, para tanto, a comprovação da incapacidade permanente para o labor. Por certo, verificar essa incapacidade em casos de doenças psiquiátricas de menor intensidade acaba sendo tarefa mais árdua quando comparada aos de Alzheimer ou outros tipos de demência, cuja principal característica, isto é, a perda gradativa da memória, fornece, de imediato, indícios mais robustos de uma incapacidade laborativa permanente, especialmente se levada em consideração a ausência de cura até o momento. Circunstância que também não garante, necessariamente, tal permanência da incapacidade. Afinal, tratamentos aptos a retardar o desenvolvimento do Alzheimer e de outras demências já denotam êxito, especialmente se as enfermidades são diagnosticadas com antecedência. Fato que não só contribui para uma melhor qualidade de vida das pessoas acometidas por essas disfunções, mas poupa tempo, elemento imprescindível à descoberta de uma cura. Exatamente em razão da dificuldade de se identificar, na prática, casos que se enquadrem a uma incapacidade permanente para o labor, a Lei nº 8.213/91 prevê a concessão de outro benefício que pode ser concedido de modo mais seguro em casos de distúrbios psiquiátricos de menor intensidade, a princípio, com maior probabilidade de reversão. Trata-se do auxílio-doença, concedido nas hipóteses de incapacidade laborativa temporária, responsável por amparar o segurado até que cesse a enfermidade ou se conclua pela incapacidade permanente, hipótese em que o benefício em questão restará convertido em aposentadoria por invalidez. Há que se considerar, ainda, o art. 151 da Lei nº 8.213/91, que, BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2014. 18

262 • A fenomenologia nos caminhos do conhecer ambiental e da tutela jurídica

complementando a Portaria Interministerial nº 2.998/01,19 exclui a carência, isto é, o número mínimo de contribuições estabelecidas por Lei para a concessão do auxílio-doença ou da aposentadoria por invalidez (doze contribuições mensais – art. 25, I),20 não só nas hipóteses anteriormente previstas pela referida Portaria, dentre as quais a de alienação mental, mas também na de esclerose múltipla. Inovação decorrente da redação conferida pela Lei nº 13.135/15 ao referido art. 151. Embora nem este, nem a Portaria Interministerial nº 2.998/01 se refiram expressamente ao Alzheimer, à demência e a outras disfunções neurológicas/psicológicas graves, à exceção da esclerose múltipla, é possível enquadrá-las na hipótese de alienação mental, especialmente se levadas em consideração as características estampadas no Manual de Procedimentos em Benefícios por Incapacidade, publicado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).21 Segundo diretrizes nele indicadas, os casos de alienação mental são aqueles em que se constatam “[...] transtornos mentais, neuro-mentais, metabólicos ou tóxicos, graves, persistentes incuráveis pelos meios habituais e conhecidos de tratamento, com alteração profunda das funções mentais”,22 a exemplo de demências, psicoses esquizofrênicas graves e paranoia.23 Nesse sentido, disfunções mentais, como o Alzheimer, estariam igualmente abarcadas pela escusa de carência, embora não tipificadas expressamente em Lei, desde que caracterizadas como alienação mental. Em se tratando de doenças profissionais ou do trabalho (art. 26, II), isto é, associadas à atividade laborativa, a Lei 8.213/91 sempre dispensa a carência, independentemente do tipo de enfermidade contraída, desde que ela esteja diretamente relacionada com o trabalho desempenhado (art. 20, §2º).24 Nessa circunstância, eventual aposentadoria por invalidez denomina-se acidentária, diferindo-se, portanto, da previdenciária, concedida em casos de acidentes ou doenças que não decorram da atividade laborativa25, hipótese esta em que a exclusão da carência BRASIL. Portaria Interministerial MPAS/MS n. 2.998, de 23 de agosto de 2001. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2014. 20 BRASIL, 1991. 21 MANUAL de procedimentos em benefícios por incapacidade: diretrizes de apoio à decisão médico-pericial em Psiquiatria. Brasília, 2010. INSS: Instituto Nacional do Seguro Social. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2016. 22 Ibidem, p. 57. 23 Ibidem, p. 58. 24 BRASIL, 1991. 25 CASTRO, LAZZARI, 2013, p. 738-742. 19

Maria Helena Damasceno e Silva Megale & Paula Vilaça Bastos • 263

condiciona-se às doenças elencadas no art. 151 da Lei 8.213/91, conforme mencionado anteriormente. Não obstante o Alzheimer e outras disfunções neurológicas/psicológicas se caracterizarem como doenças degenerativas o que, numa interpretação literal do art. 20, §1º, alínea “a”, da Lei 8.213/91 os excluiria, a princípio, do rol de doenças relacionadas ao trabalho (ocupacionais) – previstas, a título exemplificativo, no Anexo II do Decreto 3.048/99 –,26 fato é que pesquisas científicas já têm associado essas doenças a elementos exógenos, isto é, externos ao organismo, ainda que conjugados com fatores endógenos, como o genético. Nesse sentido, não há como desconsiderar a influência direta que determinadas atividades laborativas exercem no desencadeamento dessas disfunções mentais, como é o caso daquelas que propiciam o contato com minerais, expondo trabalhadores à contaminação por elementos químicos nefastos ao sistema nervoso central. Isso quer dizer que enfermidades degenerativas podem, portanto, caracterizar-se como doenças relacionadas ao trabalho,27 o que reclama cuidado e atenção constantes do intérprete quando da aplicação da excludente elencada no art. 20, §1º, alínea “a”, da Lei 8.213/91, sob pena de ocasionar prejuízo ao segurado que já se encontra debilitado e carece, tão logo, do benefício previdenciário para a manutenção de suas necessidades básicas. Isso pois, dependendo da doença degenerativa neurológica/psicológica, ela não será enquadrada na hipótese de alienação mental, prevista no art. 151 da Lei 8.213/31, razão pela qual o prazo de carência para a concessão do auxílio-doença ou da aposentadoria por invalidez não será afastado, salvo se se tratar de esclerose múltipla. Nessa circunstância, se a enfermidade decorreu diretamente da atividade laborativa, mas sua relação com o trabalho foi descaracterizada por força do art. 20, §1º, alínea “a”, da mesma Lei, o segurado poderá deixar de receber o benefício que lhe é devido, caso não tenha vertido as 12 contribuições mensais mínimas à Previdência Social. Isto é, não receberá o auxílio-doença, nem eventual aposentadoria por invalidez, seja na qualidade acidentária ou, até mesmo, na previdenciária, que, embora não se caracterize como a forma mais adequada de implementação do benefício na hipótese suscitada, tendo sido ele concedido, atende às neBRASIL. Decreto n. 3.048, de 06 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência Social, e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2014. 27 Cf. CASTRO; LAZZARI, 2013, p. 618. 26

264 • A fenomenologia nos caminhos do conhecer ambiental e da tutela jurídica

cessidades básicas do segurado. O que se depreende das repercussões trabalhistas/previdenciárias apontadas é que disfunções neurológicas/psicológicas como as ocasionadas pela exposição, ocupacional ou não, a metais pesados, ensejam os benefícios de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, construindo um cenário no qual indivíduos encerram mais cedo a sua atividade laborativa, deixando de contribuir pecuniariamente com o sistema previdenciário para dele usufruir. Nas hipóteses de afastamento da carência, o segurado sequer precisa atingir o número mínimo de contribuições para se valer dos benefícios em questão. Se, por um lado, as concessões do auxílio-doença e da aposentadoria por invalidez se revelam justas e solidárias, de outro, acarretam um custo para o Estado, sendo capazes, inclusive, de comprometer a manutenção do sistema previdenciário, que depende fundamentalmente das contribuições de seus segurados.28 Consequências que jamais devem ser imputadas às vítimas desses males mediante dificuldade de concreção de seus direitos trabalhistas/previdenciários. O controle das causas desse tipo de problema depende muito mais de eficaz/efetiva atuação dos órgãos públicos do que dos administrados, que, em geral, são vítimas. Afastando-se mais cedo das atividades laborativas, essas vítimas, quando seguradas da Previdência, não atingem o número de contribuições abstratamente estipulado, apto não só a revertê-las em seu próprio benefício, mas também a manter a Previdência Social. Se um número considerável de pessoas passar a se beneficiar do sistema sem atingir os valores contributivos ideais à sua manutenção – como é o caso da aposentadoria por invalidez e do auxílio-doença –, o resultado não será outro senão o seu comprometimento financeiro. Essa é uma constatação que merece atenção, não só pelo fato de a ciência estar desvelando cada vez mais doenças e fatores de risco antes desconhecidos (em especial, de ordem neurológica) aptos a ensejar a concessão desse tipo de aposentadoria (por invalidez) e auxílio (doença), mas principalmente porque muitos deles estão associados a uma das principais atividades econômicas desenvolvidas no Brasil: mineração. Atividade com fator de risco não só para o desencadeamento de distúrbios neurológicos/psicológicos, conforme evidenciam as pesquisas citadas neste trabalho, mas para a própria manutenção da Previdência Social, se exploradas do modo como têm sido até então, isto é, com a dispersão irresponsável de metais pesados no meio ambiente. Há 28

Ibidem, p. 220-221.

Maria Helena Damasceno e Silva Megale & Paula Vilaça Bastos • 265

que se considerar, ainda, demais repercussões administrativas advindas com esse modelo de degradação ambiental, como o gasto substancial com saúde pública, especialmente se levado em consideração o elevado custo de diagnósticos e tratamentos envolvendo, entre outras doenças, distúrbios neurológicos/psicológicos de ordens diversas.

3. Conclusão Pelo simples fato de afetar substancialmente o bem maior tutelado pelo ordenamento jurídico pátrio, qual seja, a própria vida do ser humano, assim como os bens ambientais – atmosfera, fontes hídricas e outros –, a poluição aqui tratada, capaz de acarretar, inclusive, doenças degenerativas, deveria ser categoricamente combatida pela sociedade, pela iniciativa privada e, em especial, pelo Poder Público, a quem incumbe em maior peso e medida – conforme evidencia a própria Constituição – propiciar um equilíbrio ambiental apto a assegurar a sadia qualidade de vida às gerações presentes e futuras. Por outro lado, se essas não constituírem razões suficientes a ensejarem políticas públicas preventivas e combativas à contaminação ambiental por minerais, principalmente, metais pesados, hão que se considerar, ao menos, razões de ordem econômica. Haja vista o saturamento do Poder Judiciário em razão do volume de ações a pedirem socorro para a saúde e o meio ambiente, não raro, gerador de custos excepcionais e indiretos aos cofres públicos, inclusive da Previdência. Outros aspectos relevantes, como o tributário, referente ao imposto de renda estão associados a essa matéria em termos de isenção, pois moléstias como o câncer, causado, inclusive, por metais pesados, a ensejam. Ainda que em termos gerais, tentamos evidenciar o alto custo da degradação ambiental, que afeta não só a garantia do bem-estar do indivíduo e da sociedade, mas também a capacidade dos cofres públicos, comprometendo a integridade da vida e a sustentabilidade da Previdência Social. Por isso o resultado das pesquisas aqui apresentado enfatiza a necessidade urgente de medidas preventivas e combativas em favor do meio ambiente. Após a mínima contribuição de nosso pensar movido por um querer bem à casa de nossa convivencialidade comum, convidamos os pensadores do Direito, que somos todos os comprometidos com a justiça, a compartilharmos a palavra de um poeta que soube como poucos, na pureza do verbo e na simplicidade da ação, buscar caminhos para

266 • A fenomenologia nos caminhos do conhecer ambiental e da tutela jurídica

uma marcha apoiada na capacidade de conhecer associada ao trabalho, aos sonhos, à paz, à alegria, ao diálogo e à ação concretizadora de ideais. A marcha da história Eu me encontrei no marco do horizonte Onde as nuvens falam, Onde os sonhos têm mãos e pés E o mar é seduzido pelas sereias Eu me encontrei onde o real é fábula, Onde o sol soube a luz da lua, Onde a música é pão de todo dia E a criança aconselha-se com as flores. Onde o homem e a mulher são um, Onde espadas e granadas Transformaram-se em charruas E onde se fundem verbo e ação.29

Referências bibliográficas BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2014. ______. Decreto nº. 3.048, de 06 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência Social, e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2014. ______. Lei nº. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2014. ______. Portaria Interministerial MPAS/MS n. 2.998, de 23 de agosto de 2001. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2014. CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de 29

MENDES, 2014, s./p.

Maria Helena Damasceno e Silva Megale & Paula Vilaça Bastos • 267

Direito Previdenciário. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. DILTHEY, Wilhelm. Le monde de l’esprit. Tradução de M. Remy. Paris: Éditions Montaigne, 1947. 1t. HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução de João Vergílio Gallerani Cuter. São Paulo: Martins Fontes, 2012. KATAMOVA E. V. et al. Cognitive disorders in patients with chronic Mercury intoxication. Meditsina truda i promyshlennaia ekologiia. 2014. [on line]. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2014. MANUAL de procedimentos em benefícios por incapacidade: diretrizes de apoio à decisão médico-pericial em Psiquiatria. Brasília, 2010. INSS: Instituto Nacional do Seguro Social. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2016. MELA, Maritana et al. Morphological evidence of neurotoxicity in retina after methylmercury exposure. Neurotoxicology Journal. 2014. [on line]. Disponível em: < http://ac.els-cdn.com/S0161813X1200085X/1-s2.0S0161813X1200085X-main.pdf?_tid=494495b0-7b3e-11e4-a5f2-00000aacb360&acdnat=1417646997_64a75b91701ac75b4b61045b28d8d3ab>. Disponível em: 02 dez. 2014. MENDES, Murilo. A marcha da história. In: GUIMARÃES, Júlio Castañon; MOURA, Murilo Marcondes de (Orgs.). Antologia poética. São Paulo: Cosac Naify, 2014. ______. Texto de consulta. In: GUIMARÃES, Júlio Castañon; MOURA, Murilo Marcondes de (Orgs.). Antologia poética. São Paulo: Cosac Naify, 2014. MUDANÇAS climáticas e ambientais e seus efeitos na saúde: cenários e incertezas para o Brasil. Brasília, 2008. Ministério da Saúde; Fundação Oswaldo Cruz; Organização Pan-Americana da Saúde. Disponível em: . Acesso em: 13 fev.

268 • A fenomenologia nos caminhos do conhecer ambiental e da tutela jurídica

2016. PLATÓN. Sofista. In: PLATÓN. Diálogos. Tradução de Néstor Luis Cordeiro. Madrid: Gredos, 1988, Vv. RADICCHI, Antônio Leite Alves; LEMOS, Alysson Feliciano. Saúde ambiental. Belo Horizonte: Nescon/UFMG, 2009. RILKE, Rainer Maria. Décima elegia. In: RILKE, Rainer Maria. Elegias de Duíno. Tradução de Dora Ferreira da Silva. 6. ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013. SANTO PADRE FRANCISCO. Laudato Si’: sobre el cuidado de la casa común. [online]. Disponível em: . Acesso em: 23 set. 2016. SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. TYSZKA-CZOCHARA, Malgorzata et al. The role of zinc in the pathogenesis and tretament of central nervous system (CNS) diseases. Implications of zinc homeostasis for proper CNS function. Acta Poloniae Pharmaceutica. 2014. [on line]. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2014.

PROFESSORA, COMO SE APRENDE ISSO? Mônica Sette Lopes1 Mário Colombi Gava2 “Ainda que as palavras estejam fundadas na fala, a escrita, tiranicamente, as trancafia para sempre na imagem”3

Resumo: Como se aprende como lidar com a comunicação oral do direito? Um jovem estudante de direito descreve tudo que sente na primeira vez que observa audiências na Justiça do Trabalho. As questões que propõe revolvem o que ouve, o que vê, o que cheira, o que toca com sua imaginação e sua vontade de compreender. E, à medida em faz o relato, ele revela a enorme quantidade de movimentos desconhecidos que são relevantes no que diz respeito à epistemologia do direito. Palavras chave: Oralidade. Letramento. Epistemologia jurídica. Narrativa. Abstract: How can one learn about how to deal with the oral communication of law? A young law student describes everything he feels at the first time he sees hearings in the Labor Court. His questions evolves what he hears, he sees, he smells, he touches with his imagination and his will of learning. And, as he does so, he reveals the enormous amount of unknown movement that are relevant on what concerns law epistemology. Keywords: Orality. Literacy. Law epistemology. Narrativity A ideia da pesquisa de iniciação científica era fazer do aluno um observador. Pode isso parecer coisa pouco científica, mas a professora fez uma aposta consigo mesma: ele se espantaria ao ver o muito que escapava dos manuais que lhe tinham sido apresentados até o 5º período do Professora Associada da Faculdade de Direito da UFMG. Desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Doutora em Filosofia do Direito. e-mail: [email protected]. 2 Advogado em Belo Horizonte. e-mail: [email protected]. 3 ONG, 2002, p. 12. 1

270 • Professora, como se aprende isso?

curso de direito em que se encontrava então. Ele se espantaria ao sentir a força da palavra antes de ser trancada na imagem. A hipótese era de que ele se surpreenderia com o cenário vivo da sala de audiências que lhe seria injetado pela vivência do imediato delas e, principalmente, de que perceberia o muito da oralidade que não tem espaço na teoria jurídica. Na transformação da fala das audiências no extrato das atas perdem-se parcelas relevantes da emoção que faz parte da dinâmica efetiva do Processo e dos processos. O alimpamento da abstração da lei parece ser perseguido também no resíduo da realidade que cabe nos autos e que resvala na tradução teórica. Não se lhe pediu uma análise jurídica (processual ou trabalhista) dos acontecimentos, mas que ele expusesse as suas sensações a partir do que ocorresse nas várias audiências. Que fizesse um diário, um pequeno caderno de campo transvestindo-se em um antropólogo da sensorialidade do processo judicial. A experiência deu-se em 2012 e desde então os dados-anotações repousam num arquivo do computador à espera de transcrição impregnando-se da potencialidade das alterações introduzidas com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015. Trancafiadas no texto inconcluso, as vozes agora se transmudam na imagem da letra impressa. E o objetivo dessa narrativa de miscelâneas é expressar a tradução escrita das observações do aluno, sempre em torno da pergunta que foi ponto de fusão da trama que ele armou na conjunção dos relatos: “Professora, como se aprende isso?” O aluno sabia que não era na faculdade. De lá, ele vinha com as bases da teoria do processo, de lá ele vinha com a lei, já sabedor da direção dada pelos princípios da ampla defesa e do contraditório. Mas ele viu, ouviu, apalpou o ato que a potência dos conceitos e dos princípios não esgota. Era mais do que o princípio da oralidade. Era a oralidade como meio essencial da comunicação humana4. E suas anotações vieram carregadas de perguntas: O que fazer caso não se saiba na hora sobre alguma lei ou jurisprudência citada? São tantas leis, artigos, súmulas, OJs... Dá um frio na barriga e um medo enorme de falhar. Devem-se treinar improvisações ou isso vem com a experiência?

A resposta de um professor que tenha acumulado vivências do direito em ato talvez seja que ele procure uma resposta embebida da Este texto segue a temática iniciada com LOPES, 2012 e, ainda que se tenha feito a deliberada (e arriscada) opção de não expor a base teórica que o lastreia, para além do ritmo da crônica, o confronto entre oralidade e letramento funda-se em ONG, 2002 e em GOODY, 2010.

4

Mônica Sette Lopes & Mário Colombi Gava • 271

consciência de que há uma margem para afastar erro possível quando se tratar do juiz. Ele poderá sempre consultar a lei e a jurisprudência sumulada. Poderá sempre voltar atrás e acertar o curso dos fatos, desde que o faça antes da sentença. Não há demérito em reconhecer o equívoco, mas é preciso cautela para não errar demais, de modo a espalhar uma imagem de insegurança que pode interferir na condução da audiência. A professora disse a ele sobre a necessidade de aprender a ouvir o silêncio, de deixar para depois as decisões mesmo interlocutórias em que há dúvida. Mas seria preciso enunciar também o cuidado que ele deveria que ter se fosse advogado. No Processo do Trabalho, dá-se na audiência a consumação do prazo para a defesa, que deve ser antecipadamente juntada ao PJe, com os documentos, formando a lide. O momento para a impugnação de documentos também pode esgotar-se na audiência. A preclusão incide para aquele que não ressaltou a irregularidade do cartão, a falta do pagamento da verba, a falta da assinatura no recibo, a impropriedade do documento. O aluno se viu em cada jovem advogado. Percebeu como eles se postam encostados à parede, espreitando como o juiz está naquele dia. Flagrou o advogado da empresa estudando o caso na sala de audiência, antes de ser chamado. Pareceu-lhe que ele falou como se tivesse decorado, citando por inteiro o número de outro processo. Ele se identificou também na discussão que se trava sobre um processo com as mesmas partes. Percebeu que a juíza acalmou a situação, definindo conexão/continência/prevenção. E se colocou no lugar dela, reconhecendo que não saberia o que fazer. E perguntou se também acontece com os juízes de não saber. A professora pensou em dizer-lhe que sabia cada vez menos. E ele provavelmente não entenderia essa resposta vinda de alguém que àquela altura já exercia o ofício há mais de 20 anos. Como não saber quando se decide a vida de alguém, quando se decidem várias vidas de tantas pessoas, de tantas empresas e das pessoas que as compõem todos os dias. Não é um não saber qualquer, esse que ela não sabia. Era um não saber diante da impossibilidade, da imprevisão, do infinito, do excessivo. Diante de contingências que pareciam não interessar a ninguém. A professora viria a perceber o esforço da mediação/conciliação absorvido da expressão inteira do Código de Processo Civil de 2015. Mesmo sabendo disso e reconhecendo o discurso laudatório para as possibilidades do concerto do dissenso, substituindo o julgamento, ela preservaria a dúvida sobre se seria possível vivenciar isso sem afundar

272 • Professora, como se aprende isso?

no risco das audiências em sucessão, se avolumando dia após dia num automatismo que tende a tornar tudo o mesmo. E ainda que o Código de Processo Civil de 2015 proclame a prevalência da solução negociada, a professora desconfiava do seu sucesso quando em nada se avaliou a concretude da experiência da Justiça do Trabalho. Quando não se afundou numa pesquisa minuciosa sobre esses fazeres recônditos que escamoteiam acontecimentos cotidiano do direito no seu mais fundo sentido relacional: o que envolve as pessoas juntas à volta da mesa da sala de audiências. Talvez um reflexo da apreensão subliminar do peso das audiências trabalhistas em sucessão esteja no §12 do art. 334 do CPC/2015. Ao prever que a pauta das audiências de conciliação/mediação deve ser organizada de modo a respeitar o intervalo mínimo de 20 minutos entre o início de uma e o início da seguinte, preserva-se o tempo do diálogo para o acerto das diferenças e evita-se a sobrecarga e o excesso de tensão pelo fluir do tempo. Não é muito como registro da experiência, mas é um dado relevante. A professora não se esquecia da sala de audiências, mesmo estando longe dela por tantos anos. No visceral das soluções tramadas pelo Processo do Trabalho, aquele era o ponto central para a tradução da voz na imagem marcada no papel. E ela lia as páginas da prova, ao examinar os recursos, com a sensação da cor, do tom, da voz, do cheiro da sala de audiência. E sabia bem que se o aluno quisesse ser juiz, não lhe bastaria a aprovação no concurso. Não lhe bastaria o envaidecido do reconhecimento de saber que levava à classificação. Seria preciso que ele recomeçasse a aprender todos os dias o que ninguém lhe ensinaria como fazer. No jornal O Globo, de 07.09.2013, a manchete da página 8, declama o espantoso da notícia que virá a seguir. Bahia: concurso para juiz do Trabalho reprova todo mundo. No corpo do texto, para além do lide carregado de números (número de inscritos, 2600; número de etapas do concurso: 5; remuneração inicial: R$14.000,00; taxa de inscrição: R$217,00), a notícia exala perguntas: Será que a prova estava difícil demais? Será que os candidatos eram fracos? Será que eles não estudaram? Por que ninguém passou? A resposta poderia vir como na propaganda do cartão de crédito na referência a algo que não tem preço, que não se alcança pela matemática, que não se paga para saber: ter experiência do direito como acontecimento na realidade, dominar o corpo no contato com outros corpos na sala de audiências exige a clara noção da imponderabilidade. Lá onde tudo pode acontecer reside a essência do processo vivo de aplicação do direito. É de lá que vêm também as histórias que se devem

Mônica Sette Lopes & Mário Colombi Gava • 273

contar para evolver uma parte relevante do direito como um acontecimento cheio de nuances e desvios. Como se relacionam os sentidos na oralidade em que o direito se expressa nos encontros e nos desencontros nas salas de audiência para onde conflitos são transportados para buscar solução jurídica? E na extensão de suas perguntas vem a perspectiva de um direito recontado na primeira pessoa em que francamente as dúvidas se expusessem para uma epistemologia em que juízes, advogados, servidores pudessem fazer a crônica de seu cotidiano cheio de sentidos. E a professora pensou em como diria ao aluno que faltava essa crônica, faltava a coragem de sair da casca protetora da teoria em abstrato e descer ao rés-do-chão e relatar os dias numa despretensão de primeira pessoa do singular que navega na percepção dos que veem e vivem apenas miudezas. A professora tentou dizer isso. Tem tentado. E, por isso, abre-se a exposição para a crônica. E então ensaia-se com arte do dizer miúdo. Reitera-se a seriedade dos cronistas numa teoria, transposta em relato, que poderia verter-se na crônica da rotina das salas de audiência que não se importa com o desprezo das grandes verdades, porque sabe o lugar deste relato que dá texto e contexto às invisibilidades com a aparência de despretensão que caracterizam a escrita na surpresa: Um cronista de segunda, gato vira-lata da vida literária, mete a língua onde não é chamado e passa o dia lambendo as palavras, as cultas e as das calçadas, na frente de todo mundo. Nem aí ao que vão pensar. Gato sem dono, o cronista mostra os dentes quando querem lhe colocar a coleira da ordem vernacular. Ele quer a liberdade de fazer do seu jeito. Coçar num adjetivo, morder as partes de um verbo composto, bocejar diante de um advérbio e balançar o rabo para uma expressão oral, gostosa, que não via há muito tempo na sua rua – mas ele não diria isto na frente para crianças numa sala de aula. Mexer com a língua de um lado para o outro, principalmente para o errado, é diversão adulta5.

E, então, se percorrem as anotações feitas pelo aluno naqueles dias já remotos em que transitou pelas salas de audiência do foro da Justiça do Trabalho em Belo Horizonte como se fosse a rua e se propõe fazer delas essa crônica breve, com a leveza que apenas os incautos acham que combina com as coisas do direito, no sem compromisso com o certo e o errado ou com a seriedade dos artigos que tem a pretensão de escandir 5

SANTOS, 2011, p. 10.

274 • Professora, como se aprende isso?

o direito como objeto de ciência. Saber das relações corpo a corpo na sala de audiência é diversão adulta, para quem não tem medo de falar de coisas proibidas: Um cronista gosta de fingir que não tem compromisso com o certo e o errado que movem a seriedade dos artigos das outras páginas. Anda de bermudas pelo pátio dos verbos, zoando das concordâncias de cartola que o espreitam pela fresta das janelas, todas muito branquelas e invejosas da liberdade que ele tem em se locupletar ao sol pagão das carnes suculentas do verbo popular6.

Trata-se, portanto, de um assumido andar de bermudas pelo pátio da ciência do direito com reconhecido interesse no locupletamento daquilo que, do direito, o tempo engoliu na poeira estranha que se perde nas frestas das janelas. O relato abre-se para um encontro de primeiras-pessoas que tornam o verbo personalíssimo. O texto camufla essa pessoalidade absoluta e tenta usar a crônica para impor o distanciamento que não há. Aluno e professora falam do que sentem. Na versão de Massaud Moisés, a crônica é uma modalidade literária “sujeita ao transitório e à leveza do jornalismo”, que sobrevive quando logra desentranhar o perene da sucessão anódina de acontecimentos diários, e graças aos recursos de linguagem do prosador. Sucedendo tais circunstâncias, afigura-se que a inspiração do escritor apenas se materializou em crônica por uma feliz coincidência entre o fato passageiro e as matrizes de sua faculdade criadora7.

Mais adiante o autor fala do caráter menor da crônica como produto literário8. Mas em que pese esta posição, que não é apenas dele, quando se trata da assimilação entre direito e literatura, a crônica assume papel de vulto, porque pode permitir, pelo relato, uma abertura para temas que são invisíveis para a teorização ou para a ciência do direito. Um deles é, certamente, essa dinâmica concreta da atividade nas salas de audiência, envolvendo juízes, advogados, partes ou, de modo mais incisivo, a corporeidade de sensações e relações que se consideram não-jurídicas ou juridicamente-irrelevantes, mas que integram o processo de interpretação e aplicação do direito porque são inerentes na casuístiSANTOS, op. cit. MOISÉS, 1974, p. 133, verbete crônica. 8 Op. cit., p. 133. 6 7

Mônica Sette Lopes & Mário Colombi Gava • 275

ca em que ele se realiza (ou não). Daí a intenção de exercitar a valorização da sucessão anódina de acontecimentos diários e do fato passageiro como elementos fundamentais da epistemologia do direito e da difusão de seu conhecimento como realidade em movimento. Tudo isso ganha mais pertinência quando se investe numa mudança da cultura do processo que se volta toda ele para a busca do consenso (art. 3º, §3º do CPC/2015). Esta face (invisível) da realidade e da vivência do direito deve ser desvendada a partir do entendimento da oralidade como meio de comunicação que sobrevive ainda que na convergência necessária com o meio escrito-impresso e mesmo com o meio digital. E assim, o aluno começa o relato da primeira audiência: “Entram as partes. Faz-se uma brincadeira inicial com as balinhas de camomila que estão em cima da mesa. Será que o advogado brincalhão, ao fazer uma piada inicial, já ganha alguma atenção especial do juiz? E com relação ao advogado sisudo: será que o juiz o teme de alguma maneira?”

A sisudez ou a simpatia do advogado para os fatos colaterais normalmente interferem pouco no fluxo da audiência. Importa mais a forma como age e reage na dinâmica dos atos que interessam na margem dos ritos. A polidez, a rapidez e a exatidão das colocações, a ausência animosidade artificial, a atenção para o que é essencial indagar às testemunhas à vista dos limites da lide e da prova já feita, a disponibilidade para entender o percurso da tratativa de acordo, tudo isso interfere na qualidade dos resultados obtidos. O Código Civil de 2015 introduziu a urbanidade como dever do juiz no tratamento das pessoas em audiência (art. 360, inciso IV). É como se a norma berrasse a necessidade de possibilitar, pela leveza do contato entre todos os presentes, a abertura para a oitiva, para visão, para a percepção das informações. No entanto, conter a expansão emocional durante a audiência nem sempre é fácil. E o relato prossegue. A falta de acordo leva à apresentação de defesa. O advogado do reclamante impugna na hora os documentos juntados. O aluno o vê reforçando os pedidos da inicial. Mas ele pressente que pode ser difícil fazer algo ali, no imediato do tempo, somente pela voz, com a responsabilidade de estabelecer o último elo relevante na formação da lide. “Na faculdade não se aprende isso.” Ele não sabe que o desejo maior da professora era dar um curso intilulado Como impugnar documentos em audiência. Um curso improvável, que não interessaria a ninguém, no comezinho da processualidade.

276 • Professora, como se aprende isso?

Porque o aluno pode intuir, mas não tem a noção exata do que é para o juiz se silenciar diante da impugnação que ele sabe equivocada, ou longa demais, ou irrelevante. O aluno se pergunta se são chatas as conversas triviais na sala de audiência. Ele presenciou algumas, como a curiosidade de uma juíza sobre o relógio da advogada, iniciada enquanto a ata da audiência que consignava a ausência do reclamado, a incidência do art. 844 da CLT, a designação da data de publicação da sentença era impressa. Ele sente que a figura de autoridade se desconstruiu naquele momento deixando-se substituir pela presença de uma mulher vaidosa e curiosa pela beleza do relógio. A indagação é posta no relatório: Há alguma importância nas conversinhas cotidianas, nos convencionalismos sociais em uma sala de audiência? Ou isso é, na verdade, muito chato?

Talvez isso que ele chama de conversinhas, que podem ocorrer ou não, que dependem do estado de espírito de todos os presentes, que depende, até, de uma história deles (as outras audiências que fizeram, a reiteração das presenças e da atividade comum), seja uma revelação do que há de ordinário ou de convergente na convivência humana na sala de audiência. Está-se ali em função de um rito processual, do cumprimento de uma passagem relevante do procedimento, mas são as pessoas que levam para aquele tempo em que estão juntas, trabalhando, os fatores mais diversos de sua humanidade. Entre gentileza, alegria, beligerância e agressividade há toda uma escala de emoções, ações e omissões que interfere mais ou menos no resultado da audiência. O aluno percebe esses desvãos dos relacionamentos nos movimentos da conciliação. Num dia, ele lança no relatório: “Realizada a conciliação. 3 parcelas de R$600,00.” Não é o valor, porém, que chama sua atenção. O advogado da reclamada usa um excêntrico paletó verde e oferece o valor. E ele vai remontando a história. É o segundo emprego de carteira assinada da reclamante. Deve ser a primeira vez que ela vem a juízo na Justiça do Trabalho. Seus movimentos corporais são muito reveladores. Na hora em que ela escutou a proposta de acordo balançou a cabeça afirmativamente e sua respiração acelerou. Dava para ver nitidamente o tórax em expansão e contração. O paletó verde, a respiração da empregada, um valor que é proposto. O aluno não tem como aferir o que representa a

Mônica Sette Lopes & Mário Colombi Gava • 277

proposta na realidade vivida pela autora. Ele não pode dimensionar a aritmética de direitos e de deveres. Mas o que ele guardou foi a adesão dela à proposta, como se fosse ao mesmo tempo o esperado e inesperado. Um susto vivenciado na materialização de um direito que ela julgava ter. E que poderia ter uma expressão maior ou menor. Mas era apenas uma audiência. Mais uma entre tantas. No dia seguinte, ele percebeu um enredo diverso. O processo de conciliação se arrastava na audiência. Na exaltação da mesa de debates, a reclamada oferece R$3.500,00. O advogado do autor fala em R$3.760,00. Uma diferença pequena, ele reconhece. Nas vozes que negociavam o aluno sentiu sarcasmo, ironia. As situações vividas caminharam pela sala numa minúcia que a voz reforça. A questão do uso carro. A história da furadeira que não foi devolvida. Tudo num novelo de realidade que o acordo não parecia desatar. Ao final, ele se concretiza, mas o aluno intui que as questões continuarão abertas no tempo dos personagens. Ele percebe que a sentença, tampouco, põe fim à questão e presencia audiências de tentativa de acordo na execução. Parece-lhe estranha essa constatação de uma inefetividade concreta da autoridade da coisa julgada, cuja força é reprisada em vários dispositivos e de que se trata com tanta certeza nos manuais. O vetor da execução forçada, no solo da sala de audiência, parece uma falácia. Nada acontece por encanto. Há, às vezes, uma dificuldade na compreensão do que foi julgado. A coisa julgada tem um conteúdo que é imagístico, porque não se materializa com facilidade na execução forçada. Pode ser difícil quantificar o decidido. Pode ser difícil (quase sempre é) transformar os números em dinheiro que satisfaça o dever de cumpri-la. O aluno vê que a reclamante-exequente está abrindo mão de valores em prol de uma solução mais segura quanto ao tempo. A reclamada não quer aceitar, ao fundamento singelo de que não tem dinheiro para pagar (3 x de R$1.300,00 sendo a 1ª parcela em 10 dias). A representante da empresa usa de sarcasmo: “Estranho não ter descontado o que ela já trabalhou”. E a juíza responde com muita raiva: “Você está na pior posição possível. Lembre-se bem disso!” A reclamada continua resistindo ao acordo, sem ouvir o próprio advogado que a orienta no sentido das vantagens dele. A juíza perde a paciência e pede para autora e advogado se retirarem. Eles se retiram. Ela então volta a falar com a reclamada sobre sua situação. Uma condenação. A execução forçada que seguirá até que a satisfação do crédito venha. O benfazejo que é organizar a forma de quitar o débito. O aluno percebe que, na tentativa do argumento persuasivo, ela muda o tom de

278 • Professora, como se aprende isso?

voz. E fala de maneira acolhedora e maternal, ainda que sua raiva seja facilmente perceptível. Talvez não seja raiva, mas fadiga ou um desespero diluído no saber imposto por algo que não está nos livros e que o juiz não pode fingir: de nada adianta louvar a sanção como elemento da norma jurídica se a execução forçada é permeada sempre tanto esforço e tanta frustração. Em cada audiência de tentativa de conciliação que se abre para uma solução retemperada de propostas, cada juiz se indaga sobre o muito de desinteresse que há em penetrar as cercanias do direito tal como se lhe apresenta cotidianamente. E o acordo é fechado. Na percepção do aluno, a certeza de que a juridicidade dos fatos é apreendida de forma diferente a depender da parte. Nas pequenas empresas, a compreensão tem mais entraves. Ele se lembra da sala de aula, a professora falando sobre essa distinção que a teoria do direito nega. Ele retém o esforço da juíza para que o acordo fosse firmado. E para que aquele processo tivesse uma chance de chegar ao fim. Ainda que apenas num futuro projetado a tempo determinado a partir daquela audiência. O aluno compreende que há um saber entramado na dinâmica da conciliação. Numa outra audiência, ele continua a vislumbrar as filigranas do processo de negociar e a se perguntar sobre o momento de aprendê-lo. O advogado da reclamante, sentado à mesa, não parecia lidar muito bem com a situação. Era visível o seu desconforto. Sua contraproposta inicial à proposta de R$1.000,00 foi de R$1.200,00. Naquele exato momento, interveio um advogado que estava em pé, logo atrás dele. Era um advogado mais velho que tinha uma naturalidade impressionante nos gestos. Era como se aquele trabalho fosse a coisa mais normal e mais fácil do mundo. Ao mesmo tempo em que ele participava da audiência, ele conversava com um conhecido (um terceiro advogado sentado ao lado do aluno). No momento em que ele interveio, puxou uma cadeira e sentou-se à mesa. Falou da seguinte maneira para o advogado negociador: Pede R$1.500,00 que ela (a advogada da empresa) aceita. A advogada ainda relutou, mas a confiança que o advogado mais experiente demonstrou era tão grande que se fechou o acordo em R$1.500,00. Será que R$1.500,00 foi um bom valor? Será que a capacidade de negociação do advogado foi mesmo um motivo determinante para se alcançar tal valor? Como treinar essa negociação na conciliação?

Mônica Sette Lopes & Mário Colombi Gava • 279

Como o juiz aprende a conduzir/mediar uma negociação? Simplesmente soma os valores da proposta e da contraproposta, dividindo por 2? Acho que é mais complexo do que isso...

A experiência que vem da idade é notada em outras audiências. Mesmo que não haja acordo. O aluno vê a diferença entre o advogado do autor, mais velho, e os dois advogados das duas empresas no fulgor da juventude. As duas prepostas eram também jovens e muito bonitas. Observando a cena como espectador, parece a ele uma briga entre a velha guarda e a jovem guarda. A professora talvez pudesse contar-lhe a sensação que é ver o envelhecimento de advogados que começaram jovens com ela e como ela. Ela se assusta ao vê-los mais calvos, com os cabelos brancos, com mais rugas. Ela se assusta ao ver neles sinais do tempo que são também seus. É com afeto quase que recebia os mais idosos, às vezes já doentes. Não que isso alterasse o resultado da ação. Mas essa sensação do tempo e de seu esgotamento, igual para todos, sempre pareceu a ela um dado emocional densamente relevante das salas de audiência. O aluno vê que o advogado faz a defesa de uma das reclamadas oralmente. Enquanto ele pensa em como treinar isso, a professora pensa em como evitar isso. Ela sabe que a defesa oral nunca é bem-feita, que ela toma um tempo maior do que o devido e acaba impondo atraso ao ritmo das audiências. Ela sabe que o melhor dos advogados se perderá nos argumentos. E é interessante que ele tenha percebido a tensão que se instala quando se anuncia que a defesa será feita oralmente. A autorização da lei, na versão originária da CLT, não é suficiente para naturalizar o procedimento sempre arriscado para a exercício qualificado do direito de defesa. O aluno vai ouvindo a prova. Causa-lhe espanto que o advogado não pergunte diretamente às partes e às testemunhas. O quadro é diferente dos filmes. Há uma lentidão, uma redundância que traz comicidade para quem assiste uma audiência pela primeira vez. Qual a dificuldade para o juiz em reduzir a termo um depoimento? Existem técnicas para isso ou é só por experiência mesmo? Será que ao reler o depoimento futuramente, no papel, o juiz consegue recordar os sentimentos que experimentou naquele instante? Melhorando a pergunta: Quanto de recordação um juiz consegue ter ao reler o documento? Quais seriam as deturpações mais comuns em se reduzir a termo?

280 • Professora, como se aprende isso?

O aluno percebeu que é preciso saber o que, quando, como perguntar. O juiz ou o advogado podem espantar a prova, podem impedir que a cena fática relevante circule no processo. E esse é mais um risco que o aprendizado não previne com sua incompletude perene. Tudo depende de cada dia, ainda que a experiência vá trazendo um arquivo de historicidade pessoal que pode tender a minorar os riscos. Como o cronista no relato de suas primeiras entrevistas: Um dia eu cheguei para o Roberto Carlos e, com a soberba natural dos jovens que sabem tudo, disse: Bicho, você é grande o suficiente. Por que não muda o repertório e canta os grandes compositores da MPB, que adorariam fazer músicas para você? Eu estava na casa do Rei, na Urca. Ele me olhou compreensivo. Deu uma pitada no cachimbo e fez aquelas reticências dele, cheias de risinhos. Deixou que a sabedoria dos tempos emprestasse inteligência e educação ao jovem repórter9.

O aluno percebeu que era o tempo dilatado que traria a percepção das coisas. Essa sabedoria do tempo é uma constatação aleatória, que pode se revelar até mesmo na facilidade com que, relendo a prova, o juiz venha a constatar que errou. Não comparou o depoimento com os documentos, não observou a controvérsia. Não fez a pergunta certa. O aluno vê a advogada que traz a folha de papel com muitas perguntas. Ele se indaga se isso seria a expressão de um caso bem estudado ou se seria a demonstração de insegurança. A professora não lhe falou do frio na espinha que qualquer juiz sente quando vê o advogado com uma folha de mil perguntas preparadas de antemão, as quais pretende fazer sem analisar o que é necessário provar, sem analisar a influência das provas já feitas. Uma após outra, ela ia fazendo as perguntas propostas pela lista do advogado num automático em que a razão é suspensa, para evitar o conflito de dizer não, mesmo sabendo que tudo já estava lá provado. Ela ia fazendo as perguntas, constando a resposta e pensando no tempo perdido, mas com medo de derrubar o advogado na insegurança inicial em que o papel é seu ponto de apoio. Nessas quando o diretor de secretaria costumava abrir a porta e fechar. Só de olhar para ela sabia que faltava só a gota d’água. Era melhor deixar passar aquela audiência. Era melhor deixar que acabasse a folha inteira das perguntas infinitas. O aluno esconde-se num canto da sala de audiências. Ele é um 9

SANTOS, 2010a, p. 8.

Mônica Sette Lopes & Mário Colombi Gava • 281

espectador insignificante que observa e vê no entrecortado do depoimento as advogadas a se comunicarem com o olhar, diante de cada frase do preposto. É apenas uma das sobrancelhas que se levanta, mas ele sente que um diálogo se estabelece no mudo entre elas. O aluno se pergunta se a juíza percebe as sobrancelhas que se levantam no não verbal dos contatos. Ele quer saber se isso interfere na condução do processo. Pode ser que sim, pode ser que não. Tudo depende do que o acaso permite ao juiz saber. Tudo depende do modo como o contato influi no ambiente geral. E isso não se pode ensinar. O tempo de aprender é, portanto, o tempo paradoxal da complexidade. E não há como demonstrar essas contingências pela transformação em conceito ou em abstração. Por isso, a dimensão da crônica talvez possa reestabelecer a multiplicidade que explode no cotidiano de tempos tão disformes. Porque o tempo não se suspende para oralidade. Não há como desmanchar a palavra dita. Não há como remover o gesto visto. Não há como apagar o cheiro sentido. Não há como desfazer o sentido do toque ou do tapa. Não há como tirar da boca o amargo e o doce. O aluno relatou a espera de 5 horas para uma audiência de 10 minutos. Num outro dia, ele assiste à maior audiência. Marcada para as 11h, ela só começou 14h16 e terminou às 16h45. Nela, à falta de acordo, anuncia-se uma sucessão de depoimentos pessoais e de testemunhas. A sala está cheia e ainda assim as pessoas conversam, tumultuando o espaço. Reclamatória de motorista de caminhão, estão lá as discussões sobre comissões e jornada de trabalho. Os atritos entre o advogado do reclamante (que fez a maioria das perguntas) e a juíza se sucedem. Em um certo momento, o advogado insiste em indagar algo. A juíza não consegue compreender o que o advogado quer seja perguntado. Ele foi percebendo a naturalidade com que esses embates se colocam e como, ao mesmo tempo, há uma modulação na voz da juíza que parece absorver o modo de falar das testemunhas. Seu linguajar está mais coloquial do que o normal. Ela inclusive dá um sorrisinho de canto de boca quando faz/escuta/reduz a termo algumas perguntas. O aluno se indaga se houve cerceamento de defesa quando a juíza diz que o advogado deveria escolher suas melhores testemunhas porque não ouviria todas (“se não conseguiu provar até agora, não vai ser com mais testemunhas. Não vou ficar aqui escutando várias testemunhas falando a mesma coisa”). Ele percebeu também que os depoimentos foram praticamente idênticos. E o bate-boca entre a juíza e o ad-

282 • Professora, como se aprende isso?

vogado geralmente ocorre nas mesmas perguntas. Ela as vai indeferindo e simplesmente fala: “Próxima!” O cansaço da juíza é perceptível. Ela recosta a cabeça na cadeira e respira fundo. Não é o único relato de cansaço, de desgaste, de tédio. Ele percebe a sisudez, o distanciamento, o corpo que às vezes desmorona sem que as palavras possam enchê-lo de energia. Quando se fala da emoção do juiz, da influência dela na decisão, muito raramente se considera o desgaste que vem ao fim de um dia carregado de muitas e longas audiências. A decisão normalmente se dá já no espaço da pressão por prazos, mas longe da imposição de convivência e de reação ao diálogo necessariamente expresso na voz e no corpo a corpo. A tensão da sala de audiências e a disponibilidade de quem ali está para o convívio são fatores que interferem na produção da prova e na concentração necessária para o acordo. Não se trata de um ato isolado do juiz. O advogado que insiste na pergunta já feita, que não tem noção dos limites da lide, que traz uma relação grande de questões e as faz mecanicamente impõe um desgaste que não tem medidas e impede a fruição da dialética de plena comunicação. O advogado que trata o colega como um inimigo e discute com ele rispidamente amordaça a fruição da dialética de opostos que caracteriza o processo em contraditório. O juiz que não ouve, que trata as pessoas com desprezo ou com arrogância impede a ampla dialética do contraditório. A participação no processo é de todos. Não há como narrar todas essas emoções sem reservas que exalam do momento-chave em que, no Processo do Trabalho, as portas da sala de audiência se abrem. Não há um lugar para o exercício da liberdade de mostrar o que sente. A palavra vai muito além dos limites da técnica fundada na lei. E o aluno faz-se de observador como personagem. No seu relato, intérprete aleatório, ele não tem papel definido. É cronista e é leitor. Foi só a crônica, como gênero, que me escancarou a porta para um leitor intruso. A crônica é em essência uma maldita conversa pública em voz alta. Percebi rapidamente que havia, em todos os aspectos, dos temas às formas, uma “etiqueta” de cronista, um código de civilidade e de boas maneiras que está na alma da nossa vida em comum e que a crônica absorve quase que por osmose, exigindo obediência estrita – era isso que o fantasma renitente do leitor me relembrava.10

10

TEZZA, 2016, p. 184.

Mônica Sette Lopes & Mário Colombi Gava • 283

O aluno está incumbido do improviso que é dizer o que vê e, assim, vai revelando a importância da concreção e sua expressão na audiência que continua. Entre verdades e mentiras. Nos depoimentos das testemunhas trazidas pela empresa, as respostas foram praticamente opostas às respostas das testemunhas do autor. A juíza vai alertando que perguntas genéricas não levam a nada, que não adianta repetir perguntas já feitas. Ele percebe que a juíza altera a pergunta: de sabe-dizer-se-os-trabalhadores-revezavam para você-já-viu-o-reclamante-revezando. Na síntese, ele registra que a contraposição absoluta nos termos dos depoimentos faz com que tudo pareça combinado como se fosse um teatro. E, no final das contas, ele acabou por entender a tom de irritação da juíza e a define como muito boa. Embora tratasse os advogados com uma certa animosidade, ela tinha uma concentração muito atenta em tudo o que estava se passando naqueles minutos em que todos estavam reunidos para cumprir uma etapa formal do processo. Tentava extrair o essencial de tudo, com foco, sem dispersar o que interessava, ainda que estivesse bem atrasada no relógio que pelos horários da pauta-nossa-de-cada-dia. Se eu fosse o advogado da mesa estaria pensando a mesma coisa ou também a consideraria “mal-educada”? Quando a gente se coloca na posição do outro, com alteridade, muitas vezes perdoamos seus atos, já que enxergamos as mesmas dificuldades que teríamos.

Não parece que o aluno tenha considerado que terminada a audiência, depois de um dia inteiro de intercorrências que levaram ao atraso, ela teria que juntar aquele processo aos outros que esperavam decisão na sua pilha e/ou na dos assistentes, conforme o caso e a disponibilidade. O confronto da contradição entre os depoimentos com a necessidade de resolver a demanda e de julgar escapa ao tempo visível da audiência e se agrega aos múltiplos fatores que se somam na solução pelo direito indo da busca de justiça à litigiosidade artificial. Resolver com o direito não é, portanto, coisa singela. Não é aritmética. E a resposta escapa à lógica pura de uma atração imaginada do fato pela lei para desdobrar-se numa versão corriqueira de minúcias que pode ser revelada apenas por um relato que é dos ditos, que é dos silêncios, que é dos sentidos. E que exige a transposição na imagem da escrita multiplicada pe-

284 • Professora, como se aprende isso?

los acasos que vai ficar para o sempre delimitado que é o da duração dos acervos e da lembrança dos vivos que a viveram. Fazer essa tradução é coisa que não se ensina na totalidade e que o tempo vai demonstrando no melhor quando se pode voltar e rever. Acontece também com o cronista, a se lembrar dos arroubos do jovem jornalista que ele fora: “Um dia eu fiz uma extensa matéria de capa com Joãosinho Trinta, um personagem que sempre tinha boas declarações para os repórteres. No penúltimo parágrafo da matéria, coloquei uma dessas frases entre aspas do carnavalesco. O parágrafo final, no entanto, era uma frase minha, um brilhareco engraçadinho com pretensões de estilo. Elio Gaspari, o editor, cortou. A estrela da matéria, explicou com sua infinita paciência com os focas, era o Joãosinho. Só ele tinha o direito ao último holofote e ao fecho de ouro do show”11.

Definir o que dizer, como se comportar, o que perguntar depende de uma observação entre erro e acerto. E a professora se lembra dos alunos a lhe pedirem que desse uma aula inteira só contando os casos de sua vida. Ela prometeu que sim. Uma aula em que eles poderiam perguntar tudo o que tiveram vontade de perguntar, mas que não tiveram até ali coragem. Talvez seus jovens alunos não consigam perceber como ela se sente exatamente como eles. Como, no rememorar, ela se vê no que eles são. E o aluno se identifica com uma das muitas juízas que viu: a mais nova dentre todas aquelas cujas audiências ele assistiu. E ele se reconhece nela enquanto ela conduz uma audiência na qual a empresa, um petshop, comparece sem advogado. O reclamante (ele sim com uma procuradora) pede insalubridade em grau médio por umidade excessiva e excesso de calor. Insalubridade em um petshop? Será que é realmente devido? Parece mais que está forçando a barra. Bem, não posso fazer esse julgamento a priori. Não fui eu quem viveu a realidade do trabalho.

A empresa parece querer se livrar logo do processo. Aceita a proposta de conciliação do reclamante.

11

SANTOS, 2010b, p. 10.

Mônica Sette Lopes & Mário Colombi Gava • 285

Será que se a empresa tivesse um advogado aceitaria a proposta da mesma forma?

A juíza deixou a conciliação transcorrer naturalmente. No entanto, quando a advogada do reclamante falou em reflexo, ela interveio dizendo que o valor estava excessivo: Parece que um advogado realmente está fazendo falta para a empresa. Quais são as vantagens e desvantagens de uma Justiça em que a presença de advogado é facultativa? Os juizados especiais ampliaram o acesso à justiça. Será mesmo que se trata de uma ampliação?

Juíza desabafa com a advogada do reclamante. Fala da sobrecarga de processos e que não há como toda sentença sair correta. E confessa: “Às vezes a gente se sente uma máquina. Ainda bem que existem as instâncias superiores para que vocês (advogados) possam recorrer”. O aluno acha a frase perigosa. O problema do judiciário brasileiro (e de todos os outros) também é um problema de gestão. Como inserir adequadamente essa temática nos cursos de Direito?

A pauta segue no horário. E o aluno sente como isso é quase suficiente para desanuviar as tensões. O clima de hoje está consideravelmente mais leve do que ontem. Caminhar corretamente com o horário da pauta parece ser de extrema importância.

A professora fica imaginando o que ele guardaria dela se a visse conduzindo uma audiência como fazia antes. Ela se lembra sempre da xícara de chá, que entrava no meio da manhã, pela abertura da porta, nas mãos do servidor querido e pousava na mesa e esquentava a alma. A infusão deliciosa do chá era uma poção poderosa de ar para respirar de novo. E a voz se recompunha. E o pensamento acalmava do gosto e do calor. Talvez ninguém percebesse o afago na alma, mas a memória guarda inteira a sensação que tem nenhuma relevância para o aprendizado do direito, mas que a punha de novo em alerta para seguir o dia até o fim. A professora quis falar ao aluno dos seus servidores, que não

286 • Professora, como se aprende isso?

tinham espaço nos relatos para a compreensão do processo. Ela se lembrava do colega do norte do Brasil que lhe contara que, todas as vezes em que abria a porta, no meio da audiência, via sua funcionária. Pérola. Nada disso importaria se a história não tivesse sido contada num curso de ética e se ele não se tivesse coberto de emoção para reviver os dias e recobrar do invisível a servidora adoecida, diagnosticada com esclerose lateral amiotrófica. Seu corpo ia definhando nos movimentos que ela levada todos os dias para a secretaria da Vara, enquanto sua racionalidade se expandia em sentires que iam além de qualquer julgamento. O juiz, abrindo a porta da sala de audiências para a secretaria, escancarava sua pequenez. E na fala, na história contada, faz-se a crônica dos dias a testemunhar o cotidiano do direito na miscelânea dos sentidos. O olfato. A audição. A visão. O paladar. O tato. No tempo recortado, a professora se lembra do outro juiz que, um dia, numa mesa de conversa, silenciou todos contando que vira seus presos orando. Ele descreveu detalhadamente a impressão de um momento que foi um átimo de vida. O reconhecimento de cada preso e de seu crime. A mulher que matou o pai. O traficante que matou o inimigo. O estuprador. O ladrão. A chegada na hora em que o pastor iniciava a oração. A impossibilidade de esquecer o som daquilo, o eco das vozes pedindo a Deus por suas vidas. E ele ganhando a convicção de que nunca mais iria ali naquela hora. Essas dores não saem no jornal. Muitas dores não fazem manchete nem no noticiário, nem nas páginas remotas do conhecimento do direito. São como se não pertencessem ao direito e a seu fazeres. Na ética dos riscos cotidianos, cada escolha é uma história de reconhecimento. É um retorno ao ponto originário da busca pela justiça no caso. E para ela não basta o prescritivo que faz a forma do direito. É preciso a resiliência de reprisar o descritivo sem escamotear a acontecência das prescrições e a vida que é sua matéria prima. É preciso a constância no além da lei que perpassa o sujeito intérprete nas suas variadas dimensões e nas relações múltiplas e intercalares que fazem a trama do direito e que se enovelam nas vozes que se calam ou explodem nas salas de audiência. Entre o rotineiro, o costumeiro e o inusitado, o extraordinário. O aluno percebeu o que era assimilado como comezinho, mesmo que o surpreendesse. “A que horas se aprende a dizer sim e não?”

A juíza concedeu um prazo de 48 horas para que o reclamado

Mônica Sette Lopes & Mário Colombi Gava • 287

juntasse alguns documentos (cartão de ponto e ficha financeira). O aluno pergunta se isso pode. Se isso está na lei. Quando o advogado fez o requerimento, ela demorou cerca de 4 segundos para responder. Pareceu que foi condescendente. A professora quis dizer a ele sobre os acertos que se fazem na audiência para aliviar os efeitos do contraditório. A juíza poderia ter dito não. Mas quando diz sim, ela abre a porta da ampla defesa e da informação e possibilita a vinda aos autos de documentos que podem facilitar o julgamento. No trânsito das informações, ela dará vista ao autor e analisará a extensão da lide no momento da conclusão da instrução do processo. Enquanto a ata é impressa, ele constata, todos conversam à mesa. Quase como se fosse uma mesa familiar, uma roda de amigos. Acontece com frequência esse sopro de alívio. O tema, na trivialidade conexão das relações de trabalho, é uma paralisação decorrente de greve. Parece ser um outro mundo, na naturalidade de uma conversa em torno de uma mesa. No trivial do processo arquivado pela ausência do reclamante, o aluno entreouve do procurador a alegação de haver visto o advogado dele na sala de espera e a insinuação de que ele deve ter ido propositalmente embora. No enredo circular da lei, o art. 844 prevê a extinção do processo sem resolução do mérito na configuração do pressuposto que é a ausência. Isso não impede a indignação jocosa da preposta e a frase que ele anota no literal do entre aspas: “Fica difícil quando a gente sai de Contagem nesse sol. Dá vontade de cometer um crime!”. Não, ela não vai cometer o crime. Mas a frase saiu com tanta força e naturalidade que todos se assustaram. A violência das palavras é surpreendente. Ele vivencia como uma onda de choque pelo inesperado da profecia para um desfecho corriqueiro na sua técnica: ausência-arquivamento-ausência-arquivamento-ausência-arquivamento. O aluno vai assimilando o transe entre silêncio e fala, sempre com o significado. Ele sai um minuto e quando volta a audiência seguinte já terminou. No entretempo entre essa audiência e a seguinte, ele percebe que a juíza olha o seu celular o tempo todo. Ele já havia tocado 3 vezes. E ele pensa na vida dela fora dali. O telefone da juíza toca pela segunda vez. O telefone da juíza toca pela terceira vez. A audiência é rápida. Apenas a homologação do acordo. O aluno percebe que a juíza vive várias vidas. A professora lembra-se de atender o marido no meio do ciclo das audiências, nas suas necessidades. Ela sempre explicava para os advo-

288 • Professora, como se aprende isso?

gados que ele estava em casa, já idoso, e não conseguia fazer funcionar o controle remoto da televisão e fica mais sozinho sem ela. Não é jurídico. Os advogados poderiam entender ou não. Ela nunca saberá. Mas isso foi num tempo outro. Já foi. Passou. Na cabeça da professora, havia a certeza de que nos tempos do marido- juiz, ele não aceitaria que uma ligação tão frugal interrompesse suas audiências. Mas ela sabia também que seria impossível não cuidar dele. De algum modo, o silêncio dos minutos que antecedem o pregão da audiência seguinte lhe parecem ser mais leves, quase reconfortantes. Ele se dá conta da diferença em relação ao silêncio ao longo de uma audiência, enquanto as partes aguardam a impressão do documento, por exemplo. Nesse vazio aparente de som paira uma energia e as pessoas devem, de alguma forma, manter uma postura. Há uma expectativa de que algo pode destampar o embate das palavras, pode entornar a animosidade que se imporá sem retornos. E assim o silêncio. Assim se calam todos. No jogo de cena, os advogados avançam e recuam na argumentação para fixar o embate da audiência. Na rapidez do verbo aberto em som, o advogado sinaliza para a fragilidade do argumento que contraria matéria sumulada. A juíza e a advogada da autora rechaçam a afirmativa. O aluno lembra do caso do advogado lendário que inventava leis na hora da audiência. Para não se passar de desentendido, o juiz e advogado adversário simplesmente acatavam. E indaga: “Será lenda urbana ou verdade?” O saber não é uma medida uniforme. E o aluno acha graça dos acasos. Ele presencia a cena que deixava a professora muito nervosa: quando dois advogados resolvem representar concomitantemente a parte em audiência. Normalmente são advogados iniciantes que desconhecem os ritos e querem se apoiar um no outro seus não saberes. Ele não acha que isso possa ser motivo suficiente para a irritação da juíza. Mas é. Os dois advogados simultâneos são geralmente sinal de insegurança e as perguntas são também geralmente pouco objetivas e tumultuam a instrução. Os depoimentos se contradizem. A testemunha do autor diz que era possível fazer login com a senha de outra pessoa, fato negado pela testemunha da empresa. O aluno avalia a prova com perplexidade: Agora a juíza tem dois depoimentos contrários. O que fazer?

Nunca se sabe. Mas ela decidirá. Num sentido ou em outro. E

Mônica Sette Lopes & Mário Colombi Gava • 289

tentará dizer porquê. Quando a autora está propondo as perguntas, a advogada da segunda ré dá uma terceira e última levantada de sobrancelhas para a amiga. E dessa vez o aluno consegue fazer uma leitura labial: “Ela tá tentando fazer prova com nossa própria testemunha”. O aluno talvez não alcance que a troca de olhares entre as partes e seus advogados tem relação com a comparação entre os fatos provados e a realidade vivida, quem mente e quem diz a verdade. Mas ele fica na dúvida sobre a qualidade do depoimento, sobre o paradoxo entre o contentamento da juíza por não ter que ouvir mais uma testemunha e a certeza dos fatos: A juíza claramente se mostrou contente. Não precisaria ouvir a mesma ladainha de novo. Será que sua convicção já havia se formado? Será que realmente uma segunda testemunha é dispensável? Não há perigo de, mais para frente, no momento de julgamento, quando o sentimento da audiência já se tiver dissipado e somente há um papel frio na frente, ser pouco uma única testemunha?

Ele sabe, porém, que ela chegará a uma verdade que vai usar para decidir. Ele já sabe que ela não pode se arvorar ao conhecimento inteiro e que ela vai criar uma história a partir dos dados que são acessíveis. E assim vai julgar. A verdade é um desejo inconfessável de quem tem que decidir. A crônica dos dias guardará a marca do que fixar como a verdade no caso. Que pode ser. Que pode não ser. Que pode ser o costumeiro. Que pode ser o surpreendente. E o juiz nem sempre poderá fazer o relato daquilo que as partes viveram. E ele sabe que, se ainda não há uma máquina do tempo que permita modificar o passado, algo aconteceu. O empregado bateu ou não o cartão. O chefe agrediu ou não o empregado. E o juiz tampouco pode viajar no tempo para ver o que ocorreu. Ele não pode ir aos fatos. E ele nem pode fazer a crônica de suas dúvidas e de suas certezas: Uma vez um amigo que trabalhava num jornal de São Paulo me contou que, anos atrás, o mais antigo assinante, um senhor do interior, cancelou a assinatura. Houve certa comoção por causa disso, e o jornal pediu a seu representante na área que fosse conversar com o assinante, para saber o que o desagradara tanto. Resposta? Nada. Apenas ele se aposentara e vendera a quitanda. Assinava aquele jornal, especificamente, porque era o que tinha o maior número de páginas e dava para embrulhar

290 • Professora, como se aprende isso?

mais coisas. Não sei se a história é verdadeira, mas me foi passada como tal.12

A história de cada questão deduzida pode ter inúmeras vertentes que nunca serão escandidas pela formalística do processo. Mas que é passada como tal. Será que há histórias inteiras que ficam por detrás dos processos na potência de serem conhecidas e de fazerem sentido? O aluno fica invisível na sala e tenta ouvir os não ditos, os subliminares. Os sussurros. Ele aprendeu que a desistência é possível e que ela implica extinção do processo sem resolução do mérito. Mas ele percebe que há sempre um motivo, uma estratégia, um estratagema. Enquanto o advogado do reclamado conversava alguma coisa com o digitador, o próprio reclamado confidenciou-lhe baixinho, como a um amigo sincero, olhando e erguendo os braços para cima: “A verdade prevalece”. Era visível sua sensação de alívio. Um processo realmente tem um peso. O aluno tem dúvidas. Nem sempre a verdade prevalece. E o reclamado não entendeu que a desistência implica apenas a extinção do feito sem resolução do mérito. Aquela verdade talvez não prevaleça para sempre. Pode haver outro processo. Numa outra audiência, ele sentiu que a desistência do autor veio como uma solução na surpresa. Ter que a pedir não agradou seu advogado. Ele ouve na voz baixa o cliente dizendo ao advogado: “Foi aquilo que eu te falei”. E o procurador não se lembra da história: “Falou? Acho que não...”. E deixa a conversa para lá fora. Ali era só a audiência. Ele percebe os labirintos do diálogo entre advogado e cliente. Há muitos não saberes. E mais uma vez se pergunta em que hora aprenderá todos os passos desse processo de conversação sobre o conflito. A professora lembra-se da primeira cliente numa separação judicial litigiosa. Lembra-se de como só soube de fatos relevantes diante do juiz. Lembra-se das coisas que ouviu do marido de sua cliente, da intimidade dos vínculos que descobriu na hora da audiência numa dimensão muito mais larga do que gostaria. O aluno não entende o porquê de uma ação de consignação em pagamento cujo único objetivo é a assinatura de um termo de rescisão. A consignada veio de Mariana para isso. Ele se pergunta se a litigiosidade diminuiria se houvesse mais conhecimento do direito. Pode ser. Ele não sabia ainda que essas ações de consignação envolvem 12

RONAI, 2011, p. 12.

Mônica Sette Lopes & Mário Colombi Gava • 291

alegações de justa causa que vão ser discutidas em outras ações, numa cadeia de litigiosidade, mas intuiu que as formalidades do direito do trabalho, por vezes, impõem ritos excessivamente protocolares e que se tornam mais complexos ainda pela ação das partes e de seus procuradores. A audiência é adiada. O autor está internado em clínica devido a dependência química. As correlações do mundo da vida com o direito não se fazem no milimétrico de um destino que é sempre imprevisível. O aluno ouve a súplica do advogado do autor ao advogado da empresa para que se resolva logo o caso. No entanto, ele compreende que o procurador da empresa a representa sem qualquer autonomia. A solução da questão trabalhista e da questão humana lhe escapam. O aluno pergunta: Qual a graça de se trabalhar como advogado se não houver autonomia?

E, de uma audiência a outra, ele vai constatando que autonomia é também conhecimento. No finalzinho da instrução de um processo, com duas empresas-rés, a procuradora da segunda ré faz uma pergunta sobre alimentação. Advogada da primeira ré pensa em voz alta: “Nossa, o mais importante eu esqueci!” O aluno fica na dúvida: teria sido mesmo o mais importante ou foi força de expressão? Como se pode esquecer o mais importante depois de fazer tantas perguntas? As partes e os advogados começam a discutir questões não pertinentes ao processo stricto sensu. A juíza pede para que não façam isso na audiência. Partes e advogados voltam a discutir. Com isso a magistrada fala nervosamente: “Eu disse para vocês não discutirem esse assunto na audiência. Se quiserem, discutam isso lá fora, após a audiência!” Valeria a pena deixar os litigantes resolverem suas “questões extras”? Ou isso geraria somente um tumulto sem sentido?

Às vezes, as pessoas só querem ser ouvidas. O empregado quer desabafar as dores que sentiu do tratamento do empregador. O empregador quer desfilar os malfeitos do empregado. Mas não há tempo para esse exercício recíproco de exposição de perspectivas. E o juiz nem sempre está preparado para se deixar levar ao sabor das expectativas de justiça que cada parte carrega dentro de si.

292 • Professora, como se aprende isso?

Talvez seja por isso, para se distanciar, que aquela juíza dificilmente olhe nos olhos das partes e das testemunhas. Talvez seja por isso que ela possua a fisionomia mais fechada de todas as juízas que ela já assistiu. Isso, porém, não quer dizer nada. Quem vê cara, não vê coração. A seriedade da juíza pode ser apenas mais uma estratégia para conseguir impor-se o ritmo dos dias. Na audiência adiada, ele vê as testemunhas presentes entrando e sendo intimadas da nova data em que deverão comparecer: Já é difícil deixar a rotina para ir depor em um processo. Eles devem estar com uma certa indignação por terem ido lá a toa. E pior, terão que retornar outro dia.

São pessoas diferentes que vem de todas partes da cidade para se encontrarem ali. Trazem suas histórias guardadas. Contam-nas no ritmo atribulado dos depoimentos que se transformam na fala inscrita no papel, na fala exposta na escrita iluminada da tela do computador. E de repente ele se surpreende quando a preposta é uma freira. Um inesperado. Por mais que lhe fosse dito da diversidade dos atores do direito, ver uma freira na Justiça do Trabalho é um impensável. Um mesmo conjunto de normas gerais e abstratas regem uma sociedade plural. Uma freira é preposta de uma escola. E abre-se mais uma audiência. E outra. E outra. Até o fim. Na diversidade das pessoas, o aprendizado vai se fazendo pelo mistério do múltiplo, pela impossibilidade de se descrever na concisão o que é a dimensão de cada processo como contingência, como inesperado, como imprecisão. E entre todas as audiências, entre todas as perguntas, o aluno afirma que há uma história de que ele nunca se esquecerá. Porque doeu nele a vivência do demasiadamente humano que ele apreendeu na inteireza dos sentidos e que sabia ser intraduzível na passagem entre ilicitude e licitude. Foi numa última audiência de uma sexta-feira qualquer. O clássico triângulo juiz-autor-réu estava montado e tudo pronto como ordinariamente se espera. O reclamante era um ex-empregado como ordinariamente acontece. A reclamada era um bar, desses que se encontram ordinariamente nas esquinas das cidades. Acima deles (literalmente), uma juíza cansada, ladeada por uma digitadora de audiência também cansada. À volta dela, compondo uma espécie de público, alguns advogados que aguardavam a chance de conversar com a juíza e um es-

Mônica Sette Lopes & Mário Colombi Gava • 293

tudante de direito, o aluno, que registrava os acontecimentos para um projeto de iniciação científica de sua faculdade. Era uma audiência una: não havendo conciliação, a empresa apresentaria sua contestação, as testemunhas seriam inquiridas e a juíza posteriormente sentenciaria conforme o princípio do livre convencimento motivado. O processo de conhecimento tinha ali suas linhas mestras ordinariamente estabelecidas. E, realmente, assim aconteceu, como não poderia deixar de acontecer. O desconforto reside justamente nisso. A pretensão do autor era reconhecer a existência de horas extras e trabalho nos fins de semana. O argumento da defesa era de que o reclamante ajudava na condução dos negócios, mas constantemente ficava bêbado e, por isso, o proprietário o deixava dormir por lá. Na última audiência de uma sexta feira, essa era a situação que se submetia ao conhecimento da juíza para decisão: um dono de bar e um ex-empregado que aparentemente trabalhava, vivia e dormia no estabelecimento. E então foram sendo chamadas as testemunhas, todos eles frequentadores do bar. Por serem amigos do reclamante, foram ouvidos na condição de informantes. E a sala se impregnou do cheiro forte de bebida. E a todos se impôs a respiração daquele hálito que exalava o odor de álcool, o odor da água-de-vida que adoece a vida. E a juíza, visivelmente cansada, repreendeu-os por estarem naquele estado. Perguntou a um deles, se ele ia sempre ao bar. E obteve como resposta que ele passava por lá todos os dias às 6h ou 7h para tomar umas doses. A juíza ficou assustada e disse, com um tom agressivo, que isso era doença. Ele deveria se tratar, discursando alguns minutos sobre o problema. E a testemunha, sabedora de si, respondeu: “Doutora, se eu não tomar uma bebida pela manhã, não consigo começar o dia. Desculpa.” A resposta soou sincera. A voz da testemunha era sofrida. A juíza suavizou a expressão de raiva. E pareceu ter pena. E cansaço. A sensação que ficou foi de um abismo entre as partes/testemunhas e a juíza/digitadora. Dois mundos distintos que se cruzaram. Foi assim. Há coisas que não há como ensinar. Há coisas que simplesmente se aprendem. Ou não.

Referências bibliográficas GOODY, Jack. Myth, ritual and the oral. New York: Cambridge University, 2010.

294 • Professora, como se aprende isso?

LOPES, Mônica Sette. A formação do juiz para a oralidade: relato, memória e pedagogia do direito não escrito. In: MARTINS FILHO, Ives Gandra, DELGADO, Maurício Godinho, PRADO, Ney, ARAÚJO, Carlos (Coord.). A efetividade do direito e do Processo do Trabalho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 137-185. MOISES, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974. ONG, Walter. Orality and literacy: the technology of the word. London: Routledge, 2002. RONAI, Cora. Barbante, sal, orquídeas. O Globo. Segundo Caderno. 29.09.2011, p. 12. SANTOS, Joaquim Ferreira dos. Da caixa postal: Leitores podem mais histórias do velho homem de imprensa. O Globo. Segundo Caderno, 24.05.2010b, p. 10 __________________________. Um dia na vida de um repórter: senta que lá vem história do velho homem de imprensa. O Globo, Segundo Caderno, 22.03.2010a, p. 8 __________________________. ‘Nós num pega os peixe’: aqui não se falam essas coisas na frente das crianças. O Globo, 2º caderno, 23.05.2011, p. 10. TEZZA, Cristóvão. A máquina de caminhar. Rio de Janeiro: Record, 2016.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.