PARTÍCIPES DO SEGREDO: O ENCONTRO DO MAGUS E DO SECRETARIUM NAS TRANSFORMAÇÕES DO REGIMEN MEDIEVAL

Share Embed


Descrição do Produto

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

PARTÍCIPES DO SEGREDO: O ENCONTRO DO MAGUS E DO SECRETARIUM NAS TRANSFORMAÇÕES DO REGIMEN MEDIEVAL

Me. Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior Doutorando em História e Culturas Políticas/UFMG Bolsista FAPEMIG [email protected] Resumo O presente artigo discute o encontro entre a magia e a política, por meio das relações entre as figuras do magus e do secretarium. Para tanto tem como objetos de reflexão o abade Johannes Trithemius (1462-1516) e sua Steganographia (1500), onde ele apresentou um método de comunicação à distância utilizando os chamados Spiritus Aerius, compreendidos por ele como anjos. Assim, pretende-se apresentar um ponto de diálogo rico e profundo entre a comunicação cifr’’’’’’’’’’’’ada do secretário e a instrumentalização pelos magos da mensagem ocultada na natureza pelo Criador. A colaboração que o presente artigo oferece é a reflexão sobre a questão da natureza do segredo de Estado no processo de transformação do regimen medieval no Estado moderno. Palavras chave: Johannes Trithemius; Magus; Secretarium; Linguagem Secreta; Magia.

PARTICIPANTS IN THE SECRET: ENCOUNTER BETWEEN MAGUS AND SECRETARIUM IN THE TRANSFORMATION OF THE MEDIEVAL REGIMEN

Abstract This article discussed the meeting between magic and politics, through the relations between the figures of magus and secretarium. For that have as the subjects of reflection the Abbot Johannes Trithemius (1462-1516) and his Steganographia (1500), where he presented a method of distance communication using so-called Spiritus Aerius, understood by him as angels. We intend to present a point of dialogue between the rich and deep ciphered communication from the secretary and the magus’ instrumentalization of the message hidden in nature by the Creator. The collaboration that this article offers is a reflection on the question of the nature of State secrecy in the process of transforming medieval regimen in the modern State. Keywords: Johannes Trithemius; Magus; Secretarium; Secret Language; Magic.

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

Em vinte e seis de março de 1499, o abade beneditino de Sponheim, Johannes Trithemius (1462-1516), enviou uma carta ao monge carmelita Arnold Bostius, seu companheiro na Fraternidade de Joaquim 1, que morava no monastério de Ghent. Essa missiva tinha como objetivo relatar ao seu companheiro de hábito acerca da última obra de Trithemius, um livro que seria composto por quatro volumes, possuindo mais de cem capítulos. O primeiro livro trataria de mais de uma centena de formas de escrita secreta para se transmitir segredos, sem o uso de transposição de letras, e sem o perigo de ser pego, pois a mensagem seria indecifrável aos não iniciados. O segundo livro trataria da transmissão de segredos a longa distância, excedendo as cem milhas, sem utilizar palavras, escrituras ou mesmo sinais. O terceiro livro teria por fim ensinar ao ignorante em latim tal língua em apenas duas horas, de maneira que este obtivesse pleno domínio da língua latina. O quarto livro versaria sobre as formas de se transmitir um “pensamento secreto” diretamente à mente do destinatário. O trabalho em questão era a Steganographia (BRANN, 1999: 86). Tal carta não pôde ser recebida por Bostius, pois este já havia morrido quando do envio desta. O prior do monastério de Guent, então, interceptou-a e a leu, e concluiu que o abade de Sponheim tratava de demonomagia em sua Steganographia. A partir daí começaria toda uma longa série de investidas contra Trithemius e sua obra de comunicação à distância. Após a apresentação deste episódio, uma pergunta cabível diz respeito às motivações de Trithemius ao compor tal obra, que colocava o abade sob o perigo da acusação de demonomagia, e, mais importante ainda para a presente reflexão, de que maneira o abade Trithemius e sua Steganographia se relacionam com as transformações pelas quais o regimen medieval passou durante o Renascimento. Para começar essa ponderação, pretendo apresentar um breve panorama da vida de Trithemius. O abade nasceu Johannes Zeller de Heidenberg, em Trithenheim, na região do Moselle, em fevereiro de 1462. A adoção do nome Trithemius foi uma homenagem à sua cidade natal. Filho de Johannes Heidenberg, um vinicultor, muito jovem Trithemius se viu órfão, tendo que lidar com o segundo casamento de sua mãe com um homem de sobrenome Cell ou Zell. O jovem Johannes não aceitou o sobrenome do padrasto, com

1

Essa associação, fundada em 1497, tinha como objetivo defender a concepção imaculada da Virgem Maria por Sant’Ana, e tinha como fundador Sebastian Brant (1457-1521), além de Trithemius e Bostius. (COULIANO, 1987: 168)

133

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

quem viveu até os quinze anos, num dos muitos conflitos que marcariam essa relação (COULIANO, 1987: 164). Desde muito cedo, Johannes demonstrou grande desejo pelos estudos. Demandou diversas vezes seu padrasto a financiar sua educação, mas este se manteve contrário a tal desejo, chegando a usar de constrangimento físico para dissuadir o jovem enteado desse intuito, de acordo com Couliano (1987: 164). A resposta de Johannes foi o uso de técnicas de mortificação corporal, como jejuns extenuantes e orações. Foi nesse ponto que ocorreu um dos momentos que Brann (1999: 5-6) compreendeu como formadores da “lenda mágica” que formatou a biografia de Trithemius, num tipo de esforço para exaltar sua figura de mago. Em um sonho, um jovem trajado de branco teria lhe aparecido e apresentado duas tabuletas, uma coberta de inscrições e a outra de figuras pintadas. A figura onírica, entendida pelo jovem como um anjo, teria dito: “Escolha aquela destas duas tabuletas que você deseja”2 (COULIANU, 1987: 164. Tradução nossa), Trithemius escolheu aquela preenchida por inscrições, e o anjo lhe disse: “Deus ouviu suas orações e dará a você ambas as coisas que pediu e muito mais do que você está em posição de pedir”3 (COULIANU, 1987: 165. Tradução nossa). O primeiro pedido do futuro abade era o de aprender tudo o que havia nas Sagradas Escrituras, porém o segundo nunca foi tornado público. Quanto à segunda tabuleta, Couliano considera que ela premiaria o jovem Trithemius com as capacidades mnemônicas, às quais teriam se dedicado também Giordano Bruno (1548-1600) e Giambattista della Porta (1535-1615). Já a tabuleta escolhida teria lhe presenteado com a capacidade de saber tudo o que havia para ser sabido no mundo. Essa hipótese interpretativa de Couliano (1987: 165) está amparada no profundo esforço que o futuro abade demonstrou por toda sua vida, seja na construção da biblioteca do monastério de Sponheim, famosa por sua riqueza literária, seja pelo seu ímpeto de leitor e de escritor, ou mesmo, pelo próprio projeto que embalou sua Steganographia. A partir deste sonho epifânico, Trithemius iniciou sua jornada intelectual, primeiramente patrocinado por seu tio paterno, Peter Heidenberg. Começou sua alfabetização com um cura local, partindo depois em sua peregrinatio academica, viajando pela Holanda e pelos territórios alemães, até Heildenberg, onde teve seu 2

Elige ex his duabus tabulis unam, quam voleris Ecce Deus orationes tuas exaudivit, dabitque tibi utrumque quod postulasti, et quidem plus, quam peterepotuisti 3

134

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

primeiro contato com o Studium Generale (MCLEAN, 1982), que compreendia o trivium – gramática, retórica e dialética – e o quadrivium – aritmética, música, geometria, astronomia – (VERGER, 1999: 33). Durante esse período, Trithemius travou contato e amizade com grandes nomes do humanismo alemão como Johann Von Dalberg (1455-1503), Conrad Celtis (1459-1508), Jacob Wimpfeling (1450-1528) e Johannes Reuchlin (1455-1522). Também foi ali que ele ajudou a fundar a Sociedade Renana de Literatura (BRANN, 1998: 5). Em janeiro de 1482, quando realizava em companhia de um amigo uma viagem de volta a sua cidade natal, Trithemius resolveu conhecer o monastério beneditino de St. Martin, em Sponheim. Aqui se tem mais um dos elementos de sua “lenda mágica”. Quando havia saído do monastério em direção à Trithenheim, ele e seu amigo foram atingidos por uma forte nevasca, que os obrigou a retornar e buscar abrigo em St. Martin. Uma vez de volta, Trithemius teria se encantado por aquele estilo de vida e decidido ingressar no monastério. Ele teve rápida ascensão, sendo eleito abade em 1483, aos vinte e três anos. Os relatos dizem que o monastério estaria em ruínas, e os monges entregues ao ócio. Em oito anos o jovem abade teria reerguido o monastério e aplicado com rigor a Regra de São Bento. Essa nova fase do monastério foi marcada pela confluência da sede de conhecimento do abade e pela ideia de que a vida de um monge deveria ser guiada pela leitura, meditação, oração e contemplação. Como ensejava a Regra de São Bento e desejava o próprio Trithemius, ele restaurou e ampliou a biblioteca de St. Martin. Por volta de 1483, ano em que Trithemius foi eleito abade, essa biblioteca contava com cerca de quarenta e oito volumes, em 1502 o número de obras havia atingido mil seiscentos e quarenta e seis, e em 1505 já havia atingido aproximadamente dois mil volumes. Esses números fizeram com que a biblioteca montada pelo abade se tornasse ponto de peregrinação para os humanistas que visitavam as terras germânicas (BRANN, 1998). Em 1505, os monges sob a tutela de Trithemius começaram a se rebelar. O abade lhes parecia um mestre relapso, que em sua paixão pela biblioteca do monastério e pelos seus livros, os exigia para além do permitido. Essa tensão só conheceu um fim

135

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

quando Joaquim de Brandenburgo (1484-1535), eleitor-margrave 4 do Palatinado, convidou o abade para encontrá-lo em uma assembléia dos príncipes alemães, que se realizou naquele mesmo ano, em Colônia. No ano seguinte, Trithemius renunciou ao cargo de abade em St. Martin, retornando a peregrinatio academica da juventude, passando boa parte do tempo em Berlim, como convidado de Joaquim. Ainda em 1506 ele aceitou ser o abade de St. Jacob, em Wurzburg, onde viveu até falecer em 1516 (BRANN, 1998). Depois dessa breve apresentação do abade, podemos nos debruçar sobre sua obra mais conhecida. Acredita-se que a Steganographia 5 tenha sido redigida por volta de 1500, sendo sua primeira publicação em 1606, após a morte do abade. Ela foi dedicada ao príncipe Filipe, conde palatino do Reno, duque da Bavária e príncipe eleitor do Sacro Império Romano. De acordo com Trithemius (1982: 19. Tradução nossa), ela seria: todos os métodos, maneiras, diferenças, qualidades e métodos desta nossa arte, à qual chamamos steganographia, (contendo segredos, enigmas mistérios completamente claros para nenhum homem mortal, por mais erudito ou sábio) que nunca pode ser completamente descoberta. 6

Reforçando o poder que a revelação onírica juvenil teve sobre a vida do abade de St. Martin, Trithemius defendeu mais de uma vez que a sua arte não seria acessível apenas pela erudição e esforço intelectual. Logo, surge a questão sobre quais seriam os meios adequados para se realizá-la. O próprio Trithemius responde: “os espíritos do ar, bons e maus, foram criados por Deus nas alturas para nosso préstimo e proveito, pelo conhecimento dos quais todos os segredos dessa arte são revelados, sem número ou limite, imperscrutável” 7 (TRITHEMIUS, 1982: 19. Tradução e grifo nossos).

4

Vêm do alemão Markgraf, ou seja, conde de marca. Acabou sendo traduzido para as línguas latinas como marquês. Era o título nobiliárquico dado aos soberanos fronteiriços ao Sacro Império RomanoGermânico. 5 Termo grego que significa escrita oculta (SOKOL & YARMOLIK, 2003). 6 Thus all the methods, ways, differences, qualities and methods of this art of ours, which we call steganographia, (containing secrets, enigmas mysterios completely clear to no mortal man, however erudite or learned) can never be fully discovered. ita nec huius artis nostrae, quam Steganographiam (secreta & arcana & mysteria, nulli mortalium, quantumcunque studioso vel erudito, patula continentem prefecte) appellamus, omnes modi, viae, differentiae, qualitates & operationes in aeternum poterunt ad plenam fieri penetrabiles(TRITHEMIUS, 1621: 6) 7 the spirits of air, good and evil, have been created by God on high for our service and profit, through knowledge of whom all the secrets of this arts are revealed, without number or limit, unfathomable.

136

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

O primeiro livro dessa obra foi dividido em trinta e dois capítulos, mais uma apresentação ao leitor. Trinta e um deles foram dedicados a apresentação dos vários espíritos do ar, necessários para a prática esteganográfica, cuja descrição se assemelha por vezes à dos anjos, sendo o último capítulo um resumo deste primeiro livro. Na prática o abade dividiu o mundo em dezesseis direções, cada uma presidida por um espírito-chefe, que possuía uma corte e um séquito de auxiliares. É interessante notar que o abade não inovou neste ponto, pois Jâmblico já havia dividido o mundo em prefeituras governadas pelo que ele nomeou como demônios celestiais, intrinsecamente ligados aos objetos naturais por eles governados (THORNDIKE, 1923: 310). O ritual esteganográfico consistia em invocação e contra-invocação. O mago emissor da mensagem remeteria uma carta de conteúdo ordinário, que conteria em seu cabeçalho uma exortação da Santa Trindade e o símbolo do espírito utilizado. Pronta a missiva, ele deveria recitar o encantamento correlato ao espírito desejado, voltado para a direção correta, revelando para este ou para um de seus emissários o nome do magodestinatário, bem como a mensagem que realmente deveria ser transmitida. Quando o mago-destinatário recebesse a carta deveria recitar a contra-invocação correta. Assim, a carta física era apenas um meio para despistar os curiosos, uma vez que a mensagem real estaria de posse dos aerius espiritus (TRITHEMIUS, 1982: 21-22). Trithemius alerta por toda sua obra dos riscos de se realizar o procedimento esteganográfico de maneira incorreta ou imprudente, devendo o mago manter-se concentrado e em local silencioso, a fim de se evitar falhas (TRITHEMIUS, 1982: 30). Outra maneira de garantir os bons resultados da prática da Steganographia, era durante a invocação recitar o número dos servos que os espíritos-chefes possuíam, pois isto os deixaria orgulhosos, e logo mais colaborativos (TRITHEMIUS, 1982: 37). Essa ideia remete à Durkheim (1996: 11-12) quando este diz que os seres espirituais devem ser percebidos como formas de consciência, devendo ser tratados por meio de ações psicológicas, como adulações, a fim de se obter deles o auxílio esperado. Esse seria o papel das oferendas e das preces. No segundo livro os espíritos aéreos passam a ser tratados claramente como anjos. Eles são em número de doze, divididos de acordo com as horas noturnas e as Nam quem ad modu~ aorij spiritus boni & mali à summo Deo creati in ministerium & profectum nostrum (per quorum intelligentiã omnia istius artis secreta reuelãtur) sunt nobis sine numero infiniti & penitus incõprehensibiles. (TRITHEMIUS, 1621: 6)

137

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

diurnas, ou seja, seis para cada parte do dia, tendo a herança mágica de Salomão grande influência na estrutura deste livro, como pode ser visto em referências diretas, como quando tratou do anjo horário Quadriel (TRITHEMIUS, 1621). No prefácio deste segundo livro Trithemius retornou a algumas ideias que já se faziam presentes no primeiro, mas traz elementos novos, como a ideia de que a arte esteganográfica estaria reservada aos homens eruditos (TRITHEMIUS, 1982: 85). Essa aproximação entre erudição e uma proposta mágica de comunicação secreta é um dos elementos pelos quais se pode pensar a relação entre o magus e o secretarium¸ à qual trataremos posteriormente. O terceiro livro começa com um agradecimento de Trithemius às deidades cristãs, que o ajudaram a compor sua obra mágica de comunicação secreta: “Agora que pela ajuda de Nosso Senhor, Jesus Cristo, o salvador das almas fiéis, eu trouxe para conclusão os dois primeiros Livros de meu ato” 8 (TRITHEMIUS, 1982: 95. Tradução nossa). Ele prossegue seu discurso aprofundando a relação entre o deus cristão e a magia, bem como desta para com os letrados, retornando assim para a conexão entre a magia e os senhores da linguagem cifrada à qual se dedica sua obra: Isto eu fiz que para os homens de saber e homens profundamente engajados no estudo da magia, isto pode ser, pela Graça de Deus, em algum nível inteligível, enquanto por outro lado, para os descarados comedores de nabos 9 isto poderá permanecer por todo o tempo um segredo escondido, e ser para os seus intelectos estúpidos um livro selado para sempre. 10 (TRITHEMIUS,

1982: 95. Tradução nossa) Nesse terceiro livro, Trithemius dividiu os anjos e seus séquitos em função dos planetas, remetendo ao hermetismo e suas deidades planetárias, influência mágico8

Now that by the help of Our Lord, Jesus Christ, the savior of faithful souls, I have brought to completion the first two Books of my act. Postqvam, auxiliante Domino nostro Iesu Christo Saluatore fidelium animarum, primos artis nostræ libros duos compleuimus, (TRITHEMIUS, 1621: 140) 9 É possível que Trithemius estivesse se referindo a homens tacanhos, uma vez que um dos simbolismos atribuídos ao nabo é o de mediocridade, devido a sua vulgaridade (CHEVALIER, 1991: 629). Assim como o rábano, o nabo era visto no medievo como um símbolo de discórdia, associado aos espíritos malignos (BECKER, 1999: 232), características que o abade também pode ter ensejado atribuir a tais homens. 10 This I did that to men of learning and men deeply engaged in the study of magic, it might, by the Grace of God, be in some degree intelligible, while on the other hand, to the thick-skinned turnip-eaters it might for all time remain a hidden secret, and be to their dull intellects a sealed book for ever. ita illud literis commendare apertioribus volui, vt & viris eruditis ac in magicis studiosissimis, cum Dei uxilio, possit aliquatenus fieri peruium: & tamen imperitis Rapophagis omni tempore maneat occultatum, nullatenus eorum obtuso intellectui cognitum.(TRITHEMIUS, 1621:140)

138

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

filosófica oriunda do antigo Egito e que teve como fundador Hermes Trismegistus, bem como a influência de Pietro d’Abano (c.1250–c.1316) e seu esquema de anjos planetários apresentado em seu Heptameron (1558). Aqui a necessidade de redigir uma carta foi substituída pela habilidade de moldar em cera ou desenhar em papel duas figuras humanas, a do mago-remetente e do mago-destinatário. Seria por meio destas imagens que a comunicação mágica à distância ocorreria, sendo a figura do telefone mágico elaborada pela historiadora inglesa Frances Yates (1995: 167-168) muito útil para se compreender esse processo. Para Trithemius os anjos planetários governariam os céus, se revezando a cada trezentos e cinqüenta e quatro anos e quatro meses. O termo utilizado para designar o reinado místico dos anjos é regit, forma flexionada do verbo latino regere. De acordo com Faria (2001: 201), essa palavra tem como sentido original marcar os limites físicos e morais, e por meio desse movimento obter o comando, o governo. É interessante que Trithemius utilize um verbo tão ligado a concepção temporal de reinar para designar o governo místico dos anjos. Têm-se aqui um dos pontos em que as ideias mágico-religiosas de Trithemius comungam de uma concepção oriunda dos palcos políticos. Apesar da promessa a Bostius de que a Steganographia possuiria quatro livros, só três sobreviveram até nós, sendo que o último incompleto. É provável que isso seja resultado das acusações de demonomagia que o abade sofreu. A recepção da obra de Trithemius pela historiografia moderna foi confusa, dividindo-se em três possibilidades interpretativas (BRANN, 1999: 243-244):

xAqueles que compreenderam a Steganographia como a prova irrefutável de que o abade almejou utilizar seres espirituais para intermediar suas mensagens criptografadas, casos de Frances Yates e Daniel P. Walker;

xAqueles, como Klaus Arnold e Wayne Shumaker, que interpretaram a magia trithemiana como um mero artifício para desviar os “não-iniciados” de seu real conteúdo, que seria um sistema de códigos e cifras puramente lingüísticos;

x(finalmente, aqueles que, como Schneegans e Peuckert, viram na obra do abade um esforço para sintetizar os princípios pitagóricos, platônicos e herméticos em várias exposições teóricas sobre a magia, identificando como os verdadeiros mensageiros do segredo trithemiano as virtudes ocultas do mundo natural, e não os anjos.

139

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

Tais formulações possuem problemas internos passíveis de questionamento. Se os entes espirituais poderiam ser manipulados através de invocação, sendo eles de fato os mensageiros esteganográficos, o uso do ciframento perde a razão de ser. Por outro lado, se o abade apenas lidava com criptografia, arte bem aceita em Roma por sinal, por que utilizar um disfarce tão perigoso, que o levou a ser acusado por diversas vezes de conluio demoníaco, o que poderia ter lhe conduzido a um desfecho trágico. E, uma vez que a magia praticada por Trithemius dependia exclusivamente da magia natural, como chaves lingüísticas sem vinculação mágica poderiam decifrar suas mensagens, sendo que o recurso a elas não faria sentido, uma vez que se tratava de relações simpáticas entre os elementos do mundo natural, como nas leis da magia definidas por James Frazer. Por meio dessas indagações, Brann (1999: 245) demonstra que a obra do abade é por demais complexa para ser elucidada através de explicações dicotomizantes, que não busquem avaliar a vida do abade em sua complexidade. Conforme afirma Brann, Schneegans e Peuckert podem ter razão no tocante aos elementos do arcabouço mágico do abade, porém teriam se equivocado quanto ao seu uso. Enquanto estes autores acreditavam que Trithemius queria utilizar as virtudes ocultas da Natureza apenas para transmitir suas mensagens, Brann afirma que ele também pretendia conectar o mundo material com o divino. As linguagens criptográficas mágicas trithemianas tinham dois objetivos: transmitir a mensagem do príncipe em segurança, mas também criar um meio de ligação entre homem e deidade. Ao conjugar a magia natural de cunho hermético e a magia angélica de natureza cabalista na construção de sua criptografia mágica, o abade pretendia não apenas fornecer ao cristão um acesso à dimensão oculta da natureza, mas um caminho para este compreender a mensagem que o criador ocultou em sua obra. O abade queria produzir uma ferramenta para lidar com o secreto, com a divindade ocultada na obra natural, e por meio desse circular secretamente as mensagens de interesse do príncipe. Num primeiro olhar a Steganographia surge como uma obra de magia, podendo ser alocada entre os grimórios da tradição mágica européia, aparentemente tendo pouca relação com o cenário político da época. Porém, um olhar mais atento pode revelar que a proposta mágica do abade teria objetivos políticos. Para começar vale lembrar que Trithemius esteve sob a proteção do imperador Maximiliano I, a quem dedicou a sua Polygraphia, entre outras coisas, bem como de dois príncipes eleitores alemães, sendo 140

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

eles Filipe (1476-1508), Conde do Palatinado e duque da Bavária, a quem a Steganographia foi dedicada (CULIANU, 1989: 164) e Joaquim de Brandemburgo, quem acolheu o abade quando sua situação em Sponheim ficou insustentável e que também recebeu uma carta onde Trithemius defendeu sua concepção sobre magia, na qual o ato mágico iluminaria a alma do magus com conhecimento de Deus, entre outras coisas (BRANN, 1999: 121). O abade possuía grande interesse nos príncipes, o que se manifestou em sua perseguição a feitiçaria. A crítica e a perseguição às feiticeiras promovida por Trithemius visavam proteger os príncipes dos erros e das idolatrias. O abade pretendeu afastar as feiticeiras do princeps, para que a única influência mágica sobre eles fosse a dos magi, e no caso da corte imperial alemã, a dele (BRANN, 1998: 60). Foi uma busca pelo monopólio do oculto, pois, segundo o abade, as feiticeiras “barulhentamente capturam a atenção de reis e príncipes, corrompem a fé ortodoxa, destroem a pureza de nossa religião, e reintroduzem a idolatria 11” (BRANN, 1998: 60. Tradução Nossa). Porém nem toda a forma mágica seria nefasta ao métier principesco. A magia poderia servir-lhes muito bem, principalmente aquela que ele apresentou em seu tratado esteganográfico. Para o abade, o princeps seria o maior interessado em uma arte construída para retransmitir secretamente mensagens à longas distâncias, enquanto ao mesmo tempo se permaneça seguro que seus conteúdos estão guardados, ao contrário de suas contrapartes do epistolário convencional, não pode ser extraída de seus portadores seja por persuasão ou por coação.

12

(BRANN, 1999: 105. Tradução nossa.)

Trithemius construiu sua Steganographia pensando nas questões principescas, tanto que ele teria realizado uma demonstração de sua arte ao príncipe Felipe de Wittelsbach (BRANN, 1999: 105). A Steganographia seria uma poderosa ferramenta para impedir que os segredos do príncipe caíssem em mãos erradas, colocando assim o bem comum em risco. Esse é um tema recorrente na obra em questão, tanto que a maior parte dos exemplos de finalidades para a arte esteganográfica estão voltados para a defesa do bom governo, como se pode perceber no seguinte exemplo: 11

noisily catch the attention of kings and princes, corrupt the orthodox faith, destroy the purity of our religion, and reintroduce idolatry 12 an art designed to relay messages secretly over long distances, while at the same time resting assured that their guarded contents, unlike those of their conventional epistolary counterparts, could not be extracted from their bearers by either persuasion or duress

141

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

Eu desejo relatar certo segredo para um dos monges, um amigo que está muito distante, o qual se feito público, pode trazer sobre ele o ódio do seu pastor e a prisão, e pode causar mal para mim, para a ordem maior, e para o bem comum. 13(TRITHEMIUS, 1982: 55-56, Tradução e grifo

nossos) A percepção do abade em relação aos segredos do príncipe era embalada pela ideia de que “todas as coisas não precisam ser comunicadas para todos os homens, especialmente aquelas coisas às quais o uso é facilmente aplicável para o mal como para o bem” (BRANN, 1999: 102. Tradução nossa.)

14

. É a partir dessa concepção de como

deve se tratar os assuntos relativos ao governo, que o abade justifica o uso da Steganographia, ou seja, o uso de espíritos aéreos/anjos para comunicar mensagens importantes, uma vez que os homens não seriam confiáveis. Nas palavras dele: “Por essa razão eu decidi que isto poderia ser confiado não a um homem ou a uma carta, mas apenas para os espíritos que eu sei que são leais e confiáveis” 15 (TRITHEMIUS, 1982: 87. Tradução nossa). Isso porque “a confiança nos homens muda com a fortuna. Então, por essa razão, que tudo possa ser seguro, eu chamo um espírito para ser partícipe do segredo” 16 (TRITHEMIUS, 1982: 72-73, Tradução e grifo nossos). Nesse ambiente de incertezas acerca da confiabilidade de homens e cartas, onde a Fortuna pode interferir catastroficamente na comunicação acerca das matérias de interesse do príncipe, a Steganographia surgiria como ferramenta poderosa, talvez a única apta a salvaguardar os interesses relativos ao bom governo, pois apenas ela seria capaz de evitar os volteios do Destino, como se pode perceber no trecho abaixo: O conselheiro chefe de um rei ou príncipe, no comando de um país ou de uma província descobriu a partir da mais secreta informação que inimigos tem um plano para invadir a província em um futuro próximo. Ele deseja

13

I desire to relate a certain secret to one of the monks, a friend who is far away, which were it made public, would bring on him the hatred of his pastor and imprisonment, and would cause harm to me, to ten order, and to the common good. 14 all things do not need to be communicated to all men, especially those things whose use is as easily applicable to evil as to good 15 Hence I decided it should be entrusted not to man or letter but only to spirits which I know are loyal and trustworthy. Vnde non homini, non literis, sed solis spiritibus committo perferendum, quos noui & securos & fideles(TRITHEMIUS, 1621:80) 16 that trust in men changes with fortune. So, therefore, that everything may be safe, I call a spirit to be party to the secret. Homini perferendum minus confido; quippe qui nouerim fidem in hominibus cum fortuna mutari. Vt ergo sint omnia tuta, Spiritum secreti amicum aduoco(TRITHEMIUS, 1621:67)

142

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

advertir o Príncipe, mas não o pode fazer por meio de mensageiros, uma vez que eles podem ser torturados no caminho, para trair o segredo. Nem pode ele alertá-lo por carta, já que ela pode ser aberta. Por essa razão, ele chama um espírito, confia o segredo a ele, e inventa qualquer outra carta. 17(TRITHEMIUS, 1982: 82-83, Tradução e grifo nossos)

Dessa forma, os segredos importantes só eram revelados aos amigos importantes e a ninguém mais, garantindo que o governo, entendido como a “arte de conciliar os interesses particulares, de conservar a forma da república ou de realizar a maior soma possível de forças” (SENELLART, 2006: 22), não fosse prejudicado de forma alguma. Por isso, seria a Steganographia de interesse dos príncipes, como afirma o próprio abade: Quem melhor que um príncipe como Felipe, Trithemius respondeu sua própria pergunta, poderia fazer uso de uma arte planejada para retransmitir mensagens secretamente sobre longas distâncias, enquanto ao mesmo tempo repouse assegurado que os seus conteúdos guardados, diferentes de suas contrapartes no epistolário tradicional, não poderiam ser extraídos de seus transportadores fosse por persuasão ou por coerção. (BRANN, 1998:

105. Tradução nossa) 18 Feita a defesa da importância da Steganographia para a atuação do príncipe, resta saber se ele era capaz de executá-la a contento. Trithemius elencou duas qualidades que seriam essenciais para a correta execução do ato esteganográfico: primeiramente o operador deste ato deveria ser pio e virtuoso, e em segundo lugar, ele deveria possuir a erudição necessária para escrever e ler uma vasta gama de símbolos enigmáticos, essenciais para a operação do esteganógrafo. Dessa maneira, o homem que reunisse em si tais qualidades seria capaz de adentrar o mundo invisível das virtudes ocultas que existe por detrás do mundo material (BRANN, 1998: 116) e decifrá-lo, 17

The chief adviser of a King or Prince, in charge of a country or province has learned from most secret information that enemies have a plan to invade the province in near future. He wishes to warn the Prince, but cannot do so by messengers, since they are to be tortured by the enemies on the way to betray the secret. Nor can he warn him by letter, since that would be open to all. Therefore, he calls a spirit, entrusts the secret to him, and invents some other letter. Prefectus regis aut principis, in terra seu prouincia constitutus, intellexit delatione secretissima hostes in breui propositu~ habere prouinciam irrumpendi: vult auisare principem, sed nuntiis non potest, quia torquendi sunt ab aduersariis in via vt tradant arcanum: nec literis, quoniam omnes aperiuntur per eos. Vocat ergo spiritum, committit arcanum, literas fingit alienas (TRITHEMIUS, 1621: 76) 18 Who better than a Prince like Philip, Trithemius answered his own question, might make use of an art designed to relay messages secretly over long distances, while at same time resting assured that their guarded contents, unlike those of their conventional epistolary counterparts, could not be extracted from theirs bearers by either persuasion or duress.

143

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

instrumentalizando-o.

Trithemius

apresentou

grande

preocupação

de

que

a

Steganographia só fosse acessível ao homem bom, porque O homem bom, um amante da integridade, pode a qualquer hora divulgar o segredo de sua vontade, para o bem privado ou público, seguramente e secretamente para outro com o conhecimento da arte, quando e o quão freqüentemente ele desejar (TRITHEMIUS, 1982: 18. Tradução

Nossa). 19

Por outro lado, se tal conhecimento fosse parar nas mãos do ímpio, o pior poderia acontecer, uma vez que este conhecimento nele mesmo o melhor, e de considerável benefício ao Estado, contudo se isto estivesse ao alcance do conhecimento do mau (Deus proíba isso), toda a ordem do Estado pode ser lançada em severa confusão na passagem do tempo (TRITHEMIUS, 1982: 18. Tradução Nossa). 20

Assim, a segurança do bem comum e do Estado repousaria na correta posse do saber esteganográfico. Trithemius insistiu que a transmissão desse conhecimento só fosse feito sob pesados juramentos, de forma a garantir que apenas os mais preparados, sábios e puros se tornassem agentes do ato esteganográfico. Isso trazia problemas à ideia de que os príncipes poderiam se tornar senhores da Steganographia. Por mais puros e virtuosos que eles fossem, não preencheriam todos os requisitos para agir a arte esteganográfica, pois essa linguagem composta por elementos misteriosos era dominada por poucos, e protegida de divulgação por meio de pactos e juramentos, como dito anteriormente. A partir desse ponto, mais que propor que o rei se tornasse um mago, interpretação apresentada por Brann, o que Trithemius propôs é que o príncipe se aconselhasse com o mago. Essa leitura vai ao encontro da proposta dos humanistas do norte em colocar o conhecimento à disposição do bom governo, buscando aconselhar e educar o príncipe por meio da adequação do studia humanitatis aos interesses da ação principesca. Tal esforço teria se consolidado na produção dos chamados Espelhos de 19

The good man, a lover of integrity, can any time publish the secret of his will, for private or public good, safely and secretly to another with knowledge of the art, whenever and as often as he wishes. Nam sicut bonus & honestatis amator, voluntatis suae secretum, pro bono priuato vel cõmuni, alteri hanc artem scienti, quando & quotiens voluerit, secure, secrete(TRITHEMIUS, 1621:4) 20 while this knowledge in itself is the finest, and of considerable benefit to the State, yet were it to reach the notice of wicked (God forbid it), the whole order of the State might be thrown into severe confusion in the passage of time Enimuero licet haec scientia in se sit optima, & Reipubl. satis vtilis; tamen si ad prauorum notitiam perueniret, (quod Deus prohibeat) totus Reipub. ordo per successum temporis non modice posser turbari (TRITHEMIUS, 1621:4)

144

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

Príncipe, e no caso particular de Trithemius, na variedade deste gênero conhecida como Livro de Mistério. Dessa forma, parece-nos mais aceitável que a proposta esteganográfica esteja mais próxima do surgimento do secretarium do que do rexmagus. Para compreender a relação entre o segredo e as transformações nas formas de governo medieval, Michel Senellart apresentou a figura teórica dos arcana imperii, que possuiria três momentos ou interpretações. Num primeiro, chamado de mistério (SENELLART, 2006: 267-272), o rei se confunde com a divindade, sendo suas ações transcendentais à sociedade, compreensíveis apenas por meio da revelação a um seleto grupo de escolhidos. Em sua terceira faceta (SENELLART, 2006: 277-278), a do estratagema, o arcana imperii se torna uma ferramenta para que o monarca se assegure da posse do poder, a fim de garantir a satisfação de seus interesses ante os facciosos. O ponto intermediário entre o mistério e o estratagema Senellart nomeou como segredo. O segredo não seria proibido como o mistério, e nem potencialmente danoso ao inocente, como o estratagema. Sobre seus assuntos não era proibido falar, desde que apenas um seleto grupo de homens compreendesse do que se tratava na realidade. Ele não era o interdito, era o velado, o cifrado. O que se intentava era restringir os mecanismos internos da arte de governar ao grupo dos iniciados nas artes do segredo, e estes eram os secretários. Segundo Senellart (2006: 273), o segredo tratava de assuntos entre príncipes ou entre estes e seus subordinados, dependia das habilidades particulares de uma categoria especial de funcionários do Estado e vinculava-se a uma técnica de escrita sofisticada e dominada por poucos. A cifra se mostrou então a forma de comunicação por excelência do segredo. Seu valor alavancou a importância de uma categoria de homens letrados detentores de um saber muito valioso para aquele momento, que nada mais era que a linguagem cifrada. Este homem que dominava os caminhos do segredo era o secretarium. Este agente do princeps seria o indivíduo capaz não apenas de cifrar uma mensagem ou uma informação, mas também de decifrá-la. Seu conhecimento era fruto de grande dedicação e reflexão. Segundo Verger (1999: 177), o modelo em que o príncipe “sábio” busca ter letrados ao seu redor, aos quais encomendava obras ideológicas e propagandísticas teve grandes exemplos nos duques da Baviera, nos Eleitores Palatinos e nos margraves de 145

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

Bade, que não deixaram de se cercar de doutores e letrados. A relação entre Maximiliano I e Trithemius se encaixava nesses moldes. Nesse ambiente não penetraram apenas literatos e filósofos, mas também os magi, como se denotaria pela presença de Celtis e de Trithemius. Este último encontrou meios de se aproximar do imperador também através da biblioteca que construiu em Sponheim, uma das mais famosas da Europa, o que certamente deve ter atraído a atenção de Maximiliano, que em certa altura da vida se tornou um entusiasta dos livros. Apesar de não termos encontrado até o momento comprovação documental, é possível que, para o imperador, Trithemius fosse tido como um tipo de secretário, possuidor de habilidades que poderiam ser empregadas em fins específicos, como por exemplo, o domínio da linguagem criptográfica. Essa hipótese se alicerça na afirmação de van Dyke de que Maximiliano fazia uso corrente de secretários, principalmente em sua produção intelectual pessoal. É também possível que a proximidade com o bibliotecário de Maximiliano, Celtis, tenha favorecido o trânsito de Trithemius pela corte imperial. Se Trithemius chegou a exercer junto à corte imperial papel de conselheiro, o fez a partir de sua obra mágica. Assim, como os humanistas do norte produziram seus livros de segredo a fim de salvaguardar os interesses e a força dos reinos, o abade de Sponheim também produziu seu espelho de príncipe, a Steganographia. Nesta obra o livro de segredo do secretarium se cruza com o livro de segredo do magus. Trithemius não foi o único. Senellart apontou com clareza que diversos expoentes da comunicação cifrada estiveram envolvidos com a magia, como foi o caso de Jacques Gohory (15201576) e Giambattista della Porta (SENELLART, 2006: 274-275). Parece claro que a percepção destes homens acerca da possibilidade da linguagem transmitir uma mensagem oculta é devedora da concepção de que a própria natureza possui uma camada interna, que carrega uma mensagem divina, acessível aos iniciados, aqueles portadores de uma inteligência capaz de perceber as virtudes ocultas da natureza. Foi a tentativa de instrumentalizar o segredo da natureza por meio da manipulação das virtudes ocultas naturais, que levou a ideia de que a linguagem poderia carregar em seu bojo uma mensagem oculta. As cifras do secretarium são parentas dos jogos criptográficos cabalísticos, e da ideia do hermetismo de que a divindade deixou uma mensagem criptografada no mundo natural.

146

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

No momento de transformação do regimen medieval em uma forma de governo ancestral do Estado como o conhecemos, as figuras do magus e do secretarium parecem fundir-se. A manutenção do segredo acerca de assuntos de interesse do príncipe, algo aparentemente racional, buscou ferramentas no mundo da magia. Isso não significa uma irracionalidade, mas que nessa transição do regimen medieval para o governo moderno conviveram mais de uma forma de racionalidade, que trabalharam em conjunto para a obtenção de um mesmo objetivo. Até porque só é cabível se falar em uma dimensão política da magia, porque haveria na política uma dimensão propriamente mágica (Clark, 2006: 688-689). É nesse encontro entre magia e política que se situa a Steganographia do abade beneditino Johannes Trithemius, que teve como mote central a seguinte frase: “Dê feno ao boi e açúcar ao papagaio. Aos amigos ordinários os segredos ordinários e aos amigos importantes os segredos importantes”.

147

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

BIBLIOGRAFIA

Fontes TRITHEMIUS, Johannes. Steganographie: Ars per occultam Scripturam animi sui voluntatem absentibus aperiendi certu, 4to, Darmst. 1621 TRITHEMIUS, Johannes. The steganographia of Johannes Trithemius. Translated by Fiona Tait, Christopher Upton and J.W.H. Walden. Edited, with intro, by Adam McLean. Edinburgh: Magnum Opus Hermetic Sourcebook, 1982.

Dicionários BECKER, Udo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Paulus, 1999. CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. FARIA, Ernesto. Vocabulário Latino. Belo Horizonte: Livraria Garnier, 2001.

Referências BORCHARDT, Frank L. The magus as Renaissance man. Sixteenth Century Journal, XXI, 1 (1990), 57-56. BRANN, Noel L. Trithemius and Magical Theology: A Chapter in the Controversy over Occult Studies in Early Modern Europe. State University of New York Press, 1998. BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. Brasília: Ed. UnB, 1991. BURKE, Peter. Os usos da alfabetização no início da Itália moderna. In: BURKE, BURKE, Peter & PORTER, Roy (Orgs.). História social da linguagem. São Paulo: UNESP, 1997. CLARK, Stuart. Pensando com demônios: a ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna. São Paulo: Edusp, 2006. COULIANU, Ioan P. Eros and magic in the renaissance. University Of Chicago Press, 1987. DELUMEAU, Jean. A civilização do renascimento. V.II. Lisboa: Editorial Estampa, 1983. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 148

Revista Chrônidas Revista Eletrônica de História e Ciências Humanas ____________________________________________________________________________________________

ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1993. GARIN, Eugénio. Idade média e renascimento. Lisboa: Editorial Estampa 1994. GARIN, Eugenio. O zodíaco da vida: a polêmica sobre a astrologia do século XVI. LISBOA: Editorial Estampa, 1998. KIECKHEFER, Richard. Magic in the Middle Ages. Cambridge [England]; New York: Cambridge University Press, 1989. KIECKHEFER, Richard. The specific rationality of medieval Magic. The American Historical Review, Vol.99, nº3, (Jun., 1994), 813-836. SENELLART, Michel. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. São Paulo: Editora 34, 2006. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. SOKOL, Bartosz &. YARMOLIK, V.N. Cryptography and Steganography: Teaching Experience, 10th International Multi-Conference Advanced Computer Systems, Miedzyzdroje, Polska, 22-24 pazdziernika 2003, Kluwer Academic Publisher, Springer, pp.: 83-92. THORNDIKE, Lynn. A history of magic and experimental science. New York: ColumbiaUniversity Press, 1923-1958. V.4&5 VAN DYKE, Paul. The literary activity of the emperor Maximilian I. The American Historical Review, Vol.11, nº1, (Oct., 1905), 16-28 VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Bauru, SP: EDUSC, 1999. WALKER, D.P. Spiritual & demonic Magic: from Ficino to Campanella. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 2000. YATES, Frances Amelia. Giordano Bruno e a tradição hermética. São Paulo: Cultrix, 1995.

149

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.