PARTICIPAÇÃO POLÍTICA ONLINE: Questões e hipóteses de trabalho 1

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PARTICIPAÇÃO POLÍTICA ONLINE: Questões e hipóteses de trabalho1

Wilson Gomes

O tema da participação política, como todo mundo sabe, é um dos mais tradicionais da agenda de pesquisa sobre a democracia. No mesmo diapasão, o conjunto de temas que relacionam participação política civil e internet - ou, num quadro mais amplo, participação, engajamento cívico e tecnologias para comunicações digitais online - tem sido consideravelmente visitado nas últimas duas décadas. Falo de um “conjunto de temas” porque, a rigor, trata-se de vários veios discursivos que, de um modo ou de outro, implicam ou consideram frontalmente o problema da participação política mediada por tecnologias digitais. Assim, temos, por exemplo, um conjunto de abordagens interessadas em verificar se e em que medida a internet (entendida como o mega-ambiente de conexões via computadores), as ferramentas e iniciativas apoiadas em tecnologias digitais, contribuem para resolver o tão documentado déficit de participação política que afeta, em toda parte, as democracias liberais contemporâneas (Best e Krueger, 2005; Gomes, 2005; 2005b; Marques, 2008). Teria a internet estancado a perda de capital social ou pelo menos reduzido a velocidade com que se desfazem as redes sociais, a confiança e as formas de reciprocidade (Bimber, 2000; Coleman e Gøtze, 2001; Hooghe, 2003)? Teria o emprego de comunicações via computadores conseguido produzir novas formas de participação política e de engajamento cívico e/ou introduzido novos participantes e estimulado novas formas de engajamento (Di 1

A pesquisa que possibilita este artigo é financiada com fomento proveniente do CNPq, da CAPES e da FINEP. O autor agradece as sugestões recebidas de Camilo Aggio, Rafael Sampaio, Graça Rossetto e Maria Paula Almada.

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Gennaro e Dutton, 2006; Aikins, 2008)? Nesta perspectiva, o déficit de participação não é um problema da internet, mas já que as comunicações digitais em rede representam um conjunto novo de ferramentas para o estabelecimento e extensão das redes sociais, para produzir novas formas de colaboração, informação e interesse político, por que não imaginar que talvez se possa encontrar aqui alguma alternativa de incremento de participação política e engajamento cívico (Jennings e Zeitner, 2003; Owen et al. 2008)2? Outro conjunto de preocupações lida com o problema das diferenças entre a participação política em geral e a participação que se dá mediante a internet (Krueger, 2006). Seja daquela em que as ferramentas, produtos e iniciativas online são acessórios e complementos das modalidades já tradicionais, ou daquela outra em que os recursos baseados na internet são meios e instrumentos essenciais para a sua existência. De fato, podemos distinguir, no que respeita à participação política via internet, um espectro consideravelmente amplo, em que os dois pólos são representados; de um lado, pela participação política em que a internet (isto é, as ferramentas, as linguagens, os produtos e os aparelhos e as máquinas de conexão digital) é instrumental e, de outro, pela participação civil em que a internet é essencial. Nos diversos pontos da escala que materializa o intervalo entre esses dois pólos são situadas as diversas formas e iniciativas de participação via internet (Krueger, 2002) ou, para simplificar, de e-participação ou participação online. Assim, quem usa e-mail ou skype para fazer contatos políticos em vez de carta, fax ou telefone simplesmente substituiu uma tecnologia por outra, digital, que lhe é bastante similar, embora contenha vantagens adicionais típicas da tecnologia; do mesmo modo que quem busca informação política em versões online de jornais da indústria da informação, não faz muito mais do que trocar o papel por uma tela, naturalmente com as perdas e ganhos que isso comporta. Por outro lado, quem busca informações políticas em sites e portais já está lidando com um produto desenhado exclusivamente para o ambiente online e quem se embrenha na blogosfera para a mesma tarefa estará alguns graus bem mais distante do modelo da leitura de jornais. De maneira semelhante, quem usa ferramentas de 2

Sobre a retórica pró-participação que vem em ondas a cada novo meio, vide Spinelli, 2000.

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comunicação instantânea, como MSN ou Gtalk estará alguns graus mais distante do modelo da troca de correspondência ou da conversa quotidiana. Estará ainda mais distante deste modelo se emprega, para isso, o Twitter. Se passarmos ao nível mais sofisticado das ferramentas, o quadro se repete: uma lista de discussão é algo típico da internet, mas ainda guarda alguma analogia com a forma do debate especializado; por sua vez, o emprego político de um site de relacionamento ou, de forma mais genérica, de sites para redes sociais (social networking sites), é ainda mais típico do universo digital, enquanto solicita determinadas habilidades, domínio de ferramentas e disposição de espírito que são peculiares às pessoas que estão constante e profundamente conectadas. Assim, uma coisa é a ação digital de quem usa e-mails, lê jornais online e visita sites políticos, por exemplo, outra é aquela de quem participa de fóruns, domina ferramentas para redes online, além daquelas para conexão instantânea e para compartilhamento de vídeo e imagem, outra ainda é a participação online daqueles que são capazes de dobrar e empregar quaisquer ferramentas digitais para participar de iniciativas digitais com propósitos políticos. No quadro da comparação entre as formas de participação política, emergem perguntas tais quais as que se seguem: Heavy users da internet participariam e se engajariam mais ou menos do que os light users? E aqueles que participam e se engajam politicamente por meio da internet são diferentes dos que se engajam e participam off-line (Quintellier e Vissers, 2008; Macintosh et al. 2003)? O uso da internet para a participação política e o engajamento cívico trouxe alguma novidade ao panorama ou se trata simplesmente de vinho velho em barris novos?3 Outros estudos ainda se ocupam com a qualidade da participação online ou se interessam pela participação e engajamento mediante dispositivos de comunicação digital com saída para a internet (caso de novas gerações de tecnologias portáteis como smart phones, ipods e aparelhos semelhantes). Pergunta-se, por exemplo, se haveria uma diferença significativa na qualidade e na efetividade entre dimensões tradicionais da participação como militância, mobilização, manifestações, realização de campanhas, voto etc. e a sua contrapartida digital (Polat, 2005)4. No quadro 3

Além de perguntas específicas, que dependem das características do online, como aquela se a vigilância eletrônica do governo afeta a participação política online (Krueger, 2005). 4 Outros links dizem respeito, por exemplo, ao vínculo entre participação online, localização, exclusão (Sylvester e McGlyn, 2010) ou entre participação online e as assimetrias de gênero (Fuller, 2004).

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dessas inquietações, destaca-se particularmente a preocupação com o teor democrático ou deliberativo dos empregos que se fazem dos meios online de produção da esfera pública. O que é uma orientação típica daquele endereço de pesquisa que considera as comunicações via tecnologias digitais à luz de preocupações com a esfera pública e com a democracia deliberativa. De fato, há mais de quinze anos se investigam ferramentas (fóruns e listas de discussão, principalmente) e iniciativas (sistemas de fóruns eletrônicos baseados na internet para a deliberação pública sobre problemas locais e nacionais, p. ex.) dedicadas à discussão política online para se verificar se e até que ponto nelas se cumprem os requisitos fundamentais seja da esfera pública seja de uma deliberação normativamente fundadas (como exemplo, Dahlberg, 2007).

PARTICIPAÇÃO PARA QUÊ? Desta breve revisão dos temas e questões centrais do debate sobre participação política e internet se depreende, portanto, que tal discussão é vibrante, fundamental e está longe de se esgotar. Isso não obstante, têm sido deixadas de lado questões de princípio que, em minha opinião, precisam ser chamadas ao centro da discussão. O fato é que o debate sobre participação online é tributário daquele mais amplo e tradicional sobre participação política. Por essa razão, tende a ser parte de um debate mais largo e, na maior parte das vezes, restringe-se a questões relacionadas à aplicação de argumentos e pressupostos melhor examinados e discutidos em campos como a teoria política ou a teoria democrática. Por isso mesmo, a preocupação com a participação política online acaba herdando automatismos conceituais, vieses e lacunas do debate tradicional. Acredito que uma dessas lacunas diz respeito ao problema das justificações da importância da participação civil online. Em outras palavras: por que é assim tão relevante, num quadro de teoria democrática, a participação e o engajamento cívicos, em geral, e online, em particular?

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A resposta óbvia recorre, naturalmente, a uma explicação normativa e histórica da democracia. O padrão argumentativo quase sempre inclui todas ou a maior parte das alternativas abaixo: a) o governo representativo dos modernos (a democracia representativa liberal) está em descontinuidade com a democracia direta dos antigos; b) a descontinuidade consiste justamente no fato de que na democracia direta a participação de todos dos cidadãos produzia a decisão política, isto é a decisão que afeta toda a comunidade política, enquanto no governo representativo a participação civil prevista e solicitada se restringe à escolha de lideranças políticas, estas sim, encarregadas do trabalho de tomar a decisão política; c) os governos representativos, apesar de todas as vantagens relacionadas à ênfase nas liberdades individuais e à institucionalização do Estado baseado integralmente no direito, padecem de um morbo antidemocrático que leva os representantes e o sistema político em geral a se distanciarem e desconectarem progressivamente da esfera civil, dos seus interesses, opiniões e vontade. Como a esfera civil resulta ser o âmbito vital da comunidade política democrática, única instância que realmente justifica e legitima a própria democracia, quando a representação dela se afasta, não importando qual seja a razão para tanto, empobrece e definha a democracia e a cidadania. d) esta tendência autocontraditória das democracias contemporâneas resulta em uma redução ao mínimo da participação do cidadão na condução dos negócios públicos e na espoliação crescente do seu status de soberano do Estado democrático. O argumento é basicamente verdadeiro e sensato, mas dele se podem tirar conseqüências insustentáveis ou irrealistas. Pode-se derivar dele, por exemplo, a idéia de que a substituição dos governos representativos por democracias diretas seria não só normativamente justificada, mas um projeto político realizável nos estados modernos. E que participação para valer (isto é, democraticamente relevante) seria apenas aquela em que parte do reconhecimento de que “todo o poder é do povo” e de que a representação política seria, no fundo, uma usurpação

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– naturalmente a ser removida. Ademais, participação para valer seria apenas aquela em que todos os membros da comunidade política pudessem participar ou, pelo menos, uma participação de massa. Esta perspectiva (no fundo, apenas uma idéia-limite) incluiria, portanto, dois aspectos: uma dimensão anti-representação (pelo menos adversária da representação eleitoral liberal) e uma dimensão de participação total (o ideal é a participação de todos)5. Este argumento se apresenta na cena da teoria democrática e nos discursos políticos na esfera pública desde as revoluções burguesas e, desde então, os governos representativos não dão o menor sinal de que possam ser substituídos por projetos de democracia direta à antiga. Se o sindicalismo desde o século XIX e, por fim, as revoluções proletárias do século XX, não conseguiram impedir que o modelo das democracias representativas fosse historicamente vencedor, não será a internet a modificar o estado das coisas. A perspectiva, portanto, não se sustenta em sede histórica, para não mencionar a instância teórica. No quadro da filosofia da democracia, a participação civil não é, em princípio, um fim em si mesmo. A participação não tem um valor intrínseco, a não ser para o benefício privado do próprio participante, como outras atividades como fazer dieta, exercício físico ou se divertir. Mas esta esfera de benefícios exorbita o âmbito específico da democracia, cujo objeto específico está relacionado ao vínculo coletivo, ao contrato social. Não importando como seja nomeada a instância coletiva em questão - comunidade política, da pólis, do Estado... -, a democracia é um sistema que cuida do que é comum ao coletivo. A participação não é um valor democrático por ser um valor em si mesmo, mas apenas na medida em que pode produzir algum benefício para a comunidade política. Caso contrário qualquer participação civil (na Ku Klux Klan ou na Hitlerjunge) seria boa para a democracia. Na verdade, a participação política sempre foi pensada como meio cujo fim era, no caso dos antigos, a materialização da autonomia do povo para se autogovernar, para gerir diretamente a comunidade política. O poder, o kratein, do démos (para ficarmos na base etimológica de democracia) se manifesta enquanto ele próprio se

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Um artigo recente (Wallace e Pichler, 2009) acrescenta – e examina –outro ângulo do repertório da demanda por participação: a questão da felicidade.

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concede deliberativa e deliberadamente a Lei sob a qual vive, evitando, com isso, viver sob qualquer outra potestade. Participar é um privilégio concedido ao démos (historicamente, pela reforma de Clístenes) e um meio para se assegurar o autogoverno civil. No modelo moderno de democracia, aquela do governo representativo, a participação direta e de todos os concernidos pelas decisões que afetam a comunidade política foi certamente restringida. Entre o Estado e a pólis há uma gigantesca diferença de dimensões e uma não menor diferença na complexidade dos problemas da vida pública (para ficarmos em dois itens de um rol consideravelmente conhecido) que tornaram inviável reproduzir na experiência societária moderna as estruturas deliberativas e participativas da experiência comunitária antiga. A representação (os representantes, na verdade), de fato, assumiu uma grande parte das funções que eram exercidas pela participação direta do cidadão, mas teria invalidado ou esgotado o propósito da participação civil? Nos ambientes de esquerda, tende-se a pensar que sim. E mesmo fora da cultura de esquerda, pode-se mostrar como a representação permitiu o surgimento ou a manutenção, no seio da democracia, da instituição social que chamamos de “sistema político” (campos e agentes profissionais encarregados da atividade, crescentemente “profissionalizada”, da política). O sistema político contemporâneo tende, como se sabe, a se desconectar da base civil da sociedade (da cidadania, em suma), exceto pelo episódio eleitoral, quando os cidadãos entram com os votos e o sistema político provê o pessoal especializado para ser votado e escolhido para constituir a esfera da representação política. A excessiva autonomia do sistema político traz consigo freqüente e crescentemente uma (ilegítima) autonomia da esfera da decisão política, que controla a forma institucional da comunidade política, que é o Estado, praticamente sem liame que a mantenha atada e submetida ao controle daquele que desta comunidade deve ser o único soberano, o cidadão. Por isso, tornou-se um hábito o argumento que sustenta, em sede teórica, que o governo representativo tende a produzir um avanço colonizador, do sistema político, sobre o território dos direitos de participação direta e efetiva do cidadão nos negócios públicos; assim como faz parte da paisagem argumentativa crítica a afirmação de que os estados liberais contemporâneos, por largos estratos, está fora

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do controle cognitivo do cidadão por ser pouco transparente e porque em grande parte se põe fora do alcance da obrigação de se explicar diante da cidadania. Antes de tudo, há de se objetar que o fato de uma instituição (a representação), circunstancialmente, produzir uma conseqüência nociva (a excessiva autonomia da esfera de decisão política, p. ex.) não a torna normativamente reprovável, a não ser que se demonstre que não se de trata de efeito acidental, mas de uma das suas características essenciais (cf., a propósito, Taylor 2010). Uma correlação dessa espécie não tem sido demonstrada na literatura de teoria democrática. Parece-me que, ao contrário, a democracia dos antigos e o governo representativo dos modernos estejam em continuidade, pelo menos na medida em que pretendem assegurar os aspectos essenciais da democracia: o princípio da igualdade política, o corolário das liberdades, os procedimentos da deliberação livre e da aplicação do princípio da maioria na tomada de decisão política, o corolário de que o Estado é posse da cidadania e de nenhum outro soberano. A representação surgiu diante da impossibilidade de participação de todos em todas as instâncias da decisão política; mas tentou produzir garantias para que o propósito que era próprio da participação civil total e constante (o autogoverno, a autonomia, a soberania popular) não fosse destruído pelos representantes e pela representação. Ora, a deontologia da transparência, da prestação de contas, do sistema de pesos e contrapesos materializou-se no design institucional do governo representativo justamente para evitar que a representação destruísse a soberania popular, sem a qual um regime deixaria automaticamente de ser democrático. Desse modo, é claro que tendências contra a transparência e a accountability não são apenas contrárias à democracia dos antigos; são violentamente contrárias também à democracia dos modernos. Na verdade, estas instituições e mais as eleições constantes para reavaliação do colegiado dos representantes, instituições para sondagem direta da opinião e da vontade dos cidadãos (plebiscitos e referendos), dentre outros, foram inventadas como forma de assegurar aquilo que se expressava, nas comunidades da antigüidade, mediante a participação direta.

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PARA QUE PARTICIPAÇÃO ONLINE?

A democracia digital Voltemos ao online depois desta digressão necessária. Se a participação online não se dirige, realisticamente, nem à constituição de um cidadão-total (um cidadão devotado integralmente à participação) nem à substituição da representação pelo governo direto dos cidadãos ativos e participantes nos negócios públicos, qual é, então, o seu propósito? Principalmente se este propósito tiver que ser não apenas democraticamente justificável como também realisticamente plausível. Em outras palavras, qual o sentido de se falar em e de se prover a participação online dada a configuração atual dos Estados democrático-liberais? Proponho um passo lateral, para inserir a discussão sobre a e-participação num quadro menos usual, a saber, naquele relacionado à chamada democracia digital6. Entendo por democracia digital qualquer forma de emprego de dispositivos (computadores, celulares, smart phones, palmtops, ipads...), aplicativos (programas) e ferramentas (fóruns, sites, redes sociais, medias sociais...) de tecnologias digitais de comunicação para suplementar, reforçar ou corrigir aspectos das práticas políticas e sociais do Estado e dos cidadãos em benefício do teor democrático da comunidade política. Por “teor democrático” e “requisitos da democracia” tenho em vista aspectos relacionados ao conceito de democracia que são comumente aceitos no padrão dos Estados democráticos modernos, numa lista que inclui, pelo menos, a garantia e/ou o aumento das liberdades de expressão, de opinião e de participação, a garantia e/ou o aumento dos meios e oportunidades de accountability ou de transparência pública dos governos via internet, a garantia e/ou aumento das experiências de democracia direta, numa base online, mais instrumentos e oportunidades de participação do cidadão nas esferas de decisão sobre políticas públicas e 6

Uma perspectiva que em nosso grupo de pesquisa vem sendo adotada desde a metade da década passada, como se depreende da idéia, por nós desenvolvida, de graus de democracia digital, em que a participação é um dos componentes na elaboração da escala para a avaliação da qualidade democrática do universo digital. Cf. a esses respeito Silva, 2005 e Gomes, 2005b.

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administrativas dos governos, incremento do pluralismo, da representação das minorias e da consolidação dos direitos de indivíduos e dos grupos socialmente vulneráveis. Pode-se notar facilmente, neste quadro, que se mantém no projeto de democracia a idéia da representação política, assim como a de participação. Pois bem, de que se precisa para se produzir um projeto adequado de democracia digital? A prudência obriga a que se considere o conjunto das dimensões envolvidas num projeto desta natureza, evitando soluções ou perspectivas parciais. Em minha opinião, o primeiro aspecto a ser considerado são iniciativas com alto teor democrático, socialmente interessantes, tecnologicamente bem resolvidas e atraentes do ponto de vista do design. Iniciativas são projetos ou idéias que articulam ferramentas, dispositivos e aplicativos para realizar determinadas funções dedicadas a resolver problemas ou alcançar propósitos específicos. O projeto de petições online do parlamento britânico7 (Miller, 2009), a cidade digital de Hoogeveen (Jankowski e Van Os, 2002), o projeto Youngscot8 (Macintosh et al. 2003), o Minnesota e-democracy9, o projeto E-democracia da Câmara dos Deputados10, Transparência Brasil11 e Contas Abertas12, por exemplo, são iniciativas.

Iniciativas digitais, democraticamente relevantes, são aquelas voltadas para pelo menos um dos três propósitos abaixo:

1. Fortalecimento da capacidade concorrencial da cidadania. Um projeto de democracia digital deve ajudar a promover o aumento e/ou a consolidar quotas relevantes do poder do cidadão em face de outras instâncias concorrentes na disputa pela produção da decisão política no Estado ou na esfera social, a saber, em face das agências políticas (partidos, governo, corporações etc.) e de outros atores com interesses políticos (aqueles típicos das agências mencionadas ou de

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http://petitions.number10.gov.uk/ http://www.youngscot.org/ 9 http://forums.e-democracy.org/ 10 http://www.edemocracia.camara.gov.br/publico/ 11 http://www.transparencia.org.br/index.html 12 http://contasabertas.uol.com.br/WebSite/ 8

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qualquer outra fonte de interesse político diferente daquela representada pela cidadania, genericamente considerada).

O que pode ser convenientemente desdobrado em dois objetivos:

1.a) Aumentar a transparência do Estado e as formas de responsabilização dos agentes políticos (argumento contra o patrimonialismo). São democraticamente relevantes, neste sentido, iniciativas dedicadas a favorecer os controles cognitivos e legais do Estado (objeto) por parte do cidadão (sujeito), por parte das entidades do Estado fiscalizadoras da conduta dos agentes públicos e das instâncias da administração pública (sujeito), bem como por parte dos órgãos e sistemas profissionais e industriais de produção de informação sobre o Estado e os seus agentes (sujeito).

1.b) Participação e influência civis. Têm alto teor democrático iniciativas digitais destinadas a facilitar o estabelecimento de níveis importantes de influência, exercida pelos cidadãos, sobre a decisão política no interior do Estado, sobre mecanismos e processos por meio dos quais a decisão é tomada, sobre os agentes portadores da função de tomar decisão pública, mormente da decisão legislativa e administrativa, bem como sobre a implementação dessa decisão em normas, políticas e formas equivalentes.

2. Consolidar e reforçar uma sociedade de direitos, isto é, uma comunidade política organizada como Estado de Direito (argumento por direitos e liberdades). Neste caso, é preciso assegurar que minorias políticas e grupos e setores mais vulneráveis do corpo social tenham preservados os seus direitos, acesso à justiça e proteção jurídica.

3. Promover o aumento da diversidade de agentes, de agências e de agendas na esfera pública e nas instâncias de decisão política e aumentar instrumentos, meios e oportunidades para que minorias políticas se representem e sejam representadas na esfera pública e nas instâncias de produção da decisão política (argumento pelo pluralismo e pelo aumento da capacidade concorrencial das minorias).

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Um projeto adequado de democracia digital não pode certamente incluir apenas a formatação de iniciativas. Iniciativas são meios (vide Marques, 2008; 2009) para a consecução dos três propósitos acima indicados (aumento do poder civil, direitos e liberdades, aumento do pluralismo e do poder das minorias). Não sendo elas tampouco um fim em si mesmas, devem ser julgadas em função dos fins que as orientam; mas os fins não se alcançam se os meios não forem empregados numa circunstância específica que permita a geração dos seus efeitos. O que traz ao centro da discussão, portanto, a questão do emprego ou uso das iniciativas digitais e das circunstâncias ou oportunidades em que este uso pode gerar os efeitos previstos quando as iniciativas são projetadas. Tudo se resume, portanto, a uma pergunta: por que as pessoas empregariam tais iniciativas? Em outros termos: por que as pessoas participariam delas?

Das razões da participação em iniciativas de democracia digital

O que nos leva da questão dos meios, e dos requisitos e propósitos a que eles atendem, à argumentação sobre as razões encontradas pelas pessoas para empregá-los. Dito da maneira mais simples, a resposta à pergunta acima mencionada soa assim: as pessoas participam de iniciativas quando as consideram uma oportunidade adequada para atingir fins desejáveis. Meios precisam ser vistos como oportunidades. Chamo oportunidades aquela conjunção de ocasiões e circunstâncias em que meios podem produzir fins desejáveis de maneira que os custos (a energia despendida, por exemplo) sejam largamente recompensados pelos benefícios (recompensas decorrentes de se alcançar a finalidade da ação). Não imagino, naturalmente, um sujeito autotransparente, capaz de dominar cálculos aproximados ou impecáveis sobre os lucros da sua participação. Imagino, contudo, que as pessoas, mesmo limitadas e visitadas por valores e interesses que condiciona e possibilitam a sua decisão de participar, sejam capazes identificar e determinar razões para a sua participação e que tais razões (que não precisam ser realmente racionais) funcionam como motivações suficientes para a sua ação em geral.

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Assim, faz parte do sistema de produção da democracia digital fazer com que iniciativas (meios) sejam (vistas como) oportunidades vantajosas para os que dela participem. Como isso é possível? Iniciativas precisam incluir cálculos de eficiência ou efetividade. Uma iniciativa como um orçamento digital (vide Sampaio, 2009), por exemplo, só se converte numa real oportunidade se, de fato, assegurar que os resultados da participação produzam efeitos sobre o orçamento público e/ou sobre políticas orçamentárias. Caso contrário, ela será, ao menos em parte, artimanha do sistema político para legitimar as suas decisões jogando para o público.

Naturalmente, o cálculo de eficiência de uma iniciativa de democracia digital está ligado ao modo como o propósito específico de uma iniciativa qualquer (orçamento digital não têm a mesma meta de um sistema de fóruns de deliberação eletrônica, por exemplo) se relaciona com o seu fim democrático (ligado aos três fins indicados acima). O importante, naturalmente, é que uma vez que haja confluência do propósito específico de uma iniciativa com a meta democrática do fortalecimento da cidadania, a eficiência do primeiro redundará em eficiência do segundo.

A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA ONLINE E A PREMISSA CONCORRENCIAL

Lutas concorrenciais pela decisão política

O problema da participação online merece um novo quadro conceitual. Proponho encaixá-lo no horizonte das questões relacionadas ao como aumentar o poder da cidadania na comunidade política, a como se garantir e assegurar quotas adequadas de poder político à esfera civil em face das instâncias que com ela concorrem para influenciar a produção da decisão política e da organização da vida pública. Em outros termos, pretendo que a discussão da questão da participação política, em geral, e da participação online, em particular, seja situada no horizonte de uma premissa mais ampla segundo a qual o jogo político democrático supõe e prevê lutas concorrenciais permanentes pela busca de determinar ou influenciar a decisão política no Estado. No quadro desta premissa, considero que a esfera civil

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não é nem o beneficiário automático de lutas entre agentes e agências particulares nem deve ser entendido como um mero espectador desta luta. A esfera civil é um sujeito de interesses nas lutas democráticas que, embora seja determinante para constituir a esfera de decisão política do Estado, na arena da luta por influência sobre decisão política é constantemente batida por agências de interesses particulares. Na verdade, há três conjuntos de instâncias concorrentes com o cidadão 13. O primeiro está sob a mira de todo mundo: o sistema político, como o domínio social que inclui indivíduos e instituições (hábitos, normas...) dedicados à atividade “política” em sentido estrito, ao funcionamento do Estado e à produção de leis e políticas. O segundo também é um velho conhecido: trata-se de instâncias situadas em vários campos sociais, como a economia ou a religião, com interesses que não de raro se cruzam com as decisões do Estado e com o jogo político. Estas instâncias lutam por influência sobre o sistema político e sobre a esfera de decisão política, freqüentemente empregando para tanto o capital específico do próprio campo (a autoridade religiosa, dinheiro...).

O terceiro concorrente é um tabu para o pensamento à esquerda e passa em geral despercebido, mas creio que uma análise desapaixonada nos mostraria que um grande número das instâncias representadas pelas corporações sociais são autênticas agências políticas, disputando pelos seus interesses particulares. Corporações sociais são instituições da sociedade, organizadas em torno de uma agenda e de interesses particulares do coletivo que reúnem e representam.

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Emprego freqüentemente as expressões “a cidadania”, a “esfera civil”, “o cidadão” uma em lugar da outra. Por trás do uso, há, certamente, um conceito. A cidadania, todos sabem, é um status, jurídico e social. O civis, o cidadão é o ente que integra a comunidade política de forma plena e por direito. Emprego o adjetivo “civil” para me referir a qualquer dimensão relacionada ao civis, como se costuma fazer em expressões como “sociedade civil”. Indivíduos podem cumprir muitos papéis sociais, mas o seu status de cidadão é único e tem a ver com o contrato que o liga à comunidade política – não há civis sem civitas, sem polis, sem res publica. Pensado em seus papéis e funções os indivíduos podem ser considerados de muitos modos; pensado como civil ou cidadão os indivíduos têm apenas o seu papel de concernido pelo contrato que o vincula à comunidade política e, em comunidades democráticas, como soberano da res publica. A esfera civil, portanto, é o domínio social dos indivíduos pensados enquanto cidadãos, membros plenos e de direito da comunidade política, proprietários do Estado.

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Sindicatos e órgãos de classes, parte considerável dos assim chamados movimentos sociais (o MST, p. ex.), das ONGs, dos partidos etc., são típicas corporações sociais e, neste sentido, em larga medida semelhantes às corporações econômicas e religiosas, empenhados e mobilizados na defesa de interesses particulares, mesmo que a satisfação dos seus interesses se dêem à custa do interesse geral da esfera civil.

Estas instâncias têm, em geral, escapado dos radares que detectam ameaças à cidadania em virtude de uma peculiar taxonomia política, que, no passado, as identificou como estruturas da sociedade civil organizada. Organizações da sociedade civil. Antes, para alguns governos e muitos intelectuais, eles representam a própria esfera civil, inclusive de maneira mais autêntica e moralmente justificada do que os representantes provenientes dos sistemas políticos. Numa sociologia conseqüente, contudo, não se vê exatamente em que consista a diferença entre as instâncias de terceiro tipo e aquelas dos dois primeiros, enquanto em todas elas se manifesta o mesmo princípio voltado para privilegiar o particular sobre o universal e o interesse do grupo sobre o interesse civil ou republicano. Nem tampouco se demonstra, por outro lado, porque a realização da agenda de uma dessas corporações resultaria necessária e automaticamente em aumento do poder da cidadania, pelo menos num sentido radicalmente diferente do que o faria, por exemplo, a realização da agenda de uma igreja ou de uma corporação econômica.

Note-se, contudo, que aqui não afirmo que toda organização social é uma corporação social, e, portanto, uma agência que concorre por influência política sobre o Estado e a sociedade, na defesa de interesses particulares, em contraste com o interesse geral. Há de haver instâncias sociais (portanto, coletivas) dedicadas a sustentar, argumentar e defender o interesse cidadão, se não na forma da representação, ao menos na forma da advocacia do interesse civil. Além disso, não estou negando ou atacando a legitimidade política das corporações sociais como agências políticas no quadro das democracias liberais, que admite e espera que as forças socialmente dadas se engajem em lutas concorrenciais, naturalmente segundo as regras do jogo. As corporações sociais, neste sentido, não são menos legítimas que as outras agências concorrentes, provenientes do sistema político ou

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da economia. O que afirmo e reitero é que todas elas, as corporações sociais inclusive, concorrem com o interesse civil propriamente dito.

Em terceiro lugar, não se nega que corporações e esfera civil componham esta dimensão da vida coletiva chamada sociedade. Que é uma circunstância da vida em grupo, no qual o sujeito pode desempenhar vários papéis, inclusive o de membro de uma corporação social. Mas é óbvio igualmente que os adjetivos social e civil não coincidem, porque social indica os papéis na sociedade que o indivíduo pode desempenhar, enquanto civil (cívico, cidadão, conforme a escolha) designa um status na comunidade política. Também os membros do sistema político ou das corporações da economia são cidadãos, mas enquanto agem como membros de uma igreja ou seita, de um partido, de um lobby empresarial ou de um movimento social com agenda particular desempenham um papel específico nas lutas concorrenciais democráticas em defesa de interesses de uma parte da comunidade política – suas agendas são, por definição, particulares. Por outro lado, outros indivíduos assumem na sua relação com a política tão somente aqueles papéis (de eleitores, p. ex.) decorrentes do seu status na comunidade política, do seu estado de cidadão; de forma que, embora possam ser beneficiados por agendas particulares quando nos diversos papéis que representam na vida (profissões, gêneros, classes, localização...), são concernidos como cidadãos apenas quando agendas gerais são representadas.

Não há dúvida, contudo, de que, na maior parte das democracias liberais, as instâncias que realizam um avanço colonizador mais consistente e danoso contra o território da cidadania, sejam aquelas situadas ao redor da esfera da decisão política, portanto aquelas dedicadas diretamente ao controle do Estado. Entretanto, no caso de sociedades teocráticas (veja-se o Irã “redemocratizado”, por exemplo), por outro lado, instâncias do universo religioso consistentemente avançam contra a igualdade e a liberdade políticas, enquanto no caso das democracias “populares” (vide a Venezuela) as corporações sociais, à parte ou em conluio com o sistema político, buscam a satisfação do próprio interesse às expensas do interesse público, entendido como o interesse civil.

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Participação online e o aumento da capacidade concorrencial civil

No universo digital, quaisquer iniciativas voltadas para descolonizar o espaço da cidadania representarão um lance de democracia digital, à medida que contribuem para recompor padrões adequados de soberania popular. Assim como qualquer iniciativa dedicada a garantir canais de expressões de minorias representa um passo de democracia digital, enquanto serve para, em longo ou curto tempo, empatar as forças envolvidas na disputa pela produção da decisão política. Em ambas as situações, sempre está envolvido o propósito mais tradicional e democraticamente sustentado da idéia de participação civil (a materialização da soberania popular), mas não necessariamente iniciativas que as sustentam supõem ou promovem participação popular. Pelo menos se tomarmos a expressão “participar” no que sentido que lhe é próprio, como “tomar parte” em alguma coisa.

De fato, e tenho consciência de que é a primeira conseqüência paradoxal decorrente do meu argumento, uma bem sucedida iniciativa de democracia digital pode fecundamente contribuir para que se materialize o objeto da participação sem pressupor ou demandar participação massiva. Uma iniciativa digital de advocacia de interesses de uma minoria política, ou de produção de transparência sobre procedimentos ou agentes do Estado (Silva, 2009), para ficarmos com dois exemplos apenas, pode produzir considerável quota de empowerment civil, sem solicitar ou contar com participação.

Ousaria avançar a hipótese de que o problema principal das democracias liberais contemporâneas está longe de ser o da participação, em sentido estrito, mas o da fraca capacidade concorrencial da cidadania em face de outros agentes e de outras agências com interesse político. Embora a participação política seja importante, nem mesmo acredito que o mero aumento de participação possa resolver a questão do enfraquecimento político da cidadania, se não considerarmos também e cuidadosamente qual é o objeto da participação, qual o tipo de participação pressuposta e, sobretudo, que tipo de efeitos derivará de tal participação. A participação pode ser inútil, inócua e do tipo errado.

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O governo brasileiro, durante a administração Lula, para dar um exemplo, favoreceu e demandou participação popular em muitas iniciativas, algumas, inclusive, via internet (Marques, 2007; Marques e Miola, 2007; Miola, 2009). Mas quase sempre supôs que a participação civil só podia ser considerada quando mediada por coletivos sociais (organizações e movimentos da “sociedade civil”), porque, dogmaticamente, governos à esquerda crêem que essas corporações respondam a interesses da cidadania e não a interesses corporativos. O que é freqüentemente falso. Assim, o governo demonstra aceitar e estimular participação civil, mas não sabe como acolhê-la nem o que fazer com ela, porque o automatismo ideológico da esquerda prescreve que a sociedade se autorepresente pelos “seus” coletivos, como se os tais coletivos fossem de fato sempre orgânicos aos interesses civis em seu sentido próprio. Num quadro como este, por exemplo, a participação “da sociedade” pode paradoxalmente representar o aumento do poder político de uma das instâncias que competem com a esfera civil, diminuindo o poder concorrencial da cidadania.

Na verdade, iniciativas democraticamente relevantes, mesmo aquelas do universo das comunicações digitais, demandam em geral quotas relevantes de ação social. Como todo mundo sabe, participação é apenas uma das formas de ação. Direi, portanto, o óbvio: acompanhar o noticiário político online, ler blogs de político, ver vídeos de política no Youtube, por exemplo, é ação, mas não literalmente uma participação política; já escrever um blog de política, fazer campanha online, escrever petições eletrônicas, manifestar-se num fórum eletrônico ou numa consulta orçamentária digital e postar vídeos políticos são formas de participação na vida pública e/ou no jogo político. O primeiro conjunto de ações pode servir para orientar o indivíduo na sua participação política e para aparelhar o grupo para o envolvimento na vida pública. Pode até mesmo, em virtude da informação obtida, produzir um efeito imediato de participação. O segundo conjunto de ações é participação, em sentido estrito.

Os defensores da democracia participativa, em geral, vão afirmar que uma sociedade democraticamente saudável seria apenas aquela com um número

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consideravelmente alto de iniciativas do segundo tipo, nas quais se engajam um número muito alto de cidadãos. E que, ao contrário, numa sociedade com baixo número de iniciativas (meios e oportunidades) de participação e com pequena participação a democracia está convalescente.

Este argumento é só parcialmente verdadeiro. Primeiro, porque sendo a participação, principalmente, um meio de empowerment civil, a saúde democrática de um Estado dever-se-ia medir em função do poder relativo que o cidadão tem de fazer prevalecer a sua opinião e a sua vontade face às instâncias que com ele concorrem na determinação da decisão política no Estado e na sociedade. Segundo, porque iniciativas do primeiro tipo (voltadas para favorecer a ação política) são fundamentais para habilitar e qualificar a participação, se e quando ela acontecer, bem como para motivar o cidadão a participar. As pessoas precisam de meios para participar tanto quanto precisam de liberdade e de informação que os habilitem

a

tanto.

Terceiro,

porque

uma

democracia

saudável

não

é

necessariamente aquela em que pessoas participem massivamente empregando uma multiplicidade de meios, mas aquela em que todos os concernidos pelas decisões que afetam a comunidade política possam se tornar participantes, se, quando e no que queiram. Em suma, nem basta nem é necessário haver participação de massa, não basta haver meios e oportunidades de participação; é preciso que tudo isso seja moderado pela posse da informação necessária a uma participação qualificada, relevante e efetiva e, last but not least, pela liberdade de participar.

Sociedades fascistas tiveram participação massiva em determinado momento e ainda assim foram fascistas. Aliás, é importante lembrar que, historicamente, a participação da massa não é um dado acessório do fascismo, mas uma sua dimensão essencial, por que a massa vibrante em uníssono é que materializa a idéia de fascio, de feixe, de vontade e energias conjugadas numa só meta. Por outro lado, a compulsão à participação, ou qualquer outro constrangimento à liberdade política, não parece fazer parte do repertório democrático. E, enfim, temos o problema da participação também como fato cultural e não apenas como fenômeno político. Quando digo “fato cultural”, não me refiro apenas à evidente diferença de

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meios, modos e graus de intensidade de participação civil na esfera pública e nos negócios públicos dentre as várias sociedades; penso, sobretudo, no fato de que nos quadros culturais do ocidente estamos, neste momento, talvez, no outro extremo do pêndulo da participação e do engajamento, talvez no extremo oposto do que aconteceu nos anos 1960. Indivíduos estão menos propensos à participação em projetos coletivos e ao engajamento numa agenda política hoje do que estiveram ao redor dos anos 60. São menos engajados por circunstância e por opção. Iniciativas democráticas para a segunda década do século XXI, inclusive aquelas digitalmente mediadas, precisam levar em conta as pessoas reais desta época, pouco dispostas ao engajamento permanente, pouco interessadas na partilha coletiva de palavras-de-ordem, pouco dogmáticas e pouco ideologizadas, muito pouco dispostas a sacrificar os seus projetos, tempos e espaços individuais em nome de um nós qualquer. E antes que se considere isso um defeito e não uma característica factual, desejaria que nos distanciássemos do preconceito de pensar que, num quadro cultural como este, o cidadão com baixa disposição para um tipo de participação muito demandante e exigente é, ao mesmo tempo e por isso mesmo, um couch potato republicanamente imprestável e democraticamente irrelevante.

O que não se pode é acomodar vinhos novos em odres velhos. Velhas iniciativas podem não ser eficazes para um novo tipo de sociabilidade. E modelos de democracia que supõem e esperam participação massiva e constante e engajamento intenso podem ser tão irrealistas quanto se programar iniciativas para hippies numa sociedade de yuppies. Justamente por isso, a aposta da democracia digital parece tão interessante, a saber, em função das fecundas possibilidades de harmonização da cultura tecnológica ao cidadão contemporâneo. Este é um cidadão, por exemplo, que adere mais facilmente iniciativas do primeiro tipo do que alternativas do segundo tipo. E que, mesmo quando não emprega habitualmente iniciativas de qualquer um dos tipos, quando deseja participar usa geralmente um percurso que vai do primeiro ao segundo tipo.

Estudos continuam a demonstrar que, genericamente tomados, os usuários de internet não são lá grandemente interessados em participação política. Mais que

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isso: confirmam ainda que nem sequer estão particularmente interessados em política, em bases normais. Mas há sólida documentação de que esses usuários podem participar da política de modo extremamente relevante em algumas circunstâncias específicas, sendo as manifestações antiglobalização de Seattle, a eleição de Obama (Gomes et al. 2009), o protesto iraniano no Twitter apenas três dos casos recentes mais célebres desta participação eventual. Isso me leva à idéia de que a participação online passa por questões relacionadas ao desejo tanto quanto por questões relacionadas a meios, motivos e oportunidades de participação. Se, quando assim o deseja, o cidadão puder encontrar ou criar (como aconteceu nas eleições americanas de 2008) canais adequados de participação (Marques, 2009), estará então assegurado o princípio segundo o qual numa sociedade democraticamente saudável todo concernido deve poder participar, embora nem todos os concernidos sejam sempre e efetivamente participantes. O cidadão que usa intensamente tecnologias de conexão digital pode estar em um estado de latência no que tange à participação e engajamento. Ainda não quer participar ou não quer participar sempre e tanto. Mas pode estar usando iniciativas do primeiro tipo, consumindo informação política, acompanhando iniciativas de accountability e transparência, formando uma opinião por canais públicos e privados, enquanto faz as outras trezentas coisas que lhe interessam tanto ou mais do que a vida pública. Na verdade, “na internet” há muito ou pouca vida política, a depender dos métodos de aferição adotados. Quando se fazem surveys de participação, isto é, sai-se por aí perguntado às pessoas se elas buscam informação política na internet, se falam de política em seus tweets, se vêem vídeos relacionados a política no Youtube etc., como faz, por exemplo, o Pew Center, sempre aparece uma intensa (e crescente) vida política online. Mas quando se mede a participação num fórum de democracia eletrônica, num orçamento digital, na emissão de petições etc. se registram índices de participação demograficamente insignificantes no confronto com o volume da população, salvo raras exceções. Isso quer dizer que apenas uma parte menor da ação ou participação política se dá mediante iniciativas digitais, embora estas sejam as formas mais densas e fecundas de empowerment civil, já que para tanto foram projetadas.

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A vida política privada online das pessoas inclui, por conseguinte, mais ação do que participação política. O que provavelmente deve nos fazer pensar em como favorecer a que os indivíduos passem da ação em geral àquela forma de ação que é a participação em iniciativas digitais. E aqui retornamos ao quadro inicial da discussão sobre porque as pessoas se interessariam em empregar iniciativas democraticamente relevantes de democracia digital. Tudo o que se pode fazer, acredito, é criar meios de participação, oferecer oportunidades para que estes meios possam ser usados e esperar que características incluídas nas oportunidades (constrangimentos ou recompensas) sejam suficientes para motivar a participação. E realmente não importa se tais iniciativas sejam oriundas do sistema político, do Estado ou da sociedade. Um adequado encadeamento de meios, oportunidades e motivos devem constituir a base na elaboração de qualquer iniciativa de democracia digital realisticamente capaz de lidar com um indivíduo que, porque livre e capaz, pode se recusar a tomar parte.

No mais, precisamos apenas que a nossa obsessão por participação civil não nos leve a perder de vista algumas coisas essenciais:

a) que o fortalecimento, via tecnologias digitais, de instituições do governo representativo destinadas a evitar que o sistema político, em geral, e os governos, em particular, apoderem-se do Estado em prejuízo da soberania popular, pode ser um objetivo mais realista e mais eficiente do que a busca e a espera por participação civil massiva.

b) que, para a democracia, a busca e a espera por participação massiva é muito menos importante do que se garantir que exista um número apropriado de canais e oportunidades para que qualquer cidadão (todo indivíduo concernido e afetado pelo sistema de decisões da comunidade política) possa se tornar participante da esfera pública e da vida política, em conformidade com seu desejo e motivação.

c) que iniciativas e recursos digitais voltados para assegurar os requisitos para uma vida democrática relevante, como liberdade e informação (controle cognitivo da

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política e do Estado), são tão importantes quanto iniciativas destinadas a promover formas de participação civil.

d) que a participação civil não é um fim em si mesmo e que, portanto, não é normativamente justificada simplesmente pelo fato de existir; a participação se justifica sempre em função do seu propósito para a democracia e da qualidade moral dos seus processos.

e) que a participação deve estar a serviço do propósito de fortalecer a esfera civil e as minorias políticas nas lutas concorrenciais pela decisão política, de forma que mesmo formas de participação que produzam efeitos contrários a estes não são democraticamente justificadas.

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